Carta de um psicanalista a outras: o que fazer diante da tragédia

Mercado Público de Porto Alegre durante a enchente do mês de maio.

Querides, como vocês estão?

 

Sei que pergunta hoje é diferente daquela protocolar, de cada vez que nos ligamos pra falar das novidades da editora, conversar sobre trabalhos em andamento, fazer planos para o futuro. Imagino que a resposta tampouco será o habitual “tudo bem”, ainda que seja tudo o que gostaria de ouvir.

 

É preciso, então, estar preparado para escutar o que não está bem. Mas tudo bem, esse é de certa forma o nosso ofício de psicanalistas, ainda que nem sempre estejamos preparados de verdade para ele. Sempre há um limite para o que podemos, conseguimos, escutar. E, no entanto, é preciso fazê-lo.

 

É necessário lidar com os limites do que é possível fazer, ou mesmo do que chegamos a sentir diante de certas experiências vividas pelo outro. Assim, muitas vezes, a empatia implica saber que não podemos, de modo algum, ocupar o lugar do outro, sentir o que ele está sentindo. Significa suportar não apenas o sofrimento, a angústia trazida por aquele que está diante de nós, com suas palavras ou seu silêncio, mas o fato, concreto, encarnado, de que o que é vivido pelo outro simplesmente está fora do nosso alcance. 

Mesmo que o outro espere algo de nós, dificilmente sabemos exatamente do que se trata e que efeito terá. Por isso, o cuidado necessário para não transformar a suposição de saber em pretensão de mestria.

 

Ainda assim, penso no que dizer a vocês ou no que poderia ser dito a milhares de pessoas que viram suas vidas arrastadas pelas águas. 

De nada vale, creio, dizer o óbvio, que é preciso construir redes de solidariedade ou responsabilizar aqueles que, de algum modo, poderiam ter feito algo para evitar a tragédia. As pessoas já sabem, mais do que isso, sentem literalmente na própria pele, tanto o valor da solidariedade quanto a crueldade da negligência e da incompetência. Tampouco, talvez, adiante lembra-las que estão traumatizadas ou que sua tragédia é apenas uma pequena parcela de algo maior, do nosso descuido com o planeta ou com a vida sobre ele. Há sempre algo de singular na catástrofe, para cada um que a viveu, mas nunca seremos capazes de saber de antemão o que foi de fato levado pelas águas. Por isso, é preciso escutar e dar tempo para que as pessoas possam falar, ainda que não saibam o que dizer.

 

Lembro de um velho analista para quem devemos falar pouco para não falar bobagem. Talvez, em momentos como esse, um olhar seja tão ou mais importante que palavras, olhar e presença, contenção. Um amigo dizia que em certos momentos somos como janela, para que nossas e nossos analisantes possam contemplar outras paisagens, novos horizontes. Em outros, precisamos ser parede. Para conter a angústia, barrar afetos, enxugar lágrimas. Meu primeiro sentimento a ver as imagens da sua cidade foi de impotência. Talvez seja em torno dele que as palavras – e outros afetos – possam circular. Por isso, paro por aqui, e apenas me coloco à disposição, caso vocês queiram conversar, caso algo precise ser dito.

 

Carta escrita por Eduardo Leal Cunha, baiano de Salvador. Membro do EBEP/Aracaju, é psicólogo e psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ), é atualmente professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFS e pesquisador associado do Departamento de Estudos Psicanalíticos da Universidade de Paris. É autor de diversos livros, entre eles “O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política”, disponível aqui.

“O orçamento da polícia deve ser transferido para cobrir necessidades básicas”, por Dean Spade

Dean Spade é professor de direito na Universidade de Seattle e fundador do Sylvia Rivera Law Project , que oferece assessoria jurídica a pessoas trans, intersexuais ou não binárias sem recursos financeiros. Ele também é um ativista contra a expansão do sistema penal e policial. 

O trabalho de Spade está focado em desvendar os principais problemas do ativismo popular que, nos últimos anos e com a pandemia, cresceu enormemente nos Estados Unidos. Ele dedica seu último livro a essas formas organizacionais, Apoio Mútuo: Construindo Solidariedade Durante Essa Crise (e a Próxima). Já Uma vida “normal” (Ed. Bellaterra) –publicado em 2015– é um ensaio sobre como a violência institucional, o racismo ou a criminalização do uso de drogas influenciam a vida das pessoas LGBTQIA+, temas que normalmente não são abordados pela militância ou pelo ativismo que pauta reformas jurídicas.

Na Espanha, está prestes a ser aprovada uma nova lei trans que envolve a autodeterminação de gênero e algumas políticas de apoio às pessoas trans. Que impacto têm estas leis na transformação da vida das pessoas?

Uma das coisas com que lidamos nos movimentos sociais é a questão de como não focar apenas na produção de leis, ou na introdução de questões como o discurso de ódio sobre grupos marginalizados, porque isso nos faz colocar muito foco no poder do Estado . É como se só o governo pudesse resolver todos os nossos problemas. Além disso, reforça a ideia de que o que dizem as leis se refletirá automaticamente na vida das pessoas, e a realidade é que existe uma grande lacuna. Esta lacuna surge de diferenças dentro de grupos, dentro de cidades ou regiões, entre bairros, ou de diferenças na forma como os funcionários do governo e outros intervenientes veem as pessoas trans com deficiência, os imigrantes ou as pessoas transgênero de classe alta. Todas estas diferenças dentro de um grupo fazem com que a aplicação da lei tenha um impacto diferente, porque as leis são implementadas por pessoas e terão prioridades diferentes sob diferentes administrações ou sob diferentes partidos.

Outra preocupação é que quando as leis são legisladas ou as leis são alteradas, os governantes dizem: “Agora este grupo de pessoas é igual” ou “De agora em diante, serão bem tratados”. Dizem que resolveram os problemas na tentativa de desmobilizar os nossos movimentos. Nosso trabalho é dizer que nada será resolvido até que nosso povo consiga sobreviver, e a lei não é a ferramenta ideal para isso. O que realmente precisamos é de uma população fortemente mobilizada e de movimentos interseccionais radicais em constante resistência, que procurem verdadeiramente o bem-estar das pessoas frente ao que enfrentamos no capitalismo ou no neoliberalismo. 

Acredito no trabalho de reforma legislativa dos movimentos sociais, mas isso não deve ter um papel central. Devemos ter também um papel crítico.

De que tipo de leis as pessoas trans precisam ou quais seriam verdadeiramente transformadoras?

Deveríamos buscar uma reforma jurídica baseada no alívio do pior sofrimento enfrentado pelas pessoas trans, aquelas que se encontram nas situações mais complicadas e perigosas ou que estão verdadeiramente à margem: as pessoas trans que estão na prisão, aquelas que enfrentam a deportação, os mais pobres, as pessoas mais criminalizadas, as pessoas trans com deficiência. Observem as suas vidas e pensem se as reformas legais que estão a sendo consideradas vão resolver os seus problemas, porque se não, acabamos por criar leis que apenas aperfeiçoam o sistema que os mantém marginalizados. Sendo assim, a justiça se transforma em algo que só pode ser acessado se você tiver um emprego com status, ou se não estiver a margem. Isso significa que temos que analisar o impacto material das leis. Queremos evitar leis que sejam apenas simbólicas, que não ofereçam ajuda, que sirvam apenas pessoas de status elevado ou que tenham vida mais privilegiada, que é, na verdade, o que a maioria das leis acabam fazendo.

Queremos pensar em soluções jurídicas que vão além de ter a palavra “trans” escrita. Por exemplo, nos Estados Unidos, qualquer lei que ajude a reduzir o número de policiais será boa para as pessoas trans, porque a polícia as persegue; ou qualquer lei que ajude a reduzir as penas criminais por serem pobres ou usarem drogas, porque é assim que a maioria deles acaba na prisão. Aparentemente, essas leis não são para pessoas trans, mas, em última análise, seriam as mais benéficas. Devemos nos concentrar nelas. Por exemplo, nos Estados Unidos, foram aprovadas leis há décadas para endurecer as penas para ataques a pessoas trans por serem trans (crimes de ódio). Não há provas de que previnam a violência e geralmente servem para aumentar o financiamento da polícia e dos procuradores, e qualquer coisa que dê poder à polícia e aos procuradores é mau para as pessoas trans. Temos que pensar bem: como saber se a lei é realmente boa? Analisar se é bom para pessoas trans que se encontram nas situações mais vulneráveis.

As leis que criminalizam o trabalho sexual entrariam em jogo aqui?

Exatamente. Esta é uma das formas mais importantes de criminalizar as pessoas trans. Se conseguirmos descriminalizar o trabalho sexual e reduzir o impacto da polícia na vida dos trabalhadores do sexo, isso seria uma reforma legal que realmente ajudaria as pessoas trans.

No seu último livro você fala sobre apoio mútuo. Podemos combiná-lo com ação judicial ou estamos perdendo o horizonte de onde intervir?

Se quisermos uma mudança que seja libertadora, temos que exercer uma pressão significativa e sustentada dos movimentos sociais, precisamos da participação de muitas pessoas. Por vezes, o problema da reforma jurídica é que ela é levada a cabo apenas por algumas ONGs e envolve apenas algumas pessoas da elite. Não é uma estratégia muito participativa. E o que vejo tanto nos EUA como noutras partes do mundo é que, mesmo que existam boas leis, se não houver forma de sustentar a pressão da mobilização, elas não serão necessariamente aplicadas. O verdadeiro motor da mudança social para as pessoas trans deve ser a mobilização de base, por isso precisamos de organizações militantes trans fortes, mas também devemos estar conectados com outras organizações, como por exemplo, das trabalhadoras sexuais, de descriminalização das drogas, etc.

As redes de apoio mútuo são hoje locais onde muitas pessoas aderem aos movimentos sociais. É onde as pessoas comuns vêm e participam de mais do que ações para mudar a lei. O trabalho legislativo, quando vem da mobilização popular, tem mais qualidade, porque sabe quais são os problemas materiais cotidianos das pessoas vulneráveis ​​e, provavelmente, também como as leis existentes são aplicadas. Se você está fazendo um trabalho de apoio mútuo, você sabe antes de tudo detectar o problema e sabe exatamente como o sistema jurídico funciona atualmente. Ou seja, não como aparece na redação da lei, mas na prática, na sua aplicação.

Você faz parte do movimento abolicionista nos Estados Unidos. O que está acontecendo?

No ano passado houve uma mobilização social e antipolicial incrível em todo o país. Após as mortes de George Floyd e Breonna Taylor, ocorreram protestos em todos os lugares. Isto levou à demanda para retirar fundos e repasses da polícia . Há décadas que trabalho pela abolição das prisões e da polícia e estas ideias nunca chegaram ao mainstream como estão agora. 

Em muitas cidades, as pessoas têm lutado nas câmaras municipais e noutras instituições para literalmente acabar com o orçamento da polícia, ou reduzi-lo. Tem sido uma luta muito difícil porque nos últimos 40 ou 50 anos os orçamentos da polícia aumentaram todos os anos. É um dos momentos políticos mais emocionantes que já vi. As pessoas queer, trans e também as feministas são uma parte importante dessas lutas porque sabem que a polícia não nos deixa mais seguros. Isto é importante porque a desculpa da segurança das mulheres é frequentemente utilizada para pedir mais polícia. Onde eu moro, em Seattle, a polícia tem até adesivos de arco-íris, ou contrata um policial gay ou trans. Portanto, é muito importante que pessoas queer, trans, feministas e especialmente racializadas digam: “Isso não resolve nossos problemas, nós não queremos isso”. 

O que contribui para reduzir a violência ou o que nos traz a sensação de estarmos mais seguros?

Sabemos que a polícia só acrescenta mais violência a qualquer situação – prende as pessoas, utiliza da própria violência para bater e violar, em algumas situações. Se algo acontecer com você, a polícia chega quando tudo já aconteceu. Nada é feito para impedir que as coisas aconteçam. Além disso, eles podem punir quem fez algo, mas nada muda, nada garante que essa situação não voltará a se repetir, então você não estará mais seguro do que antes. 

Nos movimentos sociais, fazemos outros tipos de perguntas: “O que realmente faz com que estejamos mais seguros?” Uma das coisas que torna as pessoas mais seguras é o acesso à habitação, à alimentação e a um sistema de saúde público. Quando olhamos para as mulheres trans assassinadas nos Estados Unidos, muitas não tinham um lugar seguro para morar, o que as levou a situações perigosas, ou realizavam trabalho sexual de forma insegura, porque não tinham recursos para fazê-lo de outra forma. . Se quisermos segurança real, temos de transferir dinheiro dos orçamentos da polícia para habitação, saúde, cuidados infantis, etc., para cobrir necessidades básicas.

A segunda questão presente em pautas feministas, nos movimentos queer e trans, é sobre as suas própriascondições de vida. Nós nos perguntamos: o que as pessoas da nossa comunidade precisam? Devemos levá-los aos eventos e acompanhá-los depois? Precisamos que a comunidade ofereça formação sobre violência doméstica, sobre como apoiar os nossos amigos quando estão em situações de violência…? O que pode a militância de base fazer para mudar as condições de vida que tornam algumas pessoas da nossa comunidade tão vulneráveis?

 

Isto está relacionado com o que é chamado de justiça restaurativa?

Muitas pessoas nas nossas comunidades já realizam trabalho de justiça restaurativa, que envolve pensar que quando algo mau acontece, o que podemos fazer? Por exemplo, se estivermos num círculo social onde uma pessoa agride sexualmente outras, como podemos fazer com que isso pare? A vítima precisa de suporte? Por que a pessoa que cometeu esse crime fez isto? Essa pessoa tem problemas com drogas? Essa pessoa precisa de suporte em relação a sua saúde mental? Essa pessoa está fazendo isso porque precisa entender questões relacionadas a gênero e sexualidade de outra forma? E o que as pessoas que foram agredidas precisam para continuar fazendo parte da comunidade e se sentirem apoiadas em situações difíceis como essa? Como o dano causado não pode ser desfeito, pode haver uma maneira de curar e curar, de restaurar o seu bem-estar?

