O livro de Pasternak e Orsi —do qual falamos nas duas últimas colunas (veja a parte 1 e a parte 2)— traz um tema interessante, ainda que tenha sido tão maltratado. Como avaliar as psicoterapias? Como saber qual funciona para o que e para quem?
Aqui salta aos olhos a dificuldade em transpor diretamente os princípios da Medicina Baseada em Evidências para uma possível Psicologia Baseada em Evidências.
Qual seria exatamente o princípio ativo das psicoterapias? Como imaginar um placebo psicoterápico?
(A ideia de um ator falando de forma trivial com a pessoa não garante que isso não tenha efeitos terapêuticos).
Ainda assim a apresentação é parcial e contraditória.
Pode e deve-se fazer pesquisa sobre avaliação de psicoterapias, mas desde os anos 1950, os resultados são muito divergentes, com autores dizendo que as psicoterapias em geral não funcionam (Eisenk), que elas funcionam mais do que as medicações (tamanho de efeito = 0.87, contra 0.40 em média para antidepressivos, por exemplo) ou que todas elas possuem efeitos positivos (chamado efeito Dodo) [1], assim como existem efeitos adversos ou iatrogênicos das psicoterapias (como qualquer método de tratamento).
Sim, “pacientes tendem a confirmar a orientação teórica de seus terapeutas” (p. 197), mas onde está a evidência científica de que os pacientes em psicanálise pioram mais ou confirmam mais isso do que outras psicoterapias? Zero. Nenhuma pesquisa é trazida, ao contrário do que se espera de alguém que se compromete com uma posição evidencialista em ciência.
Neste cenário de incerteza, Pasternak e Orsi concluem que as psicoterapias podem ser controladas como as medicações, mas também que “a psicoterapia é uma atividade voltada para o mercado” (p. 183).
Mas então:
Onde estão os biomarcadores para que eu possa medir o nível de neurotransmissores cerebrais de um depressivo e assim controlar seu aumento ou diminuição depois das psicoterapias? Onde estão os diagnósticos etiológicos que me permitam confiar que uma transtorno de pânico ou um transtorno de déficit de atenção com hiperatividade têm a mesma confiabilidade diagnóstica que temos na medicina? Onde estão as descrições conclusivas de curso e desenlace das doenças mentais? Aliás, por que chamamos elas de “transtornos” (disorders) e não de doenças? Qual o princípio ativo da psicoterapia? Resultado desta ilusão exagerada de controle são as contradições do texto.
Primeiro afirmam que “evidências clínicas são insuficientes, inconclusivas ou inválidas porque os pacientes insatisfeitos não voltam” (p. 182) para, em seguida, se contradizerem, trazendo para o próprio texto [o caso] “O Homem dos Lobos”, que “voltou” para dizer que a análise o prejudicou, que Freud inventou memórias e que ele nunca foi propriamente curado (p. 190).
Afirmam que só 1% relata efeitos negativos e que 10% dos pacientes pioram (p. 184), mas há dados em contrário que falam em 20% de pacientes que relatam benefícios inesperados trazidos pela psicoterapia.
Primeiro dizem que “não existem evidências convincentes de que qualquer forma de psicoterapia particular, ou ingrediente específicos em geral, seja crucial para produzir os efeitos da psicoterapia” (p. 184), mas quando não se trata de psicanálise “existem resultados de pesquisas, conduzidas por boas práticas que confirmam eficácia do método” (p. 184).
Ou seja, caçam “cerejas” pela floresta das evidências para apresentar o retrato que já têm na cabeça.
Trazemos, portanto, cinco considerações sobre a dificuldade de avaliar psicoterapias:
1.
Existe controvérsia na literatura sobre o que constituem evidências de boa qualidade, quais métodos devem ser empregados para estabelecer a eficácia de uma terapia, quais as melhores formas de medir resultados.
Critérios de evidência produzidos para a pesquisa em medicina são problematicamente aplicados para avaliar práticas da psicologia clínica [2].
2.
Há apenas algumas áreas da medicina em que os estudos mostraram uma boa qualidade de pesquisas [3].
Entre elas estão as pesquisas sobre alfabetização em saúde, triagem de câncer [4] e diretrizes de prática clínica para o tratamento do transtorno por uso de opioides [5].
Um amplo estudo sobre a qualidade da pesquisa farmacológica e psicoterapêutica com depressão maior [6] examinou confiança geral nos resultados das pesquisas de acordo com AMSTAR2 [7].
O resultado aponta que:
“A qualidade metodológica das pesquisas sobre intervenções farmacológicas e psicológicas para depressão maior em nossa amostra atual e representativa foi decepcionante.”
Apenas quatro revisões foram classificadas como “alta” (três delas Revisões Cochrane), duas como “moderada”, uma como “baixa” e 53 como “criticamente baixa”.
3.
Quanto mais complexa uma intervenção maior heterogeneidade e maior a chance de redução na qualidade do delineamento experimental e da qualidade final da evidência produzida [8].
Um estudo que queira realmente reduzir vieses tão complexos como os que atribuímos às intervenções psicanalíticas teria que modular, além disso, com pelo menos 10 fatores para homogeneizar a amostra [9]:
Sintomas DSM mais comorbidades, Reação do paciente à psicopatologia, Massa corporal, Personalidade, Nível de inteligência, Regulação de Emoções, Adoecimentos, Passagem por tratamentos médicos (não psicoterápicos), Desemprego, Profissão, Desenvolvimento Social, Qualidade de Vida.
(a) Intervenções com múltiplos componentes
(b) Intervenções em que ocorre significativa interação entre a intervenção e seu contexto
(c) Intervenções introduzidas em sistemas complexos
4.
Análises análogas feitas com instrumentos semelhantes sobre a produção de pesquisa sobre eficácia e eficiência da psicanálise [10] afirmam, sob a perspectiva da medicina baseada em evidências, que os resultados têm uma força científica apenas moderada e que “não podemos tirar conclusões definitivas sobre a eficácia da psicanálise” [11].
Um estudo que analisou a qualidade de 94 pesquisas sobre Psicoterapia Psicodinâmica, publicados entre 1974 e 2010, com grupo controle randomizado chegou nos seguintes resultados:
a) Das 103 pesquisas:
63 comparavam Psicoterapia Psicodinâmica e Não-Dinâmica
b) Das 39 comparações entre Psicoterapia Psicodinâmica e uma Intervenção Ativa:
6 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior 5 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é inferior 28 mostraram que não há diferença significativa entre ambas
c) Das 24 comparações adequadas com um Fator Inativo:
18 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior.
d) “Isso é suficiente para tornar a Psicoterapia Psicodinâmica um tratamento “empiricamente validado” (de acordo com os padrões da Divisão 12 da Associação Americana de Psicologia) se outros estudos controlados e randomizados de qualidade e tamanho de amostra adequados replicassem os resultados dos estudos positivos existentes para transtornos específicos.” [12]
5.
