Colocar a dívida no centro

Por Luci Cavallero.

Tradução do artigo “Poner la deuda en el centro“, publicado na Revista Bordes.

Uma mulher e uma criança na fila para pegar comida, frutas e água na praça da Estação em 5 de junho de 2020 em Belo Horizonte, Brasil. Foto: Pedro Vilela.

A pandemia elevou o espaço doméstico como refúgio frente a possibilidade de contágio. “Fique em casa” tornou-se a palavra de ordem para cuidar de si mesmo. E, ao mesmo tempo, a dívida entrou em todas as casas. O que aconteceu quando a vida se limitou aos espaços que os feminismos já haviam apontado como lugares onde se combinam formas de opressão, exploração e “dívidas são produzidas”? A socióloga Lucía Cavallero analisa a repercussão das políticas de ajuste das famílias como dívida doméstica, o paradoxo de que o lugar “seguro” se tornou ao mesmo tempo um território de conquista para o capital financeiro e as implicações do mandato de ter que tomar empréstimos para viver.

Notas para a análise do endividamento do ponto de vista feminista

O debate sobre o endividamento externo deslizou pela janela da campanha eleitoral, tornando inevitável a discussão pública sobre seu impacto, sua origem e sua legitimidade. Mas o que essa obrigação de falar sobre dívida expressa? Que experiência do social a torna inevitável? Por que o tempo de endividamento marca o cotidiano das grandes maiorias das populações? Qual é a ligação entre dívida externa e dívidas privadas? A dívida entra nas casas, não apenas como uma discussão midiática, mas também como uma experiência concreta de estar endividadxs para viver.  Neste artigo, proponho dar um relato das chaves metodológicas e políticas a partir da reflexão feminista, para entender a espacialidade e o impacto do endividamento em nossas vidas, postulando que essas reflexões são fundamentais na democratização da discussão sobre o mundo financeiro.

Começar pela casa

Os feminismos têm desordenado os binarismos clássicos que estruturam o imaginário econômico. Assim, tem sido questionada a oposição entre o produtivo e o doméstico e a divisão entre o que conta como “público” e o que conta como “privado”. Isso implica uma ruptura epistemológica na forma de abordar problemas econômicos, ao localizar a vida cotidiana, o espaço doméstico e o trabalho comunitário como lugares estratégicos onde há exploração, mas também resistência. Nesse processo de redefinição das categorias econômicas e, portanto, políticas, a análise do processo de financeirização da vida cotidiana não tem ficado isenta.

Nesse sentido, a perspectiva feminista contribuiu para a pedagogia contra a dívida externa que, em geral, estava associada ao ensino sobre seus efeitos macroeconômicos, de forma desgenerizada, desracializada e sem referências concretas à vida cotidiana. Isso está relacionado ao que a historiadora e filósofa feminista Silvia Federici conceituou como a desvalorização histórica do espaço doméstico como um lugar onde o trabalho das mulheres e corpos feminizados é implantado e com a produção desse espaço como espaço privado, fora da visibilidade pública. Ao mesmo tempo, o espaço doméstico tem sido abordado, inclusive a partir de perspectivas da economia feminista, enfatizando seu caráter desmercantilizado, ou seja, longe do mundo financeiro. Minha perspectiva problematiza essa dupla invisibilização, que nos permite ir na direção oposta à lógica financeira, que finge que a dívida permanece abstrata, que se inviabilize os trabalhos daqueles que a nutrem, que apaga sua gênese violenta também nas casas para produzir um efeito de afastamento com qualquer vida cotidiana. Nesse sentido, minha proposta é aprofundar a caracterização desse espaço doméstico tanto como uma espacialidade concreta do impacto da dívida externa como também como um espaço onde “se produzem as dívidas”[1].