A polícia e os tribunais não oferecem nada disso. Portanto, tem mais a ver com a forma como respondemos para que isso pare de acontecer e todos os envolvidos fiquem em melhor situação, em vez de aplicar punições. A punição nunca diminui o dano causado. Na verdade, se uma pessoa violar outra e você a mandar para a prisão, ela poderá continuar a violar lá. Isso não resolve nenhuma das causas subjacentes. 

Na Espanha vemos um certo feminismo muito pautado na produção de novas leis ou mesmo em pedir o aumento das penas de leis já existentes. 

Nos Estados Unidos chamamos de “feminismo prisional” e não queremos um feminismo que se baseie no pedido de mais polícia e mais prisões. Vivemos num período, que começou na década de 1970 e continua desde então, em que a polícia e as prisões estão crescendo muito. Uma das razões pelas quais estão crescendo é sob o pretexto de “proteger as mulheres”. Assim, o governo começou a financiar programas para abordar a violência doméstica e sexual, trazendo como solução mais detenções e mais pessoas na prisão. Depois de aplicar isto durante 40 ou 50 anos, não vemos redução nos casos. Em relação à violência sexual, tivemos inclusive um aumento, porque a polícia é também uma importante fonte de violência sexual. 

Queremos enterrar o feminismo prisional e concentrar-nos num feminismo que vai no cerne das causas da violência contra as mulheres, pessoas queer e trans, e que quer acabar com a violência em vez de apoiar o crescimento da polícia. E nos perguntamos por que a maioria das pessoas que sofrem violência em casa não denunciam? Muitos não querem que os seus entes sejam presos ou sabem que a polícia não vai acreditar neles, porque são pobres, não têm documentos ou porque têm medo da polícia, porque são homossexuais ou trans, e já sofreram com a violência policial.

A solução tem a ver com acreditar que as pessoas, mesmo aquelas que causaram dor, fazem parte da nossa comunidade, e devemos responsabilizá-las, mas também possibilitar o retorno ao seu lugar. O objetivo é ajudá-los a mudar seu comportamento em vez de expulsá-los. O que é necessário para assumirmos que as pessoas não são apenas as coisas horríveis que fizeram? Vamos usar soluções comunitárias para reduzir danos. 

Foram as mulheres negras, os imigrantes, as pessoas com deficiência, que tiveram de buscar e encontrar essas estratégias de sobrevivência. Nunca conseguiram chamar a polícia, porque sabem que se vierem causarão ainda mais danos. Esse trabalho prático emergiu do feminismo.

Nos recentes protestos nos Estados Unidos tem havido grandes manifestações lideradas pelo slogan: “Black Trans Live Matter”. Como estão acontecendo essas alianças entre lutas?

A forma como o Black Lives Matter está crescendo levou as pessoas a organizarem grupos em todo o país nos últimos anos e, mesmo antes de 2020, esse tem sido um movimento verdadeiramente interseccional. Têm pessoas trans, negras, queer, feministas que apoiam a causa palestina… Um dos objetivos tem sido mostrar as histórias de mulheres negras, de pessoas negras com deficiência… A solidariedade que existe dentro do movimento tem sido muito orgânico e sempre existiram muitas pessoas trans em posições de liderança.

Esse momento representa uma transformação nos Estados Unidos daqueles movimentos civis com políticas e estratégias que buscavam a respeitabilidade e que historicamente têm sido mais patriarcais e mais heterossexuais, menos interseccionais. O movimento Black Lives Matter já emergiu de mulheres queer, tem sido inerentemente mais queer e trans. É um momento impressionante e, além disso, vem no mesmo período do renascimento da resistência indígena em Standing Rock, dos movimentos feministas indígenas, que são muito inclusivos… Estamos em um momento de emergência do movimentos de base, que são muito interseccionais.

O que você acha da aparente aliança que está ocorrendo entre certo feminismo transfóbico e alguns fundamentalistas cristãos ou de direita?

Infelizmente, ainda vivemos uma reação contra o feminismo que começou nos anos 80. Nos Estados Unidos, assistimos a momentos muito específicos desses movimentos transfóbicos. Há um número surpreendente de leis que se concentram em dificultar ou impossibilitar o acesso dos jovens trans aos cuidados de saúde e aos esportes. Apesar do período de efervescência política trans e dos esforços de reforma jurídica que ocorreram desde o final dos anos 90 até hoje, na verdade não conseguimos tantos avanços.

Existe uma lei federal, uma lei sobre crimes de ódio que dá dinheiro à polícia e há algumas pequenas coisas que foram alcançadas com Obama, mas a maioria das pessoas trans ainda vive à margem. Houve também algumas melhorias na identidade recolhida nos DNIs, mas ainda existem muitos obstáculos à sobrevivência. No entanto, nos últimos cinco anos houve mais aparições de pessoas trans na televisão convencional . Assim, embora não tenha havido mudanças importantes no cotidiano das pessoas trans, houve uma reação violenta muito significativa da direita a essas pequenas conquistas que se intensificou.

Por volta de 2013, começa um período em que muitas leis estaduais tentam criminalizar ainda mais as pessoas trans por usarem os banheiros (com os quais elas se sentem confortáveis) e agora muitas leis estaduais estão tentando aprovar dizendo que os jovens trans não podem receber cuidados de saúde específicos. Também tentam impedi-los de praticar esportes nas escolas de acordo com seu gênero. Por exemplo, as meninas trans não podem praticar esportes com outras meninas.

Há uma conduta, na forma de uma guerra cultural, e é interessante como ela coincidiu com a ação do TERF (anti-transfeminismo), o que me lembra a década de 1980, quando ativistas de direita anti-pornografia se aliaram com feministas anti-sexo que eram contra o trabalho sexual, a pornografia e a favor da censura. Sinto que essa coligação está se repetindo. O fato dessas pessoas se considerarem feministas e estarem dispostas a alinhar-se com a direita que tenta proteger o patriarcado e o controle sobre os corpos das mulheres e o corpo queer e trans é chocante para mim.

*Entrevista originalmente publicada no Periódico Contexto y Acción.

Direito e Psicanálise, por Christian Dunker

Essa entrevista foi produzida em parceria com a Livraria Cabeceira. Originalmente publicada em: https://inb.org.br/direito-e-psicanalise-com-christian-dunker/

O “Direito e o mundo” é um espaço dedicado a explorar as conexões existentes entre o campo jurídico e outras áreas do conhecimento. O professor Christian Dunker nos contou em entrevista sobre alguns aspectos da área do direito e psicanálise. 

A objetividade própria do sistema jurídico normativo pode nos fazer esquecer que os sujeitos de direito também são sujeitos de desejo. Os longos processos judiciais, por vezes, escondem uma importante camada de sentido: as pessoas sentadas em um tribunal são pessoas, antes mesmo de réus, advogados, promotores ou juízes. Isso significa que dentro delas existe um universo de significados específicos e particulares. 

A psicanálise é uma forma eficiente de compreender e desconstruir uma série de formas e dogmas impostos pelo Direito a partir das categorias da subjetividade. Em 9 de janeiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com o professor Christian Dunker para debater as possíveis relações entre os dois campos do conhecimento.

Direito e Psicanálise: a concepção do justo

INB: No direito impera o pressuposto da Justiça. O que o senhor, utilizando o referencial teórico da psicanálise, compreende como Justiça? Como a psicanálise observa a própria noção do justo?

Christian Dunker: A primeira informação importante para começar essa reflexão, é que Sigmund Freud e Hans Kelsen foram colegas de escola. Inclusive, Kelsen foi leitor de um trabalho de 1929 escrito por Freud que virou referência, chamado Mal-estar na Civilização. Kelsen leu o texto e fez algumas proposições que Freud aceitou. Nesse momento, também publicou um pequeno artigo sobre a relação entre psicologia social e psicanálise.

Inicialmente, podemos dizer que o conceito de Justiça é um tanto distribuído na psicanálise. Não encontramos uma exposição muito sistemática e nem muito detalhada dessa noção. Mas podemos dividir o tratamento da questão da Justiça de três maneiras. 

A primeira é o que podemos chamar de um sentimento de Justiça, que pode ser compreendido como uma tradução subjetiva da distribuição dos atos de conhecimento, dos predicados, das trocas que organizam nossa sociedade como um universo simbólico. Isto é, como um universo dependente da circulação daquilo que a gente supõe do desejo do outro. É nesse estado de coisas que Freud introduziu uma novidade: a Justiça não tem uma matriz natural – este é um ponto importante, pois Freud não era um jusnaturalista.

Assim, ela não procede de nenhum sentimento ou disposição primitiva, uma vez que é uma construção elaborada na medida em que nós, enquanto sociedade, temos de encarar o preço civilizatório. Na verdade, trata-se aqui do preço para estar com o outro, para poder amar e ser amado, para poder desejar e ser desejado. Mas também do preço que pagamos para a destruição das satisfações e dos prazeres. Aqui entramos na segunda fase da discussão.

Esse é o tema tratado no Mal-estar na Civilização. Interpretar que todos nós estamos no estado de sacrifício porque fomos privados de algo, significa identificar um solo comum que Freud chamada de Hilflosigkeit – o desamparo. Nesse sentido, a Justiça será determinada pela distância que nos encontramos em relação a essa falta comum, a esse estado de carência, de dependência uma vez que, no fundo, precisamos do outro. Essa é uma medida para o sentimento de Justiça.

Uma outra medida, com a qual Freud tenta equilibrar esse primeiro entendimento, diz respeito ao quanto de satisfação, de gozo e prazer atribui-se ao outro. Estabelece-se aqui a crítica freudiana ao axioma judaico-cristão que profere: “amar o outro como a si mesmo”.  Ora, isso seria justo, mas impraticável. Isso porque o amor não é democrático, ele não pode ser obrigatório ou compulsório. O amor é injusto. Eu posso amar o outro, dedicar a ele os meus melhores esforços, meus melhores carinhos e não ser correspondido.

Aqui opera um paradoxo: o sentimento de desamor não é o que nos falta, mas aquilo que temos e que supomos que o outro pode nos dar. Portanto, o desamor é interpretado subjetivamente como justiça. Eu me dedico ao outro,  renuncio aos meus prazeres imediatos, me faço amar pelo outro, mas o outro não me retribui. Existe uma espécie de gargalo nessa justiça não retributiva entre amar e ser amado,  que é próprio de relações assimétricas, por exemplo, entre a mãe e a criança, entre o pai e a criança, entre o homem e mulher, entre dois homens, entre duas mulheres, etc. Poderíamos dizer que essa situação, em que um ama mais e o outro menos, gera infelicidade, mas essa é uma infelicidade que quase sempre acontece. A gente até pode torcer para que haja evolução na relação: quando eu amo muito mais o outro, talvez seja possível inverter essa lógica. Assim, o casal oscila como uma balança ao longo de seu percurso. Mas também é comum que nada mude e haja sempre alguém que se sinta deficitário amorosamente. Esse sentimento de déficit é traduzido por uma espécie de sentimento de injustiça.

A terceira entrada psíquica desse sentimento de Justiça está presente no seguinte raciocínio:

Eu não sou reconhecido, eu não sou amado pelo que sou e também não sou amado pelo que faço. Eu posso realizar um pacto com o outro por uma espécie de interpretação do meu próprio corpo. Essa injustiça acontece não pelo que eu fiz, pelo que deixei de fazer ou pela minha condição de dependência originária. Logo, só pode ser porque há algo “mal feito” no meu corpo.

Nesse sentido, a justificativa sempre se volta para algo que rebaixa o indivíduo e que ele interpreta e atribui à própria corporeidade como um sinal dessa falta. Tal atribuição poderia ser negociada e resolvida de diversas maneiras. Por exemplo, ao reconhecermos que estamos todos referidos à  incompletude corporal, pois não somos seres fechados em uma bolha narcísica que prescinde do outro. Em regra criamos certos ideais para nos proteger do sentimento de injustiça. 

Castração e os paradoxos de racionalidade e Justiça

Esses paradoxos de racionalidade e de Justiça – visto, geralmente, como sentimento de injustiça – remetem à uma função que Freud chamou de castração. Trata-se da ideia de que na economia libidinal há uma distribuição não equitativa. Daí surge um problema importante: O que é que o Estado e o ordenamento jurídico vão fazer em relação a isso? Nesse contexto, é interessante refletir aquilo que podemos chamar de teoria social freudiana, cujo exercício é a compreensão da origem do Estado, do que ele é feito, como se constituem as nações, o que são as identidades, etc. 

Esse é um aspecto significativo. Vale lembrar que Freud é mais ou menos contemporâneo à realização de um mundo que está construindo um conceito de nação. Ele viveu a dissolução da nação na qual ele mesmo nasceu, o chamado Império Austro-Húngaro. Uma ideia muito importante que aparece em seu texto Moisés e a Religião Monoteísta é a seguinte: um dos motivos para o sentimento de justiça é a atribuição de um gozo supervalorizado ao outro. Ou seja, aquilo que me falta – o prazer que eu interpreto no meu próprio corpo, na minha deficiência amorosa ou no meu desamparo – foi tirado de mim e levado para o estrangeiro. Essa teoria vai ser contestada pela ideia freudiana de que os primeiros estados nações possuem entendimentos teológicos nacionais (aqui ele está pensando na religião islâmica, judaica e cristã). Eles foram inspirados na concepção de que “nós temos primeiro nós”. Isto é, aquele determinado grupo é descendente de um mesmo pai. Por isso, esse grupo que possui um mesmo pai compete com outro grupo que descende de outro ser mítico fundador, seja ele humano, não humano, totêmico, etc. 

Isso é algo muito interessante. Freud argumenta que essa leitura é um encobrimento, uma negação do que poderia ter sido historicamente a fundação do povo judeu a partir do estrangeiro. Ora, Moisés era egípicio, não judeu. Portanto, a fundação ocorre a partir de uma estrangeiridade original, de tal modo que seríamos feitos a partir do outro. É em razão desse fato que imaginamos que o outro goza mais do que nós. Nesse sentido, estabelece-se uma relação paranóica e persecutória.

É também daí que surge o sintoma chamado de narcisismo das pequenas diferenças. Para falar desse assunto, Freud utiliza exemplos de figuras que são próximas, mas ao mesmo tempo estão sempre em conflito, como os alemães do norte e do sul da Alemanha ou os portugueses e espanhóis. São povos parecidos e, por isso mesmo, se perseguem historicamente, se criticam e se espezinham.  Ou seja, esta é uma teoria sobre como se formam unidades simbólicas que podem passar pelos estados nacionais, pelas regiões nacionais, pelos grupos sociais, pelos grupos totêmicos e que figuram nessa mesma lógica. 

