A pesquisadora francesa comenta sobre seu trabalho desconstruindo tabus sexuais nas pesquisas que envolvem a psicanálise.
“Liberdade, igualdade, fraternidade!”: A Revolução Francesa é a representação do papel do povo na luta pela democracia. Contudo, durante muito tempo, os direitos universais do homem eram assegurados efetivamente apenas para o homem.
Esta realidade é testemunhada por Laurie Laufer, que se desenvolveu como acadêmica em estudos de gênero, psicanálise e políticas sexuais durante a ascensão do conservadorismo francês na última década.
Laurie Laufer embarcou, em 2017, para a Costa Rica em uma parceria com a Faculdade de Psicologia da França para ministrar um seminário sobre gênero e psicanálise, possibilitando essa entrevista.
Você é autora do livro “Qu’est-ce que le genre?”, onde aborda um conceito básico muito importante nos estudos feministas. Como ele abrange a definição de gênero na sociedade contemporânea?
O livro é uma obra coletiva: integra literatura, cinema, sociologia, história da ciência política, psicanálise, psicologia, psicologia do trabalho, etc. É um livro que tem como perspectiva estudar gênero a partir de diferentes pesquisadores e áreas de pesquisa e como eles utilizam o conceito para desconstruir estereótipos, preconceitos que naturalizam as relações sociais. O livro é uma resposta ao contexto atual francês em torno do conceito de gênero. Os conservadores diziam que todos aqueles que trabalhavam com gênero queriam que as mulheres se transformassem em homens, que todos eram homossexuais, que os filhos adotados por casais homoafetivos iriam enlouquecer… uma radicalização. Uma propaganda muito forte, muito conservadora, dos estudos de gênero. A resposta que proponho é que o gênero é um método para analisar hierarquia, discriminação, práticas discursivas e construções sociais.
Você possui uma ampla pesquisa sobre a psicanálise, como feminista. Que abordagem você dá a este viés da psicologia, considerada ainda muito patriarcal, e como combina com autorxs mais modernxs e feministas como Butler e Foucault?
Quando falamos de reprodução e sexualidade a situação fica bastante complicada. A psicanálise é uma ciência da sexualidade. Na década de 1950, a questão da transexualidade foi introduzida no campo da psicanálise e, a partir daí, iniciou-se o contato com o conceito de gênero. Contudo parou por aí, pois houve um movimento de patologização e medicalização da psicanálise. Durante todo esse tempo, o trabalho das ciências sociais a partir do gênero continuou a se desenvolver e esse distanciamento da psicanálise das questões sobre a sexualidade acabou provocando a rejeição de muitos grupos intelectuais.
Atualmente, em comparação com as ciências sociais, os psicanalistas estão apenas começando a estudar e dar as suas impressões e opiniões nos estudos de gênero. No campo da psicanálise, poucos pesquisadores questionam as práticas discursivas, o surgimento de conceitos e noções como a diferença entre os sexos, por isso me considero uma minoria dentro da academia. Fui a primeira a trabalhar essa relação entre gênero e psicanálise, já fora da universidade há outras pessoas que trabalharam essas questões a partir dos estudos de gênero, mas também são uma minoria do campo da psicanálise. É por isso que esta relação entre gênero e psicanálise permanece tão subversiva.
Você se autodefine como ainda uma minoria acadêmica dentro dos seus campos de estudo. Qual é a reação dos demais pesquisadores quando você expõe o que você vem estudando e propondo?
Na França há uma diferença política em relação aos Estados Unidos, por exemplo. Há uma tradição em relação ao discurso de que o direito do homem é universal, um republicanismo universalista. Em contrapartida, os Estados Unidos reconhece a particularidade das comunidades e por isso encontramos estudos específicos em relação as lésbicas, gays, pessoas com deficiência, negros, entre outros. Cada “comunidade” produz suas pesquisas, seus estudos, projetos, em diferentes campos. Na França não acontece dessa forma. É por isso que no início foi fácil dar lugar a esta posição. Repreenderam-me por ter uma abordagem americana, o que na França é um insulto. Me censuraram por sociologizar a psicanálise – o que é outro insulto -, e me censuraram por ter um discurso militante.
A psicanalista francesa Laurie Laufer é a nova autora da Criação Humana. Laurie é psicanalista, feminista, diretora e professora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7. Em 2024 lançaremos a tradução do livro “Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion”.
A trajetória do livro “Psicanálise e Saúde Mental”, lançado em 2015, foi acompanhada e mantida pela ampla acolhida entre pesquisadores e trabalhadores de saúde mental. As dezenas de citações em dissertações, teses e artigos acadêmicos e as reiteradas solicitações de profissionais da saúde pública por uma nova edição deste trabalho demonstram a relevância de seu conteúdo para os interessados no campo da saúde mental em seu diálogo com a teoria psicanalítica.
Do lançamento da primeira edição até o presente momento, nosso país viveu importantes retrocessos no campo da saúde mental. A Nota Técnica n. 11, de 2019, assinada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas esclarece uma série de mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas assevera a ampliação da RAPS, que passa a contar com mais serviços, entre eles, os hospitais psiquiátricos, cuja busca pelo fechamento configura um dos princípios basilares da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e as comunidades terapêuticas, com seu histórico recente de violação dos direitos humanos fartamente documentado em relatório elaborado pelo Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo.