A LTPP ((long-term psychodynamic psychotherapy ou psicoterapia psicanalítica de longa duração) pode ser superior a outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, onde a força do efeito representou ganho adicional da LTPP em relação a outras formas de psicoterapia, principalmente de longo prazo.
Reanálise estatística das meta-análises de Leichsenring, Abbass, Luyten, Hilsenroth e Rabung, encaminhadas para o escrutínio no artigo em questão, encontraram evidências da eficácia da LTPP no tratamento de transtornos mentais complexos e a força do efeito terapêutico nas replicações foram, em geral, um pouco menores.
Uma nova meta-análise atualizada de ensaios clínicos randomizados comparando LTPP (com duração de pelo menos 1 ano e 40 sessões) com outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, usando critérios de pesquisa transparente, de acordo com os padrões de ciência aberta, com procedimentos meta-analíticos e controle de viés incluindo 191 tamanhos de efeito e 14 estudos elegíveis, revelou tamanhos de efeito pequenos e estatisticamente significativos no pós-tratamento para os domínios de resultados de sintomas psiquiátricos, problemas-alvo, funcionamento social e eficácia geral (Hedges’ g variando entre 0,24 e 0,35).
O tamanho do efeito para o domínio funcionamento da personalidade (0,24) não foi significativo (p = 0,08).
Não foram detectados sinais de viés de publicação [13].
Apenas para visualizar uma comparação geral, esta é a média da força de efeito terapêutico:
A psicanálise é um tratamento psicoterápico psicodinâmico baseado em evidências [14]. Os tamanhos dos efeitos são tão grandes quanto os de outras terapias que são ativamente promovidas como “apoiadas empiricamente” e “baseadas em evidências”, e os pacientes que recebem terapia psicanalítica não apenas mantêm os ganhos terapêuticos, mas continuam melhorando após o término do tratamento.
O psicanalista sul-africano Marc Solms fez um bom resumo das evidências de eficácia e eficiência apresentadas pela psicanálise:
“A terapia psicanalítica alcança bons resultados, pelo menos tão bons quanto e, em alguns aspectos, melhores do que outros tratamentos baseados em evidências na psiquiatria atualmente.
A psicoterapia em geral é uma forma de tratamento altamente eficaz. Meta-análises de psicoterapia, estudos de resultados de psicoterapia normalmente revelam tamanhos de efeito entre 0,73 e 0,85. Um tamanho de efeito de 0,8 é considerado grande em pesquisas pesquisa psiquiátrica, 0,5 é considerado moderado e 0,2 é considerado pequeno. Para colocar a eficácia da psicoterapia em perspectiva, medicamentos antidepressivos recentes alcançam tamanhos de efeito entre 0,24 e 0,31 (Kirsch et al., 2008; Turner et al, 2008). As mudanças provocadas pela psicoterapia, não menos do que a terapia medicamentosa, são, obviamente, visualizáveis por meio de imagens cerebrais.
A psicoterapia psicanalítica é igualmente eficaz como outras formas de psicoterapia baseadas em evidências (por exemplo, terapia cognitivo-comportamental (TCC)). Isso agora está inequivocamente estabelecido (Steinert et al, 2017). Além disso, há evidências que sugerem que os efeitos da terapia psicanalítica duram mais tempo – e e até aumentam – após o término do tratamento. A revisão autorizada de Shedler (2010) de todos os estudos controlados e randomizados até o momento relatou tamanhos de efeito entre 0,78 e 1,46, mesmo para formas diluídas e truncadas da terapia psicanalítica. Uma meta-análise, especialmente meta-análise metodologicamente rigorosa (Abbass et al, 2006), produziu um efeito geral de 0,97 para a melhora geral dos sintomas com a terapia psicanalítica. O efeito aumentou para 1,51 quando os pacientes foram avaliados no acompanhamento. Uma meta-análise mais recente –meta-análise de Abbass et al (2014)– produziu um tamanho de efeito geral de 0,71, e a descoberta de efeitos mantidos e aumentados no acompanhamento foi reconfirmado. Isso foi para tratamento psicanalítico de curto prazo. De acordo com a meta-análise de Maat et al (2009), que foi menos metodologicamente rigorosa do que os estudos de Abbass, a psicoterapia psicanalítica de longo prazo produz um tamanho de efeito de 0,78 no término e 0,94 no acompanhamento, e a psicanálise propriamente dita alcança um efeito médio de 0,87 e 1,18 no acompanhamento. Esse é o resultado geral: o tamanho do efeito para a melhora dos sintomas (em oposição à mudança de personalidade) foi de 1,03 para terapia psicanalítica de longo prazo, e para a psicanálise foi de 1,38. Leuzinger-Bohleber et al (2018) informarão em breve tamanhos de efeito ainda maiores para a psicanálise na depressão. A tendência consistente em direção a tamanhos de efeito maiores no acompanhamento sugere que a terapia psicanalítica põe em movimento processos de mudança que continuam após o término da terapia (enquanto os efeitos de outras formas de psicoterapia, como a TCC, tendem a se deteriorar).” [15] [16]
REFERÊNCIAS
[1] Leonardi JL, Meyer SB. Prática Baseada em Evidências em Psicologia e a História da Busca pelas Provas Empíricas da Eficácia das Psicoterapias. Psicol cienc prof [Internet]. 2015Oct;35(4):1139-56.
[2] Reed, Kihlstrom, & Messer, 2006.
[3] In rating overall confidence in the results of the SR according to Shea et al., (2017) only four reviews were rated “high” (three of them Cochrane Reviews), two were “moderate”, one was “low” and 53 were “critically low”. The methodological quality of the SR on pharmacological and psychological interventions for major depression in our current and representative sample was disappointing. On the other hand, there are only few areas in medicine in which studies showed a good quality of SR. They include health literacy and cancer screening (Sharma and Oremus, 2018) ) and SRs referenced in clinical practice guidelines for the treatment of opioid use disorder (Ross et al., 2017).
[4] Sharma e Oremus, 2018.
[5] Ross et al., 2017.
[6] Shea et al. (2017).
[7] The methodological quality of systematic reviews on the treatment of adult major depression needs improvement according to AMSTAR 2: A cross-sectional study In Helyon VOL 6, Issue 9, E04776, September 2020.
