“Ninguém se emancipa trabalhando”, de Silvia Federici

Por Melissa Cicchetti
Publicado em Nortes

Silvia Federici (Parma, Itália, 1942) encerrou outubro de 2023 com uma conferência on-line na quarta edição da Escola Feminista da Assembleia Moza d’Astúrias, na Espanha. Autora de Calibã e a bruxaO ponto zero da revoluçãoReencantando o mundo e Além da pele, Federici é uma das teóricas mais importantes e reconhecidas do feminismo anticapitalista mundial, com uma longa trajetória de ativismo e reflexão. Viveu o feminismo dos anos 1970 na Itália, as campanhas pelo salário para o trabalho doméstico em Nova York, a luta contra os planos de ajuste estrutural na África, a crítica ao processo de globalização neoliberal e seus efeitos em todo o planeta, o movimento pela recuperação dos bens comuns e, mais recentemente, o ciclo de lutas que se abriu em 2011 e que tem continuado na última onda feminista. Em outras palavras, Federici passou décadas conciliando o ativismo com a reflexão e, assim, tem nos fornecido chaves para pensar e entender nosso presente. Hoje, quando o movimento feminista internacional está passando por intensos debates internos, voltamos a conversar com ela sobre este momento político.

Começamos pelo passado mais recente do movimento feminista, que foi um período massivo e expansivo de protestos, mobilização e reivindicação social. Como você interpreta e como acha que devemos interpretar esse “crescimento político” em um presente menos ativo? E como podemos pensar no movimento feminista de hoje em dia?

Em primeiro lugar, não estou surpresa com o grande crescimento do movimento feminista internacional. Na verdade, teorizo há muito tempo — junto com outras companheiras, como Verónica Gago — que o movimento feminista, em potencial, é o movimento mais importante. E é assim porque luta no território mais importante da transformação social, que é o da reprodução social. O feminismo, desde o início, concentrou-se na análise da reprodução social como o conjunto de atividades fundamentais para a reprodução da vida no sistema capitalista. Nesse contexto, a perpetuação da sociedade capitalista é mais importante do que a procriação, os cuidados, a saúde, a educação e toda a formação cultural. Como Verónica Gago já disse muitas vezes, ao lado das companheiras do movimento Ni Una Menos, a reprodução não é equivalente à produção. Pelo contrário, a reprodução é algo muito mais abrangente: é o conjunto de atividades que constituem a condição de possibilidade da perpetuação do mercado de trabalho. Portanto, a luta não é outra coisa senão o território onde se torna possível unir diferentes movimentos, reunir várias disputas. Esse território é a luta feminista. É exatamente isso que a luta feminista demonstrou a nível internacional: o feminismo, entendido como protesto contra a opressão e discriminação das mulheres, amadureceu muito em suas análises e, na prática, possibilitou o surgimento de muitas mais reivindicações. Nas últimas décadas, entendemos que não é possível mudar a situação das mulheres no mundo sem mudar o próprio mundo. O feminismo atual agora tem essa consciência e sabe que, como mulheres e dissidentes sexuais, não podemos melhorar nossa condição sem mudar o sistema social capitalista, que se baseia em uma lógica de guerra, violência, exploração do trabalho e da natureza. Em última análise, não podemos mudar nossa condição sem lutar contra o sistema capitalista em todas as suas formas.

Como se explica o crescimento político feminista dos últimos anos?

Eu acredito que o crescimento político dos últimos anos se deve, principalmente, às crescentes evidências da crise do sistema capitalista. Poderíamos discutir o porquê dessa crise, mas é evidente que a crise do capitalismo está se aprofundando. Temos um capitalismo cada vez mais violento, que promove a militarização da vida, a intensificação da exploração do trabalho e da natureza, e a desapropriação de terras. Estamos vivendo um presente aterrador no qual milhares de pessoas são forçadas a deixar seus locais ancestrais para que se tornem terras úteis e produtivas para o capital. A resposta a essa guerra e a esse ataque sistemático internacional à vida e à sua reprodução tem vindo das mulheres. São as mulheres que lutam na linha de frente contra a destruição da Amazônia e da África, são as mulheres que lutam contra o desmatamento e contra as empresas de mineração e petrolíferas. Elas percebem que a chegada de uma empresa de mineração significa que há mercúrio na água e que isso significa o fim de sua comunidade. Acredito que, por serem o sujeito principal da reprodução social, as mulheres se envolvem mais na luta contra as políticas que destroem a vida e impedem sua reprodução. Hoje, este é o tema fundamental da política internacional.

Você tem falado há muito tempo sobre os altos custos da reprodução social do sistema capitalista para as mulheres. Como essa imposição nos afetou e nos afeta?

Muitas mulheres, desde o início do movimento feminista, denunciaram, de diversas maneiras e com muitas palavras, o significado dessa imposição às mulheres na sociedade capitalista, o que implica cuidar da reprodução da vida. Explicamos que essa imposição gerou um trabalho desvalorizado, não remunerado, sem horário e aposentadoria. No entanto, acredito que também é importante dizer que essa imposição nos deu muito conhecimento: não é por acaso que as mulheres hoje têm maior consciência da fragilidade e do valor da vida, da teia de relações que sustenta a vida e nos permite superar o individualismo. Em resumo, a importância de construir uma comunidade. Para mim, esses são os dois temas centrais do feminismo: a luta contra a devastação capitalista, colonial e racista e a capacidade de pensar em uma alternativa e praticá-la a partir do presente, de nossa vida cotidiana. Pensar nisso, no contexto da perigosa situação política internacional atual, na qual muitas pessoas enfrentam constantemente a morte, me enche de esperança. Nesse contexto, o crescimento do movimento feminista e de sua capacidade organizativa internacional não é algo insignificante. Especialmente nos últimos anos, o movimento feminista tem demonstrado sua grande capacidade de criar alianças para a internacionalização da greve, indo da Argentina à Europa e gritando para o estado: ‘O estuprador é você’. A tecnologia nos ajudou a nos comunicar entre nós, mas essa grande capacidade vem, acredito eu, da consciência de que as mulheres estão enfrentando, de maneiras muito diferentes, os problemas fundamentais da política internacional atual. Nossas vidas dependem de como esses problemas serão resolvidos.

Você fala muito sobre experimentação. O que isso significa? Você acha que nosso presente é ou poderia ser um momento de experimentação?