Juntes pelo endividamento

Em nossa “Leitura Feminista da Dívida“[2] investigamos como o endividamento com o Fundo Monetário Internacional feito durante o governo de Mauricio Macri, foi traduzido em políticas de ajuste que se derramaram nos lares como dívida doméstica. Assim, em decorrência da inflação e da consequente perda do poder aquisitivo de subsídios e salários e da dolarização de alimentos e medicamentos, fora produzida uma realidade em que o endividamento se tornou necessário para acessar os bens mais básicos. Isso é o que chamamos de “colonização financeira da reprodução social”[3]. A particularidade desse fenômeno é que o endividamento já não aparece mais associado ao consumo pontual de um bem ou serviço, mas tornou-se uma forma permanente de completar a renda. Aqui, então, uma descoberta importante: há uma mudança qualitativa no que significa dívida nas casas quando aparece como um mandato de envididar-se para viver. Isso constitui uma contribuição feita a partir de uma leitura feminista da dívida partindo da investigação de seus efeitos no cotidiano e centralizando a analise em quem sustenta as economias domésticas nos momentos de crise. Endividar-se para viver, entãoo, tem impactos subjetivos que reorganizam o cotidiano e o espaço doméstico e intensificam os mandatos de género agora associados ao pagamento das dívidas. A presença cotidiana do endividamento põe a dívida no centro, dirigindo todas as energias e esforços para evitar o atraso, inclusive recorrendo a empréstimos familiares e ajudas que também podem significar por em risco vínculos próximos e barriais.

Portanto, é necessário pensar como o endividamento externo, nos últimos anos também foi vivenciado como uma experiência concreta de endividamento na vida cotidiana. Assim, como mencionei, a monumental dívida externa negociada durante o governo de Mauricio Macri deu um salto qualitativo: foi traduzida com velocidade sem precedentes na experiência diária de estar endividada para viver, enquanto a moeda estava desvalorizada e os investimentos internacionais iam embora.

Essa realidade afetou especialmente as mulheres que tomaram empréstimos principalmente através de subsídios como a “Asignación Universal por Hije.” Esse fenômeno se confirmou de forma muito eloquente nos dados do “Centro de Economía Política Argentina (CEPA) [4] sobre o endividamento dos lares pobres: a quantidade de créditos otorgados as beneficiárias de AUH atingiu 92% das alocações existentes entre 2016 e 2019. Em relação aos subsídios sociais, um estudo do Observatório de Direito Social do CTA-Autónoma [5] mostra como o valor da “Asignación Universal por Hijx (AUH)” foi se desvalorizando ao longo do período, tornando-se uma mera garantia para endividar-se.

Outra particularidade que vale a pena assinalar são as principais formas de endividamento. Nos setores populares, há uma diversidade de prestadores de dívidas (com quadro jurídico diferente cada um) que, nas economias domésticas, se sobrepõem e se encadeiam. Portanto, em uma mesma unidade doméstica, convergem diferentes formas de endividamento. Uma parcela significativa do endividamento ocorre por meio de “novas entidades ou marcas” chamadas de “licitantes não bancários”, algo que já havia sido apontado por estudos anteriores [6]. Segundo relatório do Banco Central da República Argentina [7] (6), a partir de outubro de 2020 o número de devedores atendidos pelo OPNFC (Outros Provedores de Crédito Não Financeiro) ultrapassa 6,1 milhões, 45% do universo total de devedores em todas as entidades. Essas instituições financeiras não bancárias e instituições não financeiras oferecem empréstimos a taxas substancialmente superiores ao sistema de crédito formal, aumentando as desigualdades entre os setores sociais.

As casas tornaram-se, assim, um espaço de superendividamento que faz com que a espacialidade doméstica se volte estrategicamente para a politização da dívida: como um lugar concreto de impacto do endividamento externo e como espaço de conexão entre endividamento externo e endividamento privado.

A pandemia: mais trabalho de cuidado e mais endividamento

Como fenômeno geral durante a pandemia de Covid-19 tem havido uma diversificação e incremento do endividamento, onde as dívidas “nao bancárias” por atrasos de impostos, serviços de luz, agua, gás, cresceram a ritmo acelerado. Em nossa pesquisa [8], que contou com um trabalho qualitativo na Villa 31 y 31 Bis durante o mês de abril e maio de 2020 detectamos um aumento nas dívidas informais de aluguel que aceleraram os despejos durante a pandemia. Como eu apontei, essas dívidas convivem com outras fontes de endividamento, como empréstimos familiares e empréstimos com financiadores de bairros. Também detectamos e investigamos o surgimento do endividamento por meio de empresas fintech. A fintech é uma nova tecnologia, em um momento de expansão na Argentina e, em particular, diante da crise desencadeada pela conjuntura da pandemia global, que está levando o processo de banco monetário e digitalização a níveis muito mais intensos.

