Texto escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago publicado originalmente na Revista Anfíbia.

8M: Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

O #8M se instalou como uma data global e carregado de particularidades: recolhe as características particulares de cada conjuntura e propõe uma estratégia de intervenção em meio à crise. Nesses cinco anos consecutivos de greve, ele trouxe a tona questões que envolvem luta de classes às demandas, e apontou o judiciário e o poder econômico-financeiro como engrenagens da violência patriarcal. Mas, além da denúncia, nomeou e produziu novas formas de compreensão: o movimento feminista enfrenta e não só sofre com as diferentes formas de opressão. Organiza-se para lutar por renda, por moradia, contra a precarização de vidas. Escrevem Luci Cavallero e Verónica Gago.

A greve internacional feminista chega hoje ao seu quinto ano consecutivo, alimentando um processo que se torna cada vez mais complexo, que exige a sustentação de uma coordenação transversal e que marca um acontecimento decisivo na história do recente ciclo do feminismo popular a nível nacional e transnacional. Instalou-se uma data mundial e, em cada local, essa data expressa-se simultaneamente como uma experiência internacionalista sem esquecer as especificidades de cada conjuntura. Ela se constrói como um processo político e, portanto, como um acúmulo de forças que propõe uma agenda, aprofundando debates, subvertendo a obediência, traçando horizontes.

Os sentidos que fazem a greve feminista possível estão vinculados às lutas historicamente relacionadas ao trabalho e às condições de vida das maiorias, que hoje se atualizam para dar conta das formas assumidas pelo trabalho como precariedade generalizada e das tarefas invisibilizadas e naturalizadas sobre certos corpos. Sentidos que, após um ano de pandemia, são urgentes porque explicam com maior evidência as violências cotidianas. A greve possibilita fazer dessas questões ligadas à violencia estrutural uma estratégia de intervenção política em meio a crise. Traça também um vínculo histórico com o arquivo das greves (desde a greve dos inquilinos de 1907 às greves das fábricas no século XX, passando pelas greves nas estradas, mais conhecidas como piquetes), mas agora ampliando e levando essa prática para o interior doméstico, aos territórios comunitários e para as ruas: todas as espacialidades do trabalho que a greve feminista ilumina.

A greve feminista envolve questões de classe às demandas e a linguagem de protesto mesmo que o vocabulário não seja explícito, justamente porque se propõe a parar o maquinário que possibilita a reprodução social, evidenciando seu caráter estratégico que por vezes é ocultado. A greve feminista, ao contrário da tradicional greve operária (ou seja, do movimento operário, masculino, assalariado e sindicalizado) não está ligada apenas a “ofícios” classificados e reconhecidos, como também a tarefas que vão sendo nomeadas e inventadas para se tornarem palpáveis. Relembra ao mesmo tempo à produção a sua conexão inevitável com a reprodução e escancara porque certas tarefas correspondem a uma determinada divisão sexual do trabalho e porque sem mandatos de gênero não há acumulação de capital. Neste sentido, é ao mesmo tempo uma greve de trabalho e uma greve existencial: mostra os espaços em que vida e trabalho se misturam e se distinguem. Em plena pandemia, o “fique em casa” (uma pirueta histórica sobre “da casa para o trabalho e do trabalho para casa”) tem sido um grande laboratório que evidencia essa indistinção. 

A greve para desenhar o mapa completo

Neste 2021, o 8M mergulha em cheio em questões que marcam a conjuntura, mas redefinindo-a com pedagogia feminista: isto é, propondo análises, mas também alimentando a intervenção programática. A greve preocupa-se em apontar o poder judicial como uma engrenagem da violência patriarcal, mas também do poder econômico-financeiro e a urgência das demandas de autonomia econômica como parte inseparável de qualquer confronto às violências machistas.

Ou seja, a greve traça o mapa completo do que hoje está em disputa com chamados que combinam denúncia à impunidade judicial e policial, ao mesmo tempo que exigem o reconhecimento monetário e maiores rendimentos à trabalhadoras precarizadas, a cargo de infra-estruturas populares para tornar possível a vida em meio a territórios devastados. Dizer “As promotoras cuidam de nós”, por exemplo, é eloquente neste sentido. É uma declinação da demanda por cuidados em um código sindical, porque exige direitos e salários. Mistura-se e não divide-se entre trabalho e cuidados. É uma provocação à violência institucional e ao mesmo tempo sinaliza uma força de autodefesa do bairro, entendida como uma luta por recursos desde o direito à habitação até a desdolarização dos alimentos.

Poderíamos dizer que o movimento feminista politizou a denúncia do poder judicial a partir “de baixo” e, nesta politização, a demanda por justiça aparece ligada às condições de vida que permitem sair de uma situação de violência. Sabemos que a questão da justiça é extremamente complexa. Sobram os atalhos punitivistas e frases rápidas. No entanto, quando assume um lugar central na agenda feminista, este poder opaco ganha nome nas assembléias de bairro, se revela o carácter estrutural de cumpicidade, evidenciando seu atuar racista, classista e sexista. Não são suficientes as denúncias para modificá-las, mas sem dúvidas retirá-la do seu confinamento palaciano e da linguagem alambicada de seus procedimentos é um feito.

