Que bobagem, Pasternak! Livro erra sobre psicanálise em 9 pontos – Parte 2

Texto originalmente publicado na coluna do psicanalista Christian Dunker no blog da Uol Tilt

Na coluna anterior discutimos a função e a importância da divulgação científica no Brasil, necessidade que se tornou ainda mais patente depois da maneira como enfrentamos a crise mundial de covid-19, bem como a facilidade que estamos apresentando, em termos comparativos, para lidar com fake news e demais manipulações acríticas de informação, saber e conhecimento.

Por isso a divulgação científica deveria, sobretudo, seguir as regras da própria prática da ciência, pois desta maneira não apenas se fala sobre o que é ciência, mas se mostra, em escala reduzida e adaptada, como procede um cientista.

Ou seja, como ele levanta perguntas, trata de reunir evidências, como ela assume compromisso com métodos que tornam o caminho de sua investigação capaz de ser percorrido por outros e, no limite, por qualquer um.

Reconhecer peculiaridades do objeto, cruzar achados de diferentes disciplinas, combinar estilos de demonstração são procedimentos básicos naquilo que anda em rarefação crescente na cultura educacional e no debate público brasileiro: a chamada ciência básica, aquela que ensina ciência transversal, história da ciência e as abordagens elementares sobre os fenômenos da natureza e das humanidades.

Ora, para mostrar como não se deve fazer divulgação cientifica, tomemos como exemplo o livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi (“Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério”, editora Contexto) naquilo que ele toca a psicanálise, para mostrar como vieses e distorções de pensamento podem dificultar a formação do pensamento científico, naquilo que ele tem de mais próximo da filosofia, ou seja, a capacidade de levantar dúvidas e criar hipóteses prescindindo do recurso à autoridade, ao dogmatismo e às crenças constituídas.

Examinemos então afirmações que permitem elucidar tais vieses:

1. Eficácia da psicanálise

A Psicologia científica cobra evidências mais robustas para justificar alegações teóricas quanto a sucessos clínicos”

p. 186

Há centenas de estudos controlados mostrando a eficácia da psicanálise, das Terapias Psicodinâmicas e das Psicoterapias Psicodinâmicas de Longo Prazo, bem como inúmeros estudos neurocientíficos que corroboram a psicanálise.

Há meta-análises que comprovam a eficácia igual ou maior do que as chamadas terapias empiricamente sustentadas.

Evidências de eficácia e eficiência da psicanálise e de suas manualizações como terapia psicodinâmica foram apresentadas.

Dizer que os critérios de confiabilidade dos testes de regularidade estatística reduzem o nível de confiabilidade é uma falácia pois prova que:

A psicanálise apresenta evidências (que são testáveis ao nível da discussão de qual programa de qualificação deve ser usado);
Ela não se recusa a prestar contas ou se justificar cientificamente;


Outras psicoterapias também fracassam quando se eleva os níveis de exigência metodológicos e;


Isso acontece em muitas e na maior parte das pesquisas em medicina, como declara o Instituto Cochrane.


Portanto, estamos aqui diante do viés de parcialidade.

Em vez de trazer o dissenso científico, as hipóteses concorrentes e a controvérsia que move o debate científico, apresenta-se apenas uma versão das evidências, julga-se evidências de forma desigual e gradualmente se infiltra nas afirmações científicas acordos, consensos ou normas criadas para qualificar e hierarquizar a força das evidências.

2. Conhecimento e antiguidade

“Desde os anos 1950 a psicanálise é dada como exemplo de pseudociência”

Nenhum conhecimento é mais verdadeiro ou mais falso pela sua antiguidade.

Os Elementos de Euclides e a Lógica de Aristóteles continuam eficazes para o enfrentamento de inúmeros problemas, ainda que a matemática e a lógica tenham avançado em complexidade e alcance.

O uso de palavras em ciência deve cuidar criteriosamente do fato de que muitas vezes as mesmas palavras possuem um sentido corrente e popular, muito diverso do uso técnico conceitual.

