Anarcafeminismo: Chiara Bottici contra a dominação

A luta contra a opressão de todas as mulheres é,mais do que nunca, um imperativo necessário e urgente, mas tem que se sustentar em uma libertação das mulheres articulada de tal forma que a emancipação da singularidade não passe a crer mais em hierarquias (do homem em relação à mulher, de todos os seres humanos em relação aos animais, plantas, inclusive da materia inanimada). Essa é a inovadora e articulada proposta da filósofa italiana Chiara Bottici em Anarcafeminismo, uma abordagem especificamente anarcafeminista adaptada aos desafios atuais.

Anarcafeminismo oferece um extenso marco teórico  a partir do qual nasce o Manifesto Anarcafeminista.

Anarcafeminismo parte de uma visão utópica de uma sociedade onde as pessoas desejam e lutam pela sua liberdade sem criar ainda mais hierarquias para outras pessoas e para seres vivos não humanos. As utopias são realistas porque nos dizem onde (não) estamos. Uma utopia anarcafeminista nos diz que uma sociedade em que todas e cada uma das mulheres são livres ainda está distante, mas também nos mostra que somos a maioria avançando nessa direção. Algumas falam sobre feminismo interseccional, outras ecofeminismo, outras chamam de movimento queer, ou feminismo sem fronteiras: muda o nome e mudam as prioridades politicas, mas a mensagem fundamental é a mesma – o feminismo não significa a libertação de algumas mulheres privilegiadas: significa a libertação de todas nós.

“O feminismo por si só não é suficiente, porque o que vem se demonstrando é que pode se tornar compatível com estruturas de dominação. Por isso, é imprescindível uma filosofia anarcafeminista.”

Chiara Bottici.

A filosofia anarcafeminista permite combinar duas evidência: que há algo específico na opressão das mulheres e das feministas em geral, e que para enfrentar essas opressões precisamos falar delas em todas as suas formas. Para ela, na primeira parte desse extraordinário livro, Bottici estabelece un dialogo com a literatura feminista negra em relação à interseccionalidade e analisa sua relação com teorias e ideias anarcafeministas: delineia um tipo de anarquismo “mais além do eurocentrismo e do sexismo”. Finalmente situa o anarcafemiqnismo entre o feminismo e a teoria queer e trans. 

O Intermezzo In nomine matris abre a segunda parte do livro, em que a procura desenvolver um conceito amplo de feminilidade e assim invocar uma filosofia monista da transindividualidade como a estrutura filosófica mais adequada para fazê-lo. Particularmente interessante é o capitulo em que explora como a perspectiva filosófica resultante das leituras feministas do célebre filosofo marrano do século XVII, Baruch Spinoza, podem visibilizar a natureza transindividual de todos os corpos e da filosofia monista – uma filosofia que não opõe corpos e mentes, reconhecendo a ambos como expressões sob diferentes atributos de uma mesma substância singular e infinita.

Essa perspectiva proporciona por sua vez uma base para sustentar que não se pode separar estritamente o sujeito do objeto de conhecimento, e por isso uma filosofia da transindividualidade é também uma filosofia transindividual, em que o discurso filosófico reivindica sua própria individualidade (o que explica por que Bottici começa a escrever com o pronome “eu” e logo passa para “nós” durante o processo de escrita). Seguindo essa linha, a autora aborda a questão que nos permite falar de uma “mulher” específica fora desse processo transindividual em curso, e com a ajuda de teorias filosóficas e práticas artísticas, responderemos que é através de um processo de contar histórias que conseguiremos.

O Intermezzo Itinerarium inaugura a terceira parte, na qual Bottici aprofunda o processo de ontogênese dos corpos generificados e sexuados considerando os níveis supra, inter e infraindividuais e focando nos interstícios que atualmente temos ao nosso alcance. Se o nível supra-individual leva à exploração da geopolítica global da ontogênese e à reivindicação de uma forma de feminismo “decolonial” e “desimperial”, o exame das interações entre corpos de gênero leva, em última análise, a uma análise do modo capitalista de (re) produção, onde o prefixo “re” entre parênteses pretende indicar que o capitalismo não produz se os trabalhadores não se reproduzem, apesar de precisamente colocar “reprodução” entre parênteses ter sido uma das ferramentas utilizadas para criar corpos com gênero.

Por fim, Bottici concentra-se nas infraações e em como os seres generificados nascem da capacidade (re)produtiva de animais, plantas e até mesmo de matéria inanimada, argumentando que uma ecologia transindividual não pode deixar de questionar a hierarquia do homem (acima de tudo). ) > mulheres ( sobre) > animais (sobre) > plantas (sobre) > matéria inanimada. Em suma, uma ecologia transindividual não pode deixar de ser uma ecologia de emancipação da singularidade.

“Enquanto outras feministas de esquerda cederam à explicação da opressão das mulheres com base num único fator, ou prenderam a libertação das mulheres num quadro estreito de compreensão da “feminilidade”, as anarquistas sempre deixaram muito claro que, para combater o patriarcado temos que combater as múltiplas formas e fatores de opressão – econômicos, culturais, raciais, políticos, sexuais, etc. — que comparecem mantendo-os; poderíamos dizer, àquelas que nos levam a privilegiar certas noções de feminilidade em detrimento de outras.”

Chiara Bottici

Consequentemente, o feminismo não é um movimento preocupado apenas com questões que tangem às mulheres, mas com a forma crítica de manter toda ordem social que, na situação crítica atual, é inseparável do “sistema de gênero moderno/colonial”, que reduz os papéis de gênero a um dimorfismo biológico e patologiza aqueles que se desviam dele. As normas de gênero e as dicotomias binárias de “homens” x “mulheres” são opressivas para qualquer pessoa, não apenas para as pessoas designadas como mulheres à nascença, embora os homens possam de fato beneficiar-se de um sistema de gênero binário onde eles têm muito mais possibilidades do que as mulheres de ocupar posições predominantes.

A Editora Criação Humana publicará, ainda o primeiro semestre de 2024, a tradução do livro “Anarcafeminismo”, da filósofa italiana Chiara Bottici.

Um enquadro feminista em Karl Marx, por Verónica Gago

Tradução: Antonio Martins.

Num desconcertante prefácio ao Manifesto Comunista, socióloga afirma: “faltou à obra enxergar a exploração do trabalho reprodutivo. Surpresa: nas lutas feministas pelo Comum e o Cuidado está hoje parte da resistência mais potente ao capital.”

Milhões de mulheres voltaram às ruas neste 8 de março em cidades de todo o mundo. Na Espanha, as manifestações foram particularmente numerosas em Madri (foto), Barcelona e dezenas de outras cidades,

1. Escrever um manifesto é criar um mundo. Ou melhor: torná-lo público. Dar conta da sua existência. Lançar luz sobre uma realidade subterrânea. Um manifesto tem força não porque seja prescritivo do que deve acontecer, mas porque reúne uma série de elementos que, considerados em conjunto, provam a existência deste mundo prenhe de novidades, mas já existente.

Deste ponto de vista, um manifesto não é utópico. Não é um decálogo de coisas que deveriam acontecer. Não é futurista, no sentido de inventar algo que é puramente imaginário. Pelo contrário, postula um realismo de uma outra vida que já está a acontecer, mesmo que reste saber se se trata de uma vida majoritária. Um manifesto exprime um realismo que é subterrâneo mas suficientemente forte para criar uma perspectiva de mudança do mundo.