Essa reflexão revela que a nossa identidade vem de fora, ela é herdada do outro. Assim, haveria uma espécie de Justiça esquecida, de lei formativa esquecida que suprimimos e substituímos por guerra e violência. Ao invés de lembrarmos disso – que nos constituímos a partir do estrangeiro – nós negamos. Assim, enquanto se formam grupos de ódio que atacam o outro, os grupos passam a  ser definidos pela inimizade que têm pelo estrangeiro. 

Neste ponto existe uma possibilidade de colocar Freud entre Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. Por um lado Freud se pergunta, assim como Rousseau em seu discurso sobre a origem das línguas, se nos esquecemos do solo comum. Ou melhor, do desamparo comum. Dessa maneira, a civilização viria acompanhada da injustiça. Por outro lado, o Freud hobbesiano dirá que o estado de anarquia promovido pela incerteza é substituído pela eleição de um pai, de uma lei que é uma espécie de tributo simbólico, de lugar vazio constituído pelos temas de parentesco e pela isonomia. Logo, as pessoas encontram regras que limitam o acesso aos prazeres: você não pode se casar com esse, você não pode se unir com aquele. Tal regra de restrição, justamente por ser comum, funda um certo cenário de Justiça e uma relação com a lei. Porém, existem problemas nesse processo, tanto na leitura mais rousseauniana, quanto na mais hobbesiana.

O fato é que Freud não se encaixa perfeitamente em nenhuma dessas perspectivas porque ele aponta como problema, para essa noção de Justiça, uma insuficiência da categoria de interesse. Ambos os autores – Rousseau e Hobbes – realizam suas reflexões a partir de um sistema de interesses definidos pelos indivíduos que transferem sua força, seu poder de violência para o Estado, ou pelos indivíduos que estão exilados, esquecidos da sua relação originária com o outro. Para Freud, esta categoria é problemática porque ela supõe que o sujeito vai agir sempre em conformidade com o cumprimento de seus interesses, seja de autoconservação ou de expansão. Além disso, presume-se que tais interesses serão sempre favoráveis à vida e à expansão do grupo de pertinência, de identidade ou filiação a qual pertencemos. 

Freud vai dizer que esse entendimento possui uma ambiguidade inerente. De fato, criamos leis para minimizar as diferenças, mas na medida em que as leis são imperfeitas, elas nos fazem sentir as diferenças com maior profundidade e sofrimento. Quanto mais as leis são aperfeiçoadas, maior o efeito rebote do ódio à lei, do sentimento de promessa não cumprida ou, ainda, de uma imperfeição que era prometida como ideal de pacificação. Isso vai valer para arte, para ciência e para as limitações eventualmente impostas pelo ordenamento jurídico.

A subversão da noção de interesse proposta pelo autor aponta como os sintomas revelam que não somos justos nem com nós mesmos. Os nossos sintomas ultrapassam as regras dessa ilação teleológica, com respeito a um fim ou interesse na moralidade. Os sintomas são criações que jogam contra os interesses – são hipóteses da existência dos desejos do inconsciente. Tais desejos emanam de outro momento da vida, ou mesmo da história do desejo do desejado. Desejos não são esquecidos. Portanto, poderíamos dizer que os sintomas são uma espécie de demanda por reconhecimento por um desejo que foi negado. 

Este também é o modelo de Justiça. Na forma como a gente se limita, sente angústia, se bloqueia, se silencia e sofre há um apelo por Justiça. Esse apelo demonstra que a totalidade do ordenamento jurídico não se restringe à lei, pois ela não é apenas uma generalização dos costumes de uma nação. De fato, a lei tem um futuro possível que não está escrito, uma vez que é fruto dos nossos desejos. Seguindo o pensamento de Jacques Derrida, é possível entender que o direito não é Justiça, mas é um instrumento da Justiça. Não podemos perder de vista que há vários elementos que não estão presentes no ordenamento jurídico mas que, ainda assim, fazem parte da Justiça. São aqueles que podemos intuir da própria relação com os desejos humanos. 

Em uma contra-chave hobbesiana, esse raciocínio também vale para a lógica de sacrifício. Nos restringimos por medo de ser moralmente punidos por nós mesmos, algo que Freud vai chamar de Supereu. Pensamos: “não vou praticar algo que é contra a lei porque senão vou ferir meu ideal de opinião, ideal que incorporei e se feri-lo vou me criticar e me punir”. Se agir contra meu ideal, estarei em desacordo com essa lei interiorizada chamada de Supereu.

A partir dessa perspectiva, Freud também trava uma discussão com Immanuel Kant. Freud parte da premissa de que o Supereu é a voz do imperativo categórico, do puro dever. É a voz que, inclusive, inspirou vários modelos jurídicos e a própria noção de cosmopolitismo, quando tratamos do direito internacional.

Mas seria possível perguntar: como é feito o Supereu? Eu te responderia que isso ocorre por meio da interiorização não da lei que seus pais passaram para você, mas da lei que você interpreta da relação entre seus pais e os ancestrais dos seus pais. Na verdade, o que eles te transmitem é a relação do que tiveram com a lei que os sucedeu, de maneira que o Supereu não é uma verdadeira lei no sentido jurídico ou no sentido kantiano. Trata-se de uma lei patológica, porque ele é particular, próprio daquela pessoa, daquele grupo, daquela família. Para chegarmos no sentido de Justiça como foi estruturado, temos que superar justamente a lei baseada no crime e castigo ou na punição. Isto é, a lei em que não pratico determinado ato por temo ou, como dizia Kant, por motivos patológicos que tem haver com a sensibilidade. Não se trata da minha relação pura enquanto sujeito com a lei.

Deve-se perceber que Freud não é kantiano. A ideia de Supereu é justamente uma espécie de lei que o sujeito acha universal, mas que no fundo é contingente. Essa generalização da lei se funda em cada um e em sua relação  com a sua própria fantasia. Por isso que ela é patológica e particular. Ela se dá nestes termos de que falei há pouco: sou mais amado, menos amado, estou desamparado porque tem alguém gozando mais do que eu. Trata-se do desejo, amor, gozo e angústia. Esses são os operadores jurídicos, os operadores freudianos que podemos utilizar para pensar a noção de direito do ponto de vista da psicanálise. 

Freud reconhece que há um amor à lei, como dizia Kant. Mas esse amor à lei é um amor cuja a lei está representada na figura do pai. O pai é sempre o melhor exemplo do que poderia ser a lei para todos. É uma lei que juridicamente pode ser reconhecida como privilégio. Superar o Supereu implica em uma espécie de emancipação do desejo, figura que aparece como algo capaz de criar atos para além da lei mas, ainda assim, injustos. Ainda assim, capazes de inspirar uma generalização maior da parte simbólica e das formas de gozo que o direito visa arbitrar.

Existem relações entre direito e psicanálise que partem de um caminho da psicopatologia. Quando Freud estuda os perversos – aqueles que têm uma alteração na relação com o objeto e que em vez de amor genital, praticam uma outra forma de afeição do prazer – ele conclui que todos os sujeitos são em alguma medida perversos. Mas de onde vem a sua perversão? Ela não vem de sua psicopatologia, mas sim da moral, da teologia, da ideia que existia no passado pré direito napoleônico e em certa forma pré direito romano, que é a ideia de que o sujeito pode ter uma zona de uso livre do corpo, de uso livre dos seus prazeres. Assim, há um espaço que o Estado não tem que se meter. Essas quatro paredes onde o Estado não deveria por a mão, onde ele deveria zelar por esse espaço preservado dos indivíduos, têm uma relação muito forte com o que a psicanálise vai chamar de fantasia. 

Ou seja, a fantasia tem o pleno direito de ser exercida desde que seja no espaço privado. Desde que ela não se pretenda generalizar e impor-se como um modo de satisfação, como um modo de uso do corpo e dos seus objetivos concretos. Toda essa discussão contemporânea emerge de uma categoria que a psicanálise importou. Podemos nos perguntar: importou e fez a crítica? Sim e não, depende de qual psicanálise estamos falando e de como ela se coloca para pensar a vinculação com a Fantasia e suas implicações políticas, para o que a gente entende pela relação entre  direito e moral.

Direito e Psicanálise: imparcialidade e psique humana

INB:  Ao pensarmos nas funções do magistrado, vigora a máxima de que o “juiz deve ser sempre imparcial ao julgar”. Porém, as contribuições da psicanálise revelam que muitas vezes nós não somos nem um pouco imparciais. Como o senhor compreende a possibilidade da imparcialidade tendo em vista o próprio funcionamento da psique humana ? 

Christian Dunker: Essa é uma boa pergunta. Eu orientei duas pesquisas sobre esse assunto. Uma delas com um grupo que faz a avaliação psicológica dos magistrados para vitalícia-los após a aprovação no concurso público. Foi interessante porque havia um material amplo de como os magistrados julgam.

Eu diria que aqueles que confiam demasiadamente na imparcialidade são os mais problemáticos. Eles não estão advertidos de que nós não controlamos todos os atos judicativos. Nós estamos expostos aos atravessamentos identificatórios, à nossa  fantasia como algo que nos governa além da consciência e de suas ideias sobre neutralidade, suspensão e imparcialidade. Então, bons magistrados são aqueles que utilizam de sua intuição e que tem certa uma certa prudência ou phronesis, como dizem os gregos. 

Em primeiro lugar existem certas patologias do julgamento que se mostram pela relação com o tempo. A recente reforma judiciária – que estimula as corregedorias a produzirem mais e mais sentenças – afetam muito esse processo. Um dos sinais que o magistrado julga mal, independente do conteúdo e da matéria objeto de debate, aparece quando ele se põe em pressa, ao concluir rápido demais um assunto. Quando ele começa a antecipar provas, parece que já tem uma espécie de tese firmada, embora ainda não saiba.

Às vezes as perguntas e a própria execução do processo é atravessada por isso. Há julgamentos excessivamente céleres ou que são adiados indefinidamente como uma forma de procrastinação. Portanto existem tanto patologias do instante – como por exemplo: “bati o olho e já sei” – quanto patologias próprias de  um tempo demasiadamente longo. Ou seja, quando há impossibilidade de deliberar, pode ocorrer a tentativa de passar para outra instância. Mas até mesmo o magistrado pode se demitir e responsabilizar um assessor ou analista jurídico de decidir sobre o caso. Nesse sentido, o magistrado realiza um tipo de procuração de sua racionalidade jurídica. 

Os bons juízes são aqueles que conseguem sobreviver e cultivar a dúvida. Ou melhor, que se colocam em dúvida em cada decisão. Isto é, praticam a dúvida não apenas como exercício cético da racionalidade, mas sim subjetivamente. Caso contrário,  o magistrado  deve ficar do lado de fora, na ante-sala.  

Mas como o magistrado vai fazer isso? Como faz para se livrar do seu próprio eu? Psicanalistas diriam: faça uma análise! Não é  desconhecendo e colocando uma trava na porta que conseguimos eliminar nosso eu. Não se trata de um exercício de força de vontade ou de uma regra disciplinar que determina até onde vai o eu pessoal e o eu institucional. Quem fala assim já está com uma apreciação comprometida da situação. Esse é um parâmetro para identificar que a noção de neutralidade força subjetivamente o magistrado a ter uma posição e idealização de si mesmo. E tal situação, por vezes, termina em depressão, em onipotência e impotência. Geralmente isso se dá de forma cruzada;  onipotência para o outro e impotência para si.

Podemos pensar, por exemplo, como condição para a patologia do juízo o desconhecimento pelas fantasias, o desconhecimento daquilo que promove em você uma resposta por identificação ou uma resposta superegóica. Nós falamos um pouco do Supereu. Embora não seja uma lei, é tentação do neurótico dizer que é. O neurótico pensa que é uma lei porque é sua, porque acredita nela, porque a ama , porque ela é como se fosse da família. Só que ao investir nela um poder de generalização, pouco a pouco produz-se juízos mais simples, ensinados pela forma canônica do direito que é simplesmente aplicar a regra ao caso. Basta aplicar a regra ao caso e o caso à Justiça.

O problema é que ficam de lado todo o universo das exceções, sejam elas institucionais, circunstanciais, etc. Quando a gente acredita que fazer Justiça é simplesmente aplicar a regra ao caso, em geral aparecem identificações com uma das partes, seja com o acusador, com a promotoria, com a defesa ou até com o réu. Ou então aparece aquele tipo de justiça cruel, sádica e vingativa. Pode ser uma vingança racial, de classe, de gênero, e por aí vai. Pesquisas empíricas mostram que há vieses importantíssimos. Por que a gente tende a julgar algo bom pela cor da pele, pela forma que o sujeito fala, pelos advogados que ele tem e que ele pode contratar.  Tudo isso está imerso no nosso universo ideológico. Mas há também influência do nosso universo  identificatório e superegóico.  Uma boa prática de crítica e atenção a isso é o que se exige dos psicanalistas e é o que se deveria exigir de um bom magistrado. 

Há uma terceira ponderação sobre a neutralidade ou imparcialidade que busca entender como o psicanalista vai saber, em um tratamento, que o paciente realizou uma intervenção autorizando a si mesmo. Ou se esse mesmo paciente diz algo fruto de seus pontos cegos, daquilo que não analisou e que é um pedaço faltante na subjetivação da sua fantasia;  de tudo que  não sabe que o governa.

Pergunto como lidar com esse não saber que atravessa os atos interpretativos do caso. Uma resposta é prestar atenção na repetição e nos efeitos dos atos judicativos. Muitas vezes pode ter ali um  gozo ignorado, uma alteridade que não vai ser compatível com o seguimento do processo. Assim, a neutralidade não é um estado que você alcança para algum fim. A neutralidade é construída quando o lugar da verdade não está nem em você nem no outro, mas na instância terceira. É justamente desse lugar que queremos nos aproximar. Para isso é preciso se despossuir da verdade e da força de verdade no ato judicativo. Vou te transferir isso para o que a gente pode saber, para o que a gente pode supor. Vou transferir isso para essa instância terceira.