O conceito de pseudociência, proposto por Popper, emerge no contexto do esforço deste autor para demarcar o conhecimento científico daquilo que pode ser considerado, naquele momento, como não científico.

Com o passar do tempo a palavra pseudociência adquiriu um sentido negativo, de impostura, má-fé, que nem sempre está contido no conceito original.

No entanto, a principal característica da pseudociência para Popper é que seus enunciados não são falseáveis, ou seja, eles não podem ser contraditados por experiências empíricas ou examinados por sua consistência lógica.

Ora, um autor como Grünbaum, curiosamente citado pelos autores em questão, mostrou em 1984 que a psicanálise comporta falseamento de proposições. Para este autor existem argumentos circulares (tally arguments) que são problemáticos no interior da psicanálise, e que ela deveria se esforçar por produzir evidências extraclínicas.

De fato, um pesquisador americano chamado Schevrin [1] apresentou uma evidência deste tipo, com a qual Grünbaum consentiu quanto a sua pertinência.

Um divulgador científico não pode desconhecer fatos para apresentar afirmações contundentes.

Juízos desqualificativos devem ser evitados.

3. Casos clínicos de Freud

“Os casos trazidos por Freud estão distorcidos”

p. 189

“Os casos clínicos de Freud são imposturas do início ao fim”

p. 190

Desde os anos 1980 vários pesquisadores em história da psicanálise como Masson, Sulloway, Rozen, Swales e Crews revisitaram os casos clínicos de Freud e, conversando com ex-pacientes, inclusive casos não publicados, trouxeram um retrato de como Freud trabalhava efetivamente.

Vários destes relatos continham contradições com o que Freud dizia que devíamos fazer na condução e tratamentos. Isso tornou os casos clínicos um material pouco rigoroso e impreciso para avaliar a prática psicanalítica.

Mas seria justo examinar relatos clínicos de cem anos atrás com os mesmos padrões de rigor e fidelidade que exigiríamos hoje?

O trabalho destes autores esteve ligado a uma grande onda de críticas à psicanálise que tomou conta principalmente dos meios de comunicação norte-americanos nos anos 1990.

Curiosamente, não se encontrou nessa devassa nenhum sinal de assédio, intrusão aproveitadora na vida de pacientes ou faltas éticas mais graves.

Casos clínicos devem ser lidos como paradigmas e exemplos, não como generalizações indutivas. Muitos são modelos de fracasso, não de sucesso ou prova de eficiência.

Não é por pesquisas randomizadas com duplo cego e placebo que a psicanálise construiu seu sistema de métodos, técnicas e transmissão de conceitos.

Isso deveria ser levado em conta na apresentação ou no ajuizamento de suas evidências.

4. Religiosidade da psicanálise

“O projeto científico a princípio legítimo [da psicanálise] degenerou em uma forma de religião secular”

p. 185

Não se apresenta nenhuma evidência científica sobre isso. Nenhuma pesquisa mostrando a não eficiência ou a religiosidade da psicanálise.

Mesmo se não existissem evidências, isso não equivale a evidências negativas, ou seja, a prova do que se está a afirmar.

Trata-se de uma opinião que cria um viés de contrariedade.

Isso parece ser a tônica de artigos sobre a psicanálise divulgados em Questão de Ciência com títulos como “Negacionistas que agora defendem a ciência”, “Conspiração do Inconsciente” ou “Ciclo Interminável de Confirmação da Pseudociência”.

O viés de confirmação apresentados por tais textos está abaixo da crítica.

O dogmatismo na exposição está acima do razoável e a ausência de argumentação é patente.

5. Ciências humanas

“[…] Se o método pelo qual a psicanálise foi construída não se sustenta, as humanidades também não se sustentam – incluindo História, Ciência Política, Linguística e Economia também não […] a psicanálise é o homem-bomba no prédio das humanas”

p. 185

Aqui salta aos olhos a mistura de desinformação, preconceito e generalização imprópria.

Há muitos outros métodos em ciências humanas. A psicanálise não é tão central assim e há muitas críticas dentro das ciências humanas à psicanálise.