O que já estava acontecia, o comunismo para Marx e Engels, tinha então uma consistência fantasmática. Isto implicava, nas palavras dos autores, que podia ser visto a contraluz: no reconhecimento das forças reativas encarnadas pelos poderes da Europa (o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os policiais alemães).

passagem do fantasma ao manifesto, então, é a decisão de se nomear com as suas próprias palavras. Fazer sair dos sótãos aqueie modo de vida que é detectado e conceitualizado pelo inimigo em termos de fantasma e ameaça. Para que haja um manifesto, tem primeiro de haver uma política noturna. Algo como uma noite dos proletários.

2. Sinto-me tentada a escrever: Um fantasma percorre a América Latina, o fantasma do feminismo. Porque ao pensar num manifesto, remeto-me a um escrito recente: o apelo a uma greve internacional de mulheres em 2017, cujo caráter “manifesto” me coloca numa possibilidade concreta de pensar sobre a atualidade desta forma de intervenção. Poderíamos muito bem enumerar as forças reativas que enxergam o movimento feminista como uma ameaça: a formulação doutrinária do Papa e da Igreja de uma “ideologia de gênero”; as forças conservadoras que desafiaram os acordos de Havana para boicotar a paz na Colômbia, as que promoveram o impeachment dapresidente do Brasil ou as que repudiam a educação sexual no Peru. Todas convergem na condenação em nome da moralidade familiar, da dissolução dos papéis de gênero e da promiscuidade da ordem social. O “epíteto calunioso” de “feminista” funciona como insulto e desqualificação. Já não no mundo partidário (como Marx e Engels apontavam, ao falar sobre a acusação de “comunismo”), mas para mencionar uma força desintegradora que opera sobretudo a nível de sensibilidades e corpos, de gostos e costumes, do confinamento de espaços e papéis na divisão sexual do trabalho.

Passar do fantasma ao manifesto, no caso do feminismo, implica nomear o medo da revolução de um feminismo que se torna popular porque está enredado com o conflito territorial (um corpo extenso, que de fato desafia os limites do corpo como “indivíduo”), que está atado com uma transformação nos modos de vida e que permite, pela sua amplitude e transversalidade, ser lido hoje como “um movimento histórico que se desenrola diante dos nossos olhos”. Por isso, como método, tentarei ler aqui algumas das questões levantadas pelo Manifesto Comunista – e em particular o seu apelo final: “Proletários de todos os países, uni-vos!

É um duplo exercício de tradução. Traduzir é trabalhar com uma língua estrangeira “mas também com o estado da língua para a qual se traduz” (assim diz o escritor argentino Ricardo Piglia para explicar por que, de vez em quando, se sente a necessidade de fazer novas traduções dos mesmos textos). Ampliando esta hipótese, eu diria que a língua comunista como língua revolucionária hoje – e com isso me refiro a certos problemas-chave de formas de exploração e dominação, de organização política e transformação radical, das classes e das subjetividades que as encarnam, do internacionalismo e da política de coligações — cruza-se necessariamente, para ser atualizada, com a língua feminista. Esta que é hoje talvez a mais múltipla das línguas em movimento.

3. No caso do Manifesto Comunista, é um texto cujo precedente é uma realidade proletária (a política noturna de que falamos anteriormente) e que em seguida parece referir-se – ou antecipar e convocar – a sua aparição nas ruas: a Revolução de Fevereiro de 1848, que abalou Paris com uma experiência de comuna. Assim, parece também que um manifesto funciona misteriosamente ligado aos acontecimentos, como se secretamente os tivesse prefigurado. Ou que faz parte de um fluxo de coisas e palavras que têm relações íntimas mas clandestinas. O manifesto, portanto, não funciona sob modo de causalidade (um manifesto não “provoca” ou “desencadeia” eventos pelo poder da sua palavra), mas faz parte (intui, colabora, prolonga) de um processo que faz das palavras vivas matéria e da conjuntura uma realidade aberta.

Isto supõe que a palavra (o que nela se manifesta) sintetiza de modo expressivo um devir, mas não define o processo. E isto porque um manifesto não deixa de ser um jogo – de leitura, de orientação, de antecipação e de projeção – sempre posto à prova.

Arrastada pelo movimento real, parte desta aposta pode então ser refutada, questionada, reorganizada. No caso de Marx e Engels, a Comuna de Paris obrigou-os a rever uma das suas principais teses para dizer que “a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina estatal existente e pô-la em marcha para os seus próprios fins” (prefácio da edição alemã de 1872), como especulavam com os pontos programáticos que tinham incluído na seção II. Assim, a orientação que impulsiona um manifesto (a sua síntese expressiva) não é dogmática, mas tem algo de plasticidade tática: deve ser capaz de ressoar com avaliações coletivas que ocorrem simultaneamente e em várias instâncias diferentes. Nas lutas e nas casas, nos sótãos e nos bares, nas fábricas e nas praças, nas barricadas e nos rumores. Um manifesto desenha então algo como um plano de coexistência, onde palavras, hipóteses e acontecimentos se referem, reforçam e reforçam mutuamente na medida em que conseguem vibrar e ressoar em diferentes realidades. Isto é também o que produz e alimenta as suas múltiplas traduções.

4. O que significa pensar na existência do proletariado do ponto de vista feminista? Manifesto postula o sujeito da política comunista, lendo-o à contraluz do capital, estabelecendo o antagonismo fundamental (“A condição do capital é o trabalho assalariado”). Poderíamos dizer, em princípio, que os cruzamentos de certas perspectivas feministas, marxistas e anticoloniais fazem um movimento semelhante à afirmação de Marx, mas no interior de um dos pólos do antagonismo. A condição do trabalho assalariado é o trabalho não assalariado, ou a condição do trabalho livre é o trabalho não livre. O que acontece quando um dos pólos é aberto? É o movimento fundamental pelo qual a diferença e a classe se cruzam.

Isto nos permite contradizer a própria leitura de Marx e Engels sobre a diferença em relação ao trabalho feminino. Argumentam que o desenvolvimento da indústria moderna através do trabalho manual tecnificado implica uma espécie de simplificação do trabalho, que permite que os homens sejam substituídos por mulheres e crianças. No entanto, “no que diz respeito à classe trabalhadora, as diferenças de idade e sexo perdem todo o significado social”, salientam eles. Neste sentido, lemos que a incorporação da diferença é feita sob o signo da sua anulação. As mulheres e as crianças são incorporadas na medida em que são homogeneizadas como mão-de-obra (funcionando como apêndices da máquina), o que lhes permite serem indiferenciadas. A diferença, no argumento que Marx e Engels empregam, é reduzida a uma questão de custo. A idade e o sexo são variáveis de barateamento, mas sem significado social. Compreendemos que aqui lidamos com o ponto de vista do capital. Marx dirá também no Capital que a maquinaria alarga o material humano explorado, na medida em que o trabalho infantil e feminino é a primeira consigna da mecanização. Mais uma vez, este alargamento é em termos de uma homogeneização ditada pela máquina, mas a diferença é anulada ou reduzida a uma vantagem homogeneizada também pela noção de custo. Assim, parece haver uma dupla abstração da diferença: do lado das máquinas (do processo técnico de produção), mas também do lado do próprio conceito de força de trabalho.

