por Criação Humana | mar 7, 2024 | blog, leia mulheres
Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.
Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.
BS: Gostaria de falar agora sobre a escrita de casos clínicos. Você fez um seminário sobre isso, e lembro que você chamou Guy Le Gaufey, um analista que questiona o uso de vinhetas clínicas e para quem “a maior parte das vinhetas clínicas, em seu valor ilustrativo, longe de serem pragmáticas e ingênuas, por se apresentarem em língua natural, revelam-se mais frequentemente como hinos, saudações, reverências a professores, autores, autoridades quaisquer. São muitas vezes a expressão de transferências maciças e significativamente pouco questionadas”. Você está de acordo?
LL: Sobre a escrita de casos clínicos, publiquei na revista Psychologie Clinique. Na verdade, evoluí bastante a esse respeito. No meu livro O enigma do luto, eu me refiro a casos clínicos. Hoje, não o faço mais, porque percebi que era sempre insatisfatório. É difícil escrever acerca dos efeitos da transferência. Pode-se dizer que é uma ficção. Freud, inclusive, sempre disse, ao evocar seus casos, que eram como romances. Talvez esteja enganada, mas acredito que pensar na psicanálise de forma epistemológica tenha um alcance clínico muito maior do que contar o que se passa numa cura. Não tenho talento para isso. É bastante difícil fazê-lo. Lacan expõe um caso clínico, um único caso clínico, o de Marguerite. Na verdade, não o faço porque não consigo fazê-lo e porque, quando o faço, não me transmite nada, não sou criativa. Quando escrevo, tento pensar nos textos de Foucault, Butler, Lacan etc. Eu me transformo mais quando quebro a cabeça com os textos deles, tentando verificá-los na minha clínica, do que quando escrevo um texto pretendendo descrever minha clínica, o que me transforma menos, me faz avançar menos, por assim dizer. A exceção é quando trabalho com um romance, uma narrativa, uma ficção, a autoficção de Jane Sautière, por exemplo. O livro Nullipare é uma ficção. Eu me sinto mais à vontade para trabalhar a partir de um romance.
Creio ainda que a escrita de vinhetas clínicas possa ter o efeito de certa violência. Por exemplo, Catherine Millot, que é alguém de quem gosto. A meu ver, ela foi tomada pelo jargão lacaniano de sua época quando lançou um ensaio sobre a transexualidade intitulado Horsexe. Eram os anos entre 1975 e 1985. Para as pessoas de que trata, a leitura desse livro é extremamente agressiva. Lembro-me de um colóquio coorganizado pela Escola Lacaniana e por uma associação de transgêneros que hoje não existe mais, Caritig, creio. Nunca vi um colóquio tão violento. Catherine Millot estava lá, e também Marie-Hélène Bourcier (na época) e Tom Reucher, um psicoterapeuta transgênero. Catherine Millot foi fuzilada, foi insultada a ponto de ter que deixar o anfiteatro. E por quê? Porque seu livro era uma aplicação dogmática da língua lacaniana à transexualidade.
BS: Sim, com certeza. Mas penso que, entre o que fez Catherine Millot e o que pode fazer alguém como Ken Corbett, que é um analista gay, ou Tim Dean, que não é psicanalista, mas escreve sobre e a partir da psicanálise…
LL: O grupo de trabalho que juntas vamos iniciar, com você, Amy Ayouch e outros, terá por objeto o que é o saber localizado para um psicanalista. O que isso quer dizer? Não é simplesmente explicitar de onde falamos. É mais complexo. O que nos faz hoje propor essa questão? De fato, é muito complicado. Atualmente, nos Estados Unidos, vemos um momento um pouco difícil, em que tudo pode ser vivido como uma cultural appropriation, como uma apropriação cultural. Por exemplo, Kathryn Bigelow, que fez Detroit. Não sei se vocês viram esse filme sobre a violência perpetrada contra os negros nos anos 1960, nos Estados Unidos. Ela foi interpelada: como uma mulher branca, burguesa, de classe média alta etc. podia fazer um filme sobre negros pobres, violentados, descendentes de pessoas escravizadas? Nas palavras de Jean Allouch: “Agora, calma! Isso quer dizer o quê? Isso quer dizer que só as tartarugas podem falar das tartarugas?”. É complicado, muito complicado. Um pouco ridículo, caricatural. Parece afirmar que nós essencializamos as posições. Entretanto, isso também põe em cena a questão da legitimidade do discurso. Que discurso é legítimo para dizer algo pelo outro, do outro ou no lugar do outro? Houve um verdadeiro confisco da palavra das ditas minorias. Agora há uma reapropriação da palavra pelas pessoas envolvidas. Evidentemente, poderiam me replicar que um psicanalista não fala no lugar do paciente, a menos que escreva algo fazendo-o falar. Então, é complexa essa questão da escrita de caso. É complexa. Não é simplesmente uma pequena transcrição clínica… É uma edição, você escolhe momentos… Estou falando demais… [Risos.]