[8] Novo Manual da Fundação Cochrane.
[9] Leuzinger, Bohleber, Benecke, Hau (2015) Psychoanalitische Forschung – methonden und Kontroversen in Zeiten wissenschaftlicher Pluraliät. Stutgard: Kohhammer, p. 197.
[10] Maat, (2008) Costs and benefits of Long-Term Psychoanalytic Therapy: changes in health care. Use and work impairment. Harvard Review of Psychiatry, 15(6), 289-300
[11] “Entspechend kommen Maat. (2013) zu der Schlussfolkgerung, dass die Ergebnisse unter der perspective der evidence-based medicine eine only moderade scientific strengh” aufweise das “we cannot drae firm conclusions regarding the effectiveness of psychoanalysis”.
[12] Gerber, A.J., Kocsis, J. H., Milrod, B. L., et al. (2011). A quality-based review of randomized controlled trials of psychodynamic psychotherapy. The American Journal of Psychiatry 168: 19-28.
[13] Christian Franz Josef Woll, Felix D. Schönbrodt. Efficacy of Long-Term Psychoanalytic Psychotherapy (2019) A Meta-Analysis European Psychologist, December 2019, Hogrefe Publishing Group.
[14] Woll, Christian Franz Josef, Schönbrodt, Felix D. (2021) A series of meta-analytic tests of the efficacy of long-term psychoanalytic psychotherapy. European Psychologist, Vol 25(1), 2020, 51-72.
[15] Solms Mark (2018) The scientific standing of psychoanalysis. BJPsych International volume 15 number 1 february 2018
[16] Abbass A. A., Hancock J. T., Henderson J., et al (2006) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders. Cochrane Database Syst Rev, 4,
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Na coluna anterior discutimos a função e a importância da divulgação científica no Brasil, necessidade que se tornou ainda mais patente depois da maneira como enfrentamos a crise mundial de covid-19, bem como a facilidade que estamos apresentando, em termos comparativos, para lidar com fake news e demais manipulações acríticas de informação, saber e conhecimento.
Por isso a divulgação científica deveria, sobretudo, seguir as regras da própria prática da ciência, pois desta maneira não apenas se fala sobre o que é ciência, mas se mostra, em escala reduzida e adaptada, como procede um cientista.
Ou seja, como ele levanta perguntas, trata de reunir evidências, como ela assume compromisso com métodos que tornam o caminho de sua investigação capaz de ser percorrido por outros e, no limite, por qualquer um.
Reconhecer peculiaridades do objeto, cruzar achados de diferentes disciplinas, combinar estilos de demonstração são procedimentos básicos naquilo que anda em rarefação crescente na cultura educacional e no debate público brasileiro: a chamada ciência básica, aquela que ensina ciência transversal, história da ciência e as abordagens elementares sobre os fenômenos da natureza e das humanidades.
Ora, para mostrar como não se deve fazer divulgação cientifica, tomemos como exemplo o livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi (“Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério”, editora Contexto) naquilo que ele toca a psicanálise, para mostrar como vieses e distorções de pensamento podem dificultar a formação do pensamento científico, naquilo que ele tem de mais próximo da filosofia, ou seja, a capacidade de levantar dúvidas e criar hipóteses prescindindo do recurso à autoridade, ao dogmatismo e às crenças constituídas.
Examinemos então afirmações que permitem elucidar tais vieses:
1. Eficácia da psicanálise
“A Psicologia científica cobra evidências mais robustas para justificar alegações teóricas quanto a sucessos clínicos”
p. 186
Há centenas de estudos controlados mostrando a eficácia da psicanálise, das Terapias Psicodinâmicas e das Psicoterapias Psicodinâmicas de Longo Prazo, bem como inúmeros estudos neurocientíficos que corroboram a psicanálise.
Há meta-análises que comprovam a eficácia igual ou maior do que as chamadas terapias empiricamente sustentadas.
Evidências de eficácia e eficiência da psicanálise e de suas manualizações como terapia psicodinâmica foram apresentadas.
Dizer que os critérios de confiabilidade dos testes de regularidade estatística reduzem o nível de confiabilidade é uma falácia pois prova que:
A psicanálise apresenta evidências (que são testáveis ao nível da discussão de qual programa de qualificação deve ser usado); Ela não se recusa a prestar contas ou se justificar cientificamente;
Outras psicoterapias também fracassam quando se eleva os níveis de exigência metodológicos e;
Isso acontece em muitas e na maior parte das pesquisas em medicina, como declara o Instituto Cochrane.
Portanto, estamos aqui diante do viés de parcialidade.
Em vez de trazer o dissenso científico, as hipóteses concorrentes e a controvérsia que move o debate científico, apresenta-se apenas uma versão das evidências, julga-se evidências de forma desigual e gradualmente se infiltra nas afirmações científicas acordos, consensos ou normas criadas para qualificar e hierarquizar a força das evidências.
2. Conhecimento e antiguidade
“Desde os anos 1950 a psicanálise é dada como exemplo de pseudociência”
Nenhum conhecimento é mais verdadeiro ou mais falso pela sua antiguidade.
Os Elementos de Euclides e a Lógica de Aristóteles continuam eficazes para o enfrentamento de inúmeros problemas, ainda que a matemática e a lógica tenham avançado em complexidade e alcance.
O uso de palavras em ciência deve cuidar criteriosamente do fato de que muitas vezes as mesmas palavras possuem um sentido corrente e popular, muito diverso do uso técnico conceitual.
O conceito de pseudociência, proposto por Popper, emerge no contexto do esforço deste autor para demarcar o conhecimento científico daquilo que pode ser considerado, naquele momento, como não científico.
Com o passar do tempo a palavra pseudociência adquiriu um sentido negativo, de impostura, má-fé, que nem sempre está contido no conceito original.
No entanto, a principal característica da pseudociência para Popper é que seus enunciados não são falseáveis, ou seja, eles não podem ser contraditados por experiências empíricas ou examinados por sua consistência lógica.
Ora, um autor como Grünbaum, curiosamente citado pelos autores em questão, mostrou em 1984 que a psicanálise comporta falseamento de proposições. Para este autor existem argumentos circulares (tally arguments) que são problemáticos no interior da psicanálise, e que ela deveria se esforçar por produzir evidências extraclínicas.
De fato, um pesquisador americano chamado Schevrin [1] apresentou uma evidência deste tipo, com a qual Grünbaum consentiu quanto a sua pertinência.