Meu conceito de experimentação surge da ideia de que não podemos mais pensar na mudança social como uma tarefa do futuro. Estou pensando agora no conceito de “revolução” da esquerda tradicional, que considera a revolução como algo muito distante de nosso presente, algo que nunca chega. Minha ideia de experimentação, que considero muito importante para a prática feminista, diz exatamente o contrário: a revolução é hoje, a mudança acontece hoje. Não podemos continuar lutando contra tudo sem construir algo de forma positiva, não podemos lutar apenas organizando protestos. Dizer “não” é fundamental, sair às ruas e se opor é fundamental, mas não podemos nos limitar a isso. Precisamos começar a construir e fazê-lo em conjunto. Precisamos mudar nossa vida cotidiana experimentando novas formas de criar uma comunidade, que é a própria condição de nossa luta. Quando falamos em construir bens comuns, não o fazemos apenas pensando em um futuro comunitário, mas sim a partir da convicção da necessidade de fazê-lo agora. Precisamos começar a mudar as condições de reprodução da vida. O capitalismo, para se reproduzir, nos dividiu, nos individualizou e nos atomizou. Leopoldina Fortunati explica isso muito bem: o capitalismo nos unia nas fábricas e nos dividia na vida, com base na individualidade. A ideia da casa separada das outras, da família nuclear que cuida dos assuntos sujos em casa, da privacidade que rompe as relações entre vizinhos, tudo isso precisamos quebrar. Nos últimos anos, temos dito alto e claro: vamos derrubar os muros. Para mim, esse foi um dos maiores contributos do feminismo, ou seja, colocar a necessidade de nos unirmos e compartilhar nossos problemas na mesa.

Como podemos colocar em prática esse aprendizado?

Desde o início, o feminismo entendeu que não podemos lutar sem mudar nossa vida cotidiana e sem socializar nosso sofrimento e nossos medos. Os grupos de autoconsciência foram muito importantes. Quando as mulheres começaram a falar e compartilhar seus medos, suas culpas e sua sensação de não valer nada umas às outras, perceberam que todas compartilhavam os mesmos problemas. Perceberam que não eram problemas individuais, mas sim estruturais. Os grupos de autoconsciência nos permitiram entender que o problema não éramos nós, não eram nossos corpos nem nossas mentes, o problema era a sociedade. Portanto, o que precisávamos naquela época e ainda precisamos agora é mudar a sociedade, não nós mesmas. Nós temos uma grande capacidade de socializar e compartilhar nossos problemas, agora precisamos mudar a organização da reprodução cotidiana, criando momentos compartilhados de cuidado, como hortas urbanas.

A organização feminista deve ser também uma organização da mudança na vida cotidiana, que passa pelo que é comum: nos unir significa fortalecer e ganhar confiança, conhecimento e poder para enfrentar o estado que detém mais poder. Enfrentar o estado não significa se fechar em grupos pequenos, pelo contrário: significa se unir para reivindicar a riqueza social que está sendo roubada de nós e deter as decisões destrutivas que estão sendo tomadas. Portanto, experimentar também significa criar formas de luta capazes de recuperar e reivindicar espaços, tempo, riqueza social e recursos que nos foram roubados e continuam sendo roubados. Isso é muito importante, pois não podemos criar um mundo diferente sem antes nos apropriarmos da riqueza social. Eu acredito que esse é o verdadeiro campo de luta. Tenho dito há algum tempo que os comuns, ou seja, a criação em comum, não é apenas o objetivo da luta, mas sim a condição cotidiana da luta e seu poder de desafiar o estado e aqueles que estão sufocando nossa possibilidade de mudança.

Há alguns meses, durante uma entrevista publicada pela Contexto, você desenvolveu uma pergunta-chave para o movimento feminista internacional: “Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução de nosso poder de luta?”. Além disso, você disse que “isso é a medida de nosso crescimento político”. O que isso significa?

É a capacidade de nos unirmos para criar, superando a atomização de nossa vida. Isso é essencial para uma mudança social radical. Somente assim poderemos reduzir o tempo que investimos em realizar trabalhos que nos disciplinam e que geram pessoas mais facilmente exploráveis, e, dessa forma, poderemos nos dedicar a criar as condições necessárias para nos fortalecer e mudar nossa situação, tanto pessoal quanto coletiva. O tempo e os recursos, como mencionei, são fundamentais. Nossa vida está constantemente em contradição, e a reprodução torna isso evidente. A reprodução sustenta nossa vida, a de nossas famílias e comunidades, e, ao mesmo tempo, ocorre em condições que não escolhemos, que nos são impostas e que não são desejáveis. Essas condições são impostas pelo capitalismo, que precisa explorar para se reproduzir. O tema agora, então, é como mudar e como fazer isso: como nos organizamos para obter o poder de não ter que trabalhar dez horas por dia? Como fazemos para que nossas filhas e filhos não reproduzam nossa miséria e possam ter a liberdade de rejeitar a exploração e o despojo? É sobre isso que estou falando com o conceito de “experimentação”.


Qual é o caminho para nos reapropriarmos do nosso tempo e poder, e assim nos organizarmos?

A força que vamos construir é a de recuperar nossa vida e criatividade. Eu acredito que o que fazemos na vida cotidiana tem consequências nas casas, escolas, escritórios e fábricas, e essa é a medida do nosso crescimento político: influenciar as pessoas que atravessam os espaços que mudamos com nossas ações diárias. Neste contexto, os sindicatos deveriam desempenhar um papel ativo. Acredito que chegou a hora de os sindicatos incluírem a questão da reprodução da vida na luta pela melhoria das condições de trabalho da classe trabalhadora. A luta trabalhista deve se expandir e se interessar pelo que está sendo produzido. Não se trata apenas de fazer com que as horas de trabalho sejam respeitadas e de garantir condições de trabalho dignas, mas também de reivindicar o direito de decidir se queremos produzir mercadorias úteis ou materiais tóxicos e armas que acabarão com a humanidade e a natureza. A reprodução não é apenas uma questão doméstica, pelo contrário, é muito ampla e afeta todas as esferas de nossas vidas. Em última análise, trata-se de decidir se queremos produzir morte e miséria ou algo que reproduza nossa criatividade e bem-estar.

Uma das questões que enfrentamos dentro do feminismo é liberar o tempo das mulheres, liberar nosso tempo. Eu acredito que há milhões de mulheres em todo o mundo que estariam dispostas a sair às ruas e se organizar, mas o trabalho de cuidados, que nunca termina, as mantém presas em suas casas. Precisamos pensar no trabalho de cuidados de forma mais ampla do que costumamos fazer. Cuidar não é apenas criar nossos filhos, é cuidar de milhares de coisas que o corpo e a mente precisam. Devemos pensar no cuidado emocional que as pessoas que criamos precisam. Cuidar é o trabalho mais árduo, pois exige todas as nossas energias físicas, mentais e emocionais. É um trabalho desgastante. Portanto, acredito que pensar em formas comunitárias de cuidar é uma tarefa pendente do feminismo. Precisamos de tempo, precisamos liberar o tempo das mulheres que ainda hoje estão aprisionadas em suas casas, equilibrando seu trabalho com o cuidado de idosos, crianças e pessoas com deficiência física. Isso é uma das questões mais urgentes a serem abordadas pelo movimento feminista: se estamos sendo consumidas física e emocionalmente para reproduzir, como poderemos investir nossas energias na luta? A mudança na vida cotidiana, portanto, é fundamental para estarmos na luta. Tenho receio de que o movimento feminista, nesse sentido, não tenha feito o suficiente. Acredito que seja necessário um esforço maior para pensar não apenas em como podemos mudar a forma como as comunidades se relacionam umas com as outras, mas também como planejamos enfrentar o estado. Não podemos esquecer que, quando pedimos serviços sociais ao estado, precisamos ser capazes de controlar que tipo de serviços nos são fornecidos. Acredito que qualquer mulher que tenha lidado com o sistema de saúde sabe muito bem que vivemos em um estado de crise contínua e permanente. O estado pode fornecer serviços, mas, às vezes, a forma como o faz está tão equivocada que a situação acaba piorando. Lamento estar falando tanto sobre esse assunto, mas, por estar vivendo isso em primeira mão, assim como muitas companheiras, sinto que é um assunto que deve ser abordado. Recentemente, percebi que, a partir de certa idade, a questão dos cuidados se torna mais complexa, e hoje não temos uma alternativa ao trabalho realizado pelas mulheres em casa. Acho isso terrível e deve ser um tema central para o movimento feminista atual.