Fake news e psicanálise

INB: Nos últimos tempos, os meios de comunicação divulgam notícias sobre fake news, de modo que o tema da mentira parece estar em alta, o que tem levado a muitas críticas moralistas sobre o assunto. Como é possível compreender as funções e características da mentira no contexto da psicanálise?

Christian Dunker: Essa é uma pergunta complicada, porque a gente teria que falar um pouco da arqueologia da verdade. Isso significa entender que a verdade é um conceito mais heterogêneo do que gostaríamos. Para começar, a verdade oscila entre uma raiz grega que a coloca como aquilo que se revela e que está ali diante de nós. Ou seja, a verdade se mostra como uma evidência que estaria encoberta. Este conceito está muito ligado ao presente, ao imediato e à verdade. Nesse sentido, ela foi demasiadamente absorvida pelo funcionamento positivista do direito. No Brasil esse funcionamento se revela pela triangulação entre fato, norma e valor. 

Então, o que seria o fato? Seria a evidência posta diante dos nossos olhos. Porém, o fato jamais contempla as intenções. Há, no positivismo, uma prática de direito na qual a intencionalidade está completamente posta de lado, pois o que importa são as consequências. Essa maneira de lidar  metodologicamente com um problema, supera os próprios métodos. Basta recorrer ao direito romano para entender que a verdade também é feita de memória.  

Portanto, a verdade não é só presente, ela é reconstruída por testemunhos. Mas os e os testemunhos  podem estar enganados. Mesmo o direto deles perde força. O que está nessa função de verdade como aletheia dos gregos é o comprometimento de “dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade em nome de deus”. Essa concepção grega significa exatidão. Trata-se de um conceito que se relaciona com a reprodução exata daquilo que foi visto.

Contudo, como pontuei, sabemos que a memória humana não é reprodução exata do que alguém viu. Ela é atravessada pelas fantasias e pelos afetos.  O que você estava sentindo quando você viu? Estes outros elementos interferem no ângulo, no ajuizamento e na sua própria convicção.  Ou seja, o direito positivista confia na memória como uma espécie de instrumento, deslocando as pessoas a condição de máquinas que buscam nos engramas  os acontecimentos  para depois reproduzi-los como um computador.

A verdade possui um outro sentido que vem do hebraico e consiste em tratá-la pela confiança. Nesse sentido, é verdade porque o povo escolhido fez um pacto  que envolve terras com Israel e por isso é verdade que esse povo tem um futuro ali. Em lógica, usamos a ideia da incontingência, para falar daquele possível que se realiza. Então existem  três versões da verdade: i) a  que é o oposto da mentira; ii)  a que é o oposto do engano; iii) a que é o oposto da ilusão.

Quando falamos em Fake News, somos levados a entender que há um cruzamento entre essas coisas. Existem reflexões sobre como desmontar as Fake News a partir da apresentação de informação. Se a informação está errada, basta apresentar a evidência correta para resolver. Só que esse método desconhece as tecnologias contemporâneas. Em termos de Fake News, atualizam a propaganda do jornal ao contar mentiras só falando verdades. Por exemplo, se eu faço o seguinte retrato: esse é um homem que levantou uma nação, que acabou com a inflação de seu país, que foi eleito com uma alta porcentagem de pessoas favoráveis, esse é um homem que organizou um país destruído. Mas esse mesmo homem levou milhões de judeus para o campo de concentração. Eu não mencionei esse último aspecto e, inclusive, alguns de que falei são falsos. De tal modo que o meu retrato produz uma ilusão. 

Nós precisamos ter uma relação mais complexa com a verdade. Isto se choca com a banalidade de reduzir o direito como aplicação da regra ao caso e com a desatualização de instituições antigas, muitas delas formadas no século XVIII e XIX. Inclusive nossa própria definição do que é política não acompanhou as novas tecnologias e produção de verdade, que são correlativas a produção de mentiras, de engano e ilusão.

Assim há manipulações que não se resolvem por mais informação, mas sim por mais formação. Isso torna o cenário mais difícil de ser combatido porque tais considerações apotam para  a nossa complacência com a existência de muitas pessoas que são excluídas do caráter emancipatório da linguagem digital. Podemos dizer que a cidadania tem haver com acesso a bens e serviços. Mas e a linguagem? Antonio Candido já falava do direito à literatura, mas agora temos o direito à linguagem digital. Isso significa alfabetizar, reduzir o número de excluídos que não conseguem ler criticamente a produção de uma imagem, uma mensagem e aquilo que chega pelo celular. De certa forma, a reparação não era possível há vinte anos ou trinta anos atrás, mas agora essa tarefa existe se queremos pensar em cidadania.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade e O palhaço e o Psicanalista.

Corpos no plural: rumo a um manifesto anarcofeminista

Nos últimos anos, tornou-se lugar comum declarar que a dominação ocorre por meio de eixos múltiplos, em que gênero, classe, raça e sexualidade se interseccionam um com o outro. Ainda que haja muitos trabalhos empíricos interessantes produzidos a partir da premissa da interseccionalidade, raramente estes se encontram vinculados à tradição anarquista que os precede. Neste artigo, gostaria de articular esse ponto, mostrando a utilidade, mas também os limites da noção de interseccionalidade, para entender os mecanismos de dominação e, depois, discutir a necessidade de um programa de pesquisa anarcofeminista. Em segundo lugar, tentarei fornecer a estrutura filosófica para tal empreendimento, argumentando que é na ontologia spinozista do transindividual que podemos encontrar os recursos conceituais para pensar sobre a natureza plural dos corpos das mulheres e, portanto, sobre sua opressão. Isso permitirá que eu tente articular a questão de “o que significa ser uma mulher” em termos pluralistas e, assim, também defender uma forma especificamente feminista de anarquismo. Concluindo, retomarei a tradição anarcofeminista para demonstrar por que ela é hoje a melhor aliada possível do feminismo na busca de uma teoria crítica da sociedade.

 

Em 2015, o Departamento de Educação do Estado de Nova Iorque (NYSED) lançou uma nova campanha para deficientes. Como parte do esforço para encorajar as pessoas com deficiência a trabalhar, o NYSED circulou um anúncio no metrô intitulado “Você tem alguma deficiência? Você quer trabalhar?”, e o enriqueceu com diversas imagens, representando, presumivelmente, pessoas
que são passíveis de deficiência. A mensagem comunicada por palavras é clara o suficiente: diz que, se você tem uma deficiência e quer trabalhar, você pode tirar proveito do benevolente NYSED (algo que pode deixá-lo muito feliz, tendo em vista que as pessoas representadas no anúncio estão sorrindo). Mas, além das palavras, o que está sendo comunicado naquilo que eu gostaria de chamar de nível “imaginal”, isto é, no nível das imagens que também são presenças em si mesmas? Considerando que as imagens operam nos sujeitos tanto no nível consciente quanto inconsciente, o que essas imagens estão nos dizendo? E talvez até mais importante: o que elas não estão contando, mas comunicando subrepticiamente? As imagens em exibição mostram, a partir do canto superior direito, um trabalhador da construção civil latino, uma estudante afro-americana, uma mulher de classe média (possivelmente latina), que está sendo ajudada por outra mulher, um mecânico afro-americano diante de um carro e, finalmente, uma mulher de classe média branca, porém idosa, que trabalha em um computador (figura 1). Para o usuário do metrô de Nova Iorque, as imagens não podem deixar de transmitir uma mensagem muito clara: a deficiência provavelmente diz respeito aos corpos raciais da classe trabalhadora, à juventude étnica e às mulheres, posto que, mesmo quando elas estão sentadas confortavelmente à mesa, ainda precisam de alguma ajuda.


Isso é o que está visível nas imagens. Vamos agora perguntar o que permanece invisível. O que está ausente e, no entanto, talvez ainda esteja presente de forma poderosa? Quem é o único claramente ausente dessas imagens, aquele que supostamente não precisa ser abordado por uma campanha de deficiência, aquele que, precisamente por causa de sua ausência conspícua, é implicitamente representado como imune à deficiência? O homem branco de classe média. Este é o seu privilégio invisível: ele é a exceção à deficiência que normalmente pode acontecer a pessoas de um status inferior.

 

Por outro lado, observe como raça, gênero e classe se cruzam nessas imagens. Na imagem do canto superior direito, temos um trabalhador da construção civil latino: seria menos provável que ele fosse incapacitado se fosse um homem branco da classe trabalhadora? O jovem estudante é claramente um afro-americano: os jovens brancos são imunes à deficiência? Por último, mas não menos importante: os únicos expoentes possivelmente brancos e de classe média são mulheres, e é significativo o fato de que ambas estão sendo ajudadas, seja por um computador ou por outra mulher. Homens brancos de classe média são imunes à necessidade
de ajuda? Por que não ocorreu à/ao designer do anúncio inserir um homem branco, entre todos esses diversos corpos, se a verdade é que, de acordo com as estatísticas, os homens brancos são, na verdade, os receptores mais comuns dos benefícios por incapacidade da Previdência Social? 1 Como o privilégio de ser representado como imune à deficiência caminha junto com o de se beneficiar
economicamente por incapacidade?


Alguém poderia continuar a análise do lado “imaginal” da campanha, destacando outros pontos; por exemplo, o fato de todas as imagens reproduzirem e transmitirem claramente um binarismo de gênero binário estereotipado: os homens estão fazendo o trabalho duro (mecânico e ligado à construção), enquanto as mulheres trajam vestes leves e estão sentadas em frente às mesas (e sendo
ajudadas). Além disso, observe que apenas os homens são representados olhando diretamente para você, enquanto o olhar das mulheres é sempre direcionado para outro lugar: presumivelmente em direção à fonte de ajuda que elas claramente demonstram precisar. Ser exposto a tais imagens quando entramos no metrô afeta o modo como os corpos se percebem? Poderia esse desvio presente no olhar (para baixo) das mulheres estar sutilmente ligado, de modo não dito, ao fato de que, apesar de toda pretensa discussão sobre a igualdade entre homens e mulheres, estas ainda estão sujeitas à discriminação sistemática?

 

Mais poderia ser dito a esse respeito, mas o ponto principal que gostaria de salientar sobre a natureza interseccional da discriminação social é o seguinte: quando se trata de representar corpos (e, nesse caso em particular, corpos que são provavelmente afetados por de ciência), gênero, fatores de classe e raça convergem entre si. Mas, se esse é o caso, faz sentido apresentar um manifesto especificamente feminista? Neste texto, gostaria de articular esse ponto, mostrando primeiramente a utilidade, mas também os limites, da noção de interseccionalidade, para, assim, defender a necessidade de avançar para o que chamarei de um programa anarcofeminista. Em segundo lugar, tentarei fornecer o arcabouço filosófico para tal empreendimento, argumentando que é em uma ontologia spinozista do transindividual que podemos encontrar os recursos conceituais para pensar sobre a natureza plural dos corpos das mulheres e, assim, de sua opressão. Isso me permitirá abordar a questão de “o que significa ser uma mulher” em termos pluralistas e, portanto, também defender uma forma especificamente feminista de anarquismo. Em conclusão, voltarei à tradição anarcofeminista e mostrarei por que hoje ela é a melhor aliada do feminismo na busca de uma teoria crítica da sociedade.

 

1. DO DIAGNÓSTICO PARA UMA PROPOSTA POSITIVA: INTERSECCIONALIDADE E ALÉM

 

Existe agora uma grande quantidade de trabalho empírico detalhado, mostrando como formas diferentes de opressão reforçam e sustentam umas às outras. Desde a década de 1970, quando as feministas começaram a investigar o modo como a família mononuclear se uniu à outras instituições, como escolas, fábricas e exércitos na reprodução do patriarcado, a ideia de um modelo interseccional começou a emergir.2 O principal insight por trás dessa palavra-chave é que, se quisermos entender como funciona a opressão das mulheres, não podemos nos limitar a um único fator (seja gênero, raça ou classe), mas precisamos investigar a maneira pela qual uma pluralidade de fatores se cruzam para reforçar e reproduzir a posição inferior das mulheres. Dizendo sem rodeios: a opressão em geral, e a opressão das mulheres em particular, é plural, porque o mundo é plural, então precisamos de programas de pesquisa como o de “interseccionalidade” para capturá-la.

 

Na tentativa de fazer valer tal pluralidade que os títulos das publicações começaram a crescer: migramos de Women, race and class (Davis, 1981) para Identities and inequalities: exploring the intersections of race, class, gender and sexuality (Newman, 2001), que acrescenta à lista de fatores uma distinção ainda comum, mas agora contestada, entre sexo e gênero3. Talvez tenha sido sob o

impulso dos estudos pós-coloniais e queer que a interseccionalidade oresceu e, consequentemente, a literatura correspondente se expandiu nas últimas décadas. Devido à influência das feministas pós-colonialistas, que destacaram que a emancipação das mulheres no Hemisfério Norte pode vir com o custo de uma maior opressão das mulheres do Hemisfério Sul, o feminismo se viu forçado a repensar o quão intrinsecamente brancos são os seus vieses, o que fez do termo imperialismo um adendo inevitável à lista.4 Porém a lista não para por aí, uma vez que outras formas de opressão também mereceram serem trazidas à cena. Por exemplo, Holmes (2010) intitulou seu trabalho Marked bodies: gender, race, class, age, disability, disease. Embora ela tenha esquecido a sexualidade (que é diferente de gênero) e o imperialismo (que é diferente de raça), vale creditar a ela ter trazido à tona outros itens importantes, como idade, de ciência e doença; o que se faz da imagem da velha com seu laptop, na campanha de de ciência mencionada anteriormente, é um bom exemplo de tal interseccionalidade.

 

Apesar do fato de que vários trabalhos empíricos muito importantes foram feitos sob o título de “interseccionalidade”, restam alguns problemas (para além de uma lógica produtivista existente na academia). Primeiro, qualquer lista está aberta à objeção de que esta não pode ser senão incompleta: se é o caso, como penso, que não se pode compreender a opressão das mulheres em nossas sociedades sem olhar para o modo como diferentes fatores se cruzam uns com os outros, por que parar com os itens mencionados antes? Por que não incluir “beleza”, por exemplo? Dificilmente se pode ignorar como as expectativas do capitalismo, classe e raça se fundem com imagens de beleza na transmissão de padrões hegemônicos de feminilidade. Basta medir o espaço dedicado a produtos de beleza para mulheres com aqueles reservados para homens em um supermercado e você terá uma noção espacial dos diferentes graus em que as expectativas de beleza impactam homens e mulheres.5 Mas seria suficiente adicionar mais um item? Haverá um fim para isso? O problema com as listas é, na verdade, duplo: elas são todas necessariamente incompletas, enquanto, ao mesmo tempo, estão necessariamente fechadas.