Um divulgador científico não pode desconhecer fatos para apresentar afirmações contundentes.
Juízos desqualificativos devem ser evitados.
3. Casos clínicos de Freud
“Os casos trazidos por Freud estão distorcidos”
p. 189
“Os casos clínicos de Freud são imposturas do início ao fim”
p. 190
Desde os anos 1980 vários pesquisadores em história da psicanálise como Masson, Sulloway, Rozen, Swales e Crews revisitaram os casos clínicos de Freud e, conversando com ex-pacientes, inclusive casos não publicados, trouxeram um retrato de como Freud trabalhava efetivamente.
Vários destes relatos continham contradições com o que Freud dizia que devíamos fazer na condução e tratamentos. Isso tornou os casos clínicos um material pouco rigoroso e impreciso para avaliar a prática psicanalítica.
Mas seria justo examinar relatos clínicos de cem anos atrás com os mesmos padrões de rigor e fidelidade que exigiríamos hoje?
O trabalho destes autores esteve ligado a uma grande onda de críticas à psicanálise que tomou conta principalmente dos meios de comunicação norte-americanos nos anos 1990.
Curiosamente, não se encontrou nessa devassa nenhum sinal de assédio, intrusão aproveitadora na vida de pacientes ou faltas éticas mais graves.
Casos clínicos devem ser lidos como paradigmas e exemplos, não como generalizações indutivas. Muitos são modelos de fracasso, não de sucesso ou prova de eficiência.
Não é por pesquisas randomizadas com duplo cego e placebo que a psicanálise construiu seu sistema de métodos, técnicas e transmissão de conceitos.
Isso deveria ser levado em conta na apresentação ou no ajuizamento de suas evidências.
4. Religiosidade da psicanálise
“O projeto científico a princípio legítimo [da psicanálise] degenerou em uma forma de religião secular”
p. 185
Não se apresenta nenhuma evidência científica sobre isso. Nenhuma pesquisa mostrando a não eficiência ou a religiosidade da psicanálise.
Mesmo se não existissem evidências, isso não equivale a evidências negativas, ou seja, a prova do que se está a afirmar.
Trata-se de uma opinião que cria um viés de contrariedade.
Isso parece ser a tônica de artigos sobre a psicanálise divulgados em Questão de Ciência com títulos como “Negacionistas que agora defendem a ciência”, “Conspiração do Inconsciente” ou “Ciclo Interminável de Confirmação da Pseudociência”.
O viés de confirmação apresentados por tais textos está abaixo da crítica.
O dogmatismo na exposição está acima do razoável e a ausência de argumentação é patente.
5. Ciências humanas
“[…] Se o método pelo qual a psicanálise foi construída não se sustenta, as humanidades também não se sustentam – incluindo História, Ciência Política, Linguística e Economia também não […] a psicanálise é o homem-bomba no prédio das humanas”
p. 185
Aqui salta aos olhos a mistura de desinformação, preconceito e generalização imprópria.
Há muitos outros métodos em ciências humanas. A psicanálise não é tão central assim e há muitas críticas dentro das ciências humanas à psicanálise.
Em resumo, não se deve criar espantalhos, nem conceituais nem políticos, para imaginar que assim é mais fácil destruí-los.
No debate de ideias é ruim, na divulgação científica é péssimo.
A imagem de um “homem-bomba” sugere que psicanalistas agem como terroristas, indiferentes ao debate científico, incapazes de apresentar razões e justificativas para o que fazem, além de serem nocivos.
O argumento sub-reptício é de que deveríamos eliminar “o homem-bomba” como forma de purificar as “ciências humanas” de sua falta de ciência, rigor e boa-fé.
Ora, a ideia de que as ciências humanas são um problema, quando elas não seguem padrões, normas e procedimentos das ciências ditas “duras” como as exatas, é conhecido como cientificismo, cientismo ou de forma um tanto imprecisa de “positivismo”.
Afinal se a história, a linguística, a sociologia, as ciências políticas, a teoria da literatura, a antropologia devem ser tornadas ilícitas, junto com a psicanálise, é porque elas não estão de acordo com este único pensamento convencional, normativo e coercitivo, como estamos vendo agora, chamado ciência.
Este tipo de juízo pode soar arbitrário para muitas pessoas, e isso nos faria entender por que tantas pessoas desconfiam da ciência e não estão dispostos a ceder a consensos como este.
Nesta medida este tipo de juízo cria um tudo ou nada. Ou estamos com a ciência, assim definida, ou estamos contra ela e somos “terroristas”.
A ideia de que se pode ser crítico, capaz de pensar e usar a razão até mesmo para refletir sobre os limites da ciência, como queria Kant, o inventor moderno da separação entre filosofia e ciência, passa longe neste ponto.
6. Erros conceituais
“A existência do inconsciente tem poder”
p. 188
“A evidência relativa aos fatos deve existir independente da teoria”
p. 189
“O conceito de repressão é problemático porque a memória não é armazenada em um hardware, reconstruções implicam a interferência de outras memórias”
p. 195
“Traumas (PSTD) não são memórias faltantes mas lembranças das quais alguém não consegue se livrar”
p. 196
“Transferência é dependência e submissão infantil ao analista”
p. 196
O inconsciente não é um fato, mas uma hipótese.
Sonhos, sintomas, atos falhos, esquecimentos, chistes são fatos aos quais esta hipótese se aplica.
Sua existência independe da teoria psicanalítica e ele é estudado pela psicologia, pelas neurociências e pela medicina muito antes da psicanálise.
Como Freud argumentou, psicanálise não é sugestão, nem influência. E o hipnotismo foi um método descartado explicitamente por Freud em 1897.
Transferência não é submissão, mas um meio de ajudar o paciente a sair delas.
Quem quer divulgar ciência ou anticiência não pode cometer erros conceituais tão elementares.
7. Biógrafo de Freud
“Crews, biógrafo de Freud, definitivamente não é um ótimo ponto de partida”
p. 188
Mostrei como Crews é um biógrafo tendencioso, isolado e divergente de outros biógrafos de Freud.
Um autor “fora da curva” que usa as 666 páginas de seu trabalho para mostrar que Freud usou cocaína por mais tempo do que ele disse que usou (o que parece correto), mas também que seu “desejo de possuir jovens virgens era incompatível com a conhecimento” e que ele teria abusado da irmã e tido um caso com a cunhada, sem qualquer evidência plausível para tais afirmações.
8. Enumerações
“O mundo é controlado por comunistas, marcianos ou pulsões inconscientes, instâncias confirmatórias e provas cabais”
p. 193
Enumerações como estas dominam o livro, que pretende ser um apanhado de práticas as quais não devemos dar valor, nem levar a sério, porque são “bobagens”.