O diagnóstico feminista das violências, que inclui o aparelho judicial, também confronta a morbidez mediática que opera para nos congelar numa posição de vítimas perpétuas e contagem necropolítica de femicídios. Sem dúvida, o impacto da violência como experiência cotidiana é uma questão que tem muito a ver com a ampliação de uma sensibilidade feminista que nomeia, denuncia e produz a compreensão sobre suas raízes. Sobretudo porque este movimento torna possível enfrentá-la e não apenas sofrê-la. Organizar-se para lutar por rendimentos, por moradia, pela revogação de legislações repressivas, contra a precarização das vidas, contra o racismo institucional, são formas concretas de mapear este enxame de violência e definir táticas nos territórios onde estas violências são condensadas e reforçadas. Nesta saga, a greve coloca em evidência que somos também produtoras de valor, trabalhadoras e criadoras de mundos e de formas de sociabilidade, mesmo que em condições de extrema precariedade. A greve feminista, neste sentido, suscita um trabalho intenso programático e não apenas de denúncia.

É por isso que nesta greve a exigência de melhores rendimentos e por reconhecimento das tarefas invisibilizadas assumem um papel central, incluindo a exigência da aprovação da lei de cotas de trabalho travesti-trans. Porque reclama de um lugar de reconhecimento realista de quem constitui a classe trabalhadora atualmente, começando por aqueles a quem se têm negado historicamente o privilégio do salário cis-heterossexual.

Como paramos contra o poder imobiliário e financeiro?

Contra a ideia de uma suspensão que pareceu se instalar na pandemia, o poder imobiliário e financeiro nunca pararam. Por isso a importância de seguir ampliando a imaginação do que significa parar: como sair da extração permanente de receitas financeiras e imobiliárias? Como paramos e os confrontamos? Que tipo de alianças políticas eles exigem? 

A procura por moradia tornou-se neste ano de pandemia um ponto crítico. Vai desde um diagnóstico do que significa alugar sendo mulher e chefe de família com filhos dependentes, lésbicas, maricas, travestis e trans com as condições impossíveis de alcançar que são impostas pelos proprietários e imobiliárias, passando pela denúncia da violação da lei de aluguéis e a proibição de despejos e o pedido da sua prorrogação e apelo por uma política de desendividamento para as dívidas acumuladas durante a pandemia. Esta é também uma denúncia das redes de assembléias de favelas na Cidade de Buenos Aires, onde se explicita que as urbanizações não levam em conta as exigências feministas, onde denunciar uma pessoa violenta significa ficar sem casa ou, como no caso da Villa 31 e 31 bis, onde a urbanização larretista é feita com base num endividamento que implica um despejo futuro e legalizado pela acumulação de dívidas. Mas também se discute e debate como enfrentar o rendimento do agronegócio que priva de alimentos a maioria da população e os dolariza. Nesta greve, as demandas das mulheres campesinas por terra e por um modelo de produção agroecológico assumem também uma nova centralidade, fazendo do verdurazo feminista uma modalidade de greve.

Sindicalismo feminista, a melhor vacina contra a pandemia

Contra certas operações da imprensa hegemônica, que procuram reduzir o feminismo a uma contagem fria de femicídios, a greve feminista permite outros sentidos capazes de assumir a dor sem a encapsular no vitimismo. Permite dizer cada nome e gritar por  justiça em voz alta, produzindo força coletiva para sustentar uma faixa que aponta com certeza para uma pergunta: “quem nos protege da polícia?”.

No caso da Argentina, cabe relembrar que o documento de demandas conseguiu reunir as assinaturas das cinco centrais sindicais do país. É uma rubrica de transversalidade que tem uma marca feminista, sintetizada na frase “Trabalhadoras somos todas” e que escreve um fato histórico, endossado nas conferências de imprensa que escolheram o cenário da rua do monumento ao trabalho para reunir as mulheres dirigentes de todos os sindicatos, incluindo a economia popular (As demandas do 8M).

Mas o sindicalismo feminista é o que também excede aos sindicatos. É uma forma de organizar reivindicações, levando a sério a ampliação do conceito de trabalho pelo feminismo e colocando a lupa na reprodução social. Os diagnósticos feministas sobre a pauperização das condições de trabalho assalariado, doméstico, migrante, sob processos acelerados de precarização, na pandemia são os mais precisos, tanto porque ampliam a noção de trabalho como porque pensam em estratégias sindicais para intervir nesta ampliação. A evidência da multiplicação de jornadas de trabalho num mesmo dia, o cansaço que implica colocar corpo à crise, o teletrabalho simultâneamente com os trabalhos escolares dentro das casas, os malabarismos que são feitos com os rendimentos que diminuem ao ritmo da inflação, a substituição de tarefas estatais às custas de redes super demandadas e com recursos nunca suficientes, expande o campo das lutas, aponta o trabalho gratuito, disputa reconhecimento e recursos que incluem e, ao mesmo tempo, transbordam o salário.

Se, no início da pandemia, nos perguntamos se não estávamos na presença de uma reestruturação das relações de classe dentro da esfera doméstica, que tentava fazer das casas um laboratório para o capital, hoje temos muitíssimos elementos para mapear essa disputa.

Voltar a levantar a greve feminista serve, aqui e em todo o mundo, para confrontar nesse plano. A questão é  como continuar construindo um sindicalismo que vá além do quadro de exigências das trabalhadoras assalariadas, para levar a agilidade e astúcia da luta reivindicativa aos terrenos da reprodução social: moradia, saúde, educação, cuidados, segurança dos bairros. Em aliança com xs trabalhadorxs de cada setor, mas ao mesmo tempo alcançando uma agenda que vai além, porque inclui vizinhas, usuárias, inquilinas, trabalhadoras precarizadas. É uma pergunta-horizonte que surge porque quando paramos também produzimos tempo para a invenção política.

Luci Cavallero e Verónica Gago são autoras do livro “Uma leitura feminista da dívida”, publicado pela nossa Editora. Clica aqui pra conferir!