LPO: Não, não. Eu diria que você é uma das raras psicanalistas a dizer coisas complexas sem enquadrá-las nos discursos tradicionais, segundo Freud ou segundo Lacan. Penso ser Winnicott quem diz que a psicanálise deve apresentar paradoxos cujo destino deve permanecer insolúvel. É bem oriental…
LL: Isso é um elogio, eu vou tomar como um elogio.
LPO: Sim, exatamente. Isso abre as portas ao invés de fechá-las.
LL: A emancipação para mim é isso; ela é válida tanto no que diz respeito à clínica quanto no que diz respeito à teoria. Tudo o que teoricamente abre as portas me parece importante, na verdade. Tenho uma experiência bastante singular no exercício da psicanálise. Não é simplesmente fazer uma psicanálise, mas exercer a psicanálise. Apesar de tudo, é um ofício divertido. É preciso levá-lo à sério, mas não muito. Ou levar a sério esse ofício, mas sem se levar a sério. Não é uma tarefa fácil.
LPO: Você abre portas. Fiz uma pesquisa sobre os assuntos que você abordou e me deparei com este site: lavieenqueer.wordpress.com. É um blog muito interessante, aprendi um monte de coisas. Existe um debate a respeito de como se dirigir a alguém segundo seu gênero. Aprendi a palavra mégenrer, por exemplo. Há um link para um dicionário de gênero… Como você vê o ensino da psicanálise na França hoje?
LL: É uma questão que ultrapassa a própria disciplina universitária. Hoje é uma questão política. Aliás, o ensino da psicanálise sempre foi uma questão, desde Freud. Como ensinar psicanálise? Como transmiti-la sem ser tomado pelos discursos universitários, dogmáticos, de escola, sem estar em uma mitologia do caso etc.? Apesar da impossibilidade de seu ensino, creio ser importante a psicanálise estar presente na universidade. É uma questão de estratégia, ou de tática, diante das ditas ciências cognitivas, do ensino de terapia cognitivo-comportamental (tcc) etc. Há na França uma verdadeira aversão à psicanálise na universidade. É um bom sinal e é por isso que é preciso ampliar sua presença. Existem ainda verdadeiras questões epistemológicas quanto à afiliação do “campo disciplinar”. Nos Estados Unidos, a psicanálise não é ensinada dentro da psicologia. E na França? Deve-se ensiná-la com as ciências da vida? Como ciência humana? Em suma, Freud e Lacan acertaram: ela é intransmissível e indeterminável [inassignable]. Então, continuemos a ensiná-la.
LPO: Era uma posição geral de Freud: a psicanálise é impossível, mas continua-se a ensiná-la; é impossível, mas continua-se a praticá-la; os charutos seriam o melhor remédio para o tumor na boca… Você acha que propõe novos paradigmas?