Falando sobre sua trajetória, você viveu em primeira pessoa as lutas dos anos 70 e a última onda feminista da qual falamos no início. O momento atual é marcado por uma forte rejeição ao feminismo e um questionamento dos avanços que alcançamos. Você acha que há alguma conexão entre a rejeição ao feminismo que ocorreu nos anos 70 e a atual?

Sim, claro que há. É uma pergunta complicada porque há muitos fatores em jogo. Em primeiro lugar, não é por acaso que a partir dos anos 70 as Nações Unidas começaram a intervir na política feminista. As Nações Unidas, ou seja, o capital internacional, perceberam muito antes que a esquerda tradicional o quão perigoso o feminismo poderia ser para a sua perpetuação. A partir de 1975, houve inúmeras conferências e intervenções das Nações Unidas (Cidade do México, Copenhague, Nairobi, Pequim, etc.) que tinham como objetivo apropriação do movimento feminista e o uso de parte de nossa ideologia contra nós, usando nosso pensamento para nos controlar e integrar as mulheres no processo de globalização como mão de obra barata. Até hoje, as mulheres realizam dois trabalhos. Portanto, o capital queria apropriar-se do movimento feminista por meio da ideologia da emancipação por meio do trabalho. Ninguém se emancipa através do trabalho em uma sociedade capitalista, isso é uma mentira. Eu acredito que essa cooptação do capital nos causou muito dano. Essa massificação do feminismo nos prejudicou. Muitas pessoas, principalmente muitas mulheres jovens da nova geração, acreditam que uma mulher feminista é aquela que luta pela igualdade entre homens e mulheres e que deseja ocupar um cargo de poder em seu trabalho. Em resumo, uma mulher feminista se torna uma mulher capturada pela instituição. Em parte isso é verdade: muitas feministas estão presas nas instituições porque muitos governos, embora nem todos, perceberam que a emancipação das mulheres poderia ser usada de forma instrumental para seu próprio benefício. As mulheres, então, podem ser exploradas não apenas em casa, mas também nas instituições com salários miseráveis e em outros trabalhos que não geram autonomia alguma. Tudo isso aumenta a miséria das mulheres, não as liberta, e mesmo assim, há quem continue dizendo que esse é o caminho. Bem, tenho minhas dúvidas e acredito que, devido a isso, muitas jovens começaram a falar de pós-feminismo. Estou pensando em um cântico que é muito ouvido por aqui, que diz: “vamos ser pós-feministas em uma sociedade pós-patriarcal”. Isso é mentira: a sociedade atual ainda é muito patriarcal, e vemos isso todos os dias.

Nos últimos anos, vimos o crescimento e disseminação de muitos partidos de extrema direita em todo o mundo, totalmente contrários aos avanços feministas. Como essa onda reacionária global nos afeta? Em seus últimos livros, você fala sobre seu conceito de “fascistização” da sociedade. Você pode explicar?

Além de tudo o que mencionei, hoje em dia, estamos enfrentando o fascismo em seu estado mais puro. Um fascismo que parece ter perdido qualquer tipo de vergonha. Por um lado, temos Giorgia Meloni na Itália, que é grotesca. Ela, uma mulher, líder de um partido chamado Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), nunca pensou em mudar o nome de sua organização política para que ela fosse incluída. Por outro lado, temos o Sr. Trump e a bem-sucedida luta do Partido Republicano para acabar com o direito ao aborto. Nesse contexto atual, muito complexo, precisamos ser sábias e analisar cuidadosamente, porque há um perigo real em nosso presente. Identificamos como fascismo o de Trump e o de Meloni, que é um fascismo muito óbvio, tão óbvio que é grotesco. No entanto, há outro fascismo mais sutil que permeia a política e a economia atuais. Em nosso presente, em sociedades que se autodenominam democráticas, estamos testemunhando uma “fascistização” da sociedade e da política econômica. Nos Estados Unidos, onde moro, tudo isso é muito evidente. As políticas que destruíram o bem-estar social americano foram implementadas por governos como o de Clinton, que foi capaz de alterar as leis de combate ao terrorismo, de administração de prisões e de militarização de toda a fronteira com o México. O governo Biden, que parece estar aberto ao feminismo e às pessoas trans, na verdade não está fazendo nada concreto. No entanto, envia milhões de dólares em todo o mundo para apoiar guerras imperialistas. Estamos testemunhando uma política imperialista brutal por parte do Partido Democrata nos Estados Unidos. O que está acontecendo na África e na Ucrânia é evidente: a guerra continua porque os Estados Unidos querem que continue e estão se preparando para uma guerra contra a Rússia e a China. Nos últimos dias, o governo Biden aprovou um orçamento militar de um trilhão de dólares. Em resumo, em 2023, o governo atual investirá um trilhão de dólares em guerra. Pense em quantas coisas poderiam ser feitas com um trilhão de dólares, quanto apoio à reprodução social poderia ser fornecido com todo esse dinheiro. A partir do que é investido na militarização da sociedade, cortes contínuos são feitos na já escassa saúde pública. No início deste ano, foram retirados os benefícios de saúde pública de mais de um milhão de pessoas e foi negado todo tipo de apoio aos estudantes universitários, que continuarão endividados pelo resto de suas vidas por terem buscado educação. Estudar nos Estados Unidos é caro e, diante dessa situação esmagadora, decide-se investir um trilhão de dólares em morte e guerra. Essa deve ser uma questão importante para o movimento feminista. Estamos em um momento muito perigoso, preparando-se para guerras internacionais, e o capitalismo se alimenta das guerras e se reproduz com elas. A guerra sempre foi um momento de mudança social profunda, pois serve para transformar a economia e as relações de poder em nível local e internacional. Além disso, a guerra serve para destruir os movimentos sociais. Neste momento de profunda crise do capitalismo internacional, estão sendo criadas as condições para a guerra, dia após dia. Portanto, a luta contra a guerra deve ser incluída na agenda feminista em todos os níveis. Foi uma grande derrota para o feminismo a inclusão de mulheres nas forças armadas no final dos anos 70 e início dos anos 80. Houve pessoas que lutaram pela entrada das mulheres nos exércitos nacionais, enquanto eu me oponho a essa barbaridade há décadas. Igualdade, nesse caso, não significa que homens e mulheres sejam iguais; igualdade significa que ninguém mais deve morrer em uma guerra. Precisamos deter a militarização da vida cotidiana e, para isso, precisamos de um feminismo que lute contra a guerra. Essa deve ser uma questão central para o movimento feminista internacional: lutar contra a guerra, contra a militarização da vida cotidiana, contra o investimento em armas e militares e contra o controle social nas cidades e bairros.