 

Em segundo lugar: apesar da interseccionalidade ser uma boa ferramenta para orientar a análise empírica, uma vez que impede que qualquer tipo de reducionismo (por exemplo, que classe ou raça sejam o fator que explica tudo), existe o risco de perder-se algo sobre a especificidade da opressão das mulheres. Se todas as formas de opressão se cruzam entre si, faz sentido falar sobre “feminismo”? Se as listas estão sempre se expandindo, o que há de tão específico sobre a condição das mulheres? O que estamos dizendo quando dizemos “mulheres”? Essa palavra não está, por si mesma, sugerindo sub-repticiamente uma distinção heteronormativa de gênero entre mulheres e homens, que pode, em si mesma, ser uma fonte de opressão para aqueles que não se identificam nem como homens nem como mulheres? Podemos falar sobre a condição específica das mulheres e justificar uma posição feminista distinta, sem cair na armadilha da heteronormatividade ou, pior ainda, do essencialismo?

 

Para responder a essa dupla crítica, gostaria de apresentar um apelo a um manifesto anarcofeminista. Fazer isso significa manter juntas as duas afirmações: que há algo específico sobre a opressão das mulheres e que, para combatê-las, você tem de lutar contra todas as outras formas de opressão. Dito de outro modo, isso significa defender uma posição que é, ao mesmo tempo, feminista e anarquista.

 

No que se segue, eu gostaria de tentar defender tal posição tanto no nível metodológico quanto no substantivo (embora, como ficará mais claro adiante, essa seja apenas uma distinção que se mantém na teoria, já que, na prática, os dois níveis convergem). No nível substantivo, defender uma abordagem anarcofeminista significa argumentar que não existe um arcabouço abrangente, isto é, nenhum princípio ou origem única da sujeição das mulheres. O trabalho feito em nome da interseccionalidade mostrou que nem sexo, nem classe ou raça, nem qualquer outro item único que possamos escolher em nossas prateleiras de gênero pode aspirar ser o único fator, a origem decisiva, o arqueológico que explica, o que, portanto, também explica a natureza pluralista da opressão das mulheres.

A teoria queer é particularmente interessante nesse aspecto, pois tem em si uma agenda de pesquisa pluralista que nos permite manter juntos uma variedade de tópicos. Neste trabalho, porém, deixarei de lado a teoria queer, visto que o que mais me preocupa aqui é a posição específica das mulheres. E falando abertamente, embora eu ache que é absolutamente crucial engajar e continuar a trabalhar em estudos queer, afim de apontar as armadilhas na simples identificação binária de gênero, eu também acho que há pessoas que são oprimidas precisamente porque são mulheres. E é principalmente com essa forma de opressão que me preocupo neste trabalho.

 

E aqui passo para o nível metodológico: desenvolver uma posição anarcofeminista implica desenvolver uma posição feminista que não seja simplesmente desconstrutiva ou negativa, mas que seja, ao mesmo tempo, uma forma de feminismo sem ascendência (observe aqui que, em contraste com outras formas de feminismo, como o feminismo marxista ou o feminismo foucaultiano, o próprio termo anarcofeminista se articula na tentativa de se livrar de qualquer ascendência). E os desafios para tal posição estarão, portanto, muito próximos daqueles que as feministas tiveram de enfrentar no passado: como defender a especificidade da feminilidade sem incorrer em qualquer forma de essencialismo? Para antecipar o conteúdo da próxima seção deste artigo, é em uma ontologia da substância única que, sugiro, podemos encontrar os recursos teóricos para pensar sobre uma individualidade (a das mulheres) que, é ao mesmo tempo, aberta, mas também determinada o suficiente para o nosso projeto.

 

2. CORPOS NO PLURAL: DO INDIVIDUAL PARA O TRANSINDIVIDUAL

 

Com a ajuda da visão de Balibar (1997), de que o conceito de individualidade de Spinoza é mais bem entendido como transindividualidade, tentarei mostrar que a ontologia mais monista de todas também pode ser a mais pluralista. Mas antes de fazê-lo, eu preciso mencionar que, ao fazer isso, também estou me inspirando nos Imaginary bodies, de Gatens (1996), pois é nesse trabalho que eu encontrei uma maneira de combinar muitos dos tópicos filosóficos que eu estava seguindo. E embora eu faça isso em uma direção anarcofeminista que talvez não agrade nem a Gatens nem a Balibar, eu ainda sou muito grata a ambos.

 

Apesar do fato de que uma tradição distintamente anarcofeminista começou já no século XIX, esta foi imerecidamente banida do debate público e, em particular, dentro da academia. Isso se deve, em parte, a um rechaço generalizado ao anarquismo, na maioria das vezes injustamente representado como sinônimo de caos e desordem, mas também à dificuldade de distinguir entre anarquismo em geral e anarcofeminismo em particular. Se é verdade que o anarquismo combate todas as formas de opressão, então ele também se opõe à opressão às mulheres. Mas se esse é o caso, por que falar de uma posição especificamente anarcofeminista? Isso criou uma lacuna teórica no campo, que foi preenchida apenas de maneira muito parcial.6 Minha contribuição para esse empreendimento

envolverá apontar para uma ontologia especí ca do corpo, ou do que chamarei de ontologia dos corpos no plural, o que nos permite falar especificamente sobre as mulheres e sobre a pluralidade de sua opressão.

 

Não há nem o espaço nem a necessidade de se envolver aqui no exercício filológico de tentar mostrar por que uma ontologia do transindividual é a melhor maneira de interpretar os textos de Spinoza. De fato, aqueles que querem esse argumento na forma de uma exegese precisa das obras de Spinoza podem ler o ensaio seminal de Balibar (1997) Spinoza: from individuality to transindividuality. Em vez de fazer isso, tentarei resumir seus insights fundamentais e apresentar um esboço dessa ontologia, de uma forma que, esperamos, também seja acessível ao não especialista.

 

Como Spinoza aponta, é evidente, em si mesmo, que o não poder existir é carecer de poder, e o poder existir é ter poder. Assim, se o que necessariamente existe são apenas seres finitos, então os seres finitos são mais poderosos do que um ser absolutamente infinito, o que é um absurdo. Então, ou nada existe ou um ser absolutamente infinito também existe. Mas nós existimos, seja em nós mesmos ou em alguma outra coisa que necessariamente existe. Portanto um ser absolutamente infinito existe necessariamente (EI P11, 2 prova alternativa).7 Essa é, a meu ver, a mais bela lição do spinozismo: se existem 20 pessoas nesta sala, então existirá necessariamente um ser infinito.8

 

Mas dizer isso também implica que existe uma substância, uma substância única infinita que se expressa por meio de uma infinidade de “atributos”, em que o último termo significa o que o intelecto percebe da substância como constituindo sua essência (EI D4). Entre a infinidade de tais atributos, aqueles que são acessíveis a nós (pelo menos em nossa condição humana atual) são pensamento e extensão. Um único pensamento é, portanto, apenas um modo no atributo do pensamento, enquanto um único corpo é um modo no atributo da extensão.

 

Afim de limpar o caminho imediatamente de qualquer possível mal- entendido, isso não significa que o pensamento e a extensão, ideias e coisas, sejam paralelos um ao outro. “A ordem e conexão de ideias é o mesmo (idem) que a ordem e conexão das coisas” (EII P7): pensamento e extensão são os mesmos (idem), não paralelos um ao outro, e muito menos são duas diferentes substâncias. Precisamos sublinhar isso, porque sempre que falamos de mente e corpo, ou ideias e coisas, a estrutura metafísica dualista que herdamos tende a penetrar sub-repticiamente. O primeiro passo para chegar à uma concepção verdadeiramente pluralista do corpo é livrar-se dessa estrutura e, portanto, da ideia de que um corpo é algo diferente, paralelo ou mesmo oposto a uma mente. Corpo e mente são apenas dois modos que expressam dois atributos diferentes de uma substância infinita que se expressa por uma infinidade de atributos.

 

Isso também nos leva à compreensão específica da individualidade como transindividualidade, que se pode desenvolver inspirando-se em Spinoza e, em particular, no tipo de compêndio de sua física, que ele apresentou na Parte II da Ética, onde seu materialismo excêntrico emerge plenamente (EII P13-P15). Se pensamento e extensão são apenas dois dos atributos infinitos da substância única, então não podemos falar de uma ontologia simplesmente materialista, sem acrescentar imediatamente que não é a matéria estática, inanimada e bruta que está em jogo aqui. O materialismo de Spinoza é mais parecido com uma forma de materialismo espiritual do que com o que tendemos a associar ao rótulo “materialismo”, precisamente porque a extensão e o pensamento são apenas dois dos atributos infinitos da mesma substância. Dentro de tal ontologia, as coisas individuais (res singulares) existem apenas como uma consequência da existência de outras coisas individuais (EI P28), com as quais elas participam de uma rede infinita de conexões (Balibar, 1997, p. 27). Observe aqui que isso também implica que a causalidade não deve ser entendida no sentido de uma sucessão linear de eventos, mas sim como uma multiplicidade de conexões de elos causais entre indivíduos, que são feitos de indivíduos mais simples e mais complexos, todos relacionados causalmente. Do contrário, todo indivíduo é constantemente composto e decomposto por outros indivíduos com os quais entra em contato por meio de um processo de individuação, que envolve tanto os níveis infraindividual como supraindividual (Balibar, 1997, p. 27). E é para traduzir essa complexidade que, segundo Balibar, a individualidade deve ser entendida como uma transindividualidade.9

 

Indivíduos, portanto, nunca são compreendidos como átomos, eventos, e muito menos sujeitos dados de uma vez por todas. São processos, resultados de movimentos constantes de associação e repulsão que conectam indivíduos simples com outros indivíduos simples, mas também com indivíduos mais complexos, que constantemente fazem e desfazem um corpo. Para obter uma noção grosseira, mas e ciente, do que quero dizer aqui, pense em como nossos corpos são compostos e decompostos pelos líquidos que o atravessam: bebemos, mas transpiramos, urinamos, estamos constantemente processando líquidos, que, por contrapartida, processam nossos corpos. Da mesma forma, somos constantemente compostos pelas moléculas que inspiramos e expiramos de nossos corpos. Observe que, dentro dessa ontologia, o mesmo vale para pensamentos: como indivíduos, somos o resultado de todos os modos no atributo do pensamento que constantemente encontramos, sejam eles o artigo que você está lendo, a conversa telefônica que você teve com seu amigo esta manhã, ou os pensamentos inspirados pela campanha de de ciência mencionada no início deste artigo. Mais ainda: a ordem e a conexão de ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas, porque as ideias não são nada além de afirmações do corpo.

 

Outra maneira de fazer o mesmo ponto é pela teoria do conatus, ou esforço, de Spinoza, isto é, a observação de Spinoza, de que todo ser se esforça para persistir em seu ser (E III, P6). O conatus é esse “esforço” ou “empenho” para persistir em nosso ser que, por vezes, Spinoza também chama potentia ou potencialidade (EIII P7Dem). Embora todo indivíduo, até mesmo uma pedra, seja dotado de conatus, o que é típico dos seres humanos é constituído por uma série mais complexa de movimentos de atração, repulsão e imitação gerados por seus afetos (EIII P14-16; P21-34; EIV P6-P19), em que um afeto indica, ao mesmo tempo, uma afeição do corpo e a ideia desse afeto.

 

Mais uma vez, observe aqui como facilmente se sai da armadilha do dualismo metafísico. Como o corpo e a mente não são nada além de modos dentro de diferentes atributos da substância única, nenhuma separação radical entre um sujeito conhecedor e seu objeto pode subsistir. De fato, a própria noção de um sujeito fechado, de um ego cartesiano, não faz sentido nesta ontologia. Os seres humanos não são nada além de indivíduos complexos resultantes de movimentos de atração e repulsão entre indivíduos mais ou menos complexos.10 Em outras palavras, não são entidades dadas, mas processos, redes de relações afetivas e imaginárias, que nunca são dadas de uma vez por todas. Isto é, a meu ver, o sentido em que a afirmação radical de Spinoza deve ser interpretada: de que o desejo é a essência do homem (Cupiditas est ipsa hominis essentia: EIII, De nição das Emoções, D1). O desejo não é apenas uma característica dos seres humanos. É, muito mais radicalmente, o que os cria, e o faz por meio de um processo de individuação constante que é de natureza transindividual.11

 

Mas isso também significa que, como ressaltou Gatens, no processo de individuação que gera os seres humanos, a dinâmica complexa da identificação imaginária se torna particularmente crucial.12 Constantemente nos encontramos e nos reconhecemos, ou nos reconhecemos erroneamente em certas imagens corporais, que incluem imagens que temos de nossos corpos e de outros corpos,

bem como imagens que os outros têm delas e que se tornam constitutivas de nosso próprio ser. O termo-chave para manter juntos o lado mental e material desse processo é, para Spinoza, “imaginação”. Este último, em sua teoria do conhecimento, denota um conjunto de ideias produzidas com base em afetos corporais presentes ou passados (EII P26D, P 40S2). Afim de evitar mal- entendidos, devemos lembrar que uma ideia não é, para ele, apenas um conteúdo mental. A imaginação tem uma base corporal, porque a mente é apenas o corpo que é sentido e pensado. Além disso, uma ideia é, para Spinoza, “uma concepção da mente” (EII D3).

Seguindo Gatens e Lloyd (1999), talvez possamos resumir melhor a visão da imaginação de Spinoza, dizendo que ela é uma forma de consciência corporal, que signi ca consciência de nosso corpo e de outros corpos com os quais entramos em contato e que, como tal, é sempre, propriamente falando, uma forma de imaginação coletiva (Gatens & Lloyd, 1999, p. 12).