Quando reescrevemos o manifesto numa chave feminista, fazemos a operação inversa. Fazemos uma leitura inclusiva daquelas que somos produtoras de valor, na chave do pensamento sobre como a diferença reconceitua a própria noção de força de trabalho. Os corpos em jogo são responsáveis pelas diferentes tarefas em termos de um diferencial de intensidade e reconhecimento, impedindo a cristalização de uma figura homogênea do sujeito trabalhador. O trabalho, de uma perspectiva feminista, vai além daqueles que recebem um salário, porque é uma condição comum experimentar diversas situações de exploração e opressão, para além e para aquém da medida remuneratória. O trabalho, a partir de uma lente feminista, faz do corpo uma medida que vai além da noção de força de trabalho meramente associada ao custo.

Fazemos também uso da perspectiva feminista, que colocou a ênfase no fato de a crítica a esta homogeneidade da mão-de-obra dever partir do elemento que “opera” a homogeneização, uma vez que não seriam apenas as máquinas (como diz o Manifesto), mas o “patriarcado dos salários” (Federici). Isto implica duas operações: o reconhecimento de apenas uma parte do trabalho (trabalho assalariado) e depois a legitimidade do seu diferencial de acordo com o sexo e a idade apenas como uma desvalorização. Nesta linha, entendemos o trabalho assalariado como uma forma específica de invisibilização do trabalho não assalariado que tem lugar em múltiplas geografias e que recobre o que entendemos como tempo de trabalho.

Hoje, graças às lutas e teorizações feministas, podemos argumentar a partir de uma realidade contrária: o alargamento do material humano explorado, de que Marx falou, é feito por meio da exploração da sua diferença. Invisibilizando-o, traduzindo-o como hierarquia, depreciando-o politicamente e/ou metamorfoseando-o numa mais-valia para o mercado. Um manifesto feminista é hoje um mapa da heterogeneidade do trabalho vivo capaz de mostrar, em termos práticos, o diferencial de exploração que, tal como numa geometria fractal, usufrui todas as diferenças que se quis abstrair na hipótese de universalizar o proletariado assalariado. Mas um manifesto é mais do que uma denúncia. É uma proposta de ação. É por isso que um manifesto feminista reconhece nesta diversidade de experiências de exploração e extração de valor a necessidade de uma nova modalidade de organização que não se enquadra na hipótese que o partido universalizava.

5. O instrumento da greve, reapropriado e reinventado pelo movimento feminista, tornou-se um instrumento de organização. Pode-se dizer, retomando o Manifesto, que através da greve feminista se luta por “objetivos e interesses imediatos” e se constrói o “futuro do movimento”. Incluem-se assim duas línguas, duas perspectivas: a da exigência e a que não se reduz a exigências, mas que enuncia precisamente o desejo de querer mudar tudo. Por esta razão, a greve também integra e vai além de exigências específicas. Assim considerada, a greve é poderosa porque assume as múltiplas formas de exploração da vida, do tempo e dos territórios, de uma forma que transborda e integra a questão laboral porque envolve tarefas e trabalho que não são geralmente reconhecidas: dos cuidados à autogestão do bairro, das economias populares ao reconhecimento do trabalho social não remunerado, do desemprego à natureza intermitente do rendimento. Neste sentido, coloca a chave da vida de um ponto de vista que vai além dos limites do trabalho, sem deixar de pensar nas mutações do trabalho vivo. Ao incluir, tornando visíveis e valorizando os diferentes terrenos de exploração e extração de valor pelo capital na sua fase atual de acumulação, a greve feminista internacional torna possível dar conta das condições em que as lutas e resistências atuais começam a reinventar uma política de classes, na medida em que expressam e difundem uma mudança na composição das classes trabalhadoras, transbordando as suas classificações e hierarquias.

Por isso, a greve apropriada pelo movimento feminista transborda literalmente: deve ser responsável por múltiplas realidades laborais que escapam às fronteiras assalariadas e sindicalizadas, que questionam as fronteiras entre produtivo e reprodutivo, formal e informal, remunerado e não remunerado, entre trabalho migrante e nacional, e entre pessoas empregadas e desempregadas. Sob esta dinâmica, aponta diretamente para um dos núcleos do sistema capitalista: a divisão sexual e colonial do trabalho. E ao mesmo tempo abre uma questão de investigação concreta e situada: o que significa parar em cada realidade diversa, levando a sério a singularidade e complexidade de cada experiência de vida laboral diferente? Como é que esta redefinição e alargamento das classes trabalhadoras se interliga com as diferenças que tornam o mapa do trabalho radicalmente heterogêneo e segmentado? Como se consegue um plano de ação comum face à multiplicidade que desafia a própria ideia da acumulação de forças?

As respostas a estas perguntas podem ter uma primeira fase que consiste em explicar por que não é possível fazer greve em casa ou como vendedor ambulante ou como prisioneiro ou como trabalhador agrícola ou como trabalhador independente ou como trabalhador migrante (identificando-nos como aqueles que “não podem” fazer greve). Porém, imediatamente a seguir assume outra potência: obriga essas experiências a ressignificar e expandir o que está suspenso, o que é bloqueado e ignorado quando a greve deve acomodar essas realidades, alargando o campo social em que a greve está inscrita e produz efeitos. Um manifesto feminista é também uma evocação e um incitamento a esta passagem, uma transcrição (uma tradução) noutra chave do que o Manifesto define como o “objetivo imediato dos comunistas”: a “formação do proletariado numa classe”.

6. Assim, a questão da classe pode expandir-se nos movimentos e lutas do nosso presente, mesmo sem ser nomeada como tal. Talvez possamos localizar onde se situa hoje a “guerra civil” entre trabalho e capital. Marx identificou-a na jornada de trabalho, mas estamos assistindo justamente a seu alargamento e expansão em termos territoriais (para além da fábrica) e temporais (para além da jornada de trabalho reconhecida). Que formas violentas assume hoje esta guerra civil, se a considerarmos a partir de uma cooperação social que tem as economias informais, migrantes e populares e o trabalho doméstico-comunitário como a chave para novas zonas proletárias no neoliberalismo?

Há quatro “cenas” que podem produzir, creio, uma explicação do porquê de neste momento podermos ver a violência funcionando diretamente como força produtiva fundamental, uma vez que a mediação salarial deixa de ser a principal operação de contenção da força de trabalho. Por um lado, caracterizamos a implosão da violência no lar como um efeito da crise da figura do macnho provedor e da sua desierarquização derivada, em relação ao seu papel no mundo do trabalho. Por outro lado, a organização de nova violência como princípio de autoridade nos bairros da classe trabalhadora, como resultado da proliferação de economias ilegais que reabastecem, sob outras lógicas, formas de fornecimento de recursos e que competem e coordenam, por vezes, com as economias da classe trabalhadora como redes subalternas de produção da vida. Terceiro: a expropriação e pilhagem de terras e recursos comuns por projetos neoextractivistas transnacionais que atacam diretamente as redes comunitárias. Finalmente, a articulação de formas de exploração e extração de valor que têm a financeirização da vida social – e, em particular, o dispositivo da dívida – como um código comum. Com estas cenas, o objetivo é enquadrar uma leitura da violência do neoliberalismo como um momento de acumulação de capital, que contabiliza, ao mesmo tempo, as medidas de ajustamento estrutural, mas também a forma como a exploração está enraizada na produção de subjetividades compelidas à precariedade e, ao mesmo tempo, luta para prosperar em condições estruturais de despossessão.