Você descreveu um presente muito complicado através do seu quadro de fascistização, que permite resolver muitos nós da análise social, econômica e política do momento atual. Qual é o papel das mulheres nesse processo de fascistização? E o que o movimento feminista pode fazer para enfrentar essa onda fascista? Em seus escritos mais recentes, você fala sobre a militância alegre e gozosa. Recuperar a alegria é a chave para facilitar a organização?

Ah, eu gosto desse tópico. Estou profundamente convencida de que, a nível internacional, está ocorrendo um grande processo de conscientização. A grande maioria de homens e mulheres, jovens e velhos, sabe que a sociedade capitalista é uma sociedade que produz morte e escassez em nome do progresso. A maioria da sociedade sabe que o progresso capitalista é uma mentira. Portanto, o desafio do feminismo atual é organizar essa maioria social com novas formas de luta comunitária. O propósito é, como mencionamos antes, liberar nosso tempo para criar uma mobilização forte, contundente e verdadeiramente transformadora. Para que isso aconteça, precisamos ter tempo livre. No entanto, há outro tópico igualmente importante a abordar: nossa forma de organização. Eu acredito que, por muito tempo, a forma de organização política foi muito masculina. Sendo um setor muito masculinizado, desenvolveu-se uma ideia do que é a política e como se faz política de forma muito regimentada. Eu acredito que as feministas, por outro lado, entenderam que ao se organizar para lutar, é preciso pensar em atividades que não sejam mais um trabalho. Devemos pensar em formas de organização e luta que não sejam mais um trabalho, que não nos causem mais sofrimento e que não pareçam mais uma carga em nossas vidas. Devemos nos esforçar para criar formas de organização, luta e mobilização que nos nutram, nos fortaleçam emocionalmente e sejam prazerosas e alegres. No entanto, a condição para que isso aconteça é conscientizar-se da importância das relações que criamos entre nós no processo de luta e mobilização. Devemos prestar atenção às relações que criamos e criar redes afetivas que nos façam desejar ir a uma reunião ou encontro porque nossas amigas, as mulheres que amamos, estarão lá. A organização também deve incluir momentos de felicidade: cantar, dançar e fazer atividades alegres juntas. Muitas mulheres já estão colocando tudo isso em prática. Um exemplo fantástico é Rafaela Pimentel de Território Doméstico (que participou da III edição da Escola Feminista de Ama Asturies). Precisamos integrar essa afetividade em nossa luta, especialmente quando temos companheiras que deixaram seus países e vivem longe de suas comunidades. A militância alegre consiste em criar novas famílias no sentido mais positivo da palavra. Eu sempre digo: se o trabalho de mobilização se tornar uma carga adicional, algo está errado. Nesta condição de tristeza e sofrimento adicionado às nossas vidas, é normal que as pessoas prefiram ir assistir ao futebol ou ao cinema. Precisamos criar uma militância alegre capaz de nos reproduzir, não apenas aos outros. Precisamos também reproduzir a luta, o que significa nos reproduzir em um aumento de alegria. Isso é solidariedade. A solidariedade não é apenas teoria, é algo que nos mobiliza, que move nossos corpos.

Para encerrar, quais são as tarefas pendentes do feminismo contemporâneo? Você falou sobre a importância de incluir na agenda feminista o trabalho reprodutivo e a reprodução da vida, a luta contra a guerra e a militarização da sociedade. Você acha que há algum novo campo de reflexão que não estamos conseguindo ver, justamente porque, como você nos ensina, o capitalismo limita nossa capacidade de imaginar?

Acredito que o que o movimento feminista está fazendo atualmente demonstra a amplitude do feminismo: o corpo, a sexualidade, a saúde, a educação e a produção do conhecimento são apenas alguns dos temas que o movimento feminista abordou ao longo das últimas décadas. Também não podemos esquecer da incrível luta pela recuperação da Memória Histórica realizada pelas companheiras na América Latina. Elas nos ensinam a importância de recuperar o senso de comunidade e a solidariedade com aqueles que lutaram antes de nós, não apenas para entender as lutas do passado, mas também para mantê-las presentes em nosso cotidiano. Compreender as lutas do passado e conhecer o rosto das companheiras e companheiros que perderam a vida lutando nos fortalece. Em última análise, entender que nossa luta faz parte de algo muito maior e que vai além de nossa vida individual nos dá coragem, sabedoria e solidariedade.

Além disso, a luta feminista envolve a luta pelos recursos e contra a devastação da natureza em sua totalidade: a terra, a água, os mares, os animais e as árvores. Também é a luta contra a dívida, que é muito forte na Argentina, como Verónica Gago menciona com frequência (ela participou da II edição da Escola Feminista de Ama Asturies). A dívida foi criada pelo capital e é outra forma de aprisionar as mulheres em suas casas. As mulheres são as mais endividadas: temos dívidas para comer, para nos curar e para estudar. Hoje em dia, as pessoas não se endividam para comprar coisas supérfluas, muito pelo contrário: hoje nos endividamos para comer, pagar as contas de luz e consultar um médico, porque os salários estão cada vez mais miseráveis. Portanto, a capacidade do movimento feminista de criar redes internacionais, que vão da América à Europa, passando pela África e Ásia, contra a dívida pessoal e nacional, é de extrema importância. Organizar-se internacionalmente contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional é fundamental, porque onde quer que sejam impostos planos de austeridade, as pessoas não terão escolha senão se endividar para sobreviver.

Em resumo, o movimento feminista tem se mostrado capaz de incluir em sua análise muitos temas, como mencionei antes. Agora precisamos nos concentrar em criar novas formas coletivas de organizar os cuidados, a educação e a produção de conhecimento sem passar pelo mercado. É necessário libertar a reprodução social do mercado, livrá-la da lógica do lucro, recuperá-la e focá-la em nosso bem-estar. Este é o objetivo do feminismo e já estamos a caminho de alcançá-lo. Um caminho que deve ser internacionalista, com passos para fortalecer as redes de mulheres já existentes e criar outras capazes de conectar as mulheres indígenas com as camponesas e com aquelas que lutam contra a repressão sexual. Em resumo, temos que conectar todas as nossas lutas. O feminismo é um território de análise e ação imenso, e eu acredito que ainda estamos entendendo que esta é nossa força. Estamos criando um território comum que serve como ponto de encontro para todas as lutas sociais. Esta é nossa força e, ao mesmo tempo, o presente e o futuro do movimento feminista.