Em resumo, não se deve criar espantalhos, nem conceituais nem políticos, para imaginar que assim é mais fácil destruí-los.

No debate de ideias é ruim, na divulgação científica é péssimo.

A imagem de um “homem-bomba” sugere que psicanalistas agem como terroristas, indiferentes ao debate científico, incapazes de apresentar razões e justificativas para o que fazem, além de serem nocivos.

O argumento sub-reptício é de que deveríamos eliminar “o homem-bomba” como forma de purificar as “ciências humanas” de sua falta de ciência, rigor e boa-fé.

Ora, a ideia de que as ciências humanas são um problema, quando elas não seguem padrões, normas e procedimentos das ciências ditas “duras” como as exatas, é conhecido como cientificismo, cientismo ou de forma um tanto imprecisa de “positivismo”.

Afinal se a história, a linguística, a sociologia, as ciências políticas, a teoria da literatura, a antropologia devem ser tornadas ilícitas, junto com a psicanálise, é porque elas não estão de acordo com este único pensamento convencional, normativo e coercitivo, como estamos vendo agora, chamado ciência.

Este tipo de juízo pode soar arbitrário para muitas pessoas, e isso nos faria entender por que tantas pessoas desconfiam da ciência e não estão dispostos a ceder a consensos como este.

Nesta medida este tipo de juízo cria um tudo ou nada. Ou estamos com a ciência, assim definida, ou estamos contra ela e somos “terroristas”.

A ideia de que se pode ser crítico, capaz de pensar e usar a razão até mesmo para refletir sobre os limites da ciência, como queria Kant, o inventor moderno da separação entre filosofia e ciência, passa longe neste ponto.

6. Erros conceituais

“A existência do inconsciente tem poder”

p. 188

“A evidência relativa aos fatos deve existir independente da teoria”

p. 189

“O conceito de repressão é problemático porque a memória não é armazenada em um hardware, reconstruções implicam a interferência de outras memórias”

p. 195

“Traumas (PSTD) não são memórias faltantes mas lembranças das quais alguém não consegue se livrar”

p. 196

“Transferência é dependência e submissão infantil ao analista”

p. 196

O inconsciente não é um fato, mas uma hipótese.

Sonhos, sintomas, atos falhos, esquecimentos, chistes são fatos aos quais esta hipótese se aplica.

Sua existência independe da teoria psicanalítica e ele é estudado pela psicologia, pelas neurociências e pela medicina muito antes da psicanálise.

Como Freud argumentou, psicanálise não é sugestão, nem influência. E o hipnotismo foi um método descartado explicitamente por Freud em 1897.

Transferência não é submissão, mas um meio de ajudar o paciente a sair delas.

Quem quer divulgar ciência ou anticiência não pode cometer erros conceituais tão elementares.

7. Biógrafo de Freud

“Crews, biógrafo de Freud, definitivamente não é um ótimo ponto de partida”

p. 188

Mostrei como Crews é um biógrafo tendencioso, isolado e divergente de outros biógrafos de Freud.

Um autor “fora da curva” que usa as 666 páginas de seu trabalho para mostrar que Freud usou cocaína por mais tempo do que ele disse que usou (o que parece correto), mas também que seu “desejo de possuir jovens virgens era incompatível com a conhecimento” e que ele teria abusado da irmã e tido um caso com a cunhada, sem qualquer evidência plausível para tais afirmações.

8. Enumerações

“O mundo é controlado por comunistas, marcianos ou pulsões inconscientes, instâncias confirmatórias e provas cabais”

p. 193

Enumerações como estas dominam o livro, que pretende ser um apanhado de práticas as quais não devemos dar valor, nem levar a sério, porque são “bobagens”.

A técnica de reunir adversários em grupos, para homogeneizar preconceitos e somar intolerâncias, não é de fato um procedimento científico, mas uma estratégia típica das retóricas de consumo ou das polarizações ideológicas.

Aqui, mais uma vez, encontramos exemplos “cabais” de como nossos autores sofrem do mal que pretendem erradicar.