Será hoje possível dividir o mundo em categorias tão afiadas como “burgueses e proletários” e “proletários e comunistas”? A possibilidade de “dividir” as existências desta forma torna possível configurar um antagonismo claro e, portanto, uma política de classe. Já comentamos como este antagonismo é reconfigurado pela introdução da diferença dentro de um dos seus pólos. Mas é possível regressar a uma premissa de Marx e Engels: o movimento proletário é uma “grande maioria”. No entanto, é a sua constituição como uma classe que o lança na “conquista da democracia”. Isto significa que a definição de classe não se traduz automaticamente em política de classe: esta é constituída com base na luta contra a opressão sintetizada no domínio da propriedade privada. A definição de classe tem então como base uma despossessão que se traduz em opressão e a partir daí aposta num outro tipo de “unidade”: aquela dada pela despossessão como premissa de uma condição comum.

Verónica Gago é doutora em Ciências Sociais, pesquisadora e militante do coletivo NiUnaMenos. Reflete sobre as chaves para consolidar redes feministas a nivel global. Escreveu diversos livros, entre eles “Uma leitura feminista da dívida”, junto com Luci Cavallero.

MAIS: Este texto é a primeira parte do prefácio de uma nova edição, em castelhano, do Manifesto Comunista . Foi publicada há pouco pela Verso Libros, de Barcelona. Sílvia Federici escreve o posfácio

Que bobagem, Pasternak! Livro erra sobre psicanálise em 9 pontos – Parte 3

Texto originalmente publicado na coluna do psicanalista Christian Dunker no blog da Uol Tilt

O livro de Pasternak e Orsi —do qual falamos nas duas últimas colunas (veja a parte 1 e a parte 2)— traz um tema interessante, ainda que tenha sido tão maltratado. Como avaliar as psicoterapias? Como saber qual funciona para o que e para quem?

Aqui salta aos olhos a dificuldade em transpor diretamente os princípios da Medicina Baseada em Evidências para uma possível Psicologia Baseada em Evidências.

Qual seria exatamente o princípio ativo das psicoterapias?
Como imaginar um placebo psicoterápico?

(A ideia de um ator falando de forma trivial com a pessoa não garante que isso não tenha efeitos terapêuticos).

Ainda assim a apresentação é parcial e contraditória.

Pode e deve-se fazer pesquisa sobre avaliação de psicoterapias, mas desde os anos 1950, os resultados são muito divergentes, com autores dizendo que as psicoterapias em geral não funcionam (Eisenk), que elas funcionam mais do que as medicações (tamanho de efeito = 0.87, contra 0.40 em média para antidepressivos, por exemplo) ou que todas elas possuem efeitos positivos (chamado efeito Dodo) [1], assim como existem efeitos adversos ou iatrogênicos das psicoterapias (como qualquer método de tratamento).

Sim, “pacientes tendem a confirmar a orientação teórica de seus terapeutas” (p. 197), mas onde está a evidência científica de que os pacientes em psicanálise pioram mais ou confirmam mais isso do que outras psicoterapias? Zero. Nenhuma pesquisa é trazida, ao contrário do que se espera de alguém que se compromete com uma posição evidencialista em ciência.

Neste cenário de incerteza, Pasternak e Orsi concluem que as psicoterapias podem ser controladas como as medicações, mas também que “a psicoterapia é uma atividade voltada para o mercado” (p. 183).

Mas então:


Onde estão os biomarcadores para que eu possa medir o nível de neurotransmissores cerebrais de um depressivo e assim controlar seu aumento ou diminuição depois das psicoterapias?
Onde estão os diagnósticos etiológicos que me permitam confiar que uma transtorno de pânico ou um transtorno de déficit de atenção com hiperatividade têm a mesma confiabilidade diagnóstica que temos na medicina?
Onde estão as descrições conclusivas de curso e desenlace das doenças mentais?
Aliás, por que chamamos elas de “transtornos” (disorders) e não de doenças?
Qual o princípio ativo da psicoterapia?
Resultado desta ilusão exagerada de controle são as contradições do texto.

Primeiro afirmam que “evidências clínicas são insuficientes, inconclusivas ou inválidas porque os pacientes insatisfeitos não voltam” (p. 182) para, em seguida, se contradizerem, trazendo para o próprio texto [o caso] “O Homem dos Lobos”, que “voltou” para dizer que a análise o prejudicou, que Freud inventou memórias e que ele nunca foi propriamente curado (p. 190).

Afirmam que só 1% relata efeitos negativos e que 10% dos pacientes pioram (p. 184), mas há dados em contrário que falam em 20% de pacientes que relatam benefícios inesperados trazidos pela psicoterapia.

Primeiro dizem que “não existem evidências convincentes de que qualquer forma de psicoterapia particular, ou ingrediente específicos em geral, seja crucial para produzir os efeitos da psicoterapia” (p. 184), mas quando não se trata de psicanálise “existem resultados de pesquisas, conduzidas por boas práticas que confirmam eficácia do método” (p. 184).

Ou seja, caçam “cerejas” pela floresta das evidências para apresentar o retrato que já têm na cabeça.

Trazemos, portanto, cinco considerações sobre a dificuldade de avaliar psicoterapias:

1.

Existe controvérsia na literatura sobre o que constituem evidências de boa qualidade, quais métodos devem ser empregados para estabelecer a eficácia de uma terapia, quais as melhores formas de medir resultados.

Critérios de evidência produzidos para a pesquisa em medicina são problematicamente aplicados para avaliar práticas da psicologia clínica [2].

2.

Há apenas algumas áreas da medicina em que os estudos mostraram uma boa qualidade de pesquisas [3].


Entre elas estão as pesquisas sobre alfabetização em saúde, triagem de câncer [4] e diretrizes de prática clínica para o tratamento do transtorno por uso de opioides [5].

Um amplo estudo sobre a qualidade da pesquisa farmacológica e psicoterapêutica com depressão maior [6] examinou confiança geral nos resultados das pesquisas de acordo com AMSTAR2 [7].

O resultado aponta que:

“A qualidade metodológica das pesquisas sobre intervenções farmacológicas e psicológicas para depressão maior em nossa amostra atual e representativa foi decepcionante.”

Apenas quatro revisões foram classificadas como “alta” (três delas Revisões Cochrane), duas como “moderada”, uma como “baixa” e 53 como “criticamente baixa”.

3.

Quanto mais complexa uma intervenção maior heterogeneidade e maior a chance de redução na qualidade do delineamento experimental e da qualidade final da evidência produzida [8].

Um estudo que queira realmente reduzir vieses tão complexos como os que atribuímos às intervenções psicanalíticas teria que modular, além disso, com pelo menos 10 fatores para homogeneizar a amostra [9]:

Sintomas DSM mais comorbidades,
Reação do paciente à psicopatologia,
Massa corporal,
Personalidade,
Nível de inteligência,
Regulação de Emoções,
Adoecimentos,
Passagem por tratamentos médicos (não psicoterápicos),
Desemprego,
Profissão,
Desenvolvimento Social,
Qualidade de Vida.


(a) Intervenções com múltiplos componentes

(b) Intervenções em que ocorre significativa interação entre a intervenção e seu contexto

(c) Intervenções introduzidas em sistemas complexos

4.