A técnica de reunir adversários em grupos, para homogeneizar preconceitos e somar intolerâncias, não é de fato um procedimento científico, mas uma estratégia típica das retóricas de consumo ou das polarizações ideológicas.
Aqui, mais uma vez, encontramos exemplos “cabais” de como nossos autores sofrem do mal que pretendem erradicar.
9. Psicanalistas poderosos
“Como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular por um século, entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes?”
p. 193
“Os terapeutas que nos manipulam nas trevas”
p. 195
“Eu sei o que você, ou qualquer outro político, escritor, cineasta, povo ou civilização está pensando, melhor do que você”
p. 197
“A mulher que diz não, na verdade diz sim”
p. 194
“Os únicos pensamentos autênticos que a pessoa tem são os que lhe foram dados pelo psicanalista”
p.197
A psicanálise pode ter muitas insuficiências e limitações, mas reduzi-la a um espantalho feito de “lógica pueril” e “conspiração do inconsciente” é um desserviço epistêmico que realmente não se ajusta ao que qualquer psicanalista poderia reconhecer como uma representação minimamente fiel de sua prática.
Fazer bons retratos, modelos rigorosos ou representações fenomenologicamente consistentes do objeto que se quer criticar é um procedimento básico em ciência.
Dizer que psicanalistas impõem seu léxico, suas ideias e seu saber aos pacientes é algo que é clara e francamente criticada pela maior parte de seus autores.
Freud falava em busca de neutralidade, apresentava a psicanálise em contraste com a sugestão e criticava os métodos de influência.
Se há uma fonte para justificar este retrato onde está ela? Faltam evidências. Nenhuma delas, nem robusta nem preliminar, foi apresentada sobre este retrato.
Na próxima coluna, prosseguiremos com a análise do livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi e abordaremos como é possível avaliar as psicoterapias.
REFERÊNCIAS
[1] Beer, Paulo (2018) Psicanálise e Ciência. São Paulo: Blücher.
Divulgação científica mostrou-se um ponto chave para a regulação de processos sociais em situação de crise, como a pandemia de covid-19. Mas no fundo o mais importante no processo de tradução das complexidades dos achados e consensos que constituem a ciência ocorre quando esta contribui para os processos gerais de esclarecimento e emancipação das pessoas.
A ciência é um discurso essencial para entendermos o que significa o uso da razão em espaço público e como é importante poder debater com justeza de argumentos, evidências, de organização do pensamento e clareza, pois tudo isso nos tira de nossos consensos particulares e generaliza nossa experiência.
Ou seja, a ciência precisa tornar seu saber comum. Apenas com isso, ela pode melhorar nossa eficiência de vida, produzir boas técnicas e novas tecnologias, mas ela não vai nos fazer substituir a atitude de obediência à autoridade.
Isso só se adquire pelo uso próprio e autônomo da razão, o que inclui a faculdade de criticar o fundamento das autoridades naturais e isso envolve até mesmo a autoridade dos cientistas.
Natalia Pasternak, Carlos Orsi e os demais do Instituto Questão de Ciência fizeram um ótimo papel ao defender criteriosamente a vacinação contra o negacionismo. Eles o fizeram usando fontes razoáveis, traduzindo achados científicos e ponderando a ciência e a política necessária para enfrentarmos aqueles tempos de infortúnio. Esperava-se, portanto, muito mais quando vieram à luz com o recente livro intitulado “Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério” (editora Contexto).
De fato, falar sobre ciência ou saberes específicos sobre os quais nos dedicamos, acompanhando a crônica diária dos acontecimentos, já é uma dificuldade em si. Quando seu público não fala a linguagem especializada (o que Kuhn chamou de léxico científico), a dificuldade aumenta.
O problema vai se multiplicando quando pensamos na expansão do número de saberes, logo de línguas, que devemos abarcar se queremos introduzir alguém não apenas na Biologia ou na Física, mas nas ciências em geral, pois afinal é daí que ela extrai parte de sua autoridade.
Ou seja, qualquer um pelo uso universal da própria razão poderia ter acesso se … falassem a língua.
Assim como qualquer um tem acesso a Dostoievski ou Murakami se falasse russo e japonês.
Por isso existem tradutores.
Por isso existem divulgadores científicos.
No caso da Psicologia a primeira função do divulgador científico é mostrar que os sofrimentos psicológicos e as formas de enfrentá-los não são uma “bobagem”. Ou seja, que a realidade é de nossos estados psíquicos, de nossos limites, coerções e determinações. É tão “real” quanto qualquer outro fenômeno.
O senso comum tenta frequentemente reduzir determinações psíquicas a atributos morais, falta de vontade ou de fé ou simulação. Portanto, quando alguém afirma que uma de suas linhas mais representativas, pelo menos no Brasil, não passa de bobagem e que não deve ser levada a sério, isso reforça preconceitos arraigados em nossa cultura.
Endossa que ainda hoje em posto de saúde pessoas em crise ou em estados agudos de sofrimentos sejam recebidas como alguém que quer “chamar atenção”, está fazendo ou tendo um “piti”, é uma “histérica” ou que tudo isso não passa de algo “psicológico”, como se o psicológico fosse uma bobagem que não deve ser levada a sério. Portanto, compreende-se a dificuldade de falar em nome de todas as ciências e a tentação —que não é um fato novo— de imaginar a existência de uma língua-mãe, original, única e antecessora de todas as línguas científicas particulares.
Esta seria a ciência, cuja condição de reconhecimento seria a prática do método, assim como a crítica dos conceitos. Ambos seriam assim traços característicos e universais da ciência, procedimentos de investigação empíricos ou teóricos e procedimentos de transformação pela dúvida, pela busca de melhores explicações e modelos, pelo interesse em cruzar achados das variantes de método com os conceitos cada vez mais rigorosos e precisos, mas também de maior alcance e integração entre disciplinas.
Mas neste quesito básico o texto de Pasternak e Orsi falha tanto por uma avaliação internalista (sob os próprios critérios de cientificidade que querem defender), quanto externalista (pela forma como apreciam um saber diferente das suas áreas de formação específicas).
Os argumentos externalistas são os mais comuns, pois postulam que as ciências devem ajustar seus métodos aos objetos a que se propõem. Métodos adequados para objetos biológicos podem ser inúteis para entender processos sociais como a linguística, a história, o que chamamos de ciências humanas.