9. Psicanalistas poderosos

“Como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular por um século, entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes?”

p. 193

“Os terapeutas que nos manipulam nas trevas”

p. 195

“Eu sei o que você, ou qualquer outro político, escritor, cineasta, povo ou civilização está pensando, melhor do que você”

p. 197

“A mulher que diz não, na verdade diz sim”

p. 194

“Os únicos pensamentos autênticos que a pessoa tem são os que lhe foram dados pelo psicanalista”

p.197

A psicanálise pode ter muitas insuficiências e limitações, mas reduzi-la a um espantalho feito de “lógica pueril” e “conspiração do inconsciente” é um desserviço epistêmico que realmente não se ajusta ao que qualquer psicanalista poderia reconhecer como uma representação minimamente fiel de sua prática.

Fazer bons retratos, modelos rigorosos ou representações fenomenologicamente consistentes do objeto que se quer criticar é um procedimento básico em ciência.

Dizer que psicanalistas impõem seu léxico, suas ideias e seu saber aos pacientes é algo que é clara e francamente criticada pela maior parte de seus autores.

Freud falava em busca de neutralidade, apresentava a psicanálise em contraste com a sugestão e criticava os métodos de influência.

Se há uma fonte para justificar este retrato onde está ela? Faltam evidências. Nenhuma delas, nem robusta nem preliminar, foi apresentada sobre este retrato.

Na próxima coluna, prosseguiremos com a análise do livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi e abordaremos como é possível avaliar as psicoterapias.

REFERÊNCIAS

[1] Beer, Paulo (2018) Psicanálise e Ciência. São Paulo: Blücher.

As 4 lições de Psicanálise, por Christian Dunker

O professor Christian Dunker foi convidado pelo Instituto Norberto Bobbio para contar 4 lições de psicanálise. A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.

As “Cinco Lições de Psicanálise” constituem um texto com uma reunião de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 -1939) em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts. Nessa conferência, Freud busca apresentar, para um grupo não especializado, os principais conceitos da teoria que desenvolveu neste período. Inspirada por essa ideia, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou no dia 9 de janeiro de 2023, com o Prof. Christian Dunker (USP)  sobre suas próprias lições de psicanálise.

Lição número 1

O texto ” Cinco Lições de Psicanálise” foi a porta de entrada pela qual eu comecei a ler psicanálise. Inclusive, muita gente que estuda esse assunto começou por esse trabalho muito popular. É interessante como ele possui vários ingredientes que falam sobre uma psicanálise para o nosso tempo, à altura da nossa subjetividade. Isso é importante porque há formas de psicanálise anacrônicas, que operam sobre parâmetros definidos no século XIX ou que confirmam preconceitos e moralidades já obsoletas. Mas vamos lembrar que essa conferência aconteceu nos Estados Unidos, então para que Freud pudesse contar suas lições ele saiu de seu lugar natural, a cidade de Vienna. 

Isso é significativo porque, no fundo, Freud precisou falar com o outro em uma língua que não dominava. De fato, ele se sentia meio estranho quando chegou no porto de Boston e se deparou com uma banda tocando para receber o “grande pensador autríaco”. Reza a lenda que ele comentou com Carl Jung e com Sándor Ferenczi: “os americanos estão pensando que vamos salvar o mundo, mas estão enganados. Estamos aqui para trazer algo que vai desmontar e tornar a coisa mais crítica, mais conflitiva”. 

A minha primeira lição está relacionada com esse contexto. Para estudar psicanálise temos que gostar do estrangeiro, do outro e da sua língua. Ou melhor, é preciso falar a língua do outro, ser capaz de simpatizar com  formas de vida diversas e sair de si mesmo. Aquele que acha que vai aumentar o tamanho do seu eu se restringindo a si está agindo errado. Na verdade, essa pessoa vai criar uma espécie de regime. A psicanálise vai te convidar ao encontro com seus outros.

