A batalha feminista pela propriedade

A batalha pela propriedade que está ocorrendo em plena pandemia busca fabricar o que será o novo mundo pós-covid. Analisamos a nova aposta do capital sob a perspectiva feminista.

Por Luci Cavallero e Verónica Gago*

Foto do livro “Uma leitura feminista da dívida”, lançado em outubro de 2019 pela Editora Criação Humana.

O que acontece hoje é uma renovada batalha pela propriedade. No meio da pandemia? Sim. Portanto, sem fazer rápidas definições grandiloquentes do que está por vir, nos interessa​ pensar no que está acontecendo. Nos detenhamos em como o futuro está sendo fabricado. Nossa hipótese é que existem questões feministas fundamentais para intervir na discussão atual sobre a propriedade. Queremos propor três. Por um lado, estamos testemunhando um novo impulso da violência proprietária, justamente porque a propriedade está representada como a fronteira que atravessa cada conflito na pandemia. Nem sempre é tão nítido. Então, essa discussão aparece concentrada nos territórios da reprodução social (espaços visibilizados como fundamentais pelos feminismos) e no comando do futuro trabalho que o endividamento doméstico procura controlar. E, em terceiro, que nesta crise a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs é aprofundada através de lógicas familiaristas, as quais vinham sendo fortemente questionadas em favor da construção de espacialidades feministas. Vejamos uma de cada vez.

Violência proprietária

Na Argentina, na última semana aconteceram dois conflitos fundamentais a esse respeito: por um lado, o sancionamento de uma lei que regula os aluguéis e, por outro, a discussão sobre a expropriação (ou não) por parte do Estado de uma das principais exportadoras de grãos.

A lei para a regulamentação dos preços dos aluguéis foi aprovada em meio a uma discussão parlamentar sobre se esse assunto era ou não parte da emergência sanitária. Quando o slogan #QuedateEnCasa (#FiqueEmCasa) mostrou a sobreposição de crise habitacional e aumento da violência de gênero, por meio do coletivo Ni Una Menos em aliança com o sindicato de Inquilinxs Agrupadxs, impulsionamos o slogan “a casa não pode ser um lugar de violência machista nem de especulação imobiliária”. As violências econômicas que se expressam no acesso à moradia e seu envolvimento com a violência de gênero só se aceleraram com a pandemia, colocando os holofotes no espaço doméstico entendido como “a casa”. Esta violência se concretiza no abuso direto de proprietários e imobiliárias que se aproveitam da situação crítica para ameaçar, aterrorizar, não renovar contratos ou diretamente despejar inquilinxs, descumprindo um decreto que o proíbe. O que aparece hoje como uma pergunta inevitável é quem são os proprietários das habitações e hotéis dos quais são despejadas principalmente mulheres, lésbicas, travestis e pessoas trans (algo que é também indicado na nova lei, com a obrigatoriedade de declarar os contratos de locação perante a agência tributária).

Em vários lugares do mundo, a valorização financeira da habitação tem o ritmo acentuado pela voracidade dos fundos de investimento que se aproveitam da crise para comprar casas. Sabemos disso por exemplo graças ao trabalho da PAH (Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca) no Estado espanhol. É o que estão dizendo as organizações sociais que buscam prorrogar a moratória contra os despejos para um milhão de lares em Nova York, os quais afetam majoritariamente a população afro-americana e latina, a mesma que impulsionou a recente revolta histórica. Em países como a Argentina, é a receita extraordinária do agronegócio que se “derrama”, entre outras coisas, como bolha imobiliária e boom de construção nas cidades (com o consequente aumento nos aluguéis).

As dinâmicas imobiliárias e extrativistas, que cruzam as geografias aqui e ali, revelam que o aumento do preço da moradia é um sintoma do aumento do poder das finanças e que a sua conexão com modelos extrativistas (e em particular o agronegócio) é direta. A casa, esse suposto espaço de refúgio privado denunciado pelos feminismos como epicentro das violências, é o terminal de fluxos que são parte central do cenário econômico e político mundial na crise. Por essa razão, a reivindicação pela soberania alimentar (um vocabulário de luta dos movimentos camponeses do sul) começa em cada casa e em cada panela popular para alcançar questionar todo o circuito da valorização dos commodities de exportação.