Todo esse fenômeno tem uma velocidade e uma escala impensável diante das restrições presenciais impostas pela pandemia e, por sua vez, torna-se um meio particularmente ágil de acelerar o endividamento devido ao aprofundamento da crise de renda para esses setores que veem suas possibilidades de trabalho reduzidas. Esse avanço das tecnologias financeiras não se baseia apenas no fato de que elas se tornaram a forma preferida de chegada de subsídios emergenciais à população não bancarizada, mas também que trabalham sobre uma população bancária que tem contas de poupança gratuitas em pesos, cujos 62% pertencem a beneficiários de planos sociais e 28% aos benefícios previdenciários,  de acordo com dados do Relatório de Inclusão Financeira do BCRA [9].

Ao mesmo tempo, para levantamento da situação de uma população com maiores níveis de acesso ao trabalho formal e com contratos formais de aluguel, trabalhamos juntos em uma pesquisa com a organização Inquilinos Agrupados para levantamento dos dados de endividamento. Os dados mais recentes, de setembro de 2021, indicam que aproximadamente 50% das famílias que alugam têm dívidas[10], evidenciando que o endividamento para acessar bens básicos se estende a parcelas da classe média.

Uma dimensão importante em relação ao estudo do endividamento doméstico é compreender sua relação com o trabalho não remunerado, em sua maioria feminizado. Essa proposta é uma chave metodológica que acrescenta nossa perspectiva feminista de endividamento e que foi fundamental para entender o impacto da pandemia na espacialidade doméstica.

Assim, a necessidade de endividar-se para viver se faz ainda mais forte nos lares monoparentais, com mulheres encarregado de filhos e filhas, convertendo o endividamento em mais uma das formas de intensificação das desigualdades de gênero.

Nesse sentido, durante a crise de Covid-19 houve um aumento dos trabalhos de cuidado, que afetaram as possibilidades de mulheres, e sobretudo de mulheres chefes de família com filhas/os dependentes, participarem do mercado de trabalho. Uma pesquisa realizada pela Dirección de Economía y Género del Min. de Economía y UNICEF[11] com base no EPH do primeiro semestre de 2020, mostra que a pobreza em domicílios monoparentais atingiu 68,3%. O mesmo estudo mostra que houve uma queda de 14% da taxa de atividade para as mulheres chefes de família com crianças e adolescentes, quase 4 pontos a mais do que a queda na taxa geral de atividade para o mesmo período.

Assim, a maior dificuldade de participação no mercado de trabalho, juntamente com o aumento das tarefas de cuidado, tem causado o surgimento de novas dívidas associadas à gestão do cotidiano. O espaço domestico que as passivas mobilizações feministas haviam apontado como espaço onde se combinam formas de exploração e opressão, foi sinalizado na pandemia como lugar de refugio frente a possibilidade de contagio. O paradoxo é que esse espaço “seguro” tornou-se, ao mesmo tempo, um território de conquista para o capital financeiro (o aumento da dívida de aluguel é eloquente nesse sentido).

Dessa forma, o superendividamento intervém com uma função eminentemente política: opera produzindo uma domesticidade atrelada ao pagamento da dívida. Isso porque as mulheres realizam múltiplas atividades para garantir o cumprimento das obrigações financeiras, o que se traduz em uma superexploração de empregos historicamente desvalorizados. Dessa forma, o doméstico é aquele espaço onde os mandatos de gênero e as obrigações financeiras são mais obviamente combinados. Porque a dívida aproveita o mandato que recai sobre as mulheres para sustentar as economias domésticas em situações de crise e, por sua vez, ativa o aumento dos empregos reprodutivos e desvalorizados.

Outro aspecto a destacar é o que a pandemia significou em termos de aceleração das formas de inclusão financeira para a cobrança de subsídios como a Renda Familiar emergencial.Em um relatório anterior, resumimos outro ponto que, em nossa opinião, deveria ser objeto de debate dessa nova onda de inclusão: a bancarização dessa população para recolher subsídios emergenciais mesmo quando se sabe da curta duração dessa transferência monetária (ou seja: a conta bancária permanecerá, o subsídio não vai). Assim, concluímos que “a natureza circunstancial dessa medida não garante, por si só, a continuidade virtuosa do sistema financeiro”. Portanto, se essa permanência não corresponde à prestação de serviços públicos gratuitos e de qualidade, e políticas de transferência de renda maiores que a dinâmica inflacionária, o registro no sistema financeiro de uma população sem renda ou com renda intermitente e insuficiente pode se tornar um mero veículo para assumir novas dívidas pessoais.