Lição número 2

A segunda lição demonstra a importância da psicanálise no mundo em que vivemos pois, no fundo, ela é uma experiência metódica, controlada, abrigada, protegida de crise auto induzida. Você pode até pensar que está tão bem, mas o processo psicanalítico vai colocar em cheque os seus amores, seus ídolos, suas identificações, suas fantasias e tudo o que você acha a seu respeito. E se tudo der certo, no que você vai se transformar? Em um viajante que não precisa mais de malas e  sacolas, pois não precisa levar consigo tudo para se garantir e se defender do outro na viagem da vida. É importante reduzir essa bagagem, esse conjunto de coisas que a gente carrega nas costas e que cansam a gente: as decepções, frustrações e  expectativas. Entender que essas coisas fazem parte é o que você vai ganhar entrando em crise. 

Mas, de brinde, vem outra facilidade, que é diminuir o custo subjetivo para viver. Assim, podemos nos perguntar: quanto o outro sofre para fazer aquilo que faz tecnicamente tão bem quanto você? Quando o outro se relaciona com algo com uma espécie de andamento opressivo, quando ele se joga em uma situação se demitindo do seu próprio desejo? Tudo isso implica em um custo subjetivo mais alto do que precisaria. E o custo subjetivo já é alto por excelência porque a vida não é exatamente um passeio de flores. Para aquele que é mais neurótico, viver equivale a uma viagem cheia de malas, como se abelhas picassem o tempo inteiro sua cabeça, dizendo: “você é inadequado, você não fez o que deveria, você não está a altura de si mesmo, etc.”. 

Portanto, nessas condições, para continuar caminhando o custo é muito alto. Para ir em frente, o custo subjetivo das suas escolhas, dos seus fracassos e dos seus desencontros é muito alto. A psicanálise, ao criar uma crise controlada, ensina que a gente pode viver em crise; tanta segurança já não é mais necessária. Em geral, todos nós temos nossos temores, que nos chantageiam mais do que é preciso. Costumamos dizer que o neurótico é um pouco covarde, não covarde no sentido heróico, mas consigo próprio porque a vida implica tomadas de decisões que muitas vezes são incertas mesmo. 

Lição número 3

Nas conferências de Freud, em que leciona suas Lições, em um dado momento ele utiliza uma boa metáfora. Ele está em um auditório cheio de gente falando, quando aparece alguém que começa a bater na porta querendo entrar. Essa pessoa começa a fazer perguntas e interromper a todo instante o orador, tornando-se desagradável. O que você faz? Você expulsa ele, põe ele para fora, e lá ele atrapalha ainda mais. São os sintomas. O palestrante é o Eu, os outros são o auditório e esse alienígena representa nossos desejos, aquilo que a gente nega em nós mesmos. 

Nessa metáfora, Freud diz que o neurótico adora um condomínio, ou seja, os lugares onde só tem gente igual a ele. Mas talvez seja melhor admitir esse estrangeiro dentro, talvez seja melhor baixar o muro e abrir as portas porque a conferência pode ser muito mais interessante com a presença do outro. Pelo menos, essa é uma opção melhor do que ficar brigando com aquilo que quer entrar. 

 Ou seja, não expulse pela janela da frente aquilo que vai entrar pela janela de trás. Não ache que a vida é um método pelo qual você vai encontrar ordem. Não é só obedecer para resolver tudo. A psicanálise vai se opor a essa vida feita de espelhos, que sugere que  todo mundo é como você.

 

Lição número 4

Quando chegou nos Estados Unidos, Freud precisou falar a língua do outro. Isso é interessante porque ele tem uma mente muito empática, capaz de utilizar a linguagem para se comunicar. No mundo de hoje a gente desaprendeu a escutar, a escutar aquele que está batendo na nossa porta querendo entrar. Mais ainda, desaprendemos a escutar nós mesmos. 