Análises análogas feitas com instrumentos semelhantes sobre a produção de pesquisa sobre eficácia e eficiência da psicanálise [10] afirmam, sob a perspectiva da medicina baseada em evidências, que os resultados têm uma força científica apenas moderada e que “não podemos tirar conclusões definitivas sobre a eficácia da psicanálise” [11].


Um estudo que analisou a qualidade de 94 pesquisas sobre Psicoterapia Psicodinâmica, publicados entre 1974 e 2010, com grupo controle randomizado chegou nos seguintes resultados:

a) Das 103 pesquisas:

63 comparavam Psicoterapia Psicodinâmica e Não-Dinâmica


b) Das 39 comparações entre Psicoterapia Psicodinâmica e uma Intervenção Ativa:

6 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior
5 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é inferior
28 mostraram que não há diferença significativa entre ambas


c) Das 24 comparações adequadas com um Fator Inativo:


18 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior.


d) “Isso é suficiente para tornar a Psicoterapia Psicodinâmica um tratamento “empiricamente validado” (de acordo com os padrões da Divisão 12 da Associação Americana de Psicologia) se outros estudos controlados e randomizados de qualidade e tamanho de amostra adequados replicassem os resultados dos estudos positivos existentes para transtornos específicos.” [12]

5.

A LTPP ((long-term psychodynamic psychotherapy ou psicoterapia psicanalítica de longa duração) pode ser superior a outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, onde a força do efeito representou ganho adicional da LTPP em relação a outras formas de psicoterapia, principalmente de longo prazo.

Reanálise estatística das meta-análises de Leichsenring, Abbass, Luyten, Hilsenroth e Rabung, encaminhadas para o escrutínio no artigo em questão, encontraram evidências da eficácia da LTPP no tratamento de transtornos mentais complexos e a força do efeito terapêutico nas replicações foram, em geral, um pouco menores.

Uma nova meta-análise atualizada de ensaios clínicos randomizados comparando LTPP (com duração de pelo menos 1 ano e 40 sessões) com outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, usando critérios de pesquisa transparente, de acordo com os padrões de ciência aberta, com procedimentos meta-analíticos e controle de viés incluindo 191 tamanhos de efeito e 14 estudos elegíveis, revelou tamanhos de efeito pequenos e estatisticamente significativos no pós-tratamento para os domínios de resultados de sintomas psiquiátricos, problemas-alvo, funcionamento social e eficácia geral (Hedges’ g variando entre 0,24 e 0,35).


O tamanho do efeito para o domínio funcionamento da personalidade (0,24) não foi significativo (p = 0,08).

Não foram detectados sinais de viés de publicação [13].

Apenas para visualizar uma comparação geral, esta é a média da força de efeito terapêutico:

Imagem: Christian Dunker

A psicanálise é um tratamento psicoterápico psicodinâmico baseado em evidências [14].
Os tamanhos dos efeitos são tão grandes quanto os de outras terapias que são ativamente promovidas como “apoiadas empiricamente” e “baseadas em evidências”, e os pacientes que recebem terapia psicanalítica não apenas mantêm os ganhos terapêuticos, mas continuam melhorando após o término do tratamento.

O psicanalista sul-africano Marc Solms fez um bom resumo das evidências de eficácia e eficiência apresentadas pela psicanálise:

“A terapia psicanalítica alcança bons resultados, pelo menos tão bons quanto e, em alguns aspectos, melhores do que outros tratamentos baseados em evidências na psiquiatria atualmente.

  1. A psicoterapia em geral é uma forma de tratamento altamente eficaz. Meta-análises de psicoterapia, estudos de resultados de psicoterapia normalmente revelam tamanhos de efeito entre 0,73 e 0,85. Um tamanho de efeito de 0,8 é considerado grande em pesquisas pesquisa psiquiátrica, 0,5 é considerado moderado e 0,2 é considerado pequeno. Para colocar a eficácia da psicoterapia em perspectiva, medicamentos antidepressivos recentes alcançam tamanhos de efeito entre 0,24 e 0,31 (Kirsch et al., 2008; Turner et al, 2008). As mudanças provocadas pela psicoterapia, não menos do que a terapia medicamentosa, são, obviamente, visualizáveis por meio de imagens cerebrais.
  2. A psicoterapia psicanalítica é igualmente eficaz como outras formas de psicoterapia baseadas em evidências (por exemplo, terapia cognitivo-comportamental (TCC)). Isso agora está inequivocamente estabelecido (Steinert et al, 2017). Além disso, há evidências que sugerem que os efeitos da terapia psicanalítica duram mais tempo – e e até aumentam – após o término do tratamento. A revisão autorizada de Shedler (2010) de todos os estudos controlados e randomizados até o momento relatou tamanhos de efeito entre 0,78 e 1,46, mesmo para formas diluídas e truncadas da terapia psicanalítica. Uma meta-análise, especialmente meta-análise metodologicamente rigorosa (Abbass et al, 2006), produziu um efeito geral de 0,97 para a melhora geral dos sintomas com a terapia psicanalítica. O efeito aumentou para 1,51 quando os pacientes foram avaliados no acompanhamento. Uma meta-análise mais recente –meta-análise de Abbass et al (2014)– produziu um tamanho de efeito geral de 0,71, e a descoberta de efeitos mantidos e aumentados no acompanhamento foi reconfirmado. Isso foi para tratamento psicanalítico de curto prazo. De acordo com a meta-análise de Maat et al (2009), que foi menos metodologicamente rigorosa do que os estudos de Abbass, a psicoterapia psicanalítica de longo prazo produz um tamanho de efeito de 0,78 no término e 0,94 no acompanhamento, e a psicanálise propriamente dita alcança um efeito médio de 0,87 e 1,18 no acompanhamento. Esse é o resultado geral: o tamanho do efeito para a melhora dos sintomas (em oposição à mudança de personalidade) foi de 1,03 para terapia psicanalítica de longo prazo, e para a psicanálise foi de 1,38. Leuzinger-Bohleber et al (2018) informarão em breve tamanhos de efeito ainda maiores para a psicanálise na depressão. A tendência consistente em direção a tamanhos de efeito maiores no acompanhamento sugere que a terapia psicanalítica põe em movimento processos de mudança que continuam após o término da terapia (enquanto os efeitos de outras formas de psicoterapia, como a TCC, tendem a se deteriorar).” [15] [16]

REFERÊNCIAS


[1] Leonardi JL, Meyer SB. Prática Baseada em Evidências em Psicologia e a História da Busca pelas Provas Empíricas da Eficácia das Psicoterapias. Psicol cienc prof [Internet]. 2015Oct;35(4):1139-56.

[2] Reed, Kihlstrom, & Messer, 2006.

[3] In rating overall confidence in the results of the SR according to Shea et al., (2017) only four reviews were rated “high” (three of them Cochrane Reviews), two were “moderate”, one was “low” and 53 were “critically low”. The methodological quality of the SR on pharmacological and psychological interventions for major depression in our current and representative sample was disappointing. On the other hand, there are only few areas in medicine in which studies showed a good quality of SR. They include health literacy and cancer screening (Sharma and Oremus, 2018) ) and SRs referenced in clinical practice guidelines for the treatment of opioid use disorder (Ross et al., 2017).

[4] Sharma e Oremus, 2018.

[5] Ross et al., 2017.

[6] Shea et al. (2017).