Zona de Promessas: endividamento e campanha eleitoral

Como lembra Jason Moore, citando a Grundrisse de Marx, o capital financeiro busca criar um mundo onde a velocidade dos fluxos de capital está constantemente acelerando, resultando no privilégio do tempo sobre o espaço[12].Poderíamos extrapolar esse raciocínio para pensar sobre qual é o espaço que existe para a disputa eleitoral, no tempo das dívidas. Por um lado, a dívida externa aparece como um limite para qualquer promessa do futuro e, ao mesmo tempo, uma população cada vez mais endividada vê o futuro atormentado por obrigações financeiras.  A dívida (externa e doméstica) entrou em cada casa e é um elemento central na gestão da crise e, portanto, na produção de subjetividades. Precisamos avançar no enfrentamento desses poderes opacos, opondo-os a uma discussão pública, coletiva e democrática sobre os efeitos do endividamento que começa na vida cotidiana.

Lucía Cavallero é pesquisadora e doutora en Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires. É licenciada em Sociologia também pela UBA e docente da Universidad Nacional de Tres de Febrero. Integra o coletivo Ni Una Menos e é coautora do livro “Uma leitura feminista da dívida”, publicado na Argentina pela Fundação Rosa Luxemburgo (2019), no Brasil por Criação Humana Editora (2021), na Itália pela editora Ombre Corte e na Inglaterra por Pluto Press. 

Facebook: Luci Cavallero / Instagram: Luci Cavallero / Twitter: lucicavallero8

REFERENCIAS

[1] Cavallero, Lucía.  Tesis Doctoral: “Deuda, violencia y trabajo reproductivo: un análisis del endeudamiento de las economías populares feminizadas en Buenos Aires (2012-2019)”. Facultad de Ciencias Sociales (UBA).

[2] Cavallero, L y Gago, V (2022). Uma leitura feminista da dívida. Vivas, livres e sem dívidas nos queremos. Porto Alegre: Editora Criação Humana.

[3] Ibíd.

[4] Recuperado de https://centrocepa.com.ar/informes/230losimpactosdelajusteeconomicoenlaspoliticasdeninezyadolescencia20162019.html

[5] Recuperado de https://ctanacional.org/dev/fuerte-deterioro-de-la-asignacion-universal-por-hijo-y-la-jubilacion-minima/

[6] Gago, V. (2014): “La razón neoliberal. Economías barrocas y pragmática popular”. Buenos Aires. Edición: Tinta Limón.

[7] Recuperado de: https://www.unicef. org/argentina/media/10751/ file/Desaf%C3%ADos%20de%20 las%20pol%C3%ADticas%20 p%C3%BAblicas%20frente%20 a%20la%20crisi

[8] Cavallero, L y Gago, V. (2020). “Extender la cuarentena a las finanzas”. Recuperado de https://thetricontinental.org/argentina/fp-cavalleroygago/

[9] Recuperado de http://www.bcra.gov.ar/Pdfs/PublicacionesEstadisticas/iif0119.pdf

[10] Recuperado de  ​​https://federacioninquilinosnacional.com.ar/estadisticas/

[11]  Moore Jason (2020). El capitalistmo en la trama de la vida. Ecología y acumulación de capital. Madrid: Traficantes de sueños.