Então a psicanálise ensina a capacidade de escutar, o que costuma ser um grande negócio para advogados. Todos os advogados precisam escutar seus clientes antes e durante sua estadia na justiça reparatória, na medição ou na arbitragem. É notável como o direito se aproxima de uma prática de escuta de conflito. E se você acha que será possível ter acesso aos conflitos do outro sem jamais interferir nos seus, é melhor que o advogado troque de profissão. Portanto, o trabalho de formação para a escuta é algo que está presente em Freud e, na minha opinião, é  absolutamente faltante e desejável na nossa situação contemporânea.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade, O palhaço e o Psicanalista e Psicanálise e Saúde Mental, disponível aqui.

VELAR PELO SENTIDO AUSENTE: PESQUISA E TESTEMUNHO, de Paulo Endo 

O percurso do livro “Vocês ainda estão vivos? Fragmentos sobre trauma, memória e herança”, não se revela apenas como pesquisa. Ele evidencia as ocultações e os impossíveis que a produção testemunhal desvela e mostra. Daniel Kveller, desde o início, trabalhou para compreender as marcas do traumático que o convocam, que se impõem na sucessão de um sentido invisível e redobram os vértices que demarcam o silêncio e o impossível. Sim, há o impossível, e ele se expõe como recusa, distância longínqua e oposição. Em busca dos avós sobreviventes, o autor encontra, na verdade, o ponto preciso onde, de algum modo, os perdeu. Nada a revelar, descobrir, conhecer: apenas a experiência compacta que se encerra num silêncio escuro que ninguém sabe onde termina. Este trabalho tem, portanto, o ritmo das coisas imperfeitas, suspeitas e claudicantes. Esmera-se, igualmente, no sentido da originalidade, composição, estratégia formal e realiza-se como feito acadêmico. Mas é bem mais que isso. Revela lentamente os caminhos que sustentaram a pesquisa como a forma possível e pessoal do autor de se imiscuir e se subtrair à sua própria história e se inscrever em seu próprio sintoma que – ele veio a constatar – herdou.


Este trabalho não cedeu a se converter em uma narrativa pessoal. Poderia. Mas buscou e quis ser gerador de um efeito de transmissão do próprio autor, que se reconhece então e também como herdeiro do holocausto. Há momentos em que essa busca pessoal intensíssima poderia se converter em viagens à Polônia, mais entrevistas, mais leituras e feituras de diários e relatos de pessoas que certamente seriam importantes de ouvir e conversar. Talvez numa outra vez, num outro tempo. Cada detalhe se recobre do tempo que autoriza a voz ou a inibe nos lugares secretos do coração. Ali onde enigmas desconhecem suas origens e seus destinos. 

As discussões psicanalíticas, algumas vezes muito esclarecedoras e dialogantes com o seu trabalho de perscrutação pessoal e histórica, outras vezes distantes, perturbadoras de um sentido unívoco, permanecem flutuando em busca da passagem que franqueará o ritmo, a pulsação perdida do tempo da voz e do sentido: o possível testemunho.

A inesquecível tela preta, imagem (im)potente que remete ao escuro da perscrutação, do voltar atrás quando pensamos ir adiante, da poeira dos tempos que escorre de nossas mãos, adquire um sentido interpretativo novo diante do qual essa pesquisa extrai uma de suas mais importantes consequências: no que tange ao que remanesce das catástrofes, tudo está por fazer. Não se trata aqui, evidentemente, apenas da história de seus avós, dos seus pais, de seus parentes, mas da tarefa que o autor se impôs de se inscrever numa história que, sendo tão sua, ainda não lhe pertencia de nenhum modo e nunca lhe foi concedida. Persiste no processo de perscrutação do autor a experiência sobre os impasses da transmissão: o lusco-fusco no qual as palavras ficam ilegíveis, as fotografias que revelam telas pretas e o esclarecimento que não se conclui, nem se realiza.

Seria a busca pelo lugar preciso em que se vislumbra o olhar que cegara seus avós para transformar o autor desse livro em estátua de sal. Transmitir o que fora atravessado pela ocultação e pelo impossível esquecimento endurece a pena e esmaece a tinta no papel. 