[7] The methodological quality of systematic reviews on the treatment of adult major depression needs improvement according to AMSTAR 2: A cross-sectional study In Helyon VOL 6, Issue 9, E04776, September 2020.

[8] Novo Manual da Fundação Cochrane.

[9] Leuzinger, Bohleber, Benecke, Hau (2015) Psychoanalitische Forschung – methonden und Kontroversen in Zeiten wissenschaftlicher Pluraliät. Stutgard: Kohhammer, p. 197.

[10] Maat, (2008) Costs and benefits of Long-Term Psychoanalytic Therapy: changes in health care. Use and work impairment. Harvard Review of Psychiatry, 15(6), 289-300

[11] “Entspechend kommen Maat. (2013) zu der Schlussfolkgerung, dass die Ergebnisse unter der perspective der evidence-based medicine eine only moderade scientific strengh” aufweise das “we cannot drae firm conclusions regarding the effectiveness of psychoanalysis”.

[12] Gerber, A.J., Kocsis, J. H., Milrod, B. L., et al. (2011). A quality-based review of randomized controlled trials of psychodynamic psychotherapy. The American Journal of Psychiatry 168: 19-28.


[13] Christian Franz Josef Woll, Felix D. Schönbrodt. Efficacy of Long-Term Psychoanalytic Psychotherapy (2019) A Meta-Analysis European Psychologist, December 2019, Hogrefe Publishing Group.

[14] Woll, Christian Franz Josef, Schönbrodt, Felix D. (2021) A series of meta-analytic tests of the efficacy of long-term psychoanalytic psychotherapy. European Psychologist, Vol 25(1), 2020, 51-72.

[15] Solms Mark (2018) The scientific standing of psychoanalysis. BJPsych International volume 15 number 1 february 2018

[16] Abbass A. A., Hancock J. T., Henderson J., et al (2006) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders. Cochrane Database Syst Rev, 4,

Abbass A. A., Kisely S. R., Town J. M., et al (2014) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders (update). Cochrane Database Syst Rev, 7,

Bargh J. & Chartrand T. (1999) The unbearable automaticity of being. Am Psychol, 54, 462-479.


Blagys M. D. & Hilsenroth M. J. (2000) Distinctive activities of short-term psychodynamic-interpersonal psychotherapy: a review of the comparative psychotherapy process literature. Clin Psychol, 7, 167-188.

de Maat S., de Jonghe F., Schoevers R., et al (2009) The effectiveness of long-term psychoanalytic therapy: a systematic review of empirical studies. Harv Rev Psychiatry, 17, 11-23.

Hayes A. M., Castonguay L. G. & Goldfried M. R. (1996) Effectiveness of targeting the vulnerability factors of depression in cognitive therapy. J Consult Clin Psychol, 64, 623-627.

Kirsch I., Deacon B. J., Huedo-Medina T. B., et al (2008) Initial severity and antidepressant benefits: a meta-analysis of data submitted to the food and drug administration. PLoS Med, 5, e45.

Leuzinger-Bohleber M., Hautzinger M., Fiedler G., Keller W., Bahrke U., Kallenbach L., Kaufhold J., Ernst M., Negele A., Schött M.,

Küchenhoff H., Günther F., Rüger B. & Beutel M. (2018) Outcome of psychoanalytic and cognitive-behavioral therapy with chronic depressed patients. A controlled trial with preferential and randomized allocation. Br J Psychiatry, submitted.


Norcross J. C. (2005) The psychotherapist’s own psychotherapy: educating and developing psychologists. Am Psychol, 60, 840-850.

Panksepp J. (1998) Affective Neuroscience. Oxford University Press. Shedler J. (2010) The efficacy of psychodynamic psychotherapy. Am Psychol, 65, 98-109.

Solms M. (2017) What is ‘the unconscious’ and where is it located in the brain? A neuropsychoanalytic perspective. Ann NY Acad Sci., 1406: 90-97.

Steinert C., Munder T., Rabung S., Hoyer J. & Leichsenring F. (2017 Psychodynamic Therapy: As Efficacious as Other Empirically

Supported Treatments? A Meta-Analysis Testing Equivalence of Outcomes. Am J Psychiatr, doi: 10.1176/appi.ajp.2017.17010057

Tronson N. C. & Taylor J. R. (2007) Molecular mechanisms of memory reconsolidation. Nat Rev Neurosci, 8, 262-275.


Turner E., Matthews A., Linardatos E., et al (2008) Selective publication of antidepressant trials and its influence on apparent efficacy. N Engl J Med, 358, 252-260.

A militância é alegre porque a revolução é agora, Verónica Gago entrevista Silvia Federici

Silvia Federici (Parma, Itália, 1942), autora do livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva (Elefante, 2019), aponta os crescentes ataques contra a reprodução da vida, o aumento brutal da exploração e a expropriação da terra, da água e do tempo. Ela fala sobre o fascismo econômico que se esconde no confronto entre blocos políticos e sobre a importância da alegria na luta feminista. A entrevista é de Verónica Gago, publicada originalmente pela revista mexicana Ojalá e reproduzida por Ctxt, 03-04-2023. A tradução é do Cepat.

Para pensadora italiana, mulheres latino-americanas e negras tornaram a força dos vínculos uma estratégia de luta e lograram massificar e radicalizar o movimento. Isso será essencial para combater o capitalismo em fase extremista.

Nos últimos anos assistimos a um período de mobilização, protesto e expansão exponencial dos feminismos. Como podemos ler esse “crescimento político”? É essa a expressão que melhor descreve o que está acontecendo? Em relação a quais eixos e problemas podemos pensar essa efervescência?

Bom, penso que quando falamos de crescimento político não falamos do movimento feminista em geral. Esse crescimento não é algo visível em todos os lugares. O que aconteceu e está acontecendo na América Latina é especialmente importante. Penso que o impacto das políticas do feminismo popular – o que chamamos de feminismo popular – é tão forte que teve impacto também em outros movimentos em outros lugares, como na Europa, por exemplo.

Houve um crescimento de consciência que se reflete nos discursos e estratégias que os movimentos tentam alcançar. São desafios que não podem ser alcançados a menos que vivamos um processo verdadeiramente amplo de mudança social. Um dos primeiros elementos é o anticapitalismo, que esteve em segundo plano durante boa parte da história do movimento feminista. Mas, hoje, o anticapitalismo está cada vez mais em primeiro plano. Muitas das lutas que vimos nos últimos anos foram dirigidas diretamente ao mundo empresarial, particularmente as lutas contra a privatização da terra e contra a expulsão de milhões de pessoas de seus territórios.

A imposição de programas de ajuste estrutural criou austeridade e empobrecimento em massa, bem como devastação ecológica. O movimento feminista assumiu algumas das questões fundamentais que qualquer movimento deve enfrentar para criar outro tipo de sociedade, incluindo o grande problema dos cercamentos capitalistas da vida.

Hoje o feminismo não se limita apenas a mudanças nas condições das mulheres. As feministas têm algo a dizer sobre absolutamente tudo, sobre todos os aspectos da vida. Vimos perspectivas feministas sobre a dívida, sobre a ecologia, sobre o sistema de justiça – o sistema de injustiça – nos Estados Unidos.

Vimos a formação de um movimento feminista abolicionista que lutou contra o encarceramento e pela retirada do financiamento da polícia (defund the police). Além disso, o feminismo dá cada vez mais importância à luta contra a colonialidade, contra o sistema, e ao papel das feministas negras e das feministas anticoloniais.