[12] Cavallero, , Gago, V y Perosino, C: “Inclusión financiera. Notas para  una  perspectiva crítica”

http://genero.institutos.filo.uba.ar/sites/genero.institutos.filo.uba.ar/files/Inclusio%CC%81nFinanciera%20%281%29%20PDF.pdf

A Gay(a) Ciência em Istambul

Entrevista com Zeynep Gambetti 

Por Verónica Gago

publicado no periódico Página 12

“Colocamos Nietzsche a serviço da academia queer”, diz a teórica política Zeynep Gambetti, da Universidade Boğaziçi, de Istambul, ao ser questionada sobre a inscrição Gay Science que acompanha os guarda-chuvas multicoloridos e as bandeiras do arco-íris que voam pelo campus há semanas e contra os quais a polícia ataca sem parar. Atende ao telefone nas margens do Bósforo, uma vez que xs alunxs que estavam detidxs na biblioteca foram libertadxs, apesar do desdobramento repressivo na universidade que a torna quase uma espécie de tropa de exército. Há poucos dias, por decreto presidencial, foi anunciado que a Turquia se retirava da Convenção de Istambul – assim chamada por ter sido assinada naquela cidade em 2011 – que é um dos instrumentos europeus que funciona como marco legal para o combate à violência de gênero. Esta semana, o parlamento polonês decidiu tentar fazer o mesmo.

Gambetti tem trabalhado na caracterização do fascismo contemporâneo, tomando como ponto de partida o regime ultradireitista do presidente Recep Tayyip Erdoğan. Na América Latina, seus textos foram traduzidos no Brasil pela editora Criação Humana, sob o título Agir em Tempos Sombrios, que é o que faz essa professora e ativista, que há anos se dedica à escrita, e que também editorou os livros La cuestión kurda en Turquía (2019) e Vulnerabilidad y resistencia (junto com Judith Butler e Leticia Sabsay, 2016).

Qual é o significado político da retirada da Turquia por decreto presidencial da Convenção de Istambul? Por que agora e quais são as reações?

Ainda não saímos da Convenção de Istambul, porque o Parlamento deve votá-la primeiro. Mas o presidente Erdoğan declarou que a Turquia se retiraria porque está tentando recuperar a popularidade que seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) está perdendo. Ele tenta fazer isso por meio de grupos conservadores radicais e seitas que são contra essa convenção, alegando que ela “destrói a estrutura da família”. Outra razão evocada é que incentiva a “perversão” porque protege as minorias sexuais. Esta última desculpa foi inventada recentemente para persuadir as deputadas de seu próprio partido que defendia a Convenção de Istambul quando Erdoğan tratou de derroga-la ano passado. Os políticos e a mídia pró-governo estão cada vez mais incitando o ódio contra a comunidade LGBTI + na Turquia. As marchas do orgulho estão proibidas desde 2015. As feministas também tiveram grande dificuldade em sustentar as marchas de 8 de março. A intervenção da polícia a este respeito é cada vez mais violenta. Mas o discurso anti-LGBTI + se tornou especialmente tóxico no ano passado.

Como foi que a universidade se tornou a principal cena do ataque?

Quando a resistência começou na Universidade Boğaziçi em janeiro deste ano, o que ocorreu foi que bandeiras LGBTI + tremularam no campus e, na sequência, houve uma exposição de arte organizada por estudantes que serviu como desculpa para criminalizar a comunidade LGBTI +, em particular a partir de uma obra que continha uma representação da Kaaba, o lugar mais sagrado do Islã em Meca, com bandeiras de arco-íris em todos os cantos. Agora, Erdoğan declara que a Turquia se retirará da Convenção de Istambul. 

A que responde o ataque à comunidade LGBTI?

Como em muitas partes do mundo, onde o populismo autoritário ganha terreno, gênero e orientação sexual se tornam as palavras-chave para consolidar e unificar facções reacionárias em torno de cruzadas simbólicas. Isso permite que o governo esconda as desigualdades que devastam partes da sociedade e permite que um sistema nepotista de privilégios floresça.

A universidade se tornou palco de protestos que também tornam mais visível o que está acontecendo em geral…

Sim. Nosso repertório principal consiste na nossa presença corporal na praça principal do campus universitário, vestidxs com traje acadêmico (togas azuis e celestes) e de costas para a reitoria. É uma forma de ocupar espaço, marcando a universidade como “nossa”. Ao ficarmos de pé ali todos os dias ao meio-dia, estamos realmente exercendo nossa tenacidade: a recusa em aceitar o reitor imposto é um ato de desobediência civil e uma demonstração de força. Estamos usando muito as redes para construir solidariedade e tentar enfrentar a atmosfera pós-verdade construída pela imprensa pró-governo. Nossa luta também despertou o desejo reprimido de revolta na sociedade turca. Associações profissionais, sindicatos e outras universidades se inspiram em nossa resistência, porque ela promete abrir uma fissura no muro e se desbordar para outras lutas pela democracia.