Além disso, a ciência neste sentido deve se entender como um empreendimento humano, ou seja, como instituições, grupos universitários, jornais científicos que fazem desta prática não apenas a produção inspirada de um saber neutro, mas também atravessado por interesses humanos.
Portanto, não foi a primeira vez na história que um grupo tentou se apossar da língua-mãe das ciências dizendo que temos as prerrogativas de método, as regras gerais do jogo e temos o poder inclusive de definir —como síndicos do condomínio da ciência— quem está dentro e quem está fora.
Ora, definir o que é ciência em geral —e o que não é— não é um empreendimento científico, mas filosófico, mais conhecido como epistemologia ou teoria da ciência.
Senão, duas tentações anticientíficas aparecem.
A primeira é o convencionalismo normativo, ou seja, faz ciência quem tem as credenciais autorizadas para ser assim nomeado pelo Estado ou pela sociedade.
Neste caso somos levados a comparações inadequadas.
Por exemplo, se eu sou professor titular em Psicanálise e Psicopatologia da Universidade de São Paulo, publiquei mais de 100 artigos em revistas científicas, mais uns tantos livros, fui a mais de mil “eventos” científicos, tenho um Lattes cuja pontuação no Google Scholar é (i10)= 77 e (h) 29 e Natalia tem (hi)= 8 e (i10)=3, eu sou mais “científico que ela”? Claro que não!
Se Carlos Orsi, que veio da literatura de ficção científica, que aparentemente não tem Lattes ou métrica de desempenho como pesquisador em ciência ele não deve se pronunciar sobre ciência? Claro que ele pode falar e trazer seu entendimento!
Qualquer um pode e deve fazê-lo, porque a ciência é um jogo que se joga com a razão não apenas com títulos, credenciais e normas.
Se fosse para ser por convenção, é cientista quem tem grupo de pesquisa no CPQ, participa de pós-graduação, pontua em revistas científicas, vai a congressos científicos, dá aulas em pós-graduações, e assim por diante, como fazem centenas senão milhares de pesquisadores brasileiros em diversos departamentos, não só em psicologia.
Mas imaginem agora que os recursos para financiar pesquisa andem escassos (imagine também que isso pode não ser uma imaginação). Posso levantar critérios normativos e convencionalistas para dizer: meus critérios de definição de ciência devem ser seguidos, mais do que os seus. Muito ruim, certo?
Ignoro que são áreas distintas, dificuldades e exigências diferentes para publicação, universos epistemológicos parcialmente incomensuráveis, comunidades de pesquisas e históricos institucionais distintos.
Usar a chave normativa ou convencionalista para comparar ciências ou disciplinas como Psicologia e Biologia é uma temeridade se não olhamos para as diferenças assim como para as semelhanças.
Desde sua origem —e qualquer estudante de Psicologia sabe disso— nossa disciplina teve um pé na biologia e outro na sociologia, com um método experimental, mas também com um projeto de “psicologia dos povos” (Wundt).
Ora, a segunda forma de pensar a ciência é externalista, ou seja, em vez de advogar que existem diferentes ciências —em contexto histórico social, disciplinas definidas pela relação com objetos diferentes, que demandam métodos diferentes—, posso dizer que sim, temos regras comuns, mas elas não devem ser vertidas em expressão de epistemologias particulares, caso contrário o risco de redução e descaracterização da outra área é muito grande.
Esse erro de perspectiva parece ter ocorrido no livro em questão. Em parte, isso decorre de um problema real. Acompanhar muitas áreas, assim como falar (bem) muitas línguas é muito difícil. A tentação a “forçar o outro a falar a sua língua” é proporcional a abstrair sua versão das regras do jogo.
Isso aumenta ainda mais quando a intenção é diminuir a autoridade do outro. Isso pode “subir a cabeça” quando a pessoa alcança um certo nível de representatividade social quando o assunto é ciência.
Considerando tudo isso, o livro fica ainda pior, pois tentamos avisar não só nesta coluna, mas também em uma série de artigos e vídeos de resposta ao trabalho do Instituto Questão de Ciência na área da Psicologia, dos erros e imperícias cometidos não apenas do ponto de vista da psicanálise, mas do ponto de vista da “língua geral” da ciência.
Meu colega Rogério Lerner apresentou listas de pesquisas científicas em psicanálise, assim como eu, mas infelizmente o capítulo sobre psicanálise saiu com o mesmo conjunto de erros, inconsequências, exageros e imperícias que nenhum cientista é capaz de aceitar.
Ou seja, temos um erro do qual os autores foram devidamente informados, mas não se preocuparam em corrigir.
Aqui a gravidade não é mais desculpável.
Errar inadvertidamente é uma coisa, insistir na ausência de razões, desconsiderando avisos é imprudência, negligência ou imperícia científica.
Na próxima coluna, vamos ver mais de perto algumas afirmações do livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi para desvendar alguns vieses em relação principalmente à psicanálise.
Christian Ingo Lenz Dunker é um psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e youtuber.
O professor Christian Dunker foi convidado pelo Instituto Norberto Bobbio para contar 4 lições de psicanálise. A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.
As “Cinco Lições de Psicanálise” constituem um texto com uma reunião de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 -1939) em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts. Nessa conferência, Freud busca apresentar, para um grupo não especializado, os principais conceitos da teoria que desenvolveu neste período. Inspirada por essa ideia, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou no dia 9 de janeiro de 2023, com o Prof. Christian Dunker (USP) sobre suas próprias lições de psicanálise.
Lição número 1
O texto ” Cinco Lições de Psicanálise” foi a porta de entrada pela qual eu comecei a ler psicanálise. Inclusive, muita gente que estuda esse assunto começou por esse trabalho muito popular. É interessante como ele possui vários ingredientes que falam sobre uma psicanálise para o nosso tempo, à altura da nossa subjetividade. Isso é importante porque há formas de psicanálise anacrônicas, que operam sobre parâmetros definidos no século XIX ou que confirmam preconceitos e moralidades já obsoletas. Mas vamos lembrar que essa conferência aconteceu nos Estados Unidos, então para que Freud pudesse contar suas lições ele saiu de seu lugar natural, a cidade de Vienna.
Isso é significativo porque, no fundo, Freud precisou falar com o outro em uma língua que não dominava. De fato, ele se sentia meio estranho quando chegou no porto de Boston e se deparou com uma banda tocando para receber o “grande pensador autríaco”. Reza a lenda que ele comentou com Carl Jung e com Sándor Ferenczi: “os americanos estão pensando que vamos salvar o mundo, mas estão enganados. Estamos aqui para trazer algo que vai desmontar e tornar a coisa mais crítica, mais conflitiva”.
