“Ninguém se emancipa trabalhando”, de Silvia Federici

Por Melissa Cicchetti
Publicado em Nortes

Silvia Federici (Parma, Itália, 1942) encerrou outubro de 2023 com uma conferência on-line na quarta edição da Escola Feminista da Assembleia Moza d’Astúrias, na Espanha. Autora de Calibã e a bruxaO ponto zero da revoluçãoReencantando o mundo e Além da pele, Federici é uma das teóricas mais importantes e reconhecidas do feminismo anticapitalista mundial, com uma longa trajetória de ativismo e reflexão. Viveu o feminismo dos anos 1970 na Itália, as campanhas pelo salário para o trabalho doméstico em Nova York, a luta contra os planos de ajuste estrutural na África, a crítica ao processo de globalização neoliberal e seus efeitos em todo o planeta, o movimento pela recuperação dos bens comuns e, mais recentemente, o ciclo de lutas que se abriu em 2011 e que tem continuado na última onda feminista. Em outras palavras, Federici passou décadas conciliando o ativismo com a reflexão e, assim, tem nos fornecido chaves para pensar e entender nosso presente. Hoje, quando o movimento feminista internacional está passando por intensos debates internos, voltamos a conversar com ela sobre este momento político.

Começamos pelo passado mais recente do movimento feminista, que foi um período massivo e expansivo de protestos, mobilização e reivindicação social. Como você interpreta e como acha que devemos interpretar esse “crescimento político” em um presente menos ativo? E como podemos pensar no movimento feminista de hoje em dia?

Em primeiro lugar, não estou surpresa com o grande crescimento do movimento feminista internacional. Na verdade, teorizo há muito tempo — junto com outras companheiras, como Verónica Gago — que o movimento feminista, em potencial, é o movimento mais importante. E é assim porque luta no território mais importante da transformação social, que é o da reprodução social. O feminismo, desde o início, concentrou-se na análise da reprodução social como o conjunto de atividades fundamentais para a reprodução da vida no sistema capitalista. Nesse contexto, a perpetuação da sociedade capitalista é mais importante do que a procriação, os cuidados, a saúde, a educação e toda a formação cultural. Como Verónica Gago já disse muitas vezes, ao lado das companheiras do movimento Ni Una Menos, a reprodução não é equivalente à produção. Pelo contrário, a reprodução é algo muito mais abrangente: é o conjunto de atividades que constituem a condição de possibilidade da perpetuação do mercado de trabalho. Portanto, a luta não é outra coisa senão o território onde se torna possível unir diferentes movimentos, reunir várias disputas. Esse território é a luta feminista. É exatamente isso que a luta feminista demonstrou a nível internacional: o feminismo, entendido como protesto contra a opressão e discriminação das mulheres, amadureceu muito em suas análises e, na prática, possibilitou o surgimento de muitas mais reivindicações. Nas últimas décadas, entendemos que não é possível mudar a situação das mulheres no mundo sem mudar o próprio mundo. O feminismo atual agora tem essa consciência e sabe que, como mulheres e dissidentes sexuais, não podemos melhorar nossa condição sem mudar o sistema social capitalista, que se baseia em uma lógica de guerra, violência, exploração do trabalho e da natureza. Em última análise, não podemos mudar nossa condição sem lutar contra o sistema capitalista em todas as suas formas.

Como se explica o crescimento político feminista dos últimos anos?

Eu acredito que o crescimento político dos últimos anos se deve, principalmente, às crescentes evidências da crise do sistema capitalista. Poderíamos discutir o porquê dessa crise, mas é evidente que a crise do capitalismo está se aprofundando. Temos um capitalismo cada vez mais violento, que promove a militarização da vida, a intensificação da exploração do trabalho e da natureza, e a desapropriação de terras. Estamos vivendo um presente aterrador no qual milhares de pessoas são forçadas a deixar seus locais ancestrais para que se tornem terras úteis e produtivas para o capital. A resposta a essa guerra e a esse ataque sistemático internacional à vida e à sua reprodução tem vindo das mulheres. São as mulheres que lutam na linha de frente contra a destruição da Amazônia e da África, são as mulheres que lutam contra o desmatamento e contra as empresas de mineração e petrolíferas. Elas percebem que a chegada de uma empresa de mineração significa que há mercúrio na água e que isso significa o fim de sua comunidade. Acredito que, por serem o sujeito principal da reprodução social, as mulheres se envolvem mais na luta contra as políticas que destroem a vida e impedem sua reprodução. Hoje, este é o tema fundamental da política internacional.