LL: Não tenho a pretensão de dizer que proponho. O que tento é pensar a extensão, a miscigenação, o hibridismo (peço emprestado esse termo a meu amigo Amy Ayouch), o apatridismo da psicanálise. Como exercer a psicanálise num mundo globalizado? O que me interessa é o diálogo com Foucault, Deleuze, Laclau, os pensadores da teoria queer e dos estudos de gênero, que impulsionam o questionamento da psicanálise nos pontos que me atraem a atenção. Freud inventou as ferramentas para ultrapassar a psicanálise. É possível uma psicanálise para além do Édipo, como quis Deleuze? Para além da diferença sexual? Pode a psicanálise sobreviver fora do dispositivo discursivo da sexualidade, aquele mesmo que a viu nascer? Essa foi uma tentativa de Lacan, que queria, segundo dizia, “renovar o domínio de Eros”. Há muito ainda para pensar.
A ferramenta do gênero favorece a atualização do saber como um campo que constitui uma verdade partilhada, com normas, usos, lugares-comuns, notadamente sobre a diferença sexual. Quer isso se dê pela noção de indecidibilidade de Derrida, de problema de Butler, de análise discursiva dos dispositivos disciplinares de Foucault, de dilema insolúvel de Joan Scott, de práxis do irrepresentável de Françoise Collin, como repensar todas essas questões? Freud dizia que a psicanálise deveria ser open to revision. Então, como evitar uma psicanálise “fechada”?
LPO: Você poderia nos falar um pouco da articulação entre as questões ligadas à ética e as questões relativas às mulheres, para além de qualquer moralismo? Creio que se tenha confundido muito ética e moralismo em psicanálise. Houve aqui uma lacanagem de posições contrárias aos homossexuais – por exemplo, ao casamento deles.
LL: Sempre pensei que a psicanálise teve uma história paralela à dos movimentos feministas, inclusive com alguns cruzamentos; que a psicanálise foi um método de emancipação. Não sei como articular ética e feminismo. Houve, sim, essa confusão da qual você fala. Prefiro às vezes, no lugar do termo ética, o termo técnica. Talvez a liberação da palavra das mulheres tenha trazido algo à técnica analítica, mas é bastante curioso dizer isso, porque essencializa essa palavra. É algo que lida mais com a questão dos subalternos (tratada por Gayatri Spivak). Houve um confisco da palavra das mulheres e do uso de seu corpo. O que se passa hoje diante desta ou daquela forma de emancipação de tal palavra e de tal uso do corpo? Quais efeitos isso produz nos desejos, na vida em coletividade, na sexualidade, nas políticas de emancipação? É isso o que me interessa hoje na articulação entre psicanálise e emancipação.
LPO: Obrigado, Laurie. Espero que tenhamos a oportunidade de retomar nossa conversa a respeito desse assunto com os leitores brasileiros.
*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.
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por Criação Humana | fev 27, 2024 | blog, leia mulheres
Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.
Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.
LPO: Você começa com o luto, Laurie. Pode nos falar mais sobre isso? O que isso trouxe a seu pensamento sobre Freud e Lacan? Porque para nós trata-se de fazer o luto. Quando lemos os livros de Judith Butler, há um luto de Freud, há um luto de Lacan ou, ao menos, de certo Freud, de certo Lacan. E, ainda, Lacan é ambíguo. Afinal, ele faz o luto de Freud ou não? Mas partamos de seu trabalho sobre o luto.
LL: Então, meu trabalho sobre o luto está agora muito distante… Fui obrigada a fazer o luto. Entre as determinações necessárias e os encontros contingentes, não sabemos bem como as coisas se passam. Em dado momento da minha vida, precisei trabalhar essa questão, porque descobri coisas na minha análise, e depois por viver pessoalmente certas coisas. Ao terminar a graduação em psicologia, quis estudar isso, sobretudo a questão do desaparecimento na melancolia. Era isso o que me interessava, foi por isso que busquei naquele momento Pierre Fédida, que escrevera muito sobre a ausência. Em seguida, estudei “Luto e melancolia”. Li também o livro Erótica do luto: no tempo da morte seca, de Allouch. Tudo isso começou a se misturar. Fiz então uma tese sobre esse tema, intitulada Psicopatologia do desaparecimento. Minha forma de trabalhar o assunto estava mais ligada ao desaparecimento dos corpos, em especial nas guerras, e ao luto vinculado a um desaparecimento, a uma morte traumática, acidental, da noite para o dia, algo de invasor. Abordei a questão do fantasma, da fantasia… Se bem me lembro, eu me inscrevi no doutorado em 2000. Fédida me havia dito: “Trabalhe com Didi-Huberman”, autor de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby
Warburg. Fédida tinha umas fulgurâncias. Ele me disse que era esse o meu tema de doutorado. Eu não percebia de forma alguma que trabalhava sobre isso, e então Fédida… Você conheceu Fédida?
