No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.
Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.
A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.
A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?
O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015.
A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.
No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?
Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.
Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?
Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas.
O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.
E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?
As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.
E de gênero também?
Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.
Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil?
Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil.
Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.
Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.
Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?
O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil.
Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política.
Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.
Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?
Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.
Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.
Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.
Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas.
Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015?
Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.
As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.
No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero.
Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.
Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.
Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?
A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.
Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?
Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.
Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça.
Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.
Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?
O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região.
Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.
Quando VerónicaGago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reproduçãosocial como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modeloneoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reproduçãosocial refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.
A entrevista é de EmilianaPariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reproduçãosocial, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.
Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reproduçãosocial serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.
Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.
No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?
“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzira vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.
É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutasfeministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reproduçãosocial, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.
Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismoé violento e que a violênciapatriarcal é, por sua vez, neoliberal”.
Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.
Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violênciaestrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.
Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.
Essa é mais uma potência dos feminismosatuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violênciasistêmica.
Soma-se a isso o fato de que os movimentosfeministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.
Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.
Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a ofertaneoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violênciasistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.
Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.
Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?
As crises facilitam certa criatividade política e a autogestãoereapropriaçãodefunções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentosfeministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reproduçãosocial, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutasfeministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.
Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?
É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.
Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.
Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?
Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirizaçãodareproduçãosocial, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reproduçãosocial que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.
Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.
Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.
Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?
Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.
Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.
Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formasde recolonizaçãodonossocontinente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.
Laboratoria: espaço transnacional de investigação feminista
por Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda.
“A dívida é a escravidão moderna”. Imagem: reprodução.
“Dívida ou vida” dizia um grafite de rua na Calle de la Fe, no bairro madrilenho de Lavapiés. Entendemos dessa demanda: nossa luta pelo direito à moradia digna é, fundamentalmente, uma luta contra a dívida. Nosso movimento, a Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca, leva o nome escolhido em meio ao grande estouro da bolha hipotecária que vivíamos na Espanha a partir do final dos anos 2000. Porém, de uma forma ou de outra a dívida havia pousado em nossas vidas muito antes de sermos hipotecados ou não.
Ao longo de 2020 realizamos uma série de entrevistas, conversas e encontros entre as mulheres da nossa assembleia, das quais nasceu o caderno Até a queda do Patriarcado e não haver mais um despejo. Dívida, habitação e violência patriarcal. Nas histórias, além da hipoteca, apareceram dívidas contraídas para migrar ou estudar; microcréditos para abrir uma empresa, mas também para cobrir emergências de trabalho, como perda de ferramentas de trabalho; dívidas para cobertura privada de saúde; empréstimos ao consumidor e compras parceladas; empréstimos para pagar as contas, para necessidades atuais, como alimentos, produtos de higiene, gasolina, água e eletricidade ou medicamentos. Não houve vidas que não tenham passado por endividamento em um momento ou outro, mas sabemos que, mesmo que o fizesse, a dívida também estaria na vida dessas pessoas por meio da dívida pública e seus mandatos políticos se traduziriam em cortes no sistema de serviços públicos.
A dívida é, ao mesmo tempo, um sistema de formação social que produz obediência; um mecanismo de extração de nossa força vital e de trabalho; e uma máquina geradora de vulnerabilidade, que não só nos expõe à violência financeira que se pratica na relação credor-devedor, mas também a outras violências racistas, sexistas e heteropatriarcais ou trabalhistas. Essas três funções – obediência, extração, vulnerabilidade – são muito úteis no nível estrutural do funcionamento do capitalismo global. Primeiro você cria uma mentalidade, uma predisposição e até uma aceitação; serve para que a nossa criatividade, a nossa energia e o nosso corpo sejam produtivos em contextos utilizáveis para a produção de lucro para os outros, que se acumula nas suas mãos em vez das nossas; e no final essa distribuição de funções se soma a outras violações de nossos direitos que nos deixam sem opção, nem mesmo a possibilidade de fugir.
