Apresentação de Laurie Laufer: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismo – 3ª parte
Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.
Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.
BS: Gostaria de falar agora sobre a escrita de casos clínicos. Você fez um seminário sobre isso, e lembro que você chamou Guy Le Gaufey, um analista que questiona o uso de vinhetas clínicas e para quem “a maior parte das vinhetas clínicas, em seu valor ilustrativo, longe de serem pragmáticas e ingênuas, por se apresentarem em língua natural, revelam-se mais frequentemente como hinos, saudações, reverências a professores, autores, autoridades quaisquer. São muitas vezes a expressão de transferências maciças e significativamente pouco questionadas”. Você está de acordo?
LL: Sobre a escrita de casos clínicos, publiquei na revista Psychologie Clinique. Na verdade, evoluí bastante a esse respeito. No meu livro O enigma do luto, eu me refiro a casos clínicos. Hoje, não o faço mais, porque percebi que era sempre insatisfatório. É difícil escrever acerca dos efeitos da transferência. Pode-se dizer que é uma ficção. Freud, inclusive, sempre disse, ao evocar seus casos, que eram como romances. Talvez esteja enganada, mas acredito que pensar na psicanálise de forma epistemológica tenha um alcance clínico muito maior do que contar o que se passa numa cura. Não tenho talento para isso. É bastante difícil fazê-lo. Lacan expõe um caso clínico, um único caso clínico, o de Marguerite. Na verdade, não o faço porque não consigo fazê-lo e porque, quando o faço, não me transmite nada, não sou criativa. Quando escrevo, tento pensar nos textos de Foucault, Butler, Lacan etc. Eu me transformo mais quando quebro a cabeça com os textos deles, tentando verificá-los na minha clínica, do que quando escrevo um texto pretendendo descrever minha clínica, o que me transforma menos, me faz avançar menos, por assim dizer. A exceção é quando trabalho com um romance, uma narrativa, uma ficção, a autoficção de Jane Sautière, por exemplo. O livro Nullipare é uma ficção. Eu me sinto mais à vontade para trabalhar a partir de um romance.
Creio ainda que a escrita de vinhetas clínicas possa ter o efeito de certa violência. Por exemplo, Catherine Millot, que é alguém de quem gosto. A meu ver, ela foi tomada pelo jargão lacaniano de sua época quando lançou um ensaio sobre a transexualidade intitulado Horsexe. Eram os anos entre 1975 e 1985. Para as pessoas de que trata, a leitura desse livro é extremamente agressiva. Lembro-me de um colóquio coorganizado pela Escola Lacaniana e por uma associação de transgêneros que hoje não existe mais, Caritig, creio. Nunca vi um colóquio tão violento. Catherine Millot estava lá, e também Marie-Hélène Bourcier (na época) e Tom Reucher, um psicoterapeuta transgênero. Catherine Millot foi fuzilada, foi insultada a ponto de ter que deixar o anfiteatro. E por quê? Porque seu livro era uma aplicação dogmática da língua lacaniana à transexualidade.
BS: Sim, com certeza. Mas penso que, entre o que fez Catherine Millot e o que pode fazer alguém como Ken Corbett, que é um analista gay, ou Tim Dean, que não é psicanalista, mas escreve sobre e a partir da psicanálise…
LL: O grupo de trabalho que juntas vamos iniciar, com você, Amy Ayouch e outros, terá por objeto o que é o saber localizado para um psicanalista. O que isso quer dizer? Não é simplesmente explicitar de onde falamos. É mais complexo. O que nos faz hoje propor essa questão? De fato, é muito complicado. Atualmente, nos Estados Unidos, vemos um momento um pouco difícil, em que tudo pode ser vivido como uma cultural appropriation, como uma apropriação cultural. Por exemplo, Kathryn Bigelow, que fez Detroit. Não sei se vocês viram esse filme sobre a violência perpetrada contra os negros nos anos 1960, nos Estados Unidos. Ela foi interpelada: como uma mulher branca, burguesa, de classe média alta etc. podia fazer um filme sobre negros pobres, violentados, descendentes de pessoas escravizadas? Nas palavras de Jean Allouch: “Agora, calma! Isso quer dizer o quê? Isso quer dizer que só as tartarugas podem falar das tartarugas?”. É complicado, muito complicado. Um pouco ridículo, caricatural. Parece afirmar que nós essencializamos as posições. Entretanto, isso também põe em cena a questão da legitimidade do discurso. Que discurso é legítimo para dizer algo pelo outro, do outro ou no lugar do outro? Houve um verdadeiro confisco da palavra das ditas minorias. Agora há uma reapropriação da palavra pelas pessoas envolvidas. Evidentemente, poderiam me replicar que um psicanalista não fala no lugar do paciente, a menos que escreva algo fazendo-o falar. Então, é complexa essa questão da escrita de caso. É complexa. Não é simplesmente uma pequena transcrição clínica… É uma edição, você escolhe momentos… Estou falando demais… [Risos.]
LPO: Não, não. Eu diria que você é uma das raras psicanalistas a dizer coisas complexas sem enquadrá-las nos discursos tradicionais, segundo Freud ou segundo Lacan. Penso ser Winnicott quem diz que a psicanálise deve apresentar paradoxos cujo destino deve permanecer insolúvel. É bem oriental…
LL: Isso é um elogio, eu vou tomar como um elogio.
