VELAR PELO SENTIDO AUSENTE: PESQUISA E TESTEMUNHO, de Paulo Endo
O percurso do livro “Vocês ainda estão vivos? Fragmentos sobre trauma, memória e herança”, não se revela apenas como pesquisa. Ele evidencia as ocultações e os impossíveis que a produção testemunhal desvela e mostra. Daniel Kveller, desde o início, trabalhou para compreender as marcas do traumático que o convocam, que se impõem na sucessão de um sentido invisível e redobram os vértices que demarcam o silêncio e o impossível. Sim, há o impossível, e ele se expõe como recusa, distância longínqua e oposição. Em busca dos avós sobreviventes, o autor encontra, na verdade, o ponto preciso onde, de algum modo, os perdeu. Nada a revelar, descobrir, conhecer: apenas a experiência compacta que se encerra num silêncio escuro que ninguém sabe onde termina. Este trabalho tem, portanto, o ritmo das coisas imperfeitas, suspeitas e claudicantes. Esmera-se, igualmente, no sentido da originalidade, composição, estratégia formal e realiza-se como feito acadêmico. Mas é bem mais que isso. Revela lentamente os caminhos que sustentaram a pesquisa como a forma possível e pessoal do autor de se imiscuir e se subtrair à sua própria história e se inscrever em seu próprio sintoma que – ele veio a constatar – herdou.
Este trabalho não cedeu a se converter em uma narrativa pessoal. Poderia. Mas buscou e quis ser gerador de um efeito de transmissão do próprio autor, que se reconhece então e também como herdeiro do holocausto. Há momentos em que essa busca pessoal intensíssima poderia se converter em viagens à Polônia, mais entrevistas, mais leituras e feituras de diários e relatos de pessoas que certamente seriam importantes de ouvir e conversar. Talvez numa outra vez, num outro tempo. Cada detalhe se recobre do tempo que autoriza a voz ou a inibe nos lugares secretos do coração. Ali onde enigmas desconhecem suas origens e seus destinos.
As discussões psicanalíticas, algumas vezes muito esclarecedoras e dialogantes com o seu trabalho de perscrutação pessoal e histórica, outras vezes distantes, perturbadoras de um sentido unívoco, permanecem flutuando em busca da passagem que franqueará o ritmo, a pulsação perdida do tempo da voz e do sentido: o possível testemunho.
A inesquecível tela preta, imagem (im)potente que remete ao escuro da perscrutação, do voltar atrás quando pensamos ir adiante, da poeira dos tempos que escorre de nossas mãos, adquire um sentido interpretativo novo diante do qual essa pesquisa extrai uma de suas mais importantes consequências: no que tange ao que remanesce das catástrofes, tudo está por fazer. Não se trata aqui, evidentemente, apenas da história de seus avós, dos seus pais, de seus parentes, mas da tarefa que o autor se impôs de se inscrever numa história que, sendo tão sua, ainda não lhe pertencia de nenhum modo e nunca lhe foi concedida. Persiste no processo de perscrutação do autor a experiência sobre os impasses da transmissão: o lusco-fusco no qual as palavras ficam ilegíveis, as fotografias que revelam telas pretas e o esclarecimento que não se conclui, nem se realiza.
Seria a busca pelo lugar preciso em que se vislumbra o olhar que cegara seus avós para transformar o autor desse livro em estátua de sal. Transmitir o que fora atravessado pela ocultação e pelo impossível esquecimento endurece a pena e esmaece a tinta no papel.
É assim que nesse trabalho também se dramatiza uma reivindicação, que em certos momentos ganhou contornos dramáticos, sobre o direito de escolher o que transmitir. Já que o que lhe foi transmitido também excedeu as decisões de seus pais e avós, Daniel conhecera sem saber e sobre isso decidiu escrever um livro, uma dissertação, objeto de transmissão inapagável.
Em dado momento, Daniel descreve uma frase de seu avô diante de suas insistentes perguntas: “me lembro como se fosse hoje”. No ontem da guerra, Daniel, o filho de seu filho, não era possível; mas no amanhã feito hoje, tornara-se um efeito possível do que não era possível, de modo algum, no tempo lembrado da dizimação. Ou seja, seu avô sobreviveu, casou-se, teve filhos e netos. Essa progressão temporal é o próprio evento daquilo que o autor representa e impõe: a presença de um vivo, de uma vida que em algum momento se imaginou impossível. O reencontro entre o sobrevivente e o neto reaparece então como efeito do traumático; como evidência cabal da vida que progrediu, vicejou, prosseguiu, retorna aos avós como buscando refazer o tempo de quando nenhuma vida lhes parecia possível. Não ter nada no mundo, ver-se completamente sozinha e depois ter filhos e netos certamente não fazia parte nem das mais ousadas fantasias de uma adolescente perseguida pelos nazistas.
O autor deste livro seria então, por um lado, a prova da superação (a terceira geração), mas carregaria o enigma do que não foi ultrapassado – a coisa, o trauma, a experiência que se aquece nos caldeirões do que não passa. A pergunta, todas as perguntas de Daniel, revelaram então uma impertinência (não pertencem a ninguém), uma ousadia, talvez: Como ousa você – filho do meu filho – em algum momento dado como impossível de existir, retornar agora reivindicando a lembrança de um tempo quando nenhum futuro podia ser imaginado?