Um enquadro feminista em Karl Marx, por Verónica Gago

Tradução: Antonio Martins.

Num desconcertante prefácio ao Manifesto Comunista, socióloga afirma: “faltou à obra enxergar a exploração do trabalho reprodutivo. Surpresa: nas lutas feministas pelo Comum e o Cuidado está hoje parte da resistência mais potente ao capital.”

Milhões de mulheres voltaram às ruas neste 8 de março em cidades de todo o mundo. Na Espanha, as manifestações foram particularmente numerosas em Madri (foto), Barcelona e dezenas de outras cidades,

1. Escrever um manifesto é criar um mundo. Ou melhor: torná-lo público. Dar conta da sua existência. Lançar luz sobre uma realidade subterrânea. Um manifesto tem força não porque seja prescritivo do que deve acontecer, mas porque reúne uma série de elementos que, considerados em conjunto, provam a existência deste mundo prenhe de novidades, mas já existente.

Deste ponto de vista, um manifesto não é utópico. Não é um decálogo de coisas que deveriam acontecer. Não é futurista, no sentido de inventar algo que é puramente imaginário. Pelo contrário, postula um realismo de uma outra vida que já está a acontecer, mesmo que reste saber se se trata de uma vida majoritária. Um manifesto exprime um realismo que é subterrâneo mas suficientemente forte para criar uma perspectiva de mudança do mundo.

O que já estava acontecia, o comunismo para Marx e Engels, tinha então uma consistência fantasmática. Isto implicava, nas palavras dos autores, que podia ser visto a contraluz: no reconhecimento das forças reativas encarnadas pelos poderes da Europa (o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os policiais alemães).

passagem do fantasma ao manifesto, então, é a decisão de se nomear com as suas próprias palavras. Fazer sair dos sótãos aqueie modo de vida que é detectado e conceitualizado pelo inimigo em termos de fantasma e ameaça. Para que haja um manifesto, tem primeiro de haver uma política noturna. Algo como uma noite dos proletários.

2. Sinto-me tentada a escrever: Um fantasma percorre a América Latina, o fantasma do feminismo. Porque ao pensar num manifesto, remeto-me a um escrito recente: o apelo a uma greve internacional de mulheres em 2017, cujo caráter “manifesto” me coloca numa possibilidade concreta de pensar sobre a atualidade desta forma de intervenção. Poderíamos muito bem enumerar as forças reativas que enxergam o movimento feminista como uma ameaça: a formulação doutrinária do Papa e da Igreja de uma “ideologia de gênero”; as forças conservadoras que desafiaram os acordos de Havana para boicotar a paz na Colômbia, as que promoveram o impeachment dapresidente do Brasil ou as que repudiam a educação sexual no Peru. Todas convergem na condenação em nome da moralidade familiar, da dissolução dos papéis de gênero e da promiscuidade da ordem social. O “epíteto calunioso” de “feminista” funciona como insulto e desqualificação. Já não no mundo partidário (como Marx e Engels apontavam, ao falar sobre a acusação de “comunismo”), mas para mencionar uma força desintegradora que opera sobretudo a nível de sensibilidades e corpos, de gostos e costumes, do confinamento de espaços e papéis na divisão sexual do trabalho.

Passar do fantasma ao manifesto, no caso do feminismo, implica nomear o medo da revolução de um feminismo que se torna popular porque está enredado com o conflito territorial (um corpo extenso, que de fato desafia os limites do corpo como “indivíduo”), que está atado com uma transformação nos modos de vida e que permite, pela sua amplitude e transversalidade, ser lido hoje como “um movimento histórico que se desenrola diante dos nossos olhos”. Por isso, como método, tentarei ler aqui algumas das questões levantadas pelo Manifesto Comunista – e em particular o seu apelo final: “Proletários de todos os países, uni-vos!

É um duplo exercício de tradução. Traduzir é trabalhar com uma língua estrangeira “mas também com o estado da língua para a qual se traduz” (assim diz o escritor argentino Ricardo Piglia para explicar por que, de vez em quando, se sente a necessidade de fazer novas traduções dos mesmos textos). Ampliando esta hipótese, eu diria que a língua comunista como língua revolucionária hoje – e com isso me refiro a certos problemas-chave de formas de exploração e dominação, de organização política e transformação radical, das classes e das subjetividades que as encarnam, do internacionalismo e da política de coligações — cruza-se necessariamente, para ser atualizada, com a língua feminista. Esta que é hoje talvez a mais múltipla das línguas em movimento.

3. No caso do Manifesto Comunista, é um texto cujo precedente é uma realidade proletária (a política noturna de que falamos anteriormente) e que em seguida parece referir-se – ou antecipar e convocar – a sua aparição nas ruas: a Revolução de Fevereiro de 1848, que abalou Paris com uma experiência de comuna. Assim, parece também que um manifesto funciona misteriosamente ligado aos acontecimentos, como se secretamente os tivesse prefigurado. Ou que faz parte de um fluxo de coisas e palavras que têm relações íntimas mas clandestinas. O manifesto, portanto, não funciona sob modo de causalidade (um manifesto não “provoca” ou “desencadeia” eventos pelo poder da sua palavra), mas faz parte (intui, colabora, prolonga) de um processo que faz das palavras vivas matéria e da conjuntura uma realidade aberta.

Isto supõe que a palavra (o que nela se manifesta) sintetiza de modo expressivo um devir, mas não define o processo. E isto porque um manifesto não deixa de ser um jogo – de leitura, de orientação, de antecipação e de projeção – sempre posto à prova.

Arrastada pelo movimento real, parte desta aposta pode então ser refutada, questionada, reorganizada. No caso de Marx e Engels, a Comuna de Paris obrigou-os a rever uma das suas principais teses para dizer que “a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina estatal existente e pô-la em marcha para os seus próprios fins” (prefácio da edição alemã de 1872), como especulavam com os pontos programáticos que tinham incluído na seção II. Assim, a orientação que impulsiona um manifesto (a sua síntese expressiva) não é dogmática, mas tem algo de plasticidade tática: deve ser capaz de ressoar com avaliações coletivas que ocorrem simultaneamente e em várias instâncias diferentes. Nas lutas e nas casas, nos sótãos e nos bares, nas fábricas e nas praças, nas barricadas e nos rumores. Um manifesto desenha então algo como um plano de coexistência, onde palavras, hipóteses e acontecimentos se referem, reforçam e reforçam mutuamente na medida em que conseguem vibrar e ressoar em diferentes realidades. Isto é também o que produz e alimenta as suas múltiplas traduções.