Não é por acaso que, além do lobby imobiliário atual diante da regulamentação do aluguel, desencadeou-se também o lobby de cereais contra a intenção do governo argentino de expropriar um dos maiores exportadores de grãos, no momento em que a emergência alimentar é a maior tragédia nos países do sul. Nos referimos à empresa Vicentín, um grande conglomerado agroindustrial de exportação de produtos primários declarado em falência, que se tornou tema da agenda devido a uma investigação que revelou que a família proprietária triangulou dinheiro no exterior, sonegando impostos e fraudando ao banco público e a centenas de produtores.

Em poucos dias, primeiro foram os agentes imobiliários que levantaram suas vozes, depois uma mobilização que foi batizada de “rebelião dos proprietários” tomou as ruas em todo o país exigindo a não intervenção do Estado no mercado de grãos e, especialmente, em defesa da propriedade privada. Apesar da fraude já ser de conhecimento público, os protestos reivindicam o retorno dos proprietários à administração da empresa em nome do respeito à “propriedade familiar”.

A violência proprietária é uma reação que demonstra precisamente um poder proprietário que, diante das demandas emergenciais reivindicadas de baixo (emergência alimentar e habitacional), se vê ameaçado no que considera seu “direito natural” de posse.

Socialização dos meios de reprodução

A batalha pela propriedade da qual estamos falando se desenrola na demanda concreta por usos comuns e públicos dos bens e serviços que possibilitam (ou não) a reprodução da vida pessoal e coletiva. Considerada a reprodução enquanto esfera estratégica sobre a qual se baseia a expropriação neoliberal e o endividamento doméstico, a socialização de seus meios e recursos emergiu como um dos elementos comuns a nível global.

Na maioria dos países, a financeirização dos direitos sociais (que significa acessá-los por dívida e em benefício de bancos e empresas) tem sido a segunda fase após a privatização das infraestruturas públicas e o sufocamento das economias autogestionadas.

É aí que também se salienta: não está sendo discutido neste momento de quem são os serviços públicos, a quem pertence a produção de alimentos e medicamentos, de quem são as moradias, quais são as ameaças contra o acesso à educação que estão em curso, de quem são as fortunas, que dívidas estão sendo criadas e que reformas tributárias a crise exige? E mais: não vínhamos discutindo qual ordem sexual traz consigo a propriedade privada sobre os corpos e os territórios? Assim, a grande questão sobre quem vai pagar pela crise hoje está envolvida diretamente na discussão da propriedade. E, como dizíamos, isso não é abstrato. Se aterrissa nos terrenos estratégicos da reprodução social (moradia, alimentos, medicamentos, educação), em conexão concreta com as formas de trabalho que os sustentam e os papéis de gênero que exigem.

Hoje nas casas, essas mesmas atulhadas de trabalho doméstico, exaustão psicológica e teletrabalho, novas dívidas estão sendo contraídas, apesar da concessão de renda emergencial. Na Argentina, por exemplo, além dos aluguéis, uma dívida crescente corresponde ao acesso à conectividade. Ou seja, a dívida a pagar pelo consumo dos telefones celulares é uma das que mais cresceu nesses meses. Isso se deve à intensificação do uso dos telefones como meio de conexão obrigatório especialmente para mães com a escolaridade des filhes, quando não há computadores e/ou rede wi-fi em casa. Fazer a lição de casa hoje exige para muitxs um uso enorme de dados que se adquire quase diariamente. Desse modo, a conta do telefone celular atinge cifras recordes em um momento que, como sabemos, é caracterizado por perda de renda. Muitas beneficiárias de subsídios de emergência concedidos pelo governo se veem obrigadas a destinar grande parte dessa renda para o pagamento das tarifas das companhias telefônicas (uma nova mediação privada para o acesso à educação pública).