Como numa visita a um memorial de qualquer catástrofe, a leitura deste livro revelará impotência. Nada está lá, por isso teremos de imaginar. Mas poderemos fazê-lo? Temos o direito de fazê-lo onde tudo foi limbo psíquico e suspensão espaço-temporal? Caminhar a esmo num lugar que não existe mais e cujo horror não pode e não deve ser imaginado nos revela fantasmas de uma impossível representação. Transmutam-se os passantes em rumores e os escuros em impossíveis deambulando cabisbaixos, impotentes ante a própria história que já não podem contar. Num memorial, os visitantes se convertem em quase afronta, impropriedade e evidência. Os passantes e turistas são o que jamais pôde ser imaginado, ocupando um lugar e um tempo que existe agora revelan- do dois impossíveis: o de imaginarmos o que se passou com os prisioneiros e o que, para os prisioneiros dos campos, era impossível imaginar, um campo repleto de seres viventes, livres e que ocupam aqueles espaços com curiosidade desatenta.
A “insistência desrespeitosa” do autor, portanto, traria a marca de uma impossibilidade de escutar ante alguém que não pode ou não quer dizer e, nesse caso, diferente do desrespeito, se trataria de uma impertinência. Um desejo de escuta que não pode ser reconhecido por aqueles que não desejam falar.
Quando o autor se detém sobre o conceito de desmentido (verleugnung), revela discussões importantes retomadas nos estudos atuais sobre a perversão. Se na perversão há uma ambição de inventar um sexo, reinventar as regras do gozo, há ainda aí uma impotência que se depara com a impossibilidade de inventar o próprio gozo do qual o sujeito permaneceu refém. São as regras compartilhadas de como, quando e com quem se goza, o que impossibilita que o gozo seja mero efeito de violência e coito, como nos bichos. A perversão, nesse sentido, é a permanente tentativa de um gozar sem regras (ou burlando regras); a despeito de todas as regras que o perverso pode inventar para burlar as regras. O supremo objeto da perversão é gozar alienando-se do consentir de outrem, mas jamais com outrem: passagem só franqueada ao sujeito castrado. A experiência do outro fragmentado encontra aqui sua máxima expressão, isso porque a desmetaforização na posição perversa opera por um efeito metonímico, contudo sem metáfora possível. A parte pelo todo, mas a parte se fragmenta do todo e nela não se forja qualquer representação.
“Matar judeus, mas preservar meus amigos judeus”, apresentada como prova de que não se é antissemita, é uma armadilha que se processa por duas operações. A primeira: amigos judeus não são parte dos judeus, e judeus não são meus amigos. A frase “tenho amigos judeus”, como contraprova do antissemitismo, significa apenas: não mato meus amigos. O amigo aqui anula os judeus. Como gozar com uma peça de roupa de alguém anula outrem como sujeito de desejo no fetichismo. É uma sinédoque sem metáfora.
Daniel Kveller se apresenta como efeito de muitas clivagens. Entre alguém que sabe tudo, mas não pode dizer nada e como alguém que diz tudo, ou muito, sem saber de nada (o Pesquisador). Perdura aí o ostracismo que obscurece, esconde e protege.
Noemi Jaffe, escritora brasileira que fez seu percurso a Auschwitz com a filha para reencontrar a mãe que perdera, soubera e ignorara, diz: “quem nunca esteve no horror só pode fazer dramas”. Só podemos emular o que é, sobretudo, inimaginável empurrando o Real com as mãos. Real que força a passagem entre a experiência que encontrou morada no sintoma, assumindo, desse modo, um caráter sempiterno e para sempre, de algum modo, silencioso sob o peso das pedras.
Pensamos: o Real é a mãe-impossível de fato, mas não apenas terrorífica – é também condição da palavra, do simbólico, do psíquico. Talvez isso nos ajude a pensar no Real do horror como aquilo que deve ser mantido a uma certa distância – como a mãe de fato ou como mãenancial. Por isso falamos que imensidões se criam em torno do trauma – talvez como um mãenancial traumático. Testemunhos, literatura, filmes, peças, músicas, dissertações, teses, memoriais, leis, declarações universais, cortes internacionais, direitos humanos etc. Tudo para poder bordear o impossível de dizer dizendo.
De todo modo, fazer frente ao Real do horror e da catástrofe é confrontá-lo ou enfrentá-lo juntos. É um caminho a qual tantos se lançaram diante da espoliação, da violência, das catástrofes etc. Podemos fazê-lo, mas teremos de fazê-lo juntos. Sozinhos – como no terrível e belo relato da avó Miriam – nada foi e nem será possível. O juntos é generativo do confabular, do compreender, do considerar. Considerar (comsidere) é olhar juntos o impossível das estrelas, assim como contemplar (comtemplare) é olhar juntos o impossível do céu.
Confrontar é também um modo de repartir o que na coisa é excesso, repartindo o que deve ser levado, guardado e o que deve ser largado. Aquilo que recusa toda simbolização pode também ser largado ao seu próprio imerecimento e à sua própria indiferença. Os que testemunham, ainda que seja uma única vez, talvez nos ensinem a fazê-lo.
Bela coragem a que separou e reuniu Daniel, seus pais e seus avós num livro que sobreviverá ao tempo do extermínio de coisas, pessoas e palavras, juntando aqueles que demoraram a se (re)conhecer, apartados por um tempo que a duração saberá aproximar.
Paulo Endo é Psicanalista, professor e pesquisador no Instituto de Psicologia, na Pós-Graduação de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades e no Instituto de Estudos Avançados na Universidade de São Paulo. Coordenador do Grupo de Pesquisas em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados do IEA-USP. Membro da Memory Studies Association (Copenhagen), Unit Research on Dreams, Memory and Imagination Studies (Gdànsk) e dos Territorios Clínicos de la Memoria (Argentina). Vencedor do prêmio Jabuti em 2006 com a obra A Violência no Coração da Cidade: Um Estudo Psicanalítico. Autor de dezenas de artigos, capítulos e livros em publicações dentro e fora do Brasil.
O livro “Vocês ainda estão vivos? Fragmentos sobre trauma, memória e herança”, do psicanalista Daniel Kveller, está disponível aqui!