4. O que significa pensar na existência do proletariado do ponto de vista feminista? Manifesto postula o sujeito da política comunista, lendo-o à contraluz do capital, estabelecendo o antagonismo fundamental (“A condição do capital é o trabalho assalariado”). Poderíamos dizer, em princípio, que os cruzamentos de certas perspectivas feministas, marxistas e anticoloniais fazem um movimento semelhante à afirmação de Marx, mas no interior de um dos pólos do antagonismo. A condição do trabalho assalariado é o trabalho não assalariado, ou a condição do trabalho livre é o trabalho não livre. O que acontece quando um dos pólos é aberto? É o movimento fundamental pelo qual a diferença e a classe se cruzam.

Isto nos permite contradizer a própria leitura de Marx e Engels sobre a diferença em relação ao trabalho feminino. Argumentam que o desenvolvimento da indústria moderna através do trabalho manual tecnificado implica uma espécie de simplificação do trabalho, que permite que os homens sejam substituídos por mulheres e crianças. No entanto, “no que diz respeito à classe trabalhadora, as diferenças de idade e sexo perdem todo o significado social”, salientam eles. Neste sentido, lemos que a incorporação da diferença é feita sob o signo da sua anulação. As mulheres e as crianças são incorporadas na medida em que são homogeneizadas como mão-de-obra (funcionando como apêndices da máquina), o que lhes permite serem indiferenciadas. A diferença, no argumento que Marx e Engels empregam, é reduzida a uma questão de custo. A idade e o sexo são variáveis de barateamento, mas sem significado social. Compreendemos que aqui lidamos com o ponto de vista do capital. Marx dirá também no Capital que a maquinaria alarga o material humano explorado, na medida em que o trabalho infantil e feminino é a primeira consigna da mecanização. Mais uma vez, este alargamento é em termos de uma homogeneização ditada pela máquina, mas a diferença é anulada ou reduzida a uma vantagem homogeneizada também pela noção de custo. Assim, parece haver uma dupla abstração da diferença: do lado das máquinas (do processo técnico de produção), mas também do lado do próprio conceito de força de trabalho.

Quando reescrevemos o manifesto numa chave feminista, fazemos a operação inversa. Fazemos uma leitura inclusiva daquelas que somos produtoras de valor, na chave do pensamento sobre como a diferença reconceitua a própria noção de força de trabalho. Os corpos em jogo são responsáveis pelas diferentes tarefas em termos de um diferencial de intensidade e reconhecimento, impedindo a cristalização de uma figura homogênea do sujeito trabalhador. O trabalho, de uma perspectiva feminista, vai além daqueles que recebem um salário, porque é uma condição comum experimentar diversas situações de exploração e opressão, para além e para aquém da medida remuneratória. O trabalho, a partir de uma lente feminista, faz do corpo uma medida que vai além da noção de força de trabalho meramente associada ao custo.

Fazemos também uso da perspectiva feminista, que colocou a ênfase no fato de a crítica a esta homogeneidade da mão-de-obra dever partir do elemento que “opera” a homogeneização, uma vez que não seriam apenas as máquinas (como diz o Manifesto), mas o “patriarcado dos salários” (Federici). Isto implica duas operações: o reconhecimento de apenas uma parte do trabalho (trabalho assalariado) e depois a legitimidade do seu diferencial de acordo com o sexo e a idade apenas como uma desvalorização. Nesta linha, entendemos o trabalho assalariado como uma forma específica de invisibilização do trabalho não assalariado que tem lugar em múltiplas geografias e que recobre o que entendemos como tempo de trabalho.

Hoje, graças às lutas e teorizações feministas, podemos argumentar a partir de uma realidade contrária: o alargamento do material humano explorado, de que Marx falou, é feito por meio da exploração da sua diferença. Invisibilizando-o, traduzindo-o como hierarquia, depreciando-o politicamente e/ou metamorfoseando-o numa mais-valia para o mercado. Um manifesto feminista é hoje um mapa da heterogeneidade do trabalho vivo capaz de mostrar, em termos práticos, o diferencial de exploração que, tal como numa geometria fractal, usufrui todas as diferenças que se quis abstrair na hipótese de universalizar o proletariado assalariado. Mas um manifesto é mais do que uma denúncia. É uma proposta de ação. É por isso que um manifesto feminista reconhece nesta diversidade de experiências de exploração e extração de valor a necessidade de uma nova modalidade de organização que não se enquadra na hipótese que o partido universalizava.

5. O instrumento da greve, reapropriado e reinventado pelo movimento feminista, tornou-se um instrumento de organização. Pode-se dizer, retomando o Manifesto, que através da greve feminista se luta por “objetivos e interesses imediatos” e se constrói o “futuro do movimento”. Incluem-se assim duas línguas, duas perspectivas: a da exigência e a que não se reduz a exigências, mas que enuncia precisamente o desejo de querer mudar tudo. Por esta razão, a greve também integra e vai além de exigências específicas. Assim considerada, a greve é poderosa porque assume as múltiplas formas de exploração da vida, do tempo e dos territórios, de uma forma que transborda e integra a questão laboral porque envolve tarefas e trabalho que não são geralmente reconhecidas: dos cuidados à autogestão do bairro, das economias populares ao reconhecimento do trabalho social não remunerado, do desemprego à natureza intermitente do rendimento. Neste sentido, coloca a chave da vida de um ponto de vista que vai além dos limites do trabalho, sem deixar de pensar nas mutações do trabalho vivo. Ao incluir, tornando visíveis e valorizando os diferentes terrenos de exploração e extração de valor pelo capital na sua fase atual de acumulação, a greve feminista internacional torna possível dar conta das condições em que as lutas e resistências atuais começam a reinventar uma política de classes, na medida em que expressam e difundem uma mudança na composição das classes trabalhadoras, transbordando as suas classificações e hierarquias.

Por isso, a greve apropriada pelo movimento feminista transborda literalmente: deve ser responsável por múltiplas realidades laborais que escapam às fronteiras assalariadas e sindicalizadas, que questionam as fronteiras entre produtivo e reprodutivo, formal e informal, remunerado e não remunerado, entre trabalho migrante e nacional, e entre pessoas empregadas e desempregadas. Sob esta dinâmica, aponta diretamente para um dos núcleos do sistema capitalista: a divisão sexual e colonial do trabalho. E ao mesmo tempo abre uma questão de investigação concreta e situada: o que significa parar em cada realidade diversa, levando a sério a singularidade e complexidade de cada experiência de vida laboral diferente? Como é que esta redefinição e alargamento das classes trabalhadoras se interliga com as diferenças que tornam o mapa do trabalho radicalmente heterogêneo e segmentado? Como se consegue um plano de ação comum face à multiplicidade que desafia a própria ideia da acumulação de forças?