Você tem trabalhado na importância de nomear este momento político na Turquia com o termo fascismo e a partir daí pensar sobre o que também está acontecendo em outras partes do mundo. Como esses eventos são lidos a partir daí?

O governo do AKP está esvaziando não apenas as universidades, mas todas as instituições nas esferas judicial, política, econômica e social. Estamos testemunhando uma forma de Gleichschaltung (processo político de controle totalitário da Alemanha pelo partido nazista, também conhecido como nazificação), aparelhando todas as instâncias da sociedade. Cada vez mais o poder está concentrado nas mãos do presidente.

Sem sequer sentir a necessidade de fazer emendas constitucionais, o governo estabeleceu um regime autoritário com uma proliferação de leis, estatutos, diretrizes e regulamentos, deixando aos agentes da justiça a discricionariedade de usá-los de acordo com os objetivos do governo. Esse é exatamente o mesmo uso tático da lei de que falam Michel Foucault e Judith Butler.

Você insiste em um debate com autores como Enzo Traverso, por exemplo, dizendo que devemos falar de fascismo, atualizando o conceito mas com a urgência de não evitar essa caracterização…

Minha perspectiva sobre as novas formas de fascismo é construir o fascismo como uma forma de governar as populações. Não se pode esperar que casos históricos de fascismo se repitam da mesma forma hoje. O fascismo também não pode ser reduzido a uma ideologia particular, mesmo que haja elementos comuns que os movimentos conservadores de direita invariavelmente usam. Minha previsão é que os novos fascismos serão caracterizados por uma convergência de violência de estado, estratégias de governamentalidade biopolítica e táticas precárias neoliberais. A transgressão dos limites legais, morais ou do senso comum, a expansão da imprevisibilidade e da polarização e a produção constante de corpos dispensáveis ​​são sinais seguros de que uma governamentalidade fascista está se estabelecendo. É isso que estamos vivenciando na Turquia, na minha opinião.

Como você vê a capacidade de responder a esses regimes?

Sempre acontece que, nos momentos difíceis, as relações se intensificam e se constroem laços de solidariedade imprevistos entre grupos antes desconexos. Na Turquia, isso se tornou a fonte de nossa força.

Nossa posição inicial de vulnerabilidade nos abriu para estabelecer relacionamentos de apoio com outras pessoas de duas maneiras distintas, mas inter-relacionadas. Em primeiro lugar, porque estamos sob ataque é que entendemos quão frágeis são os arranjos institucionais e constitucionais que defendem a liberdade acadêmica neste caso. Isso desencadeia um momento de reflexão que dissipa a ilusão de autossuficiência.

Em segundo lugar, é estendendo a mão aos outros que reconhecemos o que nos une, apesar de nossas diferenças. Isso permite a construção de um piso comum de luta e ajuda mútua, transformando-nos a todos na medida em que nos relacionamos cada vez mais.

A perseguição ideológica que eles denunciam ao mesmo tempo os conecta com colegas de outros países que também têm apontado essas questões, certo?

Por exemplo, foi muito impactante para mim participar de um painel com um colega francês que está sendo alvo de uma caça às bruxas contra os chamados “islamistas de esquerda”, tanto pela academia francesa quanto pelo establishment político. Nós, intelectuais do Sul global, antes tínhamos simpatia por nossos colegas do Norte global, pois eles tinham a impressão de que nossa vulnerabilidade acadêmica se devia ao “subdesenvolvimento”. Agora, parece que estamos todos no mesmo barco! Xs acadêmicxs do Norte percebem que a invasão das racionalidades políticas e econômicas contra as liberdades conquistadas é uma condição global. E eles têm muito a aprender com as lutas que estão ocorrendo no sul global. Para isso, gostaria de terminar com um apelo. A torre de marfim caiu. Nós, como professorxs, pesquisadorxs, acadêmicxs, estamos no campo aberto da política. É o momento de criar uma Academia Internacional que não apenas reúna sob ameaça pesquisadorxs de todo o mundo, mas também conecte universidades na luta contra o racismo, o sexismo, a exploração e as novas formas de fascismo.

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