Aí encontrei Didi-Huberman, Warburg etc. Fédida morreu dois anos depois, no meio da minha tese sobre o desaparecimento e o luto. O que me interessava muito era a questão da melancolia, essa suspensão temporal, esse momento em que a morte não existe mais, basicamente. Algo bastante paradoxal. Foi isso o que me interessou. Depois, em minha tese, eu me aproximei bastante do pensamento de uma filósofa da imagem, Marie-José Mondzain, que se tornou uma amiga. Quando terminei o livro sobre o enigma do luto, pedi a Marie-José Mondzain que o prefaciasse, e ela muito amavelmente aceitou. Convidei-a porque tinha me orientado, naquele momento do meu trabalho, por uma de suas frases, que, se bem me lembro, dizia: “É apenas pela visão que o irrepresentável pode ser simbolizado”. Essa frase um pouco enigmática me fez trabalhar, e eu me disse: “Essa frase é RSI”, ou seja, o irrepresentável da morte, que mostra algo de inominável, de impossível, que mostra o real. É a visão que vai mostrar o imaginário, é a simbolização que vai mostrar algo da ordem… Passei então a trabalhar com Freud, levando em consideração o conflito, a ambivalência, a morte etc., mas também com o que se amarra e se desamarra. Comecei a tricotar com meus próprios fios, de fato, o pensamento lacaniano, o pensamento freudiano. Como eu estava na questão da melancolia, obviamente encontrei também tudo o que aparece da crueldade do supereu… Não sei se respondi, mas…
LPO: Sim, sim. Mas e o enigma do luto, o enigma para você?
LL: É uma expressão freudiana: o enigma do luto. Freud diz que nunca faremos luto algum. Quando morre sua filha Sophie, diz que jamais substituiremos alguém. Esse é o enigma. A dor do luto permanece um enigma. E é Freud quem o diz. Então, se é Freud, ele tem razão. [Risos.] Mas o enigma… é a pura perda. É isso. A perda seca, na expressão de Allouch. E depois o que se passa? A partir das minhas interrogações, comecei a ler o que diz Judith Butler sobre a melancolia do gênero. Evidentemente, isso me interessa. Penso que ela aborda o assunto de forma muito inteligente; discorre sobre a melancolia em relação ao gênero, à heterossexualidade, à homossexualidade, aos objetos. Trabalhei com essas questões.
BS: É interessante pensar que, para Butler, os textos fundadores de Freud são “Luto e melancolia” e O eu e o isso. A obra Problemas de gênero começa por essas duas leituras psicanalíticas. Segundo Butler, o luto é uma certeza e a melancolia uma questão. Diz ela que Freud distingue o luto, reação a uma perda inevitável, da melancolia, quando o sujeito não sabe o que perdeu. Para Butler, não se trata de um luto do gênero, mas de uma melancolia do gênero. De acordo com ela, não sabemos nada, não sabemos como vamos continuar, não sabemos o que vamos fazer. Uma explicação tal qual Butler propõe, ou seja, pensar o “tornar-se” homem ou mulher através de alguma coisa que perdemos e que não poderemos ter, é isso o que interessa a você? Ou isso lhe parece excêntrico, como a vários psicanalistas que consideram que Butler não compreendeu a psicanálise nessa questão?
LL: Veja, quando leio lacanianos afirmando que Butler não compreendeu Lacan, tenho vontade de acrescentar: Butler não compreendeu o Lacan de vocês; compreendeu outro Lacan. Ela inverte uma proposição: é o tabu da homossexualidade que lhe interessa em primeiro lugar, não o do incesto.
BS: Exatamente. Estou de acordo. O que me interessa é que ela diz que o tabu da homossexualidade antecede o tabu do incesto. É curiosa essa construção teórica da interdição de amar alguém do mesmo sexo para a imagem edipiana advir.
LL: Sim, isso significa que a história do tabu do incesto é a questão da construção da família, a qual seria posterior à questão das “identidades sexuais”; significa que o incesto é um dispositivo familiar – logo, é uma construção que vem depois.
BS: Mas me parece que, se acompanhamos seu trabalho, não é necessário chamar isso de melancolia do gênero para compreender o que ela fala. Para você, a construção do gênero é melancólica?
LL: Creio que não. O que é melancólico é a emancipação, acompanhada pela satisfação. Colocamos a psicanálise excessivamente ao lado do trágico. Há pouco, não lembro onde, li esta frase de Lacan: “O sexual ressalta o cômico”.
LPO: Sim, Lacan diz isso. Talvez não o sexual, mas o falo. O pênis é o falo triste, algo assim. No seminário sobre o RSI, Lacan diz: “O falo é outra coisa, é um cômico como todos os cômicos, é um cômico triste. Quando vocês leem Lisístrata, vocês podem pegá-lo pelos dois lados. Rir ou achar amargo. Deve-se dizer também que o falo é o que dá corpo ao imaginário”. É a lição de 11 de março de 1975.
LL: Mas ele o diz várias vezes e de maneiras diferentes. Diz que é preciso abandonar o trágico, uma espécie de herança, digamos, romântica da sexualidade, da psique, do desejo, da falta etc., como se fosse necessária uma autopunição melancólica com relação a isso, algo bastante curioso. Por isso, Lacan é muito mais libertador. Penso que ele sublinha muito mais o cômico, contrariando a imagem que usualmente se tem dele, fixada na questão do desejo – na verdade, um tipo de pregação em torno dos dramas da castração, da falta. A clínica é muito mais inventiva que isso. Por exemplo, estou ministrando um curso sobre identidade social e identificação psíquica. Falamos muito da questão da identidade de gênero, da identidade sexual, da sigla LGBTT. Fiquei sabendo que existem na França 70 possibilidades de identidade de gênero. Pedro Ambra defendeu uma tese, orientada por mim e por Nelson da Silva Júnior, em que comenta coisas bastante interessantes a respeito desse assunto, uma tese muito criativa. Digo aos estudantes: “Escutem, eu aprendo com vocês. É preciso que vocês me ajudem para que eu aprenda”. LGB, na verdade lésbica, gay e bissexual, corresponde às práticas sexuais de fato, à orientação sexual. Todo o resto, nas siglas, é a questão da identidade de gênero: trans, queer, questioning, assexual, poliamor, kink etc.
BS: E tudo isso se mistura, você tem razão. É possível ser lésbica e trans…
LL: Um estudante me enviou um e-mail dizendo: “A senhora nos falou da sigla LGBTQQ. Existe outra, ainda mais longa, que faz referência a outros gêneros: “LGBTQQIP2SAA”. Ela reúne lésbica, gay, bissexual, transgênero, queer, questioning, intersexual, pansexual, dois-espíritos, assexual e aliados. Outro estudante hoje me escreveu: “Não podemos esquecer poliamor e kink”.
BS: Kink é o oposto de vanilla, ou seja, o oposto de práticas sexuais menos perigosas, menos “apimentadas”, mais tradicionais. Mas o que define o que é tradicional é outra questão…
LPO: Kink quer dizer simplesmente sexo um pouco sujo, escatológico, talvez um pouco violento, bizarro.
LL: É muito interessante.
BS: É interessante também na sua incoerência.
LL: Certamente. Acho engraçado, cômico. E então ouço lacanianos falando coisas terríveis sobre isso. Dizem: “É a captação imaginária… É a onipotência, blá-blá-blá… É preciso parar… É preciso limitar… Estão dessimbolizando… E a lei… E patati, patatá, e não sei o que mais”. É um jargão. Acho que Lacan não o teria aceitado. Talvez esteja enganada, mas ouso pensar que Lacan teria visto o lado cômico disso tudo.
LPO: Você escreveu sobre a pornografia, sobre o humor e sobre a prostituição. Quais relações você vê entre pornografia e humor?