 

Enquanto Spinoza, e Gatens, com base em Spinoza, enfocam o papel que a imaginação desempenha nessas dinâmicas de atração e repulsão que são constitutivas de nosso ser, eu prefiro reconceitualizá-las em termos do que tem sido chamado recentemente de “imaginal” (Fleury, 2006; Bottici, 2014). Apesar do fato de que as feministas desenvolveram o conceito de imaginação de Spinoza muito mais longe do que ele o fez (Gatens & Lloyd, 1999), o conceito de imaginação permanece imbuído nos pressupostos de uma filosofia a problemática do sujeito, da qual eu tenho tentado me distanciar [. . .] Entre os dois extremos de uma filosofia a da imaginação, entendida como uma faculdade que os indivíduos possuem, de um lado, e de uma filosofia do imaginário social, entendida como um contexto social que nos possui, de outro, existe uma terceira perspectiva, a do “imaginal”, que nos permite evitar as armadilhas de ambas as alternativas. Em poucas palavras: “imaginal” é aquilo que é feito por imagens, no sentido mais radical do termo, ou seja, imagens como representações que também são presenças em si mesmas (Bottici, 2014, pp. 54-63). Como tal, a noção de “imaginal” não faz quaisquer pressupostos ontológicos quanto ao estatuto real ou irreal das imagens: enquanto o conceito de imaginário está associado à ideia de irrealidade, como na expressão “isso é puramente imaginário”, o termo “imaginal” não carrega qualquer pressuposição ontológica tão forte. Da mesma forma, enquanto a imaginação tende a ser entendida como uma faculdade individual e o imaginário tende a ser entendido como um contexto social, o “imaginal” pode ser o resultado de ambos e é, portanto, um melhor companheiro teórico para o transindividual do que a imaginação ou o imaginário social: como o transindividual, o conceito do “imaginal” aponta para a necessidade de se livrar da própria alternativa binária social versus individual.

 

É em termos do que Gatens chama de “corpos imaginários”, e que eu gostaria de chamar de “corpos imaginais”, que podemos entender o lado psicológico do processo de individuação descrito acima.13 Sempre que nosso corpo encontra outro corpo, que pode ser um corpo simples, como um copo d’água, ou um mais complexo, como outro ser humano, uma mudança em sua própria constituição ocorrerá. É nesse sentido, e a m de manter juntos o que acontece tanto no nível infraindividual quanto no supraindividual, que a noção de transindividualidade se torna particularmente útil. Em suma, nossos corpos são sempre necessariamente corpos no plural, porque sua individualidade é sempre e inevitavelmente uma forma de transindividualidade. Todos nascemos de outros corpos e, desde nosso nascimento, somos constantemente transformados ao encontrarmos outros corpos, ao mesmo tempo que também os afetamos constantemente. O conceito de transindividualidade serve para sinalizar tal complexidade e nossa natureza processual.

 

O problema, no entanto, inevitavelmente emerge do que pode garantir a continuidade no espaço e no tempo para tais processos em andamento. Mas antes de passarmos a essa questão, deixe-me primeiro explicar o que quero dizer com “corpos no plural” e por que essa compreensão do corpo pode nos levar além de alguns dos impasses que assolaram a loso a feminista nas últimas décadas. Primeiro, por “corpos no plural”, pretendo sublinhar a natureza transindividual dos processos de individuação, isto é, de um processo que une os níveis infraindividual e supraindividual. Em segundo lugar, ao colocar o corpo dentro de uma ontologia da substância única, é possível superar todas as oposições que acompanharam os debates feministas desde o início: a sujeição das mulheres é o resultado de sua biologia (natureza) ou de sua criação (cultura)? Por trás dessa oposição, bem como por trás da oposição entre sexo e gênero, há, de fato, o típico dualismo metafísico ocidental que gira em torno da dicotomia entre corpo e mente (Gatens, 1996). Mas se entendermos corpo e mente simplesmente como modos dentro de diferentes atributos da mesma substância, então nenhuma oposição entre os dois pode se sustentar: e é dentro de tal quadro ontológico que também se torna possível levantar a questão “o que é uma mulher? ‘evitando as falsas alternativas entre’ essencialismo ‘e’ culturalismo”. Uma vez que o corpo não é mais entendido como uma entidade inerte e fixa, não há mais necessidade, mas também não há mais espaço para elevar a carga do essencialismo.

 

3. MULHERES EM PROCESSO, MULHERES COMO PROCESSOS

 

Como mencionei antes, a questão mais saliente que essa ontologia levanta é o que garante a continuidade de uma individualidade no espaço e no tempo. Se a individualidade deve sempre ser entendida em termos de transindividualidade, de um processo constante de individuação, como podemos falar de um único indivíduo em um momento e tempo específicos? É combinando Spinoza, a Psicanálise e a Sociologia que responderei: a narrativa. É realmente por meio de uma história dos encontros do passado e do presente que constituem uma única individualidade que podemos encontrar o o que nos permite falar de um único indivíduo em algum momento no tempo.

 

Tal história não é apenas a história que contamos a nós mesmos, como se fôssemos mônadas isoladas sem janelas e portas. É novamente todo um processo de contar histórias, que também terá de ser o resultado dos encontros entre as histórias que contamos a nós mesmos e as que nos dizem, entre as histórias em que nos reconhecemos e as que não nos reconhecemos.14 E é por uma história

que, nesta seção, eu gostaria de tentar abordar a questão: “o que é uma mulher?”. Primeiro abordarei a questão do que significa compreender a mulher como um processo e, em seguida, passo a ilustrar esse ponto pelo exemplo de um encontro “imaginal”.

A objeção usual levantada contra o feminismo radical, e, em geral, contra todas as formas de feminismo que se apegam à noção de feminilidade, é o risco de cair em uma forma de essencialismo ou, o que é pior, em uma forma de heteronormatividade que congela as potencialidades do gênero no binarismo mulher/homem. Como deveria ser evidente neste ponto, dentro de uma ontologia monista do transindividual, tal objeção não pode ser mantida. O corpo não é uma matéria inerte, ou uma essência, à qual podemos atribuir propriedades xas imutáveis (como certos tipos de genitália ou balanços hormonais). Pelo contrário, o corpo em geral e o corpo das mulheres em particular são processos.15

 

As práticas artísticas desfrutam de uma posição privilegiada nesse sentido. Ao fornecer espaço para desafiar as visões hegemônicas de maneiras que conectam a crítica racional com a ligação emocional, elas são frequentemente um espaço particularmente e ficaz para renegociar nossos seres imaginais. Para colocar nas palavras de Muñoz, pode-se entender essa iluminação como um excedente de afeto e significado; um excedente que é gerado pela iluminação especificamente antecipatória da arte (Muñoz, 2009, p. 3). E se é verdade que ser mulher, em nossas sociedades capitalistas, envolve cada vez mais o “domínio imaginário” (Cornell, 1995) ou mesmo o registro do espetáculo comoditizado (Ehrlich, 2009), então podemos olhar para as práticas artísticas como um possível local para a promulgação de contraespetáculos.16

 

Vamos considerar a série de trabalhos sobre Pastrana, feita e executada pela artista mexicana Laura Anderson Barbata, em Nova Iorque. A figura 2, intitulada Julia e Laura, captura um desses momentos.17 Na foto, você pode ver uma mulher-artista (a tela nas costas) que se projeta como um espelho de outra mulher, ao lado de uma estátua, e usando uma barba preta. As duas mulheres têm vestidos roxos semelhantes, o mesmo tipo de pose, sapatos e penteados semelhantes, mas uma usa óculos e a outra uma barba espessa e comprida. Curiosamente, a artista- mulher sem barba se chama Laura Anderson Barbata, que, em espanhol, como em minha própria língua nativa, é muito próxima de barbuda, que significa literalmente “uma mulher barbada”. Isso sugere que a mulher à esquerda da imagem é a verdade do XX da mulher à direita? A posição da artista na frente da tela é a verdade da mulher barbada à esquerda ou a ruptura no meio da imagem, sugerindo um processo de identificação e desidentificação ao mesmo tempo? Eu diria que é ambos, e precisamente assim, essa imagem funciona como um meio de interrogar e renegociar a feminilidade.

 

Na história de Julia e Laura, que Laura Anderson Barbata tem contado em suas imagens e em suas performances, ficamos sabendo que Julia Pastrana nasceu em 1834, em uma pequena aldeia mexicana no Estado de Sinaloa.18 Muito pouco se sabe sobre o primeiros 20 anos de sua vida, exceto que, em algum momento, ela estava morando na casa do governador de Sinaloa, onde foi treinada como dançarina e meio-soprano, e onde aprendeu francês e inglês. Em 1854, ela foi vendida ao sr. Francisco Sepúlveda, que fez uma parceria com um empresário americano, Theodore Lent, para apresentar Julia Pastrana nos Estados Unidos. Naquele mesmo ano, Theodore Lent se casou com Julia Pastrana em Nova Iorque. A partir de então, seu empresário e seu marido a apresentaram como: “A mulher mais feia do mundo”, “A indescritível”, “O hirsuto”, “A mulher do macaco”, “A fêmea híbrida”, “A mulher-urso”, “Dama Beduína” e a “Mulher- Macaco”, entre outras denominações.

 

Em 1860, Pastrana, que estava grávida do lho de seu marido, viajou para Moscou, onde deu à luz um bebê diagnosticado com a mesma condição que a dela (isto é, coberto de pelos pretos excessivos e uma mandíbula superdesenvolvida). Tanto o bebê quanto a mãe morreram logo após o nascimento. Depois da morte deles, Theodore Lent vendeu seus corpos para o dr. Sokolov, da Universidade de Moscou, que desenvolveu uma técnica especial de embalsamamento e queria usá-los para mais investigações cientí cas. Mas, dois anos depois, Lent voltou a Moscou para recuperá-los e, com o apoio da embaixada dos EUA, conseguiu obter seus corpos. Ele os colocou dentro de uma caixa de vidro e começou a exibi-los por toda a Europa, com grande sucesso comercial.

 

Desde então, os corpos de Julia Pastrana e seu bebê continuaram a ser exibidos, pesquisados, roubados e dani cados. O fascínio que exerciam não se deteve com a morte: pelo contrário, era aumentado por ela, porque sob uma caixa de vidro, eles se tornavam controláveis. Em 1976, ladrões invadiram um armazém em Oslo, onde os corpos eram mantidos e jogaram o corpo do bebê em um campo, onde ele foi comido por roedores. O braço de Julia foi arrancado e encontrado muito depois, já o seu corpo permaneceu desaparecido até 1988, quando emergiu novamente. Em 1994, o corpo estava sob custódia do Departamento de Anatomia Forense de Oslo, para ns de pesquisa. Artigos e publicações descrevendo seu caso apareceram em todo o mundo, mas ela ainda era praticamente desconhecida no México.

 

Em 2003, Laura Andersen Barbata conheceu a história de Julia Pastrana, por uma peça dedicada à sua vida. A partir desse ponto, Barbata se engajou ativamente em uma campanha internacional, tentando recuperar o corpo de Pastrana e devolvê-lo ao México. Após dez anos de lutas, o corpo foi finalmente devolvido a Sinaloa, no México, onde foi enterrado com uma foto de seu filho no peito. Barbata foi muito ativa em garantir que seu túmulo fosse completamente coberto de concreto e fechado em paredes que medem mais de um metro de espessura para garantir que ela nunca mais seja exposta. No entanto, ao mesmo tempo, ela continuou performando essa história e expondo-a através de seu trabalho. Por quê?

Para entender o tipo de operação artística em questão, temos de dar um passo para trás e explorar o tipo de lógica exibicionista que emergiu da história de Julia Pastrana. Considere a figura 3, reproduzindo o anúncio do desempenho de Pastrana (1855) em Worcester, Massachusetts (1855). A captura nos diz imediatamente que temos um “índio Opate”, que se caracteriza por unir duas características (mulher e urso) que são incompatíveis. A imagem exagera tanto a quantidade de cabelo no corpo de Pastrana quanto seus traços masculinos, que contrastam ainda mais com sua feminilidade: é a combinação excêntrica de elementos que a visão hegemônica de feminilidade na época não permitia combinar, isso faz dela “mal-dita”, a criatura que é impossível nomear. Mas isso também explica o fascínio com seu corpo e, portanto, as razões para transformá-la em um espetáculo. A bela voz de um meio-soprano treinado, os panos chiques e a postura composta, invocando valores de adorno e submissão associados à moderna feminilidade ocidental, foi percebido como estando em desacordo com a espessura de sua barba, o excesso de seus cabelos, que, em vez disso, lembram os atributos tradicionais da masculinidade ocidental moderna. Como Preciado (2013, p. 114) observa, o deslocamento de pelos no corpo é um local crucial para a produção de corpos de gênero e raciais na Modernidade. No sistema tecnogênero do século XIX, a exibição de “senhoras barbadas” como monstruosidade andava de mãos dadas com a invenção do hirsutismo como uma condição clínica, tornando as mulheres normais potenciais clientes do sistema médico e cosmético normalizador. Observe aqui como o gênero selado com raça como “hirsutismo” tornou-se uma condição clínica que ajudou a classificar a feminilidade normal e as raças inferiores (Preciado, 2013, pp. 114-15)19. Não por acaso, a propaganda apresenta a estranha combinação feminina de Pastrana e traços masculinos como um índio “Opate”, relegando-o assim a uma raça inferior, e talvez até a uma espécie inferior: a rotulagem “Urso Mulher” não pode senão simbolicamente relegá-la a um espaço liminar entre uma espécie superior (humano) e uma inferior (animal).

 

Não é difícil reconhecer, nesse anúncio, a típica lógica exibicionista do colonialismo.20 O fascínio do índio “Opate” e da “mulher do urso” advém do fetiche colonial que precisa ser exibido no coração dos territórios dos colonizadores, a fim de reforçar as visões hegemônicas da feminilidade em casa, mas também para impedir imagens alternativas de feminilidade. Com relação a essa lógica, o trabalho de Barbata opera um contraespetáculo terapêutico, pelo que chamei, em outro momento, de terapia homeopática: ela toma pequenos pedaços do espetáculo passado para se voltar contra si mesma, usando assim o mal contra o mal, realizando um espetáculo de feminilidade contra a lógica espetacular hereditária da própria feminilidade.21 No entanto, em vez de simplesmente nos convidar a identificar-nos com a história de Pastrana, a justaposição das duas imagens e a ruptura branca no meio nos convida a um constante questionamento das dicotomias estabelecidas que representam: a barbada versus a mulher depilada, a masculina versus a feminina, a metade animal versus a totalmente humana. Assim, ao interrogar a feminilidade espetacularizada no passado, é possível pensar em outras possibilidades futuras.