Você tem falado há muito tempo sobre os altos custos da reprodução social do sistema capitalista para as mulheres. Como essa imposição nos afetou e nos afeta?

Muitas mulheres, desde o início do movimento feminista, denunciaram, de diversas maneiras e com muitas palavras, o significado dessa imposição às mulheres na sociedade capitalista, o que implica cuidar da reprodução da vida. Explicamos que essa imposição gerou um trabalho desvalorizado, não remunerado, sem horário e aposentadoria. No entanto, acredito que também é importante dizer que essa imposição nos deu muito conhecimento: não é por acaso que as mulheres hoje têm maior consciência da fragilidade e do valor da vida, da teia de relações que sustenta a vida e nos permite superar o individualismo. Em resumo, a importância de construir uma comunidade. Para mim, esses são os dois temas centrais do feminismo: a luta contra a devastação capitalista, colonial e racista e a capacidade de pensar em uma alternativa e praticá-la a partir do presente, de nossa vida cotidiana. Pensar nisso, no contexto da perigosa situação política internacional atual, na qual muitas pessoas enfrentam constantemente a morte, me enche de esperança. Nesse contexto, o crescimento do movimento feminista e de sua capacidade organizativa internacional não é algo insignificante. Especialmente nos últimos anos, o movimento feminista tem demonstrado sua grande capacidade de criar alianças para a internacionalização da greve, indo da Argentina à Europa e gritando para o estado: ‘O estuprador é você’. A tecnologia nos ajudou a nos comunicar entre nós, mas essa grande capacidade vem, acredito eu, da consciência de que as mulheres estão enfrentando, de maneiras muito diferentes, os problemas fundamentais da política internacional atual. Nossas vidas dependem de como esses problemas serão resolvidos.

Você fala muito sobre experimentação. O que isso significa? Você acha que nosso presente é ou poderia ser um momento de experimentação?

Meu conceito de experimentação surge da ideia de que não podemos mais pensar na mudança social como uma tarefa do futuro. Estou pensando agora no conceito de “revolução” da esquerda tradicional, que considera a revolução como algo muito distante de nosso presente, algo que nunca chega. Minha ideia de experimentação, que considero muito importante para a prática feminista, diz exatamente o contrário: a revolução é hoje, a mudança acontece hoje. Não podemos continuar lutando contra tudo sem construir algo de forma positiva, não podemos lutar apenas organizando protestos. Dizer “não” é fundamental, sair às ruas e se opor é fundamental, mas não podemos nos limitar a isso. Precisamos começar a construir e fazê-lo em conjunto. Precisamos mudar nossa vida cotidiana experimentando novas formas de criar uma comunidade, que é a própria condição de nossa luta. Quando falamos em construir bens comuns, não o fazemos apenas pensando em um futuro comunitário, mas sim a partir da convicção da necessidade de fazê-lo agora. Precisamos começar a mudar as condições de reprodução da vida. O capitalismo, para se reproduzir, nos dividiu, nos individualizou e nos atomizou. Leopoldina Fortunati explica isso muito bem: o capitalismo nos unia nas fábricas e nos dividia na vida, com base na individualidade. A ideia da casa separada das outras, da família nuclear que cuida dos assuntos sujos em casa, da privacidade que rompe as relações entre vizinhos, tudo isso precisamos quebrar. Nos últimos anos, temos dito alto e claro: vamos derrubar os muros. Para mim, esse foi um dos maiores contributos do feminismo, ou seja, colocar a necessidade de nos unirmos e compartilhar nossos problemas na mesa.

Como podemos colocar em prática esse aprendizado?

Desde o início, o feminismo entendeu que não podemos lutar sem mudar nossa vida cotidiana e sem socializar nosso sofrimento e nossos medos. Os grupos de autoconsciência foram muito importantes. Quando as mulheres começaram a falar e compartilhar seus medos, suas culpas e sua sensação de não valer nada umas às outras, perceberam que todas compartilhavam os mesmos problemas. Perceberam que não eram problemas individuais, mas sim estruturais. Os grupos de autoconsciência nos permitiram entender que o problema não éramos nós, não eram nossos corpos nem nossas mentes, o problema era a sociedade. Portanto, o que precisávamos naquela época e ainda precisamos agora é mudar a sociedade, não nós mesmas. Nós temos uma grande capacidade de socializar e compartilhar nossos problemas, agora precisamos mudar a organização da reprodução cotidiana, criando momentos compartilhados de cuidado, como hortas urbanas.

