Uma mensagem de disciplinamento para todas as militâncias populares e para todas as mulheres
Por Luci Cavallero.
Este é o fato mais grave desde a recuperação da democracia. Um evento de gravidade institucional inusitada, mas que vemos particularmente como uma mensagem e uma tentativa de disciplinamento para toda a militância. Sobretudo, para as mulheres que ousam fazer política, alcançar posições de liderança e enfrentar poderes econômicos.
É uma pedagogia em grande escala: se você entrar na política, se representar os interesses populares e for mulher, pode acabar com uma arma na cabeça. Aquele revólver na cabeça de Cristina é um revólver na cabeça de todas as mulheres, lésbicas, travestis e trans que se animam a disputar e dar debater em seus espaços políticos.
É um revólver que todas nós temos em nossas cabeças. Para nós, a imagem é muito forte e também é muito forte que ela esteja se repetindo. Pensamos em como será agora para aquelas meninas que cresceram com a imagem de Cristina na televisão nacional, com a imagem de uma mulher forte, de uma mulher que respondeu aos poderes, e que agora veem que fazer política nessa escala e mexer com esses interesses sendo uma mulher pode fazer com que um revólver seja colocado em sua cabeça.
É claro que acreditamos que o repúdio tem que ser absoluto. Um repúdio que não tem a ver apenas com Cristina, mas com a vida de toda a militância, com a possibilidade de viver em um Estado de Direito, em uma democracia onde a mobilização popular, a organização e a militância feminista são possíveis.
E, além disso, acreditamos que isso deve gerar um debate profundo. Uma das primeiras leituras feitas pela oposição, com o objetivo de diminuir a gravidade do fato, foi falar a partir dos argumentos mais grotescos, dizendo que poderia ser algo orquestrado inclusive pelo próprio kirchnerismo.
Mas, o que se instalou – e que para nós é o mais nocivo -, é a ideia do “louco à solta”, de alguém isolado que tenta cometer o assassinato. E isso nos lembra muito as explicações que existem quando dizemos claramente que os feminicídios e que a violência contra a mulher, a violência contra mulheres travestis e trans, contra lésbicas, contra pessoas não-bináries, são originadas de problemas estruturais que depois se consumam na ação, no momento em que vemos o feminicídio ou travesticídio. Assim, a teoria do “louco à solta” parece-nos muito problemática. O que precisa ser gerado é uma discussão profunda sobre o papel da mídia em tudo isso, que estigmatiza militâncias populares e lideranças populares.
A maneira como os limites do que pode ser dito foram empurrados em nossa democracia e são sistematicamente estigmatizados, produz discurso de ódio. É uma engrenagem midiática articulada com figuras da oposição, mas também tem outro poder por trás, como o Judiciário, que também faz parte desse processo de estigmatização.
Devemos gerar um debate profundo, por exemplo, sobre o papel da mídia. É inaceitável que continuem a ser dadas pautas oficiais aos meios de comunicação que promovem e incentivam o discurso de ódio. Isso tem que mudar. Tem que haver um debate profundo sobre a democratização da mídia. Temos que sair e dizer “não”, dizer “basta”, estabelecer um limite. Eles atravessaram o limite, e tudo o que parecia estar no plano discursivo ou midiático, passou agora ao plano material. Para nós, é preciso que seja construído um limite muito grande, porque por trás dessa imagem há uma mensagem de disciplinamento muito específica para todas as militâncias populares e para todas as mulheres. Particularmente, para aquelas que ousam representar interesses populares e tentar intervir em espaços dessas esferas políticas.
Houve também um despertar da mobilização popular. Pelo menos, da base mais identificada com a figura da vice-presidenta. Havia uma militância que estava desmobilizada e buscava voltar às ruas e recuperar uma mística. Essas expressões de amor na porta da vice-presidenta incomodaram muito o Judiciário e os poderes concentrados. Qualquer coisa que foge aos seus controles incomoda. Parece-me que o que aconteceu deve ser colocado em relação direta aos discursos de ódio, ao avanço repressivo da Prefeitura na semana passada em Buenos Aires, a essa escalada da reação repressiva que eles tiveram a certas expressões de amor, e que culminou ontem com essa tentativa de assassinato.
Há um desafio de somar a essa defesa da figura de Cristina um programa político que possa conquistar setores populares mais amplos. Esse é o desafio. Além de expressar esse amor e essa retomada da mobilização popular em torno da figura de Cristina, também associá-la a uma série de medidas que vão a favor dos interesses populares.
Luci Cavallero é professora, pesquisadora e militante feminista. É integrante do coletivo Ni Una Menos e do espaço de investigação feminista La Laboratoria. Escreveu o livro “Uma leitura feminista da dívida” com Verónica Gago.