 

Em suma, a história de Julia Pastrana ilustra poderosamente o fascínio que a pluralidade de seu corpo exercia, mas também quão ambivalentes as respostas a ela podem ser. O problema é que as pessoas geralmente não estão abertas a aceitar tal pluralidade (porque também implica aceitar as ambivalências de alguém) e, portanto, o fascínio volta na forma da monstruosidade, da feiura, da adoração, mas também na violação dos corpos embalsamados. Note-se que o marido, que não só estava interessado em ganhar dinheiro com ela como a engravidou, e, após sua morte, casou-se com outra mulher, Marie Bartel, que sofria de condições semelhantes às de Pastrana. Ele tentou fazer com esta a mesma coisa que fez com sua primeira esposa, mas ficou louco e morreu em um asilo russo. Esse era o seu problema, mas talvez também o nosso problema: a nossa dificuldade em manter uma abertura verdadeiramente pluralista, o que implica também a capacidade de manter unidas as nossas ambivalências. Parafraseando Nietzsche, esta talvez seja a nova fórmula de nossa felicidade: “Um sim, um não, uma linha reta e uma barba” (Nietzsche, 1976, p. 570).

 

4. CONCLUSÕES: EM DIREÇÃO A UM MANIFESTO ANARCOFEMINISTA

 

Concluindo, gostaria de voltar à questão do reducionismo levantada no início e tentar mostrar brevemente por que, para os teóricos feministas críticos, o anarquismo pode ser um melhor interlocutor para abordar a questão da opressão das mulheres do que o marxismo. Alguns argumentaram que é por causa de seu reducionismo econômico que o casamento entre marxismo e feminismo terminou em uma união infeliz: ao reduzir o problema da opressão das mulheres ao único fator de exploração econômica, o marxismo acabou dominando o feminismo exatamente da mesma maneira em que os homens em uma sociedade patriarcal dominam as mulheres (Sargent, 1981). Embora esse reducionismo tenha sido questionado por muitas feministas marxistas,22 permanece, pelo menos em princípio, uma possível tentação reducionista no feminismo marxista que, por outro lado, sempre foi estranha ao anarcofeminismo.

 

Qualquer análise crítica da opressão das mulheres precisa levar em conta uma multiplicidade de fatores, cada um com sua própria autonomia, sem os tentar reduzir a uma fonte ou origem que explique tudo; seja a extração de mais-valia no local de trabalho ou a sombra da não remuneração do trabalho doméstico. Há algo intrinsecamente multifacetado na opressão das mulheres, tanto que não será surpresa agora considerar o fato de que os programas de estudos de gênero e de mulheres são todos, inevitavelmente, interdisciplinares. Note aqui que, em contraste com muitas caricaturas do pensamento anarquista que ainda prevalecem na mídia, o anarquismo denota principalmente um método, um que visa a questionar qualquer arche estabelecido, e não um modelo completo para a sociedade.23

 

Apesar do anarquismo e do marxismo frequentemente estarem no mesmo caminho e até mesmo convergirem nas lutas dos trabalhadores, a maior diferença entre eles é que os pensadores anarquistas têm historicamente trabalhado com uma noção mais variada de opressão que enfatiza a existência de formas de exploração a qual não pode ser reduzida a fatores econômicos (sejam estes políticos, culturais, sexuais, cosméticos, e assim por diante). Daí também seu casamento mais feliz com o feminismo: se a relação entre marxismo e feminismo têm sido historicamente uma ligação perigosa (Arruzza, 2010), que reproduz a mesma lógica de dominação entre os dois sexos, então a relação entre feminismo e anarquismo promete ser um encontro muito mais produtivo. Historicamente, os dois convergiram com tanta frequência que alguns argumentaram que o anarquismo é, por definição, feminismo (Kornegger, 2009). A questão não é simplesmente registrar isso, de Mikhail Bakunin a Emma Goldman, e com a única (possível) exceção de Proudhon, o anarquismo e o feminismo frequentemente convergiam nas mesmas pessoas. Esse fato histórico sinaliza uma afinidade teórica mais profunda. Você pode ser marxista sem ser feminista, mas não pode ser anarquista sem ser feminista ao mesmo tempo. Por que não?

 

Se o anarquismo é uma filosofia que se opõe a todas as formas de dominação, incluindo aquelas que não podem ser reduzidas à exploração econômica, ele tem de opor-se à sujeição das mulheres também, caso contrário é incoerente com seus próprios princípios. A maioria dos pensadores anarquistas trabalha com uma concepção de liberdade que é mais bem caracterizada como uma “liberdade de iguais” (Bottici, 2014, p. 178), em que a última expressão significa que eu não posso ser livre, a menos que todos os outros sejam igualmente livres, porque mesmo se eu for o mestre, a relação de dominação da qual participo vai me escravizar tanto quanto a própria escrava. Mas se eu não posso ser livre, a menos que eu viva cercado por pessoas que são igualmente livres, isto é, a menos que eu viva em uma sociedade livre, então a sujeição das mulheres não pode ser reduzida a algo que diz respeito apenas a uma parte da sociedade: uma sociedade patriarcal será fundamentalmente opressiva para todos os sexos, precisamente porque não posso ser livre por conta própria. E isso é algo que tendemos a esquecer: o patriarcado é opressivo para todos, não apenas para as mulheres.

 

Então, se é verdade que o anarquismo tem de ser por definição feminismo, o oposto é válido? Pode haver feministas que não são anarquistas? Claramente, historicamente falando, muitos movimentos feministas não eram anarquistas. No entanto, algumas feministas afirmaram que o feminismo, em particular o feminismo da segunda onda da década de 1970, era anarquista em sua estrutura e aspirações profundas. Segundo Kornegger (2009), por exemplo, as feministas radicais desse período eram anarquistas inconscientes, tanto em suas teorias quanto em suas práticas. A estrutura dos movimentos de mulheres (por exemplo, grupos de conscientização), com ênfase em pequenos grupos como unidade organizacional básica, no nível pessoal e político, e na ação direta espontânea, assemelhava-se muito às formas tipicamente anarquistas de organização (Kornegger, 2009, p. 494).

 

Mas ainda mais impressionante é a convergência conceitual com a concepção de liberdade que descrevi acima. Por exemplo, Kornegger (2009, p. 496) afirma que “a libertação não é uma experiência insular”, porque pode ocorrer apenas em conjunto com todos os outros seres humanos, o que, mais uma vez, significa que a liberdade não pode ser uma liberdade de iguais. No entanto, isso também implica que não se pode lutar contra o patriarcado sem lutar contra todas as outras formas de hierarquia, sejam econômicas ou políticas. Como Kornegger (2009, p. 493) novamente colocou, “feminismo não significa poder corporativo feminino ou uma mulher presidente: isso significa nenhum poder corporativo e nenhum presidente”.

 

Caso contrário, o feminismo não significa simplesmente que as mulheres devem ocupar o lugar ocupado pelos homens (o que seria uma forma bastante fálica do feminismo); em vez disso, as mulheres devem lutar para subverter radicalmente a lógica da opressão patriarcal, na qual o sexismo, o racismo, a exploração econômica, a opressão política, e assim por diante, reforçam-se reciprocamente, embora com formas e modalidades diferentes em diferentes contextos. Isso se mantém ainda mais hoje, em um mundo globalizado, onde diversas formas de opressão e exploração, baseadas em gênero, sexo, raça ou classe, cruzam-se. Talvez a maior contribuição do feminismo interseccional tenha sido mostrar que, se pelo feminismo, entendemos simplesmente a luta pela igualdade formal entre homens e mulheres, corremos o risco de criar novas formas de opressão. Corremos o risco de que a igualdade entre homens e mulheres signifique apenas que as mulheres devem assumir posições antes reservadas aos homens burgueses brancos, reforçando, assim, mais os mecanismos de opressão do que os subvertendo. Por exemplo, se considerarmos que a emancipação das mulheres significa simplesmente entrar na esfera pública em pé de igualdade com os homens, isso, por sua vez, pode implicar que outra pessoa deva substituir essas mulheres em suas casas. Mas, para a mulher imigrante que substitui a dona de casa branca na prestação de cuidados domésticos, isso não é liberdade: ela simplesmente sai de casa para entrar em outra, como trabalhadora assalariada.24 Na situação atual, se o feminismo não pretende dissolver todas as formas de hierarquia, a emancipação de algumas mulheres (brancas) pode acarretar na opressão de outras mulheres (imigrantes, negras ou do Sul).

 

Para concluir, talvez o feminismo não tenha sido historicamente sempre anarquista, mas deve-se tornar agora, porque deve ter como objetivo subverter todas as formas de dominação. O feminismo, hoje mais do que no passado, não pode significar a presença de mulheres governantes soberanas ou de mulheres capitalistas de sucesso: não significa nem soberania, nem capitalismo. E espero que seja com essas palavras que um novo programa de pesquisa anarcafeminista seja iniciado.

 

Chiara Bottici é Professora associada de Filosofia na The New School for Social Research, Nova Iorque, Estados Unidos. E-mail: [email protected]. Site: https://www.newschool.edu/nssr/faculty/chiara-bottici/

 

Publicação original: Bottici, C. (2017). Bodies in plural: towards an anarchafeminist manifesto. M. M. Moreira & C. Ratton
(Trads.). Thesis Eleven, 142, 99-111. Tradução inédita para o português realizada com a autorização da autora.

 

*Artigo publicado em: Corpos no plural: rumo a um manifesto anarcofeminista. Psicol. rev. (Belo Horizonte) [online]. 2020, vol.26, n.1, pp. 299-324. ISSN 1677-1168.  http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p290-316.

 

  1. As estatísticas nos mostram que homens brancos são, de longe, os destinatários mais comuns dos benefícios por incapacidade da Previdência Social. Embora o governo pareça ter deixado de tabular dados demográficos raciais em 2010 (mesmo um relatório interno datado de 2014 é baseado em dados desatualizados), o relatório de 2009 nos indica que, de 7.788.013 destinatários daquele ano, 5.658.054 (73%) eram brancos, e 3.005.142 eram homens brancos (o que equivale a 39% – uma pluralidade – da população total, e uma maioria de 73% dos destinatários homens, que totalizaram 4.100.400). Além disso, dentro dos destinatários brancos, 53% eram homens. Resultados similares foram obtidos nos anos anteriores (Sunderman, 2015). ↩︎
  2. O termo “interseccionalidade” foi usado em 1989 pela socióloga K. W. Crenshaw (1989), mas suas origens intelectuais datam de muito tempo atrás, como tentaremos argumentar durante este trabalho. Desde as primeiras observações de Bakunim sobre como o patriarcado se cruzava com o autoritarismo (Bakunin, 2005) até os escritos anarcofeministas de Emma Goldman, vemos uma ênfase constante em como as diferentes formas de opressão se cruzam umas com as outras (Goldman, 1969). ↩︎
  3. Mais recentemente, ver Collins e Andersen (2012) e Ferguson (2013). Para um resumo mais sucinto da crítica recente acerca das distinções entre sexo e gênero, ver Chanter (2006, pp. 1-7). ↩︎
  4. Ver, por exemplo, Donaldson (1992) ↩︎
  5. Um exemplo de análise empírica da discriminação nos é fornecida por Castillo, Petrie e Torero (2012), enquanto Oksala (2011) faz uma observação semelhante em nível losó co, analisando como as técnicas de beleza contribuíram para criar um sujeito especificamente neoliberal do feminismo. ↩︎
  6. Em minha visão, Ehrlich (2009) e Kornegger (2001) apontaram para a direção certa algum tempo atrás. Mais recentemente, ver Shannon (2009) e Ehrlich (2013). Muitos escritos anarcofeministas tendem a assumir a forma de panfletos militantes, às vezes, deixando de fornecer a estrutura filosófica necessária para seu próprio empreendimento. Este artigo dedica-se justamente a preencher essa lacuna. ↩︎
  7. Seguindo a prática comum nos estudos de Spinoza, usarei como ponto de referência a edição crítica padrão das obras latinas de Spinoza: Spinoza, B. (1925). Opera, editado por Carl Gabhardt, Heidelberg, Winter, 4 vols. Para citar o texto, utilizo as seguintes abreviações: E = Ética, seguida da indicação da parte em algarismos romanos (I, II, III, IV, V), e seguida do número da Proposição (P 1, 2, 3, etc.). ↩︎
  8. O argumento das 20 pessoas é usado no escólio 2 da Preposição 7 EI, no qual Spinoza começa a adicionar alguns elementos a posteriori para a prova a priori da existência de uma substância in nita desenvolvida em EI P1-P7. ↩︎
  9. Para aqueles que apreciam o ato de traçar as origens da ontologia transindividual, Balibar inspira-se na Individuação psíquica e coletiva, de Simondon (2007). ↩︎
  10. Como observa Hippler (2011), o indivíduo não é, portanto, a primeira questão política dada, mas é concebido como um processo que é coextensivo com a própria política. É a terceira parte da Ética (Spinoza, 1994) que enfatiza os mecanismos afetivos de associação e transferência (EIII P14-16), além da mimese e imitação (EIII P21-34) que formam indivíduos. ↩︎
  11. Nota-se que o desejo é, para Spinoza (1994), claramente diferenciado da vontade, porque a vontade é o nome que damos aos esforços do homem para se preservar quando, por um processo fictício, pensamos na alma como isolada do corpo, enquanto o desejo é o mesmo esforço quando se relaciona inseparavelmente da mente e do corpo (EIII P9, escólio). Sobre a relação entre os dois, ver Balilar (1998, p. 105). ↩︎
  12. Um dos primeiros comentaristas a apontar para o papel construtivo da imaginação em Spinoza foi Negri (ver particularmente Negri, 1991, pp. 86-97). De acordo com Williams, o que há de novo em Negri (1991), Balibar (1997, 1998) e Gatens e Lloyd (1999) é que todos chamam a atenção para o romance de Spinoza, a renderização materialista da imaginação, sem simplesmente descartá-la como uma fonte de erros (Williams, 2006, p. 350). ↩︎
  13. Percebe-se as semelhanças entre este processo e o processo descrito por Cornell (1995) em O domínio do imaginário. Embora Cornell expresse sua teoria em termos lacanianos, penso que as ideias fundamentais de que o “imaginal” é um campo de batalha crucial onde corpos sexuados negociam em seus próprios termos se mantém a mesma. ↩︎
  14. Sobre como combinar a teoria de reconhecimento com a teoria transindividual, ver o volume editado Strategie della relazione (Marcucci & Pinzolo, 2010) e, em particular, o ensaio de Vittorio Mor no (2010) nele presente. Ao extrair ideias do trabalho do sociólogo Alessandro Pizzorno, elaborei ainda mais a relação entre identidade e narrativa, insistindo na natureza plural de tal processo, em Bottici (2007, pp. 227-245). ↩︎
  15. Isso é levemente diferente da observação de Gatens, de que o corpo é um produto histórico (Gatens, 1996), mas a essência permanece a mesma. Entre aqueles que enfatizaram esse ponto mais recentemente, ver Preciado (2013), particularmente as páginas 99 a 130. ↩︎
  16. Desenvolvi a noção de contraespetáculos em Bottici (2014, pp. 106-124). Embora tenha desenvolvido dentro da estrutura de
    uma teoria do “imaginal”, sou amplamente grata ao trabalho seminal de Lara (1998), que mostrou como as narrativas feministas
    podem exercer seu impacto crítico na esfera pública, desse modo, descobrindo-nos maneiras alternativas de ser mulher.
    ↩︎
  17. Ver o website de Laura Anderson Barbata (2013) para uma descrição de toda a série de trabalhos sobre Pastrana, que incluem arte visual e performances. Recuperado a partir de http://www.lauraandersonbarbata.com/work/mx-lab/julia-pastrana/ ↩︎
  18. Teço tais considerações a partir da cronologia de Barbata (2013). Recuperado a partir de http://www.lauraandersonbarbata.com/work/mx-lab/julia-pastrana/3.php ↩︎
  19. Por exemplo, desde 1961, o hirsutismo começou a ser medido de acordo com a escala de Ferrimann-Gallway, segundo a qual uma pontuação de oito na mulher caucasiana é indicativa de excesso de androgênio, enquanto, nas mulheres do leste asiático, uma pontuação muito mais baixa revela o hirsutismo (Preciado, 2013, p. 115). ↩︎
  20. Sou grata pelos trabalhos e filmes de Wayne Wapeemukwa (em específico, Balmoral Hotel, produzido em 2015), por iluminarem ideias acerca da conexão entre colonialismo e exibicionismo. ↩︎
  21. Desenvolvi este conceito de uma “estratégia homeopática”, de maneira mais extensa, em Bottici (2014, pp. 106-124). Cornell (1995, pp. 95-167) propõe uma estratégia semelhante em seu trabalho sobre pornografia, enquanto Muñoz (1999) o teorizou como “desidentificação” ou “futurismo queer“, em seu trabalho sobre o poder esclarecedor antecipatório das performances artísticas (Muñoz, 2009). ↩︎
  22. Exemplos notáveis incluem a aproximação bidimensional de gênero de Fraser (2013, pp. 158-186), a combinação de marxismo e teoria queer de Arruzza (2010), as reconsiderações mais recentes de Federici (2012) acerca de reprodução e a abordagem interseccional coletada na antologia recente Marxismo e feminismo (Mojab, 2015, pp. 287-305). ↩︎
  23. Esse pensamento acerca da natureza do anarquismo combina autores distintos como Malatesta (2001), Schürmann (1986) e, mais recentemente, Newmann (2016). O último, tecendo considerações a partir de Schürmann e Foucault, diz do pósanarquismo como uma prática ético-política que “começa” com o anarquismo ao invés de tê-lo como projeto “final” (ver, em particular, Newmann, 2016, pp. 9-13). ↩︎
  24. Acerca da problemática levantada pelo assim chamado “atendimento em cadeia global” e a forma com que este reestrutura a economia global, ver Yeates (2009), enquanto na forma com que desafia as considerações marxistas tradicionais, ver Federici (2012, pp. 115-125). ↩︎