A minha primeira lição está relacionada com esse contexto. Para estudar psicanálise temos que gostar do estrangeiro, do outro e da sua língua. Ou melhor, é preciso falar a língua do outro, ser capaz de simpatizar com formas de vida diversas e sair de si mesmo. Aquele que acha que vai aumentar o tamanho do seu eu se restringindo a si está agindo errado. Na verdade, essa pessoa vai criar uma espécie de regime. A psicanálise vai te convidar ao encontro com seus outros.
Lição número 2
A segunda lição demonstra a importância da psicanálise no mundo em que vivemos pois, no fundo, ela é uma experiência metódica, controlada, abrigada, protegida de crise auto induzida. Você pode até pensar que está tão bem, mas o processo psicanalítico vai colocar em cheque os seus amores, seus ídolos, suas identificações, suas fantasias e tudo o que você acha a seu respeito. E se tudo der certo, no que você vai se transformar? Em um viajante que não precisa mais de malas e sacolas, pois não precisa levar consigo tudo para se garantir e se defender do outro na viagem da vida. É importante reduzir essa bagagem, esse conjunto de coisas que a gente carrega nas costas e que cansam a gente: as decepções, frustrações e expectativas. Entender que essas coisas fazem parte é o que você vai ganhar entrando em crise.
Mas, de brinde, vem outra facilidade, que é diminuir o custo subjetivo para viver. Assim, podemos nos perguntar: quanto o outro sofre para fazer aquilo que faz tecnicamente tão bem quanto você? Quando o outro se relaciona com algo com uma espécie de andamento opressivo, quando ele se joga em uma situação se demitindo do seu próprio desejo? Tudo isso implica em um custo subjetivo mais alto do que precisaria. E o custo subjetivo já é alto por excelência porque a vida não é exatamente um passeio de flores. Para aquele que é mais neurótico, viver equivale a uma viagem cheia de malas, como se abelhas picassem o tempo inteiro sua cabeça, dizendo: “você é inadequado, você não fez o que deveria, você não está a altura de si mesmo, etc.”.
Portanto, nessas condições, para continuar caminhando o custo é muito alto. Para ir em frente, o custo subjetivo das suas escolhas, dos seus fracassos e dos seus desencontros é muito alto. A psicanálise, ao criar uma crise controlada, ensina que a gente pode viver em crise; tanta segurança já não é mais necessária. Em geral, todos nós temos nossos temores, que nos chantageiam mais do que é preciso. Costumamos dizer que o neurótico é um pouco covarde, não covarde no sentido heróico, mas consigo próprio porque a vida implica tomadas de decisões que muitas vezes são incertas mesmo.
Lição número 3
Nas conferências de Freud, em que leciona suas Lições, em um dado momento ele utiliza uma boa metáfora. Ele está em um auditório cheio de gente falando, quando aparece alguém que começa a bater na porta querendo entrar. Essa pessoa começa a fazer perguntas e interromper a todo instante o orador, tornando-se desagradável. O que você faz? Você expulsa ele, põe ele para fora, e lá ele atrapalha ainda mais. São os sintomas. O palestrante é o Eu, os outros são o auditório e esse alienígena representa nossos desejos, aquilo que a gente nega em nós mesmos.
Nessa metáfora, Freud diz que o neurótico adora um condomínio, ou seja, os lugares onde só tem gente igual a ele. Mas talvez seja melhor admitir esse estrangeiro dentro, talvez seja melhor baixar o muro e abrir as portas porque a conferência pode ser muito mais interessante com a presença do outro. Pelo menos, essa é uma opção melhor do que ficar brigando com aquilo que quer entrar.
Ou seja, não expulse pela janela da frente aquilo que vai entrar pela janela de trás. Não ache que a vida é um método pelo qual você vai encontrar ordem. Não é só obedecer para resolver tudo. A psicanálise vai se opor a essa vida feita de espelhos, que sugere que todo mundo é como você.
Lição número 4
Quando chegou nos Estados Unidos, Freud precisou falar a língua do outro. Isso é interessante porque ele tem uma mente muito empática, capaz de utilizar a linguagem para se comunicar. No mundo de hoje a gente desaprendeu a escutar, a escutar aquele que está batendo na nossa porta querendo entrar. Mais ainda, desaprendemos a escutar nós mesmos.
Então a psicanálise ensina a capacidade de escutar, o que costuma ser um grande negócio para advogados. Todos os advogados precisam escutar seus clientes antes e durante sua estadia na justiça reparatória, na medição ou na arbitragem. É notável como o direito se aproxima de uma prática de escuta de conflito. E se você acha que será possível ter acesso aos conflitos do outro sem jamais interferir nos seus, é melhor que o advogado troque de profissão. Portanto, o trabalho de formação para a escuta é algo que está presente em Freud e, na minha opinião, é absolutamente faltante e desejável na nossa situação contemporânea.
Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade, O palhaço e o Psicanalista e Psicanálise e Saúde Mental, disponível aqui.
O ódio é um afeto e como tal tem direito a plena cidadania entre outros afetos, emoções e sentimentos.
Daí que seja vã e, no limite, perniciosa toda tentativa de eliminar afetos, principalmente quando olhamos para nossa história de perseguições a afetos de extração sexual, ou aos afetos intensificados, tais como:
A soberba (orgulho excessivo);
A avareza (apego excessivo a bens);
A inveja (geralmente traduzida pelo desejo de impor tristeza ao outro);
A gula (desejo exagerado de comer ou beber);
A luxúria (apego demasiado aos prazeres);
E finalmente a ira, ou seja, ódio furioso, que ultrapassa certos limites, geralmente traduzidos pela ofensa, desrespeito, agressão ou violência.
Vê-se assim que os pecados chamados capitais são apenas uma indicação que dá continuidade à concepção aristotélica de que a virtude está entre dois vícios, ou dois exageros.
Pouco se discute, mas nesta mesma linha se poderia inferir a existência de outros pecados capitais, não do exagero, mas de inibição ou da falta de intensidade.
A falta de autorrespeito, ou de amor-próprio, na acepção de Rousseau é o oposto exagerado do orgulho e da vaidade.
O desperdício é a falta de cuidado com os bens.
A inveja “boa” apareceria quando entendemos que a inveja é apenas um outro nome para o desejo, o desejo de avançar rumo a algo ou alguém em que localizamos nossos exemplos, heróis e ideais.
A anedonia, principal sintoma de depressão, nada mais é do que o excesso da falta de luxúria.