Uma vez que reconhecemos o que já expomos, começamos a ver outras nuances. Não basta dizer “dívida ou vida”, porque as características de cada dívida definem qual vida e em que condições ela é permitida. Define o ponto de partida da luta, porque olhar atentamente para essas características permite inventar formas de alargar as condições que se dão, de lutar por mais espaço para a vida. Por isso, embora entendamos o endividamento como um mecanismo opressor, embora nos oponhamos à centralidade que ganhou na organização social, embora resistamos à obrigatoriedade do endividamento… as nossas realidades e a nossa luta obrigaram-nos a perguntar também: como viver com dívidas, uma vez que as temos?
Temos dívidas… e ainda assim vivemos. Acreditamos que existe uma conexão entre os efeitos que a dívida tem em nossas vidas e os fatores que diferenciam cada um dos nossos endividamentos. Em nossas conversas, as questões que interessaram foram o valor total da dívida; o valor mensal a ser pago – definido pelos juros e pelo prazo de amortização, além do total –; as garantias entregues e/ou os fiadores a considerar; as condições de retorno e a possibilidade de alterações, tais como a carência, etc; o envolvimento ou não de relações pessoais no esquema de dívidas e reembolsos; também a natureza da parte credora e que tipo de conduta se pode esperar dessa parte. Então nos perguntamos: como se endividar, se for preciso, em menos quantidade e com melhores condições?
Não estamos pensando em esquemas de pirâmide ou ONGs de microcrédito navegando nas bandeiras do feminismo pseudo-espiritual, liberal, caritativo ou tecnocrático. Pensamos em um futuro compartilhado de redes globais de resistência diante da realidade atual do endividamento obrigatório, capaz de mesclar estratégias de default organizadas com a construção de economias comunitárias justas, dignas e sustentáveis. Todas nós contraímos dívidas e queremos viver para contar a respeito. Qual é o seu histórico de dívidas?
Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda são integrantes de PAH Vallekas e seu grupo de mulheres.
Manifestações em apoio à Cristina Kirchner em Buenos Aires.
Este é o fato mais grave desde a recuperação da democracia. Um evento de gravidade institucional inusitada, mas que vemos particularmente como uma mensagem e uma tentativa de disciplinamento para toda a militância. Sobretudo, para as mulheres que ousam fazer política, alcançar posições de liderança e enfrentar poderes econômicos.
É uma pedagogia em grande escala: se você entrar na política, se representar os interesses populares e for mulher, pode acabar com uma arma na cabeça. Aquele revólver na cabeça de Cristina é um revólver na cabeça de todas as mulheres, lésbicas, travestis e trans que se animam a disputar e dar debater em seus espaços políticos.
É um revólver que todas nós temos em nossas cabeças. Para nós, a imagem é muito forte e também é muito forte que ela esteja se repetindo. Pensamos em como será agora para aquelas meninas que cresceram com a imagem de Cristina na televisão nacional, com a imagem de uma mulher forte, de uma mulher que respondeu aos poderes, e que agora veem que fazer política nessa escala e mexer com esses interesses sendo uma mulher pode fazer com que um revólver seja colocado em sua cabeça.
É claro que acreditamos que o repúdio tem que ser absoluto. Um repúdio que não tem a ver apenas com Cristina, mas com a vida de toda a militância, com a possibilidade de viver em um Estado de Direito, em uma democracia onde a mobilização popular, a organização e a militância feminista são possíveis.
E, além disso, acreditamos que isso deve gerar um debate profundo. Uma das primeiras leituras feitas pela oposição, com o objetivo de diminuir a gravidade do fato, foi falar a partir dos argumentos mais grotescos, dizendo que poderia ser algo orquestrado inclusive pelo próprio kirchnerismo.
Mas, o que se instalou – e que para nós é o mais nocivo -, é a ideia do “louco à solta”, de alguém isolado que tenta cometer o assassinato. E isso nos lembra muito as explicações que existem quando dizemos claramente que os feminicídios e que a violência contra a mulher, a violência contra mulheres travestis e trans, contra lésbicas, contra pessoas não-bináries, são originadas de problemas estruturais que depois se consumam na ação, no momento em que vemos o feminicídio ou travesticídio. Assim, a teoria do “louco à solta” parece-nos muito problemática. O que precisa ser gerado é uma discussão profunda sobre o papel da mídia em tudo isso, que estigmatiza militâncias populares e lideranças populares.