A Nota Técnica apresenta um deslocamento significante em sentido contrário aos princípios das Reformistas. Ela anuncia a revogação dos termos “rede substitutiva” ou “serviço substitutivo”, visto não existir mais apoio do governo brasileiro à extinção dos manicômios. Ela incentiva o atendimento ambulatorial em serviços para os quais convergem muitos usuários, minando, desta forma, o caráter territorial dos serviços e possibilita, ainda, o retorno do financiamento pelo Ministério da Saúde do questionável tratamento por eletroconvulsoterapia.
Em diálogo com este cenário de desmonte do processo político que culminou com a Reforma Psiquiátrica, o capítulo incluído nesta edição nos recorda sobre os efeitos deletérios das práticas manicomiais presentes nos grandes hospícios brasileiros e seus ecos, ainda presentes, nos serviços inspirados nos ideais da Reforma Psiquiátrica, principalmente em uma cidade com longa trajetória hospitalocêntrica. Traçamos um breve percurso histórico e crítico sobre o centenário Hospital Colônia de Barbacena, visitado por Basaglia em 1979 e por ele nomeado de “campo de concentração nazista”.
A reflexão qual psicanálise para qual saúde mental, que apresentamos na primeira edição deste livro é imprescindível para a resistência a este estado de coisas. A transformação da saúde mental em um condomínio, gerido pela diagnóstica da medicina baseada em evidências impede a circulação da palavra. Reafirmamos que a manutenção do sujeito em seu meio de pertença, possibilitada pela rede substitutiva, oportuniza o imprescindível resgate da clínica. Nos moldes hospitalocêntricos, a clínica enquanto acolhimento da loucura através de um operador de escuta era impraticável, tendo em vista o contexto opressor do hospital psiquiátrico. Nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os usuários circulam pela polis, estão em contato com a alteridade. É na dialética com o outro que a linguagem se constitui como fundamental na mediação. É a linguagem como campo simbólico que compele o sujeito e possibilita o surgimento de sua singularidade. E aqui surge a possibilidade de uma práxis clínica que desvele o sentido do delírio para aquele que sofre, por intermédio de um discernimento da forma singular do sujeito para aquilo que lhe parece alheio. Falamos de uma psicanálise que se afasta do dispositivo disciplinar e se aproxima da dimensão trágica da existência.
Christian Dunker é psicanalista, professor, youtuber e trabalha em diversas áreas das ciências humanas. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, atualmente coordena, ao lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip).
Fuad Kyrillos Neto é professor, psicanalista e pesquisador. Além de temas relacionados à saúde mental na perspectiva da psicanálise, pesquisa a inserção da teoria psicanalítica no Brasil e suas aplicações em relação às práticas sociais hegemônicas. Interessa-se, ainda, pela temática do poder e política do psicanalista no que concernem às rupturas e às discordâncias no interior da tradição lacaniana da psicanálise.
O leitor da língua portuguesa, finalmente, acaba podendo acessar uma obra rara [Foucault além de Foucault: uma política da filosofia] – não apenas por seu formato artístico, como livro-experiência -, mas pela erudição, rigor e precisão que Sandro Chignola conduz o assunto. Sobretudo, pela tomada de postura do autor, ao gosto daqueles que valorizam o esforço foucaultiano, Sandro não o monumentaliza. Arriscar fazer de Michel Foucault um “monumento”, fazer falá-lo como um “autor”, sem incoerências, contradições e desvios, seria traí-lo. Usar e ativá-lo de modos múltiplos é, de fato, também, ao gosto foucaultiano, perceber a filosofia como lugar de intervenção permanente, contestando seu próprio estatuto e, assim, também, permitir fazer política – “política da filosofia”, portanto.
Em hora melhor não poderia aterrizar, no Brasil, de modo bem apanhado, os estudos de Sandro sobre Foucault. A pena de um dos maiores experts no autor francês torna possível a inadiável obrigação de liberar Foucault da docilização que, não raro, acomete seus comentadores praticamente em todas as áreas. Contra o adestramento – quando não torsão pouco honesta na direção de ideários que jamais passariam pelo engajamento foucaultiano – que, em alguma medida, dispõe Foucault preocupado centralmente com o poder (juridificado, por suposto) e não com a produção de subjetividades como, rigorosamente, era; quando não reduzido à disciplina ou, pior ainda, através da ordenada periodização do seu recurso filosófico, que acaba hoje em dia, com força talvez hegemônica, fazendo com que Foucault seja encampado e reduzido por tanatofilosofias soberanistas e estatalizantes – Sandro, lembra, com o eco do professor de todos nós, Toni Negri, que la vita sfugge senza posa.
Augusto Jobim do Amaral é professor da PUCRS [PPGCCrim e PPGFil], é coordenador do Grupo de Pesquisa “Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica” (@politicrim) e coordenou a tradução e a revisão técnica do livro “Foucault além de Foucault: uma política da filosofia”, do professor Sandro Chignola. O livro foi traduzido diretamente do italiano.