Apresentação de Laurie Laufer: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismo – 3ª parte

Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.

Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.

BS: Gostaria de falar agora sobre a escrita de casos clínicos. Você fez um seminário sobre isso, e lembro que você chamou Guy Le Gaufey, um analista que questiona o uso de vinhetas clínicas e para quem “a maior parte das vinhetas clínicas, em seu valor ilustrativo, longe de serem pragmáticas e ingênuas, por se apresentarem em língua natural, revelam-se mais frequentemente como hinos, saudações, reverências a professores, autores, autoridades quaisquer. São muitas vezes a expressão de transferências maciças e significativamente pouco questionadas”. Você está de acordo?

LL: Sobre a escrita de casos clínicos, publiquei na revista Psychologie Clinique. Na verdade, evoluí bastante a esse respeito. No meu livro O enigma do luto, eu me refiro a casos clínicos. Hoje, não o faço mais, porque percebi que era sempre insatisfatório. É difícil escrever acerca dos efeitos da transferência. Pode-se dizer que é uma ficção. Freud, inclusive, sempre disse, ao evocar seus casos, que eram como romances. Talvez esteja enganada, mas acredito que pensar na psicanálise de forma epistemológica tenha um alcance clínico muito maior do que contar o que se passa numa cura. Não tenho talento para isso. É bastante difícil fazê-lo. Lacan expõe um caso clínico, um único caso clínico, o de Marguerite. Na verdade, não o faço porque não consigo fazê-lo e porque, quando o faço, não me transmite nada, não sou criativa. Quando escrevo, tento pensar nos textos de Foucault, Butler, Lacan etc. Eu me transformo mais quando quebro a cabeça com os textos deles, tentando verificá-los na minha clínica, do que quando escrevo um texto pretendendo descrever minha clínica, o que me transforma menos, me faz avançar menos, por assim dizer. A exceção é quando trabalho com um romance, uma narrativa, uma ficção, a autoficção de Jane Sautière, por exemplo. O livro Nullipare é uma ficção. Eu me sinto mais à vontade para trabalhar a partir de um romance.

Creio ainda que a escrita de vinhetas clínicas possa ter o efeito de certa violência. Por exemplo, Catherine Millot, que é alguém de quem gosto. A meu ver, ela foi tomada pelo jargão lacaniano de sua época quando lançou um ensaio sobre a transexualidade intitulado Horsexe. Eram os anos entre 1975 e 1985. Para as pessoas de que trata, a leitura desse livro é extremamente agressiva. Lembro-me de um colóquio coorganizado pela Escola Lacaniana e por uma associação de transgêneros que hoje não existe mais, Caritig, creio. Nunca vi um colóquio tão violento. Catherine Millot estava lá, e também Marie-Hélène Bourcier (na época) e Tom Reucher, um psicoterapeuta transgênero. Catherine Millot foi fuzilada, foi insultada a ponto de ter que deixar o anfiteatro. E por quê? Porque seu livro era uma aplicação dogmática da língua lacaniana à transexualidade.

BS: Sim, com certeza. Mas penso que, entre o que fez Catherine Millot e o que pode fazer alguém como Ken Corbett, que é um analista gay, ou Tim Dean, que não é psicanalista, mas escreve sobre e a partir da psicanálise…

LL: O grupo de trabalho que juntas vamos iniciar, com você, Amy Ayouch e outros, terá por objeto o que é o saber localizado para um psicanalista. O que isso quer dizer? Não é simplesmente explicitar de onde falamos. É mais complexo. O que nos faz hoje propor essa questão? De fato, é muito complicado. Atualmente, nos Estados Unidos, vemos um momento um pouco difícil, em que tudo pode ser vivido como uma cultural appropriation, como uma apropriação cultural. Por exemplo, Kathryn Bigelow, que fez Detroit. Não sei se vocês viram esse filme sobre a violência perpetrada contra os negros nos anos 1960, nos Estados Unidos. Ela foi interpelada: como uma mulher branca, burguesa, de classe média alta etc. podia fazer um filme sobre negros pobres, violentados, descendentes de pessoas escravizadas? Nas palavras de Jean Allouch: “Agora, calma! Isso quer dizer o quê? Isso quer dizer que só as tartarugas podem falar das tartarugas?”. É complicado, muito complicado. Um pouco ridículo, caricatural. Parece afirmar que nós essencializamos as posições. Entretanto, isso também põe em cena a questão da legitimidade do discurso. Que discurso é legítimo para dizer algo pelo outro, do outro ou no lugar do outro? Houve um verdadeiro confisco da palavra das ditas minorias. Agora há uma reapropriação da palavra pelas pessoas envolvidas. Evidentemente, poderiam me replicar que um psicanalista não fala no lugar do paciente, a menos que escreva algo fazendo-o falar. Então, é complexa essa questão da escrita de caso. É complexa. Não é simplesmente uma pequena transcrição clínica… É uma edição, você escolhe momentos… Estou falando demais… [Risos.]

LPO: Não, não. Eu diria que você é uma das raras psicanalistas a dizer coisas complexas sem enquadrá-las nos discursos tradicionais, segundo Freud ou segundo Lacan. Penso ser Winnicott quem diz que a psicanálise deve apresentar paradoxos cujo destino deve permanecer insolúvel. É bem oriental…

LL: Isso é um elogio, eu vou tomar como um elogio.

LPO: Sim, exatamente. Isso abre as portas ao invés de fechá-las.

LL: A emancipação para mim é isso; ela é válida tanto no que diz respeito à clínica quanto no que diz respeito à teoria. Tudo o que teoricamente abre as portas me parece importante, na verdade. Tenho uma experiência bastante singular no exercício da psicanálise. Não é simplesmente fazer uma psicanálise, mas exercer a psicanálise. Apesar de tudo, é um ofício divertido. É preciso levá-lo à sério, mas não muito. Ou levar a sério esse ofício, mas sem se levar a sério. Não é uma tarefa fácil.

LPO: Você abre portas. Fiz uma pesquisa sobre os assuntos que você abordou e me deparei com este site: lavieenqueer.wordpress.com. É um blog muito interessante, aprendi um monte de coisas. Existe um debate a respeito de como se dirigir a alguém segundo seu gênero. Aprendi a palavra mégenrer, por exemplo. Há um link para um dicionário de gênero… Como você vê o ensino da psicanálise na França hoje?

LL: É uma questão que ultrapassa a própria disciplina universitária. Hoje é uma questão política. Aliás, o ensino da psicanálise sempre foi uma questão, desde Freud. Como ensinar psicanálise? Como transmiti-la sem ser tomado pelos discursos universitários, dogmáticos, de escola, sem estar em uma mitologia do caso etc.? Apesar da impossibilidade de seu ensino, creio ser importante a psicanálise estar presente na universidade. É uma questão de estratégia, ou de tática, diante das ditas ciências cognitivas, do ensino de terapia cognitivo-comportamental (tcc) etc. Há na França uma verdadeira aversão à psicanálise na universidade. É um bom sinal e é por isso que é preciso ampliar sua presença. Existem ainda verdadeiras questões epistemológicas quanto à afiliação do “campo disciplinar”. Nos Estados Unidos, a psicanálise não é ensinada dentro da psicologia. E na França? Deve-se ensiná-la com as ciências da vida? Como ciência humana? Em suma, Freud e Lacan acertaram: ela é intransmissível e indeterminável [inassignable]. Então, continuemos a ensiná-la.

LPO: Era uma posição geral de Freud: a psicanálise é impossível, mas continua-se a ensiná-la; é impossível, mas continua-se a praticá-la; os charutos seriam o melhor remédio para o tumor na boca… Você acha que propõe novos paradigmas?

LL: Não tenho a pretensão de dizer que proponho. O que tento é pensar a extensão, a miscigenação, o hibridismo (peço emprestado esse termo a meu amigo Amy Ayouch), o apatridismo da psicanálise. Como exercer a psicanálise num mundo globalizado? O que me interessa é o diálogo com Foucault, Deleuze, Laclau, os pensadores da teoria queer e dos estudos de gênero, que impulsionam o questionamento da psicanálise nos pontos que me atraem a atenção. Freud inventou as ferramentas para ultrapassar a psicanálise. É possível uma psicanálise para além do Édipo, como quis Deleuze? Para além da diferença sexual? Pode a psicanálise sobreviver fora do dispositivo discursivo da sexualidade, aquele mesmo que a viu nascer? Essa foi uma tentativa de Lacan, que queria, segundo dizia, “renovar o domínio de Eros”. Há muito ainda para pensar.

A ferramenta do gênero favorece a atualização do saber como um campo que constitui uma verdade partilhada, com normas, usos, lugares-comuns, notadamente sobre a diferença sexual. Quer isso se dê pela noção de indecidibilidade de Derrida, de problema de Butler, de análise discursiva dos dispositivos disciplinares de Foucault, de dilema insolúvel de Joan Scott, de práxis do irrepresentável de Françoise Collin, como repensar todas essas questões? Freud dizia que a psicanálise deveria ser open to revision. Então, como evitar uma psicanálise “fechada”?

LPO: Você poderia nos falar um pouco da articulação entre as questões ligadas à ética e as questões relativas às mulheres, para além de qualquer moralismo? Creio que se tenha confundido muito ética e moralismo em psicanálise. Houve aqui uma lacanagem de posições contrárias aos homossexuais – por exemplo, ao casamento deles.

LL: Sempre pensei que a psicanálise teve uma história paralela à dos movimentos feministas, inclusive com alguns cruzamentos; que a psicanálise foi um método de emancipação. Não sei como articular ética e feminismo. Houve, sim, essa confusão da qual você fala. Prefiro às vezes, no lugar do termo ética, o termo técnica. Talvez a liberação da palavra das mulheres tenha trazido algo à técnica analítica, mas é bastante curioso dizer isso, porque essencializa essa palavra. É algo que lida mais com a questão dos subalternos (tratada por Gayatri Spivak). Houve um confisco da palavra das mulheres e do uso de seu corpo. O que se passa hoje diante desta ou daquela forma de emancipação de tal palavra e de tal uso do corpo? Quais efeitos isso produz nos desejos, na vida em coletividade, na sexualidade, nas políticas de emancipação? É isso o que me interessa hoje na articulação entre psicanálise e emancipação.

LPO: Obrigado, Laurie. Espero que tenhamos a oportunidade de retomar nossa conversa a respeito desse assunto com os leitores brasileiros.

*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.

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