A organização feminista deve ser também uma organização da mudança na vida cotidiana, que passa pelo que é comum: nos unir significa fortalecer e ganhar confiança, conhecimento e poder para enfrentar o estado que detém mais poder. Enfrentar o estado não significa se fechar em grupos pequenos, pelo contrário: significa se unir para reivindicar a riqueza social que está sendo roubada de nós e deter as decisões destrutivas que estão sendo tomadas. Portanto, experimentar também significa criar formas de luta capazes de recuperar e reivindicar espaços, tempo, riqueza social e recursos que nos foram roubados e continuam sendo roubados. Isso é muito importante, pois não podemos criar um mundo diferente sem antes nos apropriarmos da riqueza social. Eu acredito que esse é o verdadeiro campo de luta. Tenho dito há algum tempo que os comuns, ou seja, a criação em comum, não é apenas o objetivo da luta, mas sim a condição cotidiana da luta e seu poder de desafiar o estado e aqueles que estão sufocando nossa possibilidade de mudança.

Há alguns meses, durante uma entrevista publicada pela Contexto, você desenvolveu uma pergunta-chave para o movimento feminista internacional: “Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução de nosso poder de luta?”. Além disso, você disse que “isso é a medida de nosso crescimento político”. O que isso significa?

É a capacidade de nos unirmos para criar, superando a atomização de nossa vida. Isso é essencial para uma mudança social radical. Somente assim poderemos reduzir o tempo que investimos em realizar trabalhos que nos disciplinam e que geram pessoas mais facilmente exploráveis, e, dessa forma, poderemos nos dedicar a criar as condições necessárias para nos fortalecer e mudar nossa situação, tanto pessoal quanto coletiva. O tempo e os recursos, como mencionei, são fundamentais. Nossa vida está constantemente em contradição, e a reprodução torna isso evidente. A reprodução sustenta nossa vida, a de nossas famílias e comunidades, e, ao mesmo tempo, ocorre em condições que não escolhemos, que nos são impostas e que não são desejáveis. Essas condições são impostas pelo capitalismo, que precisa explorar para se reproduzir. O tema agora, então, é como mudar e como fazer isso: como nos organizamos para obter o poder de não ter que trabalhar dez horas por dia? Como fazemos para que nossas filhas e filhos não reproduzam nossa miséria e possam ter a liberdade de rejeitar a exploração e o despojo? É sobre isso que estou falando com o conceito de “experimentação”.


Qual é o caminho para nos reapropriarmos do nosso tempo e poder, e assim nos organizarmos?

A força que vamos construir é a de recuperar nossa vida e criatividade. Eu acredito que o que fazemos na vida cotidiana tem consequências nas casas, escolas, escritórios e fábricas, e essa é a medida do nosso crescimento político: influenciar as pessoas que atravessam os espaços que mudamos com nossas ações diárias. Neste contexto, os sindicatos deveriam desempenhar um papel ativo. Acredito que chegou a hora de os sindicatos incluírem a questão da reprodução da vida na luta pela melhoria das condições de trabalho da classe trabalhadora. A luta trabalhista deve se expandir e se interessar pelo que está sendo produzido. Não se trata apenas de fazer com que as horas de trabalho sejam respeitadas e de garantir condições de trabalho dignas, mas também de reivindicar o direito de decidir se queremos produzir mercadorias úteis ou materiais tóxicos e armas que acabarão com a humanidade e a natureza. A reprodução não é apenas uma questão doméstica, pelo contrário, é muito ampla e afeta todas as esferas de nossas vidas. Em última análise, trata-se de decidir se queremos produzir morte e miséria ou algo que reproduza nossa criatividade e bem-estar.