LPO: Sim, exatamente. Isso abre as portas ao invés de fechá-las.
LL: A emancipação para mim é isso; ela é válida tanto no que diz respeito à clínica quanto no que diz respeito à teoria. Tudo o que teoricamente abre as portas me parece importante, na verdade. Tenho uma experiência bastante singular no exercício da psicanálise. Não é simplesmente fazer uma psicanálise, mas exercer a psicanálise. Apesar de tudo, é um ofício divertido. É preciso levá-lo à sério, mas não muito. Ou levar a sério esse ofício, mas sem se levar a sério. Não é uma tarefa fácil.
LPO: Você abre portas. Fiz uma pesquisa sobre os assuntos que você abordou e me deparei com este site: lavieenqueer.wordpress.com. É um blog muito interessante, aprendi um monte de coisas. Existe um debate a respeito de como se dirigir a alguém segundo seu gênero. Aprendi a palavra mégenrer, por exemplo. Há um link para um dicionário de gênero… Como você vê o ensino da psicanálise na França hoje?
LL: É uma questão que ultrapassa a própria disciplina universitária. Hoje é uma questão política. Aliás, o ensino da psicanálise sempre foi uma questão, desde Freud. Como ensinar psicanálise? Como transmiti-la sem ser tomado pelos discursos universitários, dogmáticos, de escola, sem estar em uma mitologia do caso etc.? Apesar da impossibilidade de seu ensino, creio ser importante a psicanálise estar presente na universidade. É uma questão de estratégia, ou de tática, diante das ditas ciências cognitivas, do ensino de terapia cognitivo-comportamental (tcc) etc. Há na França uma verdadeira aversão à psicanálise na universidade. É um bom sinal e é por isso que é preciso ampliar sua presença. Existem ainda verdadeiras questões epistemológicas quanto à afiliação do “campo disciplinar”. Nos Estados Unidos, a psicanálise não é ensinada dentro da psicologia. E na França? Deve-se ensiná-la com as ciências da vida? Como ciência humana? Em suma, Freud e Lacan acertaram: ela é intransmissível e indeterminável [inassignable]. Então, continuemos a ensiná-la.
LPO: Era uma posição geral de Freud: a psicanálise é impossível, mas continua-se a ensiná-la; é impossível, mas continua-se a praticá-la; os charutos seriam o melhor remédio para o tumor na boca… Você acha que propõe novos paradigmas?
LL: Não tenho a pretensão de dizer que proponho. O que tento é pensar a extensão, a miscigenação, o hibridismo (peço emprestado esse termo a meu amigo Amy Ayouch), o apatridismo da psicanálise. Como exercer a psicanálise num mundo globalizado? O que me interessa é o diálogo com Foucault, Deleuze, Laclau, os pensadores da teoria queer e dos estudos de gênero, que impulsionam o questionamento da psicanálise nos pontos que me atraem a atenção. Freud inventou as ferramentas para ultrapassar a psicanálise. É possível uma psicanálise para além do Édipo, como quis Deleuze? Para além da diferença sexual? Pode a psicanálise sobreviver fora do dispositivo discursivo da sexualidade, aquele mesmo que a viu nascer? Essa foi uma tentativa de Lacan, que queria, segundo dizia, “renovar o domínio de Eros”. Há muito ainda para pensar.
A ferramenta do gênero favorece a atualização do saber como um campo que constitui uma verdade partilhada, com normas, usos, lugares-comuns, notadamente sobre a diferença sexual. Quer isso se dê pela noção de indecidibilidade de Derrida, de problema de Butler, de análise discursiva dos dispositivos disciplinares de Foucault, de dilema insolúvel de Joan Scott, de práxis do irrepresentável de Françoise Collin, como repensar todas essas questões? Freud dizia que a psicanálise deveria ser open to revision. Então, como evitar uma psicanálise “fechada”?
LPO: Você poderia nos falar um pouco da articulação entre as questões ligadas à ética e as questões relativas às mulheres, para além de qualquer moralismo? Creio que se tenha confundido muito ética e moralismo em psicanálise. Houve aqui uma lacanagem de posições contrárias aos homossexuais – por exemplo, ao casamento deles.
LL: Sempre pensei que a psicanálise teve uma história paralela à dos movimentos feministas, inclusive com alguns cruzamentos; que a psicanálise foi um método de emancipação. Não sei como articular ética e feminismo. Houve, sim, essa confusão da qual você fala. Prefiro às vezes, no lugar do termo ética, o termo técnica. Talvez a liberação da palavra das mulheres tenha trazido algo à técnica analítica, mas é bastante curioso dizer isso, porque essencializa essa palavra. É algo que lida mais com a questão dos subalternos (tratada por Gayatri Spivak). Houve um confisco da palavra das mulheres e do uso de seu corpo. O que se passa hoje diante desta ou daquela forma de emancipação de tal palavra e de tal uso do corpo? Quais efeitos isso produz nos desejos, na vida em coletividade, na sexualidade, nas políticas de emancipação? É isso o que me interessa hoje na articulação entre psicanálise e emancipação.
LPO: Obrigado, Laurie. Espero que tenhamos a oportunidade de retomar nossa conversa a respeito desse assunto com os leitores brasileiros.
*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.