Dessa maneira, são formadas verdadeiras “cestas” de dívida, que se vão refinanciando entre si, combinando diversas taxas de juros, formas de ameaça por inadimplência e diferentes cronogramas de vencimentos. Se algumas análises sociológicas falam dxs trabalhadorxs atuais como “coletorxs de renda”, que já não podem mais garantir sua reprodução com um salário único e estável, podemos falar de umx “coletora de dívidas” que se acentua como figura da crise. As novas dívidas que invadem o terreno da reprodução social encarnam uma disputa pela propriedade do tempo futuro, para impedir qualquer tipo de transição para outra coisa.

É urgente conectar a demanda de rendas, subsídios e salários pelos quais hoje se luta em vários movimentos sociais, com o fornecimento de serviços públicos gratuitos (da conectividade à água, da eletricidade aos serviços de saúde) e políticas de desendividamento para que essas rendas não sejam definitivamente absorvidas pelas corporações de sempre: bancos, supermercados, empresas de telecomunicação e empresas de plataformas. Discutir a dívida, doméstica e externa (inclusive a divisão de espacialidade que ela representa), é discutir a forma violenta com a qual se titulariza a propriedade do nosso trabalho a longo prazo e, portanto, do tempo futuro. Em outras palavras, rejeitar a “obrigação” que a dívida impõe como trabalho gratuito, barato e precário no tempo por vir e como responsabilização individual, onerosa e privada da reprodução cotidiana agora.

Aluguel, família e quarentena: por uma espacialidade feminista

A crise atual intensifica a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs em uma perspectiva familiarista. Por quê? Quando o aluguel não pode ser pago devido à restrição de renda, a moradia herdada ou conjugal é reforçada como a única maneira de garantir a casa, excluindo realidades como as da população LGBTQIA+, geralmente deserdada e com outras formas de convivência além da conjugalidade heterossexual. Assim, quando os subsídios e salários não são suficientes, a propriedade familiar se transforma na moradia disponível, confirmando que esse direito se torna quase impossível de exercer fora da jurisdição da família. A casa, dessa forma, volta a ser o lugar para “reordenar” o que vinha sendo questionado. Além de ser o espaço onde historicamente foram estabelecidos os papéis de gênero associados às tarefas de reprodução, com suas longas horas de trabalho invisibilizado. Questionar o que chamamos de “casa” é também problematizar a assunção privada da responsabilidade pela crise.

O movimento feminista, a força de mobilização nas ruas e de organização política nos territórios domésticos, questionou tanto a romantização do lar quanto a familiarização de seus contornos. De modos diversos e transversais, foi colocado em pauta o acesso à moradia, dissociando-o da família heteronormativa. Ao mesmo tempo em que a casa familiar era denunciada como um espaço inseguro para mulheres, lésbicas, bichas, travestis e trans (hoje ainda mais pela convivência obrigatória com os agressores), outra experiência de ocupação do espaço foi construída, especialmente outros usos da rua e da cidade.

Se todo regime de propriedade traz consigo uma ordem sexual e de divisão do trabalho, também o detectamos na forma de demarcar contornos, movimentos e fixações no espaço. A propriedade hoje está no centro do debate porque mapeia e sinaliza a batalha pelos limites que tenta, uma e outra vez, relançar o capital em suas formas mais brutais. O retiro familiarista da propriedade de que estamos falando implica, também, garantir trabalho doméstico gratuito dxs não-proprietárixs.

Nesse sentido, voltamos à importância da confrontação com os aluguéis imobiliários (como é o caso da lei de aluguéis e o cumprimento do decreto de proibição de despejos), instituições financeiras e do agronegócio ao mesmo tempo em que construímos outros “interiores”, inventando formas de refúgio, cuidado e acompanhamento que declinem aqui e agora a pergunta de como queremos viver.

(*) Luci Cavallero é Socióloga, pesquisadora da Universidade de Buenos Aires e militante feminista. Verónica Gago é Docente e pesquisadora na Universidade de Buenos Aires e militante feminista.

Texto traduzido por Helena Vargas e revisado por Fernanda Martins para Editora Criação Humana que publicou em 2019 a obra “Uma leitura feminista da dívida”, das autoras Luci Cavallero e Verónica Gago. O texto também foi publicado pelo jornal Sul21.

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