Tenho pensado na combinação entre massificação e radicalidade como uma característica deste ciclo de feminismo. Como podemos pensar em ciclos e ritmos diferentes, em momentos em que a massividade não é tão forte? Não sei se não deveríamos falar de momentos de retaguarda ativa ou se não deveríamos pensar numa outra geometria de movimentos e forças. Também gosto de pensar nas diferentes formas do massivo que nem sempre são públicas.

Acredito que há pelo menos três tarefas interligadas que um movimento feminista deve enfrentar hoje, e quero falar sobre cada uma delas.

A primeira consiste em estabelecer uma visão de para onde estamos indo, que tipo de sociedade queremos construir. Obviamente, nosso imaginário coletivo ainda é muito limitado por todo o capitalismo que internalizamos e pelo tipo de sociedade em que vivemos. É preciso experimentar.

Em segundo lugar, há a importância de construir estratégias. Uma vez que temos uma ideia, em seguida se coloca a questão da estratégia. Uma estratégia implica entender e construir debates, pesquisas e outras formas de entender para onde o capitalismo está indo. O que o capital está planejamento? Qual é o ponto mais fraco do capitalismo? Qual é o terreno mais crucial para unificar o movimento, onde possamos superar a forma como fomos divididas?

E terceiro: de quais ferramentas precisamos? De projetos de mídia, filmes ou documentários… Como construímos essa rede? Como construímos um terreno comum? Os momentos em que o movimento não está nas ruas ou não enfrenta diretamente o Estado e o capital são momentos de construção. Esta é uma questão estratégica fundamental. A luta não pode ser apenas de oposição; tem que ser propositiva e construtiva. Essa positividade, essa construção, é o campo da experimentação.

Pode falar um pouco mais sobre essa experimentação?

Nossas atividades reprodutivas nos permitem reproduzir a luta naqueles momentos em que não estamos presentes nas ruas de forma massiva. O fazer comum é uma condição para a reprodução de uma luta. Na verdade, é uma forma de medir nosso sucesso, de medir nosso poder feminista. Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução do nosso poder de luta? De certa forma, essa é a medida do quanto estamos conseguindo em nosso crescimento. Penso que, nesses momentos em que não há tanta mobilização nas ruas, há muito trabalho invisível. O trabalho de construir conexões e fortalecer as relações afetivas entre as pessoas.

Como você caracteriza a rejeição ao feminismo neste momento de neoliberalismo extremo? E quais são as diferenças entre hoje e as represálias às lutas feministas dos anos 1970?

Existem diferenças importantes. Evidentemente, há também semelhanças, mas talvez a principal diferença seja que, na década de 1970, tínhamos que lutar não apenas contra a direita, mas também contra a esquerda. Demorou muito até que os homens da esquerda começassem a mostrar um pingo de respeito ou a admitir que poderiam ter algo a aprender com o movimento feminista. Algumas das primeiras respostas [de nossos companheiros de luta] foram escandalosas. Na década de 1960, as mulheres eram passíveis de receberem assobios, e a resposta foi muitas vezes muito hostil. Isso mudou.

Hoje, a resposta da direita é quase mais violenta porque houve um longuíssimo processo da direita neste país, os Estados Unidos. Houve um processo de fascistização muito complicado. Penso que o movimento feminista precisa olhar para esse processo com muito mais cuidado do que temos feito até agora.

Em que sentido você usa fascistização?

Há uma espécie de concepção congelada do que é a direita. Produzimos esquemas tomados do período fascista, do período nazista, etc., onde há uma ala de direita e depois há uma ala de centro. Hoje isso é muito mais complicado e as duas alas estão muito mais entrelaçadas do que pode parecer. Houve uma fascistização da economia. A fascistização é uma estratégia e uma política que dá cada vez mais poder ao capital. Reduz o investimento na reprodução e nos espaços de poder da classe trabalhadora e cria novas divisões e mais profundas entre as pessoas em torno das linhas de classe e raça.

A ideia de dois blocos, o centro (ou esquerda) e a direita, dos democratas e republicanos, por assim dizer, pode ser muito enganosa. Em todos os países está ocorrendo uma fascistização geral e devemos vê-la como algo que é contínua e inseparavelmente produzido pelas políticas econômicas.

Essa ideia de fascistização das economias lança luz sobre as violências cotidianas. Ao mesmo tempo, você fala em militância alegre, mas isso não significa que as condições para se organizar sejam fáceis.

A militância alegre é outra forma de dizer que a revolução é agora. Chega dessa ideia da revolução que acontecerá no futuro, para que um dia os filhos dos meus filhos vivam melhor. Não. A revolução é agora. Nós temos uma vida. Cada dia é precioso. Não podemos pensar na revolução no futuro. Se lutamos é porque a vida que temos é insuportável e dolorosa. A luta não pode aumentar nossa dor. Tem que melhorar a nossa vida.

Temos que descobrir o que significa fazer algo positivo. A primeira coisa que quer dizer é sair do isolamento. Lutar significa conectar-se com outras pessoas, não ter que enfrentar sozinha o sistema, a dor e o sofrimento em sua vida. Significa sentir que você tem alguma proteção. Existe a ideia de gerar uma nova afetividade emocional que vai além da asfixia e da solidão do núcleo familiar. Adquirir novos conhecimentos, adquirir novos amantes, não apenas no sentido sexual, mas em pessoas de quem você gosta e que lhe dão força. Isso se torna um tecido que permite se conectar com outras pessoas. Essa é a revolução, e se você não tem isso, não faz sentido lutar.

Acredito que podemos dizer que uma das principais questões do movimento é a questão do trabalho, e principalmente do trabalho reprodutivo, que foi possível pela prática coletiva da greve feminista. Você mencionou a recente greve das enfermeiras em Nova York e sua vitória! Um debate também está surgindo em torno da palavra ‘cuidado’. Pode nos explicar um pouco mais o que isso significa? O que pensa sobre a questão do trabalho no movimento feminista?

A luta das enfermeiras tem sido emblemática. É uma luta especialmente importante porque é uma luta que se dá sobre o terreno da reprodução, que tradicionalmente tem sido visto pelo movimento revolucionário como um terreno no qual não é possível construir o poder anticapitalista. Esta luta tem encontrado grandes obstáculos devido à chantagem que se tem feito contra as enfermeiras, que é também a chantagem contra todas as mulheres que trabalham no lar. A chantagem consiste na ideia de que, se você parar de fazer o seu trabalho, vai prejudicar as pessoas mais próximas ou vai prejudicar os seus dependentes. Esta tem sido uma ferramenta muito poderosa para acabar com a luta das mulheres em casa e das enfermeiras nos hospitais.

E as enfermeiras conseguiram romper com isso, recusaram-se a ser chantageadas. Elas pararam de trabalhar e exigiram melhores condições de trabalho. Ao aumentar as horas de trabalho e reduzir a remuneração, os empregadores criaram uma situação em que toda a força de trabalho está esgotada e com maior probabilidade de não poder prestar os serviços necessários. Desmistificar isso faz parte do trabalho que estamos tentando fazer na campanha ‘Salários para o Trabalho Doméstico’. O trabalho que as mulheres fazem beneficia sobretudo os empregadores. Recusar-se a fazer esse trabalho e rejeitar as condições que nos são impostas é uma forma de limitar a reprodução das pessoas como trabalhadores exploráveis.

