“Escrever como escavando um túnel em uma mina. Produzir textos que iluminam a cena, determinam tomadas de posição e, em seguida, como um disparo sinalizador ou como um coquetel molotov, dissolvam-se em seus próprios efeitos sem deixar rastro”, por Sandro Chignola

Escrever sobre Foucault nos expõe a um duplo risco. Por um lado, fazer dele um autor. Por outro, dissolvê-lo, extrapolando muito facilmente seus trabalhos-fórmulas, suas categorias ou seus conceitos para reutilizá-los em outros contextos e para outros fins. Sabemos que Foucault, muito relutante à primeira opção – aquela que lhe teria polido um perfil, reconstruído uma coerência, ignorado os bloqueios ou omitido suas recolocações para consagrá-lo como um capítulo da história da filosofia – esperava para seus textos preferencialmente a segunda. Escrever como escavando um túnel em uma mina. Produzir textos que iluminam a cena, determinam tomadas de posição e, em seguida, como um disparo sinalizador ou como um coquetel molotov, dissolvam-se em seus próprios efeitos sem deixar rastro. Esta segunda opção é, talvez, a que mais se sedimentou desde o ponto de vista das revisões, dos deslocamentos, das intersecções das análises foucautianas com outros saberes – não exclusivamente filosóficos – e com as problematizações radicais do estatuto das disciplinas. Todavia, essa não é a única ou, ao menos para mim, talvez não seja a mais relevante.

Estudar Foucault nos seus textos não significa atribuí-lo novamente à filosofia. Significa mais precisamente repensar a própria filosofia, a consistência e a pretensa autonomia dos seus arquivos, os limites entre os quais ela é circunscrita enquanto saber universitário para tentar forçá-los e pô-los em crise. Fazer isso não significa, por certo, abandonar a filosofia. Ao contrário, o que se libera, deste modo, é um movimento de caminhada e retorno entre o seu interior – suas séries autorais, seu cânone, seus estilos – e o seu exterior; um exterior feito de processos, práticas, conflitos sobre os quais se medem – no caso em que a filosofia saiba aceitar o desafio – seu ritmo e sua capacidade de resistência. Foucault, sob essa perspectiva, pode ser estudado como filósofo e, simultaneamente, como desestabilizador radical do estatuto da filosofia como saber. Oferece-nos um exemplo, um dos mais radicais, de uma autêntica política da filosofia. Uma política da filosofia capaz de romper a inércia de uma tradição, a da filosofia política em particular, e a separação entre a práxis e a teoria sobre a qual ela reproduz seu disciplinamento específico.

Os cursos que Foucault ministrou no Collège de France, cujas edições recentemente se encerraram, representam uma ocasião particularmente oportuna para levar adiante esta operação. Uma operação que Foucault realizou pessoalmente, utilizando os cursos como um laboratório onde colocava à prova seus próprios argumentos, modificando-os, retomando-os ou abandonando-os, tornando possível utilizá-los, em um segundo momento, em seguida, como portões de acesso a uma produção – aquela de Foucault – marcada por uma inquietude constante.

O mesmo se pode dizer das entrevistas, resenhas, intervenções, mesas redondas etc. incluídas nos Dits et Écrits, que, conjuntamente aos cursos no Collège de France, constituem uma parte significativa dos textos sobre os quais me baseei na redação destes seis seminários. Longe de representar momentos pouco relevantes de uma produção contingente e ocasional com relação aos seus grandes livros publicados – uma conclusão que seria possível extrair unicamente aplicando a Foucault um estigma autoral – estas intervenções condensam o significado geral de um empenho intelectual que se desenvolve inteiramente sob o signo da atualidade. Trata-se de tomada de posição que, em muitos casos, indicam a direção na qual o seu trabalho se movimenta e que se oferecem como portas de acesso ou como vias particularmente úteis ao laboratório foucaultiano.