Uma das questões que enfrentamos dentro do feminismo é liberar o tempo das mulheres, liberar nosso tempo. Eu acredito que há milhões de mulheres em todo o mundo que estariam dispostas a sair às ruas e se organizar, mas o trabalho de cuidados, que nunca termina, as mantém presas em suas casas. Precisamos pensar no trabalho de cuidados de forma mais ampla do que costumamos fazer. Cuidar não é apenas criar nossos filhos, é cuidar de milhares de coisas que o corpo e a mente precisam. Devemos pensar no cuidado emocional que as pessoas que criamos precisam. Cuidar é o trabalho mais árduo, pois exige todas as nossas energias físicas, mentais e emocionais. É um trabalho desgastante. Portanto, acredito que pensar em formas comunitárias de cuidar é uma tarefa pendente do feminismo. Precisamos de tempo, precisamos liberar o tempo das mulheres que ainda hoje estão aprisionadas em suas casas, equilibrando seu trabalho com o cuidado de idosos, crianças e pessoas com deficiência física. Isso é uma das questões mais urgentes a serem abordadas pelo movimento feminista: se estamos sendo consumidas física e emocionalmente para reproduzir, como poderemos investir nossas energias na luta? A mudança na vida cotidiana, portanto, é fundamental para estarmos na luta. Tenho receio de que o movimento feminista, nesse sentido, não tenha feito o suficiente. Acredito que seja necessário um esforço maior para pensar não apenas em como podemos mudar a forma como as comunidades se relacionam umas com as outras, mas também como planejamos enfrentar o estado. Não podemos esquecer que, quando pedimos serviços sociais ao estado, precisamos ser capazes de controlar que tipo de serviços nos são fornecidos. Acredito que qualquer mulher que tenha lidado com o sistema de saúde sabe muito bem que vivemos em um estado de crise contínua e permanente. O estado pode fornecer serviços, mas, às vezes, a forma como o faz está tão equivocada que a situação acaba piorando. Lamento estar falando tanto sobre esse assunto, mas, por estar vivendo isso em primeira mão, assim como muitas companheiras, sinto que é um assunto que deve ser abordado. Recentemente, percebi que, a partir de certa idade, a questão dos cuidados se torna mais complexa, e hoje não temos uma alternativa ao trabalho realizado pelas mulheres em casa. Acho isso terrível e deve ser um tema central para o movimento feminista atual.

Falando sobre sua trajetória, você viveu em primeira pessoa as lutas dos anos 70 e a última onda feminista da qual falamos no início. O momento atual é marcado por uma forte rejeição ao feminismo e um questionamento dos avanços que alcançamos. Você acha que há alguma conexão entre a rejeição ao feminismo que ocorreu nos anos 70 e a atual?

Sim, claro que há. É uma pergunta complicada porque há muitos fatores em jogo. Em primeiro lugar, não é por acaso que a partir dos anos 70 as Nações Unidas começaram a intervir na política feminista. As Nações Unidas, ou seja, o capital internacional, perceberam muito antes que a esquerda tradicional o quão perigoso o feminismo poderia ser para a sua perpetuação. A partir de 1975, houve inúmeras conferências e intervenções das Nações Unidas (Cidade do México, Copenhague, Nairobi, Pequim, etc.) que tinham como objetivo apropriação do movimento feminista e o uso de parte de nossa ideologia contra nós, usando nosso pensamento para nos controlar e integrar as mulheres no processo de globalização como mão de obra barata. Até hoje, as mulheres realizam dois trabalhos. Portanto, o capital queria apropriar-se do movimento feminista por meio da ideologia da emancipação por meio do trabalho. Ninguém se emancipa através do trabalho em uma sociedade capitalista, isso é uma mentira. Eu acredito que essa cooptação do capital nos causou muito dano. Essa massificação do feminismo nos prejudicou. Muitas pessoas, principalmente muitas mulheres jovens da nova geração, acreditam que uma mulher feminista é aquela que luta pela igualdade entre homens e mulheres e que deseja ocupar um cargo de poder em seu trabalho. Em resumo, uma mulher feminista se torna uma mulher capturada pela instituição. Em parte isso é verdade: muitas feministas estão presas nas instituições porque muitos governos, embora nem todos, perceberam que a emancipação das mulheres poderia ser usada de forma instrumental para seu próprio benefício. As mulheres, então, podem ser exploradas não apenas em casa, mas também nas instituições com salários miseráveis e em outros trabalhos que não geram autonomia alguma. Tudo isso aumenta a miséria das mulheres, não as liberta, e mesmo assim, há quem continue dizendo que esse é o caminho. Bem, tenho minhas dúvidas e acredito que, devido a isso, muitas jovens começaram a falar de pós-feminismo. Estou pensando em um cântico que é muito ouvido por aqui, que diz: “vamos ser pós-feministas em uma sociedade pós-patriarcal”. Isso é mentira: a sociedade atual ainda é muito patriarcal, e vemos isso todos os dias.