As respostas a estas perguntas podem ter uma primeira fase que consiste em explicar por que não é possível fazer greve em casa ou como vendedor ambulante ou como prisioneiro ou como trabalhador agrícola ou como trabalhador independente ou como trabalhador migrante (identificando-nos como aqueles que “não podem” fazer greve). Porém, imediatamente a seguir assume outra potência: obriga essas experiências a ressignificar e expandir o que está suspenso, o que é bloqueado e ignorado quando a greve deve acomodar essas realidades, alargando o campo social em que a greve está inscrita e produz efeitos. Um manifesto feminista é também uma evocação e um incitamento a esta passagem, uma transcrição (uma tradução) noutra chave do que o Manifesto define como o “objetivo imediato dos comunistas”: a “formação do proletariado numa classe”.

6. Assim, a questão da classe pode expandir-se nos movimentos e lutas do nosso presente, mesmo sem ser nomeada como tal. Talvez possamos localizar onde se situa hoje a “guerra civil” entre trabalho e capital. Marx identificou-a na jornada de trabalho, mas estamos assistindo justamente a seu alargamento e expansão em termos territoriais (para além da fábrica) e temporais (para além da jornada de trabalho reconhecida). Que formas violentas assume hoje esta guerra civil, se a considerarmos a partir de uma cooperação social que tem as economias informais, migrantes e populares e o trabalho doméstico-comunitário como a chave para novas zonas proletárias no neoliberalismo?

Há quatro “cenas” que podem produzir, creio, uma explicação do porquê de neste momento podermos ver a violência funcionando diretamente como força produtiva fundamental, uma vez que a mediação salarial deixa de ser a principal operação de contenção da força de trabalho. Por um lado, caracterizamos a implosão da violência no lar como um efeito da crise da figura do macnho provedor e da sua desierarquização derivada, em relação ao seu papel no mundo do trabalho. Por outro lado, a organização de nova violência como princípio de autoridade nos bairros da classe trabalhadora, como resultado da proliferação de economias ilegais que reabastecem, sob outras lógicas, formas de fornecimento de recursos e que competem e coordenam, por vezes, com as economias da classe trabalhadora como redes subalternas de produção da vida. Terceiro: a expropriação e pilhagem de terras e recursos comuns por projetos neoextractivistas transnacionais que atacam diretamente as redes comunitárias. Finalmente, a articulação de formas de exploração e extração de valor que têm a financeirização da vida social – e, em particular, o dispositivo da dívida – como um código comum. Com estas cenas, o objetivo é enquadrar uma leitura da violência do neoliberalismo como um momento de acumulação de capital, que contabiliza, ao mesmo tempo, as medidas de ajustamento estrutural, mas também a forma como a exploração está enraizada na produção de subjetividades compelidas à precariedade e, ao mesmo tempo, luta para prosperar em condições estruturais de despossessão.

Será hoje possível dividir o mundo em categorias tão afiadas como “burgueses e proletários” e “proletários e comunistas”? A possibilidade de “dividir” as existências desta forma torna possível configurar um antagonismo claro e, portanto, uma política de classe. Já comentamos como este antagonismo é reconfigurado pela introdução da diferença dentro de um dos seus pólos. Mas é possível regressar a uma premissa de Marx e Engels: o movimento proletário é uma “grande maioria”. No entanto, é a sua constituição como uma classe que o lança na “conquista da democracia”. Isto significa que a definição de classe não se traduz automaticamente em política de classe: esta é constituída com base na luta contra a opressão sintetizada no domínio da propriedade privada. A definição de classe tem então como base uma despossessão que se traduz em opressão e a partir daí aposta num outro tipo de “unidade”: aquela dada pela despossessão como premissa de uma condição comum.

Verónica Gago é doutora em Ciências Sociais, pesquisadora e militante do coletivo NiUnaMenos. Reflete sobre as chaves para consolidar redes feministas a nivel global. Escreveu diversos livros, entre eles “Uma leitura feminista da dívida”, junto com Luci Cavallero.

MAIS: Este texto é a primeira parte do prefácio de uma nova edição, em castelhano, do Manifesto Comunista . Foi publicada há pouco pela Verso Libros, de Barcelona. Sílvia Federici escreve o posfácio

“Acreditamos que o livro é um aporte necessário para visibilizar e problematizar o conceito de dívida, mas sobretudo nos convida a investigar, entendendo a pesquisa como tarefa militante”

por Maria Florencia Cascardo* e Alberta Bottini**

Resenha do livro “Uma leitura feminista da dívida, de Luci Cavallero e Verónica Gago.

Livro “Uma leitura feminista da dívida”. Foto: Carol Ferraz

O livro “Uma leitura feminista da dívida: vivas, livres e sem dívidas nos queremos!” propõe uma nova forma de olhar e compreender a dívida. Diferentemente dos estudos centrados nas abstrações financeiras e macroeconômicas , o livro levanta um olhar feminista da dívida, convidando-nos a compreender o impacto concreto da mesma nos territórios, na vida das pessoas des classes populares e nos corpos de mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não binárias. Sob a perspectiva da economia feminista, nos propusemos nesta resenha a incorporar também a visão da economia popular, social e solidária, como forma de articular duas estratégias teóricas e práticas de resistência que buscam construir uma nova forma de entender o econômico.

O livro de Verónica Gago e Luci Cavallero surge no calor das discussões em torno dos processos de organização das greves feministas, das greves de mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não-binárias, que destacavam o papel econômico do trabalho doméstico não remunerado que realizam e que funciona como suporte invisível do sistema econômico.

Em primeiro lugar queremos destacar uma característica que nos pareceu importante do texto: seu caráter prático que nos permite gerar diálogos reais e concretos entre as teorias e nossas experiências como professoras e pesquisadoras da área de economia popular, social e solidária de universidades públicas dos subúrbios de Buenos Aires e como militantes feministas. E é aí que começa esse convite que nos faz pensar e reconceituar a dívida, não apenas como fenômeno abstrato e distante de nossas vidas, mas como um elemento estruturante das relações sociais e econômicas da nossa sociedade contemporánea. O livro assume então um valor como aporte teórico e como ferramenta de discussão, debate, resistência e construção coletiva. Imaginamos o livro como dispositivo proporcionador de debates com as organizações e sujeitos da economia social, popular e solidária; o compreendemos como uma ferramenta que permite uma leitura feminista, mas também que possibilita a formulação de propostas emancipatórias enquadradas nestas propostas para uma outra economia.

Falar da dívida nos leva a pensar no imaterial do que implica o setor financeiro global, e aqui está a primeira contribuição do texto de Gago e Cavallero: as autoras no propõem três movimentos como exercício para repensar os instrumentos financeiros na esfera do cotidiano, analisando seu impacto concreto sobre os territórios e corpos, assim como as experiências coletivas que surgem como mecanismo de resistência frente a mesma: desconfinar, corporizar e desacatar.