É assim que nesse trabalho também se dramatiza uma reivindicação, que em certos momentos ganhou contornos dramáticos, sobre o direito de escolher o que transmitir. Já que o que lhe foi transmitido também excedeu as decisões de seus pais e avós, Daniel conhecera sem saber e sobre isso decidiu escrever um livro, uma dissertação, objeto de transmissão inapagável.

Em dado momento, Daniel descreve uma frase de seu avô diante de suas insistentes perguntas: “me lembro como se fosse hoje”. No ontem da guerra, Daniel, o filho de seu filho, não era possível; mas no amanhã feito hoje, tornara-se um efeito possível do que não era possível, de modo algum, no tempo lembrado da dizimação. Ou seja, seu avô sobreviveu, casou-se, teve filhos e netos. Essa progressão temporal é o próprio evento daquilo que o autor representa e impõe: a presença de um vivo, de uma vida que em algum momento se imaginou impossível. O reencontro entre o sobrevivente e o neto reaparece então como efeito do traumático; como evidência cabal da vida que progrediu, vicejou, prosseguiu, retorna aos avós como buscando refazer o tempo de quando nenhuma vida lhes parecia possível. Não ter nada no mundo, ver-se completamente sozinha e depois ter filhos e netos certamente não fazia parte nem das mais ousadas fantasias de uma adolescente perseguida pelos nazistas.

O autor deste livro seria então, por um lado, a prova da superação (a terceira geração), mas carregaria o enigma do que não foi ultrapassado – a coisa, o trauma, a experiência que se aquece nos caldeirões do que não passa. A pergunta, todas as perguntas de Daniel, revelaram então uma impertinência (não pertencem a ninguém), uma ousadia, talvez: Como ousa você – filho do meu filho – em algum momento dado como impossível de existir, retornar agora reivindicando a lembrança de um tempo quando nenhum futuro podia ser imaginado?

Como numa visita a um memorial de qualquer catástrofe, a leitura deste livro revelará impotência. Nada está lá, por isso teremos de imaginar. Mas poderemos fazê-lo? Temos o direito de fazê-lo onde tudo foi limbo psíquico e suspensão espaço-temporal? Caminhar a esmo num lugar que não existe mais e cujo horror não pode e não deve ser imaginado nos revela fantasmas de uma impossível representação. Transmutam-se os passantes em rumores e os escuros em impossíveis deambulando cabisbaixos, impotentes ante a própria história que já não podem contar. Num memorial, os visitantes se convertem em quase afronta, impropriedade e evidência. Os passantes e turistas são o que jamais pôde ser imaginado, ocupando um lugar e um tempo que existe agora revelan- do dois impossíveis: o de imaginarmos o que se passou com os prisioneiros e o que, para os prisioneiros dos campos, era impossível imaginar, um campo repleto de seres viventes, livres e que ocupam aqueles espaços com curiosidade desatenta.

A “insistência desrespeitosa” do autor, portanto, traria a marca de uma impossibilidade de escutar ante alguém que não pode ou não quer dizer e, nesse caso, diferente do desrespeito, se trataria de uma impertinência. Um desejo de escuta que não pode ser reconhecido por aqueles que não desejam falar. 

Quando o autor se detém sobre o conceito de desmentido (verleugnung), revela discussões importantes retomadas nos estudos atuais sobre a perversão. Se na perversão há uma ambição de inventar um sexo, reinventar as regras do gozo, há ainda aí uma impotência que se depara com a impossibilidade de inventar o próprio gozo do qual o sujeito permaneceu refém. São as regras compartilhadas de como, quando e com quem se goza, o que impossibilita que o gozo seja mero efeito de violência e coito, como nos bichos. A perversão, nesse sentido, é a permanente tentativa de um gozar sem regras (ou burlando regras); a despeito de todas as regras que o perverso pode inventar para burlar as regras. O supremo objeto da perversão é gozar alienando-se do consentir de outrem, mas jamais com outrem: passagem só franqueada ao sujeito castrado. A experiência do outro fragmentado encontra aqui sua máxima expressão, isso porque a desmetaforização na posição perversa opera por um efeito metonímico, contudo sem metáfora possível. A parte pelo todo, mas a parte se fragmenta do todo e nela não se forja qualquer representação. 