Quero acrescentar que a luta das enfermeiras não é a única luta. A nível internacional assistimos há anos, especialmente na Espanha, à construção do movimento das trabalhadoras domésticas, das trabalhadoras do lar. É um movimento internacional altamente organizado. Muitas delas são imigrantes e lutam em condições especialmente precárias. Aquelas que vivem com uma família (trabalhando como internas), cuja liberdade é muito limitada, experimentam uma exploração sem fim.

Mesmo assim, seus movimentos estão se expandindo e conseguiram mudanças nas leis internacionais, como a famosa Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, que basicamente diz que as trabalhadoras domésticas têm direito aos mesmos benefícios de qualquer outro trabalhador, como jornada regular de trabalho com direito a aposentadoria, férias e assim por diante. Esta é a mão de obra de mulheres que estão sendo exploradas e que, ao mesmo tempo, conseguiram construir um movimento e transformar sua exploração em poder.

Precisamos ainda de uma melhor análise da genealogia do conceito de trabalho de cuidados. É um conceito que nunca usamos na década de 1970. Muitas organizações de trabalhadoras domésticas o usaram para mostrar que o trabalho que realizam – especialmente com crianças – não é apenas trabalho físico, mas que tem implicações mais amplas. Há um debate aqui.

Uma das contribuições mais importantes nos Estados Unidos é a da feminista negra Premilla Nadasen, que escreveu uma crítica ao conceito de trabalho de cuidados. Ela argumenta que o uso do termo trabalho de cuidados em relação ao trabalho das empregadas domésticas minimiza os direitos trabalhistas das mulheres. Existe uma visão de que deveriam ter direitos e não ser tão exploradas porque fazem um trabalho de cuidados e não porque são trabalhadoras e têm direitos trabalhistas. E isso coloca um novo fardo sobre as mulheres trabalhadoras. Não basta que essas mulheres façam o trabalho, mas também se espera que trabalhem com uma disposição emocional particular.

Nadasen argumenta que esse é um uso indevido do conceito de cuidado e que precisamos ter cuidado ao usar esse termo. Ela fez muitos trabalhos sobre a história das trabalhadoras domésticas nos Estados Unidos, especialmente trabalhadoras domésticas negras. Falar delas como cuidadoras significa que são mulheres que só serão reconhecidas porque estão apegadas emocionalmente às pessoas para quem trabalham.

Penso que no mundo pós-Covid-19, a crise das mulheres que fazem trabalho reprodutivo, tanto doméstico como em instituições – como as enfermeiras que arriscam suas vidas no trabalho –, tornou-se mais visível. Agora, muitas delas entram em greve porque estão indignadas com o que viram e como foram tratadas, e como as pessoas foram tratadas nos hospitais.

Outro tema central é a questão da justiça e da justiça reprodutiva. É importante abordar a questão da reação negativa ao feminismo e como se relaciona com a ideia do punitivismo. Como as reivindicações do movimento feminista por justiça podem evitar contribuir para a disseminação de “soluções” baseadas na punição?

A questão da justiça reprodutiva é muito, muito importante. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte derrubou o precedente legal Roe v. Wade, mas este é o último ato de um processo muito longo que tem muitos elementos, muitos episódios e muitas etapas: o assassinato de médicos que fazem abortos, a introdução de Estado após Estado de leis que restringem o direito ao aborto… Mesmo antes da intervenção da Suprema Corte, em muitos lugares o aborto já era inexistente. Foi criado um movimento que tem perseguido as mulheres que buscam abortar, com pessoas que vão às portas das clínicas gritando: “assassinato! assassinato! assassinato!”.

A questão do aborto na história do capitalismo está ligada à questão da reprodução da força de trabalho. O Estado atribui a si o direito de controlar o processo de procriação, a fim de obrigar as mulheres a se reproduzirem e garantirem um número adequado de trabalhadores. Nos últimos anos, também vimos outro aspecto disso. Hoje temos uma classe capitalista internacional que tem à sua disposição muito mais trabalhadores do que, por exemplo, no século XVI, porque muitíssimos foram expulsos de suas terras, desencadeando movimentos migratórios em massa.

Hoje há uma força de trabalho muito maior. E assim vemos também outra função do aborto e do controle estatal da procriação dos corpos das mulheres, do comportamento das mulheres, que tem a ver com a questão da dissidência sexual. Negar o aborto implica disciplinar os corpos e a sexualidade das mulheres. É um poder que é dado aos homens. Os homens se tornam policiais dos corpos das mulheres.

Por outro lado, não podemos lutar efetivamente pelo aborto se não lutarmos também pelo direito das mulheres de ter filhos. Nos Estados Unidos, vimos que a negação da maternidade tem sido tão poderosa quanto a negação do aborto, especialmente para as mulheres negras, a quem, desde a escravidão até hoje, se negou a maternidade. Hoje, para uma mulher negra, principalmente uma mulher negra pobre, engravidar é um risco. Ela corre o risco de ser presa, encarcerada e perseguida. Criou-se um sistema de vigilância que liga hospitais, médicos e enfermeiras à polícia, de modo que se algo parecer fora do normal durante o procedimento médico a que uma mulher grávida passa, ela corre o risco de ser criminalizada.

Muitos Estados legislaram algo conhecido como leis de proteção fetal. Alguns chegaram ao extremo de dizer que a partir do momento em que você está grávida, pode deduzir a gravidez de seus impostos. É muito importante evitar cair na posição de algumas mulheres na década de 1970, quando as feministas declararam precipitadamente que o direito ao aborto era fundamental para o direito de decidir. Precisamos decidir no âmbito da reprodução. Decidir significa poder ter filhos e poder não tê-los. O verdadeiro controle de nossos corpos é a possibilidade de fazer as duas coisas.

Sobre a questão do punitivismo, penso que este é outro problema fundamental do movimento das mulheres. Durante a primeira fase do feminismo nos Estados Unidos, a resposta à violência contra as mulheres foi exigir penas mais severas [para os agressores]. Está ficando cada vez mais claro que penalidades severas sempre são aplicadas contra pessoas que já são vulneráveis: negros, imigrantes e pessoas já superexpostas ao encarceramento e à brutalidade policial.

Afastar-se do punitivismo é um grande avanço impulsionado pelas mulheres negras, que vivenciaram em primeira mão o efeito das políticas punitivas em suas comunidades. As mulheres negras sempre entenderam o que a polícia faz e o que faz o suposto sistema de justiça. Agora essa consciência está se expandindo, graças a esse trabalho das feministas negras. Agora temos um movimento feminista abolicionista, que luta para abolir cadeias e prisões e acabar com a polícia. Parece-me que a próxima tarefa é construir alternativas, construir formas de justiça baseadas na comunidade.

‘Ni una menos’: Como o 3 de junho se tornou o dia de protesto contra o feminicídio

A Pública conversou com a ativista argentina Lucía Cavallero sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina, por Mariama. Correia.

No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.

Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.

A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.

A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?

O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015. 

A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.

No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?

Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.

Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?

Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas. 

O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.

E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?

As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.

E de gênero também?

Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.

Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil? 

Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil. 

Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.

Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.  

Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?

O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil. 

Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política. 

Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.

Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?

Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.

Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.

Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.

 

Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas. 

Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015? 

Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.

As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.

No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero. 

Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.

Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.

Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?

A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.

Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?

Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.

Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça. 

Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.

Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?

O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região. 

Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.

Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui