Laboratoria: espaço transnacional de investigação feminista
por Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda.
“Dívida ou vida” dizia um grafite de rua na Calle de la Fe, no bairro madrilenho de Lavapiés. Entendemos dessa demanda: nossa luta pelo direito à moradia digna é, fundamentalmente, uma luta contra a dívida. Nosso movimento, a Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca, leva o nome escolhido em meio ao grande estouro da bolha hipotecária que vivíamos na Espanha a partir do final dos anos 2000. Porém, de uma forma ou de outra a dívida havia pousado em nossas vidas muito antes de sermos hipotecados ou não.
Ao longo de 2020 realizamos uma série de entrevistas, conversas e encontros entre as mulheres da nossa assembleia, das quais nasceu o caderno Até a queda do Patriarcado e não haver mais um despejo. Dívida, habitação e violência patriarcal. Nas histórias, além da hipoteca, apareceram dívidas contraídas para migrar ou estudar; microcréditos para abrir uma empresa, mas também para cobrir emergências de trabalho, como perda de ferramentas de trabalho; dívidas para cobertura privada de saúde; empréstimos ao consumidor e compras parceladas; empréstimos para pagar as contas, para necessidades atuais, como alimentos, produtos de higiene, gasolina, água e eletricidade ou medicamentos. Não houve vidas que não tenham passado por endividamento em um momento ou outro, mas sabemos que, mesmo que o fizesse, a dívida também estaria na vida dessas pessoas por meio da dívida pública e seus mandatos políticos se traduziriam em cortes no sistema de serviços públicos.
A dívida é, ao mesmo tempo, um sistema de formação social que produz obediência; um mecanismo de extração de nossa força vital e de trabalho; e uma máquina geradora de vulnerabilidade, que não só nos expõe à violência financeira que se pratica na relação credor-devedor, mas também a outras violências racistas, sexistas e heteropatriarcais ou trabalhistas. Essas três funções – obediência, extração, vulnerabilidade – são muito úteis no nível estrutural do funcionamento do capitalismo global. Primeiro você cria uma mentalidade, uma predisposição e até uma aceitação; serve para que a nossa criatividade, a nossa energia e o nosso corpo sejam produtivos em contextos utilizáveis para a produção de lucro para os outros, que se acumula nas suas mãos em vez das nossas; e no final essa distribuição de funções se soma a outras violações de nossos direitos que nos deixam sem opção, nem mesmo a possibilidade de fugir.
Uma vez que reconhecemos o que já expomos, começamos a ver outras nuances. Não basta dizer “dívida ou vida”, porque as características de cada dívida definem qual vida e em que condições ela é permitida. Define o ponto de partida da luta, porque olhar atentamente para essas características permite inventar formas de alargar as condições que se dão, de lutar por mais espaço para a vida. Por isso, embora entendamos o endividamento como um mecanismo opressor, embora nos oponhamos à centralidade que ganhou na organização social, embora resistamos à obrigatoriedade do endividamento… as nossas realidades e a nossa luta obrigaram-nos a perguntar também: como viver com dívidas, uma vez que as temos?
Temos dívidas… e ainda assim vivemos. Acreditamos que existe uma conexão entre os efeitos que a dívida tem em nossas vidas e os fatores que diferenciam cada um dos nossos endividamentos. Em nossas conversas, as questões que interessaram foram o valor total da dívida; o valor mensal a ser pago – definido pelos juros e pelo prazo de amortização, além do total –; as garantias entregues e/ou os fiadores a considerar; as condições de retorno e a possibilidade de alterações, tais como a carência, etc; o envolvimento ou não de relações pessoais no esquema de dívidas e reembolsos; também a natureza da parte credora e que tipo de conduta se pode esperar dessa parte. Então nos perguntamos: como se endividar, se for preciso, em menos quantidade e com melhores condições?
Não estamos pensando em esquemas de pirâmide ou ONGs de microcrédito navegando nas bandeiras do feminismo pseudo-espiritual, liberal, caritativo ou tecnocrático. Pensamos em um futuro compartilhado de redes globais de resistência diante da realidade atual do endividamento obrigatório, capaz de mesclar estratégias de default organizadas com a construção de economias comunitárias justas, dignas e sustentáveis. Todas nós contraímos dívidas e queremos viver para contar a respeito. Qual é o seu histórico de dívidas?
Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda são integrantes de PAH Vallekas e seu grupo de mulheres.
Este é o fato mais grave desde a recuperação da democracia. Um evento de gravidade institucional inusitada, mas que vemos particularmente como uma mensagem e uma tentativa de disciplinamento para toda a militância. Sobretudo, para as mulheres que ousam fazer política, alcançar posições de liderança e enfrentar poderes econômicos.
É uma pedagogia em grande escala: se você entrar na política, se representar os interesses populares e for mulher, pode acabar com uma arma na cabeça. Aquele revólver na cabeça de Cristina é um revólver na cabeça de todas as mulheres, lésbicas, travestis e trans que se animam a disputar e dar debater em seus espaços políticos.
É um revólver que todas nós temos em nossas cabeças. Para nós, a imagem é muito forte e também é muito forte que ela esteja se repetindo. Pensamos em como será agora para aquelas meninas que cresceram com a imagem de Cristina na televisão nacional, com a imagem de uma mulher forte, de uma mulher que respondeu aos poderes, e que agora veem que fazer política nessa escala e mexer com esses interesses sendo uma mulher pode fazer com que um revólver seja colocado em sua cabeça.
É claro que acreditamos que o repúdio tem que ser absoluto. Um repúdio que não tem a ver apenas com Cristina, mas com a vida de toda a militância, com a possibilidade de viver em um Estado de Direito, em uma democracia onde a mobilização popular, a organização e a militância feminista são possíveis.
E, além disso, acreditamos que isso deve gerar um debate profundo. Uma das primeiras leituras feitas pela oposição, com o objetivo de diminuir a gravidade do fato, foi falar a partir dos argumentos mais grotescos, dizendo que poderia ser algo orquestrado inclusive pelo próprio kirchnerismo.
Mas, o que se instalou – e que para nós é o mais nocivo -, é a ideia do “louco à solta”, de alguém isolado que tenta cometer o assassinato. E isso nos lembra muito as explicações que existem quando dizemos claramente que os feminicídios e que a violência contra a mulher, a violência contra mulheres travestis e trans, contra lésbicas, contra pessoas não-bináries, são originadas de problemas estruturais que depois se consumam na ação, no momento em que vemos o feminicídio ou travesticídio. Assim, a teoria do “louco à solta” parece-nos muito problemática. O que precisa ser gerado é uma discussão profunda sobre o papel da mídia em tudo isso, que estigmatiza militâncias populares e lideranças populares.
A maneira como os limites do que pode ser dito foram empurrados em nossa democracia e são sistematicamente estigmatizados, produz discurso de ódio. É uma engrenagem midiática articulada com figuras da oposição, mas também tem outro poder por trás, como o Judiciário, que também faz parte desse processo de estigmatização.
Devemos gerar um debate profundo, por exemplo, sobre o papel da mídia. É inaceitável que continuem a ser dadas pautas oficiais aos meios de comunicação que promovem e incentivam o discurso de ódio. Isso tem que mudar. Tem que haver um debate profundo sobre a democratização da mídia. Temos que sair e dizer “não”, dizer “basta”, estabelecer um limite. Eles atravessaram o limite, e tudo o que parecia estar no plano discursivo ou midiático, passou agora ao plano material. Para nós, é preciso que seja construído um limite muito grande, porque por trás dessa imagem há uma mensagem de disciplinamento muito específica para todas as militâncias populares e para todas as mulheres. Particularmente, para aquelas que ousam representar interesses populares e tentar intervir em espaços dessas esferas políticas.
Houve também um despertar da mobilização popular. Pelo menos, da base mais identificada com a figura da vice-presidenta. Havia uma militância que estava desmobilizada e buscava voltar às ruas e recuperar uma mística. Essas expressões de amor na porta da vice-presidenta incomodaram muito o Judiciário e os poderes concentrados. Qualquer coisa que foge aos seus controles incomoda. Parece-me que o que aconteceu deve ser colocado em relação direta aos discursos de ódio, ao avanço repressivo da Prefeitura na semana passada em Buenos Aires, a essa escalada da reação repressiva que eles tiveram a certas expressões de amor, e que culminou ontem com essa tentativa de assassinato.
Há um desafio de somar a essa defesa da figura de Cristina um programa político que possa conquistar setores populares mais amplos. Esse é o desafio. Além de expressar esse amor e essa retomada da mobilização popular em torno da figura de Cristina, também associá-la a uma série de medidas que vão a favor dos interesses populares.