LL: Fui a um maravilhoso museu em Genebra, a Fundação Bodmer, onde havia manuscritos de Sade (Os 120 dias de Sodoma), manuscritos antigos e também uma pequena carta de Freud. Foi lá que me dei conta de que os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e O chiste e sua relação com o inconsciente foram escritos ao mesmo tempo, em 1905. Acredito que isso seja importante de um ponto de vista epistemológico. Quanto à pornografia, escrevi o prefácio para um livro de Eric Bidaud sobre pornografia e psicanálise. A respeito da prostituição, eu a abordei num artigo para uma exposição no Museu d’Orsay há dois anos. Alguns fenômenos, como a prostituição e a pornografia, são debatidos de maneira muito dura, violenta, no âmbito do feminismo. Creio ser muito difícil pensá-los. Assim, um pouco de humor… Rir sempre ajuda. O humor é como o amor. O que me interessa no humor é a possibilidade de deslocar o sujeito. Eu utilizo o humor na minha clínica, interpretações que podem parecer divertidas. Evidentemente, isso não é calculado. Com uma gargalhada no momento certo, o que é trágico pode, sem dúvida, se deslocar. Penso que Lacan foi uma pessoa engraçada. E Freud também. Seria preciso retomar as questões relativas ao humor e ao riso do ponto de vista da psicanálise. Porque Freud escreveu dois textos ao mesmo tempo. Então, ele tricotou um com o outro.
*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.
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por Criação Humana | jun 19, 2023 | authors, blog, book clubs
O professor Christian Dunker foi convidado pelo Instituto Norberto Bobbio para contar 4 lições de psicanálise. A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.
As “Cinco Lições de Psicanálise” constituem um texto com uma reunião de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 -1939) em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts. Nessa conferência, Freud busca apresentar, para um grupo não especializado, os principais conceitos da teoria que desenvolveu neste período. Inspirada por essa ideia, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou no dia 9 de janeiro de 2023, com o Prof. Christian Dunker (USP) sobre suas próprias lições de psicanálise.
Lição número 1
O texto ” Cinco Lições de Psicanálise” foi a porta de entrada pela qual eu comecei a ler psicanálise. Inclusive, muita gente que estuda esse assunto começou por esse trabalho muito popular. É interessante como ele possui vários ingredientes que falam sobre uma psicanálise para o nosso tempo, à altura da nossa subjetividade. Isso é importante porque há formas de psicanálise anacrônicas, que operam sobre parâmetros definidos no século XIX ou que confirmam preconceitos e moralidades já obsoletas. Mas vamos lembrar que essa conferência aconteceu nos Estados Unidos, então para que Freud pudesse contar suas lições ele saiu de seu lugar natural, a cidade de Vienna.
Isso é significativo porque, no fundo, Freud precisou falar com o outro em uma língua que não dominava. De fato, ele se sentia meio estranho quando chegou no porto de Boston e se deparou com uma banda tocando para receber o “grande pensador autríaco”. Reza a lenda que ele comentou com Carl Jung e com Sándor Ferenczi: “os americanos estão pensando que vamos salvar o mundo, mas estão enganados. Estamos aqui para trazer algo que vai desmontar e tornar a coisa mais crítica, mais conflitiva”.
A minha primeira lição está relacionada com esse contexto. Para estudar psicanálise temos que gostar do estrangeiro, do outro e da sua língua. Ou melhor, é preciso falar a língua do outro, ser capaz de simpatizar com formas de vida diversas e sair de si mesmo. Aquele que acha que vai aumentar o tamanho do seu eu se restringindo a si está agindo errado. Na verdade, essa pessoa vai criar uma espécie de regime. A psicanálise vai te convidar ao encontro com seus outros.
