“Falamos de uma psicanálise que se afasta do dispositivo disciplinar e se aproxima da dimensão trágica da existência.”

Por Christian Dunker e Fuad Kyrillos Neto.

Morador da região atingida pela hidrelétrica de Belo Monte e suas anotações sobre a vida destruída. Foto: André Nader

A trajetória do livro “Psicanálise e Saúde Mental”, lançado em 2015, foi acompanhada e mantida pela ampla acolhida entre pesquisadores e trabalhadores de saúde mental. As dezenas de citações em dissertações, teses e artigos acadêmicos e as reiteradas solicitações de profissionais da saúde pública por uma nova edição deste trabalho demonstram a relevância de seu conteúdo para os interessados no campo da saúde mental em seu diálogo com a teoria psicanalítica. 

Do lançamento da primeira edição até o presente momento, nosso país viveu importantes retrocessos no campo da saúde mental. A Nota Técnica n. 11, de 2019, assinada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas esclarece uma série de mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas assevera a ampliação da RAPS, que passa a contar com mais serviços, entre eles, os hospitais psiquiátricos, cuja busca pelo fechamento configura um dos princípios basilares da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e as comunidades terapêuticas, com seu histórico recente de violação dos direitos humanos fartamente documentado em relatório elaborado pelo Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo. 

A Nota Técnica apresenta um deslocamento significante em sentido contrário aos princípios das Reformistas. Ela anuncia a revogação dos termos “rede substitutiva” ou “serviço substitutivo”, visto não existir mais apoio do governo brasileiro à extinção dos manicômios. Ela incentiva o atendimento ambulatorial em serviços para os quais convergem muitos usuários, minando, desta forma, o caráter territorial dos serviços e possibilita, ainda, o retorno do financiamento pelo Ministério da Saúde do questionável tratamento por eletroconvulsoterapia. 

Em diálogo com este cenário de desmonte do processo político que culminou com a Reforma Psiquiátrica, o capítulo incluído nesta edição nos recorda sobre os efeitos deletérios das práticas manicomiais presentes nos grandes hospícios brasileiros e seus ecos, ainda presentes, nos serviços inspirados nos ideais da Reforma Psiquiátrica, principalmente em uma cidade com longa trajetória hospitalocêntrica. Traçamos um breve percurso histórico e crítico sobre o centenário Hospital Colônia de Barbacena, visitado por Basaglia em 1979 e por ele nomeado de “campo de concentração nazista”. 

A reflexão qual psicanálise para qual saúde mental, que apresentamos na primeira edição deste livro é imprescindível para a resistência a este estado de coisas. A transformação da saúde mental em um condomínio, gerido pela diagnóstica da medicina baseada em evidências impede a circulação da palavra. Reafirmamos que a manutenção do sujeito em seu meio de pertença, possibilitada pela rede substitutiva, oportuniza o imprescindível resgate da clínica. Nos moldes hospitalocêntricos, a clínica enquanto acolhimento da loucura através de um operador de escuta era impraticável, tendo em vista o contexto opressor do hospital psiquiátrico. Nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os usuários circulam pela polis, estão em contato com a alteridade. É na dialética com o outro que a linguagem se constitui como fundamental na mediação. É a linguagem como campo simbólico que compele o sujeito e possibilita o surgimento de sua singularidade. E aqui surge a possibilidade de uma práxis clínica que desvele o sentido do delírio para aquele que sofre, por intermédio de um discernimento da forma singular do sujeito para aquilo que lhe parece alheio. Falamos de uma psicanálise que se afasta do dispositivo disciplinar e se aproxima da dimensão trágica da existência. 

Christian Dunker é psicanalista, professor, youtuber e trabalha em diversas áreas das ciências humanas. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, atualmente coordena, ao lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip).

Fuad Kyrillos Neto é professor, psicanalista e pesquisador. Além de temas relacionados à saúde mental na perspectiva da psicanálise, pesquisa a inserção da teoria psicanalítica no Brasil e suas aplicações em relação às práticas sociais hegemônicas. Interessa-se, ainda, pela temática do poder e política do psicanalista no que concernem às rupturas e às discordâncias no interior da tradição lacaniana da psicanálise.

A segunda edição ampliada do “Psicanálise e Saúde mental” está disponível em pré-venda e será lançado dia 26 de setembro em Porto Alegre. Clique aqui para adquirir.