A maneira como os limites do que pode ser dito foram empurrados em nossa democracia e são sistematicamente estigmatizados, produz discurso de ódio. É uma engrenagem midiática articulada com figuras da oposição, mas também tem outro poder por trás, como o Judiciário, que também faz parte desse processo de estigmatização.
Devemos gerar um debate profundo, por exemplo, sobre o papel da mídia. É inaceitável que continuem a ser dadas pautas oficiais aos meios de comunicação que promovem e incentivam o discurso de ódio. Isso tem que mudar. Tem que haver um debate profundo sobre a democratização da mídia. Temos que sair e dizer “não”, dizer “basta”, estabelecer um limite. Eles atravessaram o limite, e tudo o que parecia estar no plano discursivo ou midiático, passou agora ao plano material. Para nós, é preciso que seja construído um limite muito grande, porque por trás dessa imagem há uma mensagem de disciplinamento muito específica para todas as militâncias populares e para todas as mulheres. Particularmente, para aquelas que ousam representar interesses populares e tentar intervir em espaços dessas esferas políticas.
Houve também um despertar da mobilização popular. Pelo menos, da base mais identificada com a figura da vice-presidenta. Havia uma militância que estava desmobilizada e buscava voltar às ruas e recuperar uma mística. Essas expressões de amor na porta da vice-presidenta incomodaram muito o Judiciário e os poderes concentrados. Qualquer coisa que foge aos seus controles incomoda. Parece-me que o que aconteceu deve ser colocado em relação direta aos discursos de ódio, ao avanço repressivo da Prefeitura na semana passada em Buenos Aires, a essa escalada da reação repressiva que eles tiveram a certas expressões de amor, e que culminou ontem com essa tentativa de assassinato.
Há um desafio de somar a essa defesa da figura de Cristina um programa político que possa conquistar setores populares mais amplos. Esse é o desafio. Além de expressar esse amor e essa retomada da mobilização popular em torno da figura de Cristina, também associá-la a uma série de medidas que vão a favor dos interesses populares.
Feminista, socióloga e pesquisadora, Lucía Cavallero propõe democratizar essa discussão financeira e retirá-las dos lugares masculinizados. Entrevista para La Rioja/12.
“Tirar a dívida do armário” é um dos capítulos do livro “Uma leitura feminista da dívida”, que Lucía Cavallero escreveu junto a Verónica Gago para analisar o impacto do endividamento externo nos lares. Feminista, socióloga e pesquisadora, Cavallero dialogou com La Rioja/12 sobre como o endividamento afeta de forma diferente as mulheres e pessoas LGBTQIA+. Diretora do Programas Especiais para a Igualdade de Gênero do Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual da província de Buenos Aires, ela diz que “é preciso democratizar a discussão financeira.”
Imagem da matéria “Fome no Brasil tem rosto de mulher, negra e de baixa renda” da Revista Marie Claire.
O que significa uma leitura feminista da dívida?
Uma leitura feminista da dívida traz novidades para pensar o problema das finanças em uma conjuntura particular que tem a ver com uma ruptura epistemológica, cognitiva que os feminismos significaram para pensar os problemas econômicos, sociais e políticos, a partir da massificação do movimento feminista nos últimos anos que também tem sido categorias políticas. Acredito que Uma leitura feminista da dívida é parte desse processo e também condensa investigações pessoais minhas e de Verónica Gago e são alguns pontos importante para pensar o mundo das finanças. Acredito que é preciso discutir quem deve falar das finanças, democratizar essa discussão financeira, tirá-las de lugares masculinizados e dos lugares de especialistas e poder falar da vida cotidiana. É também uma maneira de investigar os impactos do endividamento desde os corpos concretos tratando de desarmar essa abstração financeira que sustenta o mundo das finanças. Isso faz parecer que o endividamento se reproduz sozinho e não tem nada a ver conosco, que trabalhamos e colocamos o corpo no dia a dia. Nos propusemos a fazer a investigação contrária. Perguntamos quem são as pessoas que se endividam, por que se endividam e para que se endividam, e quais são as relações entre dívida privada e os lares com os processos de endividamento externo. Vários pontos trazem Uma leitura feminista da dívida. É uma leitura situada e muito concreta do impacto do endividamento.