“Matar judeus, mas preservar meus amigos judeus”, apresentada como prova de que não se é antissemita, é uma armadilha que se processa por duas operações. A primeira: amigos judeus não são parte dos judeus, e judeus não são meus amigos. A frase “tenho amigos judeus”, como contraprova do antissemitismo, significa apenas: não mato meus amigos. O amigo aqui anula os judeus. Como gozar com uma peça de roupa de alguém anula outrem como sujeito de desejo no fetichismo. É uma sinédoque sem metáfora. 

Daniel Kveller se apresenta como efeito de muitas clivagens. Entre alguém que sabe tudo, mas não pode dizer nada e como alguém que diz tudo, ou muito, sem saber de nada (o Pesquisador). Perdura aí o ostracismo que obscurece, esconde e protege.

Noemi Jaffe, escritora brasileira que fez seu percurso a Auschwitz com a filha para reencontrar a mãe que perdera, soubera e ignorara, diz: “quem nunca esteve no horror só pode fazer dramas”. Só podemos emular o que é, sobretudo, inimaginável empurrando o Real com as mãos. Real que força a passagem entre a experiência que encontrou morada no sintoma, assumindo, desse modo, um caráter sempiterno e para sempre, de algum modo, silencioso sob o peso das pedras. 

Pensamos: o Real é a mãe-impossível de fato, mas não apenas terrorífica – é também condição da palavra, do simbólico, do psíquico. Talvez isso nos ajude a pensar no Real do horror como aquilo que deve ser mantido a uma certa distância – como a mãe de fato ou como mãenancial. Por isso falamos que imensidões se criam em torno do trauma – talvez como um mãenancial traumático. Testemunhos, literatura, filmes, peças, músicas, dissertações, teses, memoriais, leis, declarações universais, cortes internacionais, direitos humanos etc. Tudo para poder bordear o impossível de dizer dizendo. 

De todo modo, fazer frente ao Real do horror e da catástrofe é confrontá-lo ou enfrentá-lo juntos. É um caminho a qual tantos se lançaram diante da espoliação, da violência, das catástrofes etc. Podemos fazê-lo, mas teremos de fazê-lo juntos. Sozinhos – como no terrível e belo relato da avó Miriam – nada foi e nem será possível. O juntos é generativo do confabular, do compreender, do considerar. Considerar (comsidere) é olhar juntos o impossível das estrelas, assim como contemplar (comtemplare) é olhar juntos o impossível do céu. 

Confrontar é também um modo de repartir o que na coisa é excesso, repartindo o que deve ser levado, guardado e o que deve ser largado. Aquilo que recusa toda simbolização pode também ser largado ao seu próprio imerecimento e à sua própria indiferença. Os que testemunham, ainda que seja uma única vez, talvez nos ensinem a fazê-lo. 

Bela coragem a que separou e reuniu Daniel, seus pais e seus avós num livro que sobreviverá ao tempo do extermínio de coisas, pessoas e palavras, juntando aqueles que demoraram a se (re)conhecer, apartados por um tempo que a duração saberá aproximar.

Paulo Endo é Psicanalista, professor e pesquisador no Instituto de Psicologia, na Pós-Graduação de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades e no Instituto de Estudos Avançados na Universidade de São Paulo. Coordenador do Grupo de Pesquisas em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados do IEA-USP. Membro da Memory Studies Association (Copenhagen), Unit Research on Dreams, Memory and Imagination Studies (Gdànsk) e dos Territorios Clínicos de la Memoria (Argentina). Vencedor do prêmio Jabuti em 2006 com a obra A Violência no Coração da Cidade: Um Estudo Psicanalítico. Autor de dezenas de artigos, capítulos e livros em publicações dentro e fora do Brasil. 

O livro “Vocês ainda estão vivos? Fragmentos sobre trauma, memória e herança”, do psicanalista Daniel Kveller, está disponível aqui!