Lição número 2
A segunda lição demonstra a importância da psicanálise no mundo em que vivemos pois, no fundo, ela é uma experiência metódica, controlada, abrigada, protegida de crise auto induzida. Você pode até pensar que está tão bem, mas o processo psicanalítico vai colocar em cheque os seus amores, seus ídolos, suas identificações, suas fantasias e tudo o que você acha a seu respeito. E se tudo der certo, no que você vai se transformar? Em um viajante que não precisa mais de malas e sacolas, pois não precisa levar consigo tudo para se garantir e se defender do outro na viagem da vida. É importante reduzir essa bagagem, esse conjunto de coisas que a gente carrega nas costas e que cansam a gente: as decepções, frustrações e expectativas. Entender que essas coisas fazem parte é o que você vai ganhar entrando em crise.
Mas, de brinde, vem outra facilidade, que é diminuir o custo subjetivo para viver. Assim, podemos nos perguntar: quanto o outro sofre para fazer aquilo que faz tecnicamente tão bem quanto você? Quando o outro se relaciona com algo com uma espécie de andamento opressivo, quando ele se joga em uma situação se demitindo do seu próprio desejo? Tudo isso implica em um custo subjetivo mais alto do que precisaria. E o custo subjetivo já é alto por excelência porque a vida não é exatamente um passeio de flores. Para aquele que é mais neurótico, viver equivale a uma viagem cheia de malas, como se abelhas picassem o tempo inteiro sua cabeça, dizendo: “você é inadequado, você não fez o que deveria, você não está a altura de si mesmo, etc.”.
Portanto, nessas condições, para continuar caminhando o custo é muito alto. Para ir em frente, o custo subjetivo das suas escolhas, dos seus fracassos e dos seus desencontros é muito alto. A psicanálise, ao criar uma crise controlada, ensina que a gente pode viver em crise; tanta segurança já não é mais necessária. Em geral, todos nós temos nossos temores, que nos chantageiam mais do que é preciso. Costumamos dizer que o neurótico é um pouco covarde, não covarde no sentido heróico, mas consigo próprio porque a vida implica tomadas de decisões que muitas vezes são incertas mesmo.
Lição número 3
Nas conferências de Freud, em que leciona suas Lições, em um dado momento ele utiliza uma boa metáfora. Ele está em um auditório cheio de gente falando, quando aparece alguém que começa a bater na porta querendo entrar. Essa pessoa começa a fazer perguntas e interromper a todo instante o orador, tornando-se desagradável. O que você faz? Você expulsa ele, põe ele para fora, e lá ele atrapalha ainda mais. São os sintomas. O palestrante é o Eu, os outros são o auditório e esse alienígena representa nossos desejos, aquilo que a gente nega em nós mesmos.
Nessa metáfora, Freud diz que o neurótico adora um condomínio, ou seja, os lugares onde só tem gente igual a ele. Mas talvez seja melhor admitir esse estrangeiro dentro, talvez seja melhor baixar o muro e abrir as portas porque a conferência pode ser muito mais interessante com a presença do outro. Pelo menos, essa é uma opção melhor do que ficar brigando com aquilo que quer entrar.
Ou seja, não expulse pela janela da frente aquilo que vai entrar pela janela de trás. Não ache que a vida é um método pelo qual você vai encontrar ordem. Não é só obedecer para resolver tudo. A psicanálise vai se opor a essa vida feita de espelhos, que sugere que todo mundo é como você.
Lição número 4
Quando chegou nos Estados Unidos, Freud precisou falar a língua do outro. Isso é interessante porque ele tem uma mente muito empática, capaz de utilizar a linguagem para se comunicar. No mundo de hoje a gente desaprendeu a escutar, a escutar aquele que está batendo na nossa porta querendo entrar. Mais ainda, desaprendemos a escutar nós mesmos.
Então a psicanálise ensina a capacidade de escutar, o que costuma ser um grande negócio para advogados. Todos os advogados precisam escutar seus clientes antes e durante sua estadia na justiça reparatória, na medição ou na arbitragem. É notável como o direito se aproxima de uma prática de escuta de conflito. E se você acha que será possível ter acesso aos conflitos do outro sem jamais interferir nos seus, é melhor que o advogado troque de profissão. Portanto, o trabalho de formação para a escuta é algo que está presente em Freud e, na minha opinião, é absolutamente faltante e desejável na nossa situação contemporânea.
Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade, O palhaço e o Psicanalista e Psicanálise e Saúde Mental, disponível aqui.