Há uma relação entre divida privada e o endividamento externo?
É importante pontuar que os processos de endividamento externo associados aos organismos internacionais trazem uma série de condicionalidades para os governos que implicam impactos diferenciados. Situando-nos no último acordo assinado por Mauricio Macri e em 2018, com o empréstimo stand-by firmado com o FMI, trouxeram uma série de impactos no cotidiano de mulheres, lésbicas, travestis, trans. Em primeiro lugar, houve uma queda no nível de renda e salários, e aumento da informalidade do trabalho, do desemprego das mulheres, e houve um processo inflacionário muito importante do qual ainda não conseguimos sair e até aumentou. Esse endividamento, ao mesmo tempo, se traduziu em uma maior necessidade das casas se endividarem. Existem três particularidades desse fenômeno. Tem a ver com a dívida nas casas, mas cresceu como um endividamento para viver, que é algo que não havia acontecido de maneira tão intensa em outros momentos da nossa história, aparece também uma feminização do endividamento, porque são as mulheres que se endividam, porque é delas a função de sustentar as economias na crise e há um endividamento com taxas muito altas.
Depois veio a pandemia
Depois veio a pandemia e a renda não havia se recuperado do que aconteceu no período macrista, e também produziu uma série de dinâmicas que intensificaram o endividamento. A primeira foi que muitas mulheres precisaram ficar em suas casas com maiores cargas de tarefas de cuidado sem poder distribuí-las de outra maneira por causa do perigo de contagio. Houve uma queda dos salários e da renda em geral e uma maior vulnerabilidade ao superendividamento na pandemia. Novas fontes de dívida surgiram, como por exemplo, dívida por aluguel. E está diretamente relacionado ao aumento das tarefas de cuidado e participação no mercado de trabalho.
Com o que se endividam as mulheres e pessoas LGBTQIA+ atualmente?
Hoje nos endividamos porque a renda não é suficiente e se você está no setor popular pode se endividar porque não pode comprar comida. A renda não é suficiente para comprar alimentos que durem até o final do mês e é aí que vem a dívida, o que faz com que você já inicie o mês seguinte endividade e que volte a se endividar já que a sua renda não basta. Também pode acontecer para comprar medicamentos, existem pessoas que se endividam com o aluguel porque antes de deixar de pagá-lo preferem fazer um empréstimo para pagar outras coisas. E depois há outros tipos de endividamento que não são tão problemáticos e acontecem para coisas pontuais como eletrodomésticos, viagens. O que é tão difundido é esse endividamento que começa a vir para completar a renda e que é usado para viver.
Deveria compor a agenda do Estado pensar políticas publicas sobre o endividamento?
O endividamento é um fator importante hoje em dia e que significa o mal estar da grande maioria da população. Sabemos que viver endividades tem um impacto também na subjetividade emocional da vida cotidiana e o Estado deve combater esse problema de maneira integral, pensando que não se pode naturalizar estar endividade para viver e, então, deve haver uma política de recuperação de renda e salários; tem que existir uma política de cancelamento de dívidas, porque as pessoas acumularam dívidas desde o macrismo e na pandemia, e não foi solucionado o cancelamento da dívida interna. Deve ser aplicado um grande plano de desendividamento das famílias, permitindo que todos recuperemos esse tempo em que não pudemos ganhar da inflação.
O acesso à terra ainda é uma dívida do Estado?
Sim, acredito que ainda que estejamos conceituando o problema, a lei de terras está travada no Congresso. Faz tempo que foi apresentada por organizações campesinas e não foi pra frente e é preciso garantir o acesso das mulheres à terra, já que são elas que não são, em sua grande maioria, proprietárias entre aqueles que detém as terras, e são elas que não tem meios de produção para produzir e ao mesmo tempo estão propondo métodos alternativos de produzir, de cadeias alimentares que poderiam avançar no combate à inflação.