“Portas de acesso”, “vias” ou “entradas”: não uso estes termos por acaso. Estes seminários não oferecem uma interpretação unitária ou definitiva de Foucault. Não o fazem devido aos motivos apontados na abertura. Representam trajetórias, caminhos, entrecruzamentos da produção de Foucault que partem de pontos de vista específicos e unilaterais – jamais casuais, com certeza –, e que buscam, ao menos para quem escreve, problematizar não mais – e não somente – uma obra, mas o estatuto e a discursividade dos saberes aos quais ela está ligada, ampliando seus efeitos.

O título escolhido para este volume pretende trazer à temática exatamente este movimento. Os seis seminários que apresento ao leitor não se concebem como capítulos de um livro cujo desenvolvimento avança progressivamente do primeiro ao último, mas como percursos dotados cada um de sua própria autonomia. As eventuais repetições e insistências que poderiam cansar aqueles que se decidam a percorrê-los em série não aparecerão àqueles que, do contrário, decidam ler, como é evidentemente possível ocorrer, cada um em si mesmo.

Os textos coletados neste volume foram escritos por ocasiões de seminários ou de intervenções pelas quais fui convidado na Itália ou no exterior. Entre eles, quero recordar aqueles particularmente vivazes pelas discussões que se seguiram: na École Normale Supérieure de Lyon, na Universidad Nacional de San Martin (Buenos Aires) e na Universidad de Córdoba na Argentina, na Université de Toulouse-Le Mirail, na Università di Palermo, em Roma-La Sapienza, Bologna e Trento, na Scuola di dottorato in Filosofia e na Scuola Galileiana da Università di Padova. Agradeço novamente a todas e a todos aqueles que os promoveram. Com exceção ao texto até agora inédito sobre Foucault e Marx, publicado aqui como capítulo segundo, “Fábricas do corpo”, os demais já foram publicados com título e em versões diferente. O primeiro, “O impossível do soberano. Governamentalidade e Liberalismo”, aqui quase inteiramente reescrito, foi incluído em S. Chignola (editor), Gorvernare la vita. Un seminario sui Corsi di Michel Foucault al Collège de France (1977-1979), Ombre corte, Verona 2006; o terceiro, “A política dos governados. Governamentalidade, forma de vida, subjetivação”, amplamente reelaborado para esta ocasião, saiu originalmente, em espanhol, na revista argentina Deus Mortalis, 2010; o quarto, “Koinonikon zoon. Os estoicos e a outra modernidade”, o único não diretamente sobre Foucault, mas escrito a partir dos problemas abertos pela leitura de “A Hermenêutica do Sujeito”, encontra-se incluído na compilação Concordia discors. Studi in onore di Giuseppe Duso, Padova University Press, Padova 2012; o quinto, “Phantasiebildern/Histoire fiction: Weber, Foucault”, foi publicado em P. Cesaroni e S. Chignola (editores), La forza del vero. Un seminario sui corsi di Michel Foucault al Collège de France (1981-1984), Ombre Corte, Verona 2013; o sexto, “A Coragem da verdade: parrhésia e crítica saiu quase simultaneamente a este livro, em Politica e Religione. Annuario di teologia política.

Muitas e muitos têm contribuído para a formação destes textos, para reescrevê-los, para corrigi-los e para apurar as interpretações que neles se vêm definindo. Entre eles, meu agradecimento particular a Emmanuel Biset, Claudio Cavallari, Pierpaolo Cesaroni, Edgardo Castro, Girolamo De Michele, Jorge Dotti, Bruno Karsenti, Sandro Mezzadra, Toni Negri, Michele Nicoletti, Judith Revel, Michel Senellart, Paolo Slongo, Lorenzo Rustighi, Giulia Valpione, Adelino Zanini.

O livro “Foucault além de Foucault: uma política da filosofia”, de Sandro Chignola, está disponível. Clique aqui para adquirir!