O primeiro movimento convida-nos então a tirar a dívida do armário, a expulsá-la desse confinamento à esfera privada; torná-lo visível, nomeá-lo, para deixar de pensar nele como um problema privado e entender esse fenômeno como parte de um problema comum. Tomando as contribuições conceituais de diferentes autores, definem a dívida como um “mecanismo de sujeição e servidão, estruturando a relação devedor-credor como constitutiva do capitalismo” que gera subordinação entre nações, setores, classes, gêneros e raças, entre outros. Pensar a dívida como um mecanismo generalizado de despossessão permite compreender como se produzem e reproduzem mecanismos e estratégias a partir do capital financeiro para a geração de devedores, habilitando desse modo novos mecanismos de exploração que são lidos na chave do extrativismo financeiro.

Abordam esse estudo desde uma leitura feminista, que propõe uma análise do impacto concreto que se contrapõe com as abstrações financeiras, pensando no endividamento da vida doméstica, isto é, a dívida dos setores assalariados e populares (estes últimos altamente feminizados). Assim, é como chegam a compreender a dívida como um mecanismo de dependência, produto do modelo de financeirização proposto pelo neoliberalismo, onde a dívida é o que permite repor o que nos é tirado: acesso a serviços, saúde, moradia, alimentação e trabalho. A dívida é o recurso que aparece quando não há outro recurso e não se encontram mais redes de apoio além do mercado, que não pode ser acessado, retroalimentando um círculo de dependência.

A dívida é o mecanismo a partir do qual os setores populares resolvem seus problemas cotidianos, o que as autoras entendem como um modo de gestão da crise. E destacam que apesar das exorbitantes taxas de juros que devem pagar (por aderirem a esta dívida de organizações usurárias), este endividamento toma conta das economias familiares, financiando o cotidiano e organizando uma estrutura de obediência (cumprir tal obrigação no que for possível), definida como terror financeiro que opera também como um mecanismo de disciplina social, especialmente em relação aos corpos feminizados.

A dívida então passa a ser moeda recorrente, mecanismo de subordinação. Por isso, após desconfinar a dívida, as autoras procuram corporizá-la, analisando a forma como ela se enraiza nos corpos e territórios, funcionando como um dispositivo de exploração transversal que capta a produção do comum, explorando mesmo a disponibilidade de trabalho no futuro. Ao dar corpo à dívida, as autoras permitem ver como esse mecanismo disciplinar se torna muito mais violento nos corpos de mulheres e dissidentes e nos setores populares. A dívida como disciplina, como mecanismo violento e ambíguo que permite a reprodução da dependência e a negação dos nossos desejos.

Na segunda parte do livro, as autoras interpelam a discussão sobre a dívida através de entrevistas com representantes de organizações feministas, da economia popular, social e solidária, e sindicais. As narrativas que o texto nos oferecem nos convidam a pensar como o imaterial se torna material, como o invisível associado ao setor financeiro se faz realidade, história e violência nos corpos das pessoas que vivem às margens.  Assim, as histórias expõem o papel das empresas financeiras no endividamento dos setores populares e permitem observar o impacto do endividamento nos vínculos, na saúde e na vida das pessoas. E aí começa a aprofundar a análise do impacto diferencial dessa dívida sobre mulheres, lésbicas, travestis, trans e pessoas não-binárias.

Por um lado, a partir do vínculo da dívida com os trabalhos de reprodução (que recaem principalmente nas costas de mulheres e dissidentes): são elas que se endividam para pagar os medicamentos, comprar a comida; resumidamente, são elas que se endividam para ter acesso a tudo o que permite a reprodução da vida das pessoas do lar.  Por outro lado, a partir da interseção entre dívida e autonomia econômica, o livro analisa a forma como a dívida está vinculada à violência de gênero.

É aí que se torna visível o terceiro movimento que as autoras nos propõem: uma vez desconfinada e incorporada a dívida, chegamos ao ponto do desacato. Essas entrevistas também permitem visualizar as resistências a esses dispositivos de subjugação, destacando o poder de desobediência que se abre a partir das experiências organizativas do movimento feminista.

E é aí, na encruzilhada entre a economia feminista e a economia popular, social e solidária, que nos propomos a pensar experiências que (nos) libertem da dívida e ao mesmo tempo construam coletivamente práticas de trabalho autogeridas. Nos relatos das experiências se nomeiam práticas como o pasanaku na comunidade boliviana, o crédito coletivo gerido no interior das organizações sociais que podemos vincular com práticas existentes entre as organizações da economia popular, social e solidária que pensam o crédito como um recurso para o grupo e não como uma saída individual. O objetivo passa a ser, então, coletivo e comum, a serviço das pessoas e não da acumulação do capital.

Assim são pensados ​​instrumentos de crédito solidário que, por exemplo, propõem a utilização de sistemas de garantia solidária entre os membros de um grupo, valorizando a importância da organização e construindo redes associativas, democráticas e autogeridas.

A incorporação de metodologias inovadoras como garantias solidárias, ou fundos rotativos, permitem a geração de fundos coletivos que são utilizados por quem os requer, devolvendo-os posteriormente para serem utilizados por outro integrante. Ainda dentro dessas estratégias podemos pensar nas moedas sociais utilizadas em feiras de economia social e solidária, que funcionam como instrumento de crédito para comercialização solidária para aquisição de bens e serviços, ao mesmo tempo em que integram produtores e consumidores em formas solidárias de organização do consumo.

Essas estratégias geram a capacidade de mobilizar um recurso com base na motivação coletiva; compartilhando a busca por financiamento que foge da lógica comercial e se orienta pelo princípio da reciprocidade presente nas experiências da economia popular, social e solidária.

Por fim, acreditamos que o livro é um aporte necessário para visibilizar e problematizar o conceito de dívida, mas sobretudo nos convida a investigar, entendendo a pesquisa como tarefa militante, sobre como os instrumentos financeiros produzem, aumentam e naturalizam a violência machista. Mas, também, como o mesmo sistema capitalista e patriarcal se nutre desses instrumentos para disciplinar e para acumular forças sobre nossas vidas.

O livro é por um lado uma aposta na resistência, desde os feminismo e desde a organização popular e solidária da economia e, por outro lado, um convite à construção de outras formas de viver uma vida que valha a pena ser vivida.

Maria Florencia Cascardo*: Universidad Nacional de Tres de Febrero, Tres de Febrero, Provincia de Buenos Aires, Argentina. ([email protected])

Alberta Bottini**: Universidad Nacional de Quilmes, Quilmes, Provincia de Buenos Aires, Argentina.  ([email protected])

As autoras fazem parte do Espacio de Género de la Red Universitaria de la Economía Social Solidaria (RUESS), da Argentina.

Para citar o artigo: Cascardo, M. F. y Bottini, A. (2019). Lucía Cavallero y Verónica Gago, Una lectura feminista de la deuda: ¡Vivas, libres y desendeudadas nos queremos! Buenos Aires, Argentina: Fundación Rosa Luxemburgo, 2019. Otra Economía, 12(22), 293-296.