Assim como a anorexia pode ser um nome para a falta de gula.
Mas como chamar então a pessoa que tem um déficit crônico da capacidade de experimentar ódio?
Sangue de barata, complacente ou leniente não são de fato boas opções porque elas podem indicar apenas a incapacidade de orientar seu ódio para o outro, cujo sinônimo possível seria a covardia.
Mas isso não é verdade, nem na semântica da palavra nem na lógica das relações.
É certo que nossa moralidade contemporânea lida muito melhor com os excessos sexuais do que, por exemplo, a exageração do ódio e da hostilidade. Disso somos levados à existência de uma cultura crescente do que Lacan chamava de amódio (hainamoration), pela qual o amor converte-se em ódio justificado, geralmente combinado com identificações coletivas, mas também com combinações ligadas ao sexo, como no clássico “bom uso erótico da cólera”.
Quero crer que isso acontece por um motivo genérico que chamo de “doping de afetos”, ou seja, o ódio é um afeto que desperta certos efeitos sobre o vivente: ficamos mais presentes, mais atentos, mais dispostos para a ação e mais concentrados quando estamos com ódio.
Pense naquele sujeito “possuído” por um videogame de ação, envolvendo tiros, assaltos e morticínios e como eles nos envolvem, como se estivéssemos vivendo um thriller de ação e combate.
Ora, o componente “motivacional” do ódio como agressividade transformada foi descoberto há muito tempo pelos departamentos de recursos humanos, particularmente sensíveis à noção de “capital humano”.
Ou seja, criar um clima de ódio, inclusive de ódio contra o chefe, contra a concorrência, contra seu colega de baia, ódio contra quem quer tirar seu emprego, se você não performar direito, que pode te avaliar mal na próxima reunião de feedback, que pode te envolver numa falsa aliança no próximo BBB gerencial, tudo isso “é do jogo” e foi naturalizado como receita básica onde mais ódio equivale a mais performance, tal como teria sido imortalizado por Gordon Geeko em “Wall Street” (1987) e sua sequência “Wall Street – O Dinheiro Nunca Dorme” (2010), ambos dirigidos por Oliver Stone.
Lembremos que Michael Douglas era o protagonista obsceno do filme cujo subtítulo é “Money Never Sleeps” (“O Dinheiro Nunca Dorme”), alusão que corrobora a ideia de que indução de ódio e principalmente a autoindução de ódio permite jornadas mais longas de dedicação, sem cansaço, como se fossemos retirando forças que não sabemos direito de onde elas emanam, quando nos consideramos em meio a uma guerra, batalha ou luta. O contraponto aqui é naturalmente “Clube da Luta”, onde Edward Norton torna-se dependente de um curioso jogo onírico de auto-hetero-agressões.
Se o que chamamos mais recentemente de “discurso de ódio” não se reduz a eventos agressivos de externalização crítica, instrumental ou errática de ódio, mas a um tipo específico de dependência, na qual prazer e dopagem concorrem para criar protagonismos, ainda que imaginários, podemos supor a existência de estratégias de redução de danos, análogas ao que as melhores práticas consensuadas para reduzir efeitos nocivos das dependências.
Se a comparação é aceitável, isso sugere que no discurso de ódio ocorre uma espécie de perda de modulação social deste afeto, uma desregulação do seu sistema de mediações.
Isso pode ocorrer em função de um efeito digital muito simples: monetização.
Se o ódio engaja, coletiviza e intensifica, ele obviamente se traduzirá pela elevação do nível de atratividade digital.
Claro que a violência ostensiva e obscena causará repulsa a quem for apresentado a ela, mas isso significa apenas que a dosagem foi elevada demais para o começo do percurso.
Disso se pode ver como os algoritmos fazem sua parte na reposição dos afetos. Neste quesito, o ódio e o sexo se diferenciam dos outros cinco “afetos cardeais”, pois eles escalam de um gradiente incomparável com, digamos, outros hits parade digitais como: causação de inveja exibicionista, sorvete ostentação, orgulho humilhação ou consumo padrão devastação.
Por isso a luta contra o discurso de ódio guarda proximidades com as estratégias públicas para enfrentamento de dependências em geral, não apenas as químicas, mas pensemos nas dependências de jogo (eletrônico ou não), de pornografia (digital ou não) e de reconhecimento do outro (narcísica ou não).
Ora, esta fissura (craving), causada pelo ódio, escala na razão direta em que o outro se “inumaniza”, em uma pessoa-tipo, e na razão inversa pela qual o próprio sujeito se empodera pelo anonimato.
É a figura emergente do “ninguém”, equivalente do “todo-mundo” que age sob perfil falso, nome fantasia ou subterfúgio de responsabilidade ou implicação.
Por isso também em meio ao ataque de ódio aquele que revela aspectos pessoais do ofensor —sua família, suas postagens nada obsequiosas, seu local de trabalho ou sua comunidade de referência— costuma ser vigorosamente protegido pela turba.
Por isso responder ao discurso de ódio, especialmente quando a reação é “uma oitava abaixo” ou “alguns gramas de parcimônia a menos” costuma despertar ainda mais raiva.
É o caso também do pedido de desculpas que será interpretado com tentativa de “passar o pano” e neutralizar a verdadeira intenção do discurso, ou seja, gozar através do ódio.
Como se vê, o discurso de ódio é uma forma de “sair de si” e deixar de responder por suas próprias palavras. Elas se tornam impróprias, impessoais e logo inconsequentes.
Mas o pior é que o anonimato suspende o circuito de regulação de afetos, pelos quais meço minhas palavras, pondero meu tom ou avalio as implicações do que digo. Afinal é isso que define um discurso e o diferencia da simples fala, alocução ou pronunciamento, a saber, o efeito de retorno do que se diz sobre aquele que fala em uma generalização tendente ao esquecimento pelo anonimato.
Ser autor é condição para possuir autoridade, logo poder perdê-la.
Daí que o antídoto que coloco aqui em discussão chame-se autoria ou perda do anonimato.
Aquele que usa o anonimato, tolerado largamente pelas grandes companhias digitais, facultando e estimulando que menores de idade participem sob nomes falsos, premiando perfis falsos para agredir outros, possa perder sua condição de anonimato, lhe sendo facultado participar do debate público, presumido em certas configurações digitais apenas e tão somente com seu nome próprio.
Ninguém está sendo propriamente punido por usar o próprio nome na esfera pública, mas nos acostumamos de tal maneira com as facilidades presumidas do anonimato digital que nos esquecemos de seus efeitos deletérios, psíquicos e sociais.