Nos últimos anos, vimos o crescimento e disseminação de muitos partidos de extrema direita em todo o mundo, totalmente contrários aos avanços feministas. Como essa onda reacionária global nos afeta? Em seus últimos livros, você fala sobre seu conceito de “fascistização” da sociedade. Você pode explicar?

Além de tudo o que mencionei, hoje em dia, estamos enfrentando o fascismo em seu estado mais puro. Um fascismo que parece ter perdido qualquer tipo de vergonha. Por um lado, temos Giorgia Meloni na Itália, que é grotesca. Ela, uma mulher, líder de um partido chamado Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), nunca pensou em mudar o nome de sua organização política para que ela fosse incluída. Por outro lado, temos o Sr. Trump e a bem-sucedida luta do Partido Republicano para acabar com o direito ao aborto. Nesse contexto atual, muito complexo, precisamos ser sábias e analisar cuidadosamente, porque há um perigo real em nosso presente. Identificamos como fascismo o de Trump e o de Meloni, que é um fascismo muito óbvio, tão óbvio que é grotesco. No entanto, há outro fascismo mais sutil que permeia a política e a economia atuais. Em nosso presente, em sociedades que se autodenominam democráticas, estamos testemunhando uma “fascistização” da sociedade e da política econômica. Nos Estados Unidos, onde moro, tudo isso é muito evidente. As políticas que destruíram o bem-estar social americano foram implementadas por governos como o de Clinton, que foi capaz de alterar as leis de combate ao terrorismo, de administração de prisões e de militarização de toda a fronteira com o México. O governo Biden, que parece estar aberto ao feminismo e às pessoas trans, na verdade não está fazendo nada concreto. No entanto, envia milhões de dólares em todo o mundo para apoiar guerras imperialistas. Estamos testemunhando uma política imperialista brutal por parte do Partido Democrata nos Estados Unidos. O que está acontecendo na África e na Ucrânia é evidente: a guerra continua porque os Estados Unidos querem que continue e estão se preparando para uma guerra contra a Rússia e a China. Nos últimos dias, o governo Biden aprovou um orçamento militar de um trilhão de dólares. Em resumo, em 2023, o governo atual investirá um trilhão de dólares em guerra. Pense em quantas coisas poderiam ser feitas com um trilhão de dólares, quanto apoio à reprodução social poderia ser fornecido com todo esse dinheiro. A partir do que é investido na militarização da sociedade, cortes contínuos são feitos na já escassa saúde pública. No início deste ano, foram retirados os benefícios de saúde pública de mais de um milhão de pessoas e foi negado todo tipo de apoio aos estudantes universitários, que continuarão endividados pelo resto de suas vidas por terem buscado educação. Estudar nos Estados Unidos é caro e, diante dessa situação esmagadora, decide-se investir um trilhão de dólares em morte e guerra. Essa deve ser uma questão importante para o movimento feminista. Estamos em um momento muito perigoso, preparando-se para guerras internacionais, e o capitalismo se alimenta das guerras e se reproduz com elas. A guerra sempre foi um momento de mudança social profunda, pois serve para transformar a economia e as relações de poder em nível local e internacional. Além disso, a guerra serve para destruir os movimentos sociais. Neste momento de profunda crise do capitalismo internacional, estão sendo criadas as condições para a guerra, dia após dia. Portanto, a luta contra a guerra deve ser incluída na agenda feminista em todos os níveis. Foi uma grande derrota para o feminismo a inclusão de mulheres nas forças armadas no final dos anos 70 e início dos anos 80. Houve pessoas que lutaram pela entrada das mulheres nos exércitos nacionais, enquanto eu me oponho a essa barbaridade há décadas. Igualdade, nesse caso, não significa que homens e mulheres sejam iguais; igualdade significa que ninguém mais deve morrer em uma guerra. Precisamos deter a militarização da vida cotidiana e, para isso, precisamos de um feminismo que lute contra a guerra. Essa deve ser uma questão central para o movimento feminista internacional: lutar contra a guerra, contra a militarização da vida cotidiana, contra o investimento em armas e militares e contra o controle social nas cidades e bairros.

Você descreveu um presente muito complicado através do seu quadro de fascistização, que permite resolver muitos nós da análise social, econômica e política do momento atual. Qual é o papel das mulheres nesse processo de fascistização? E o que o movimento feminista pode fazer para enfrentar essa onda fascista? Em seus escritos mais recentes, você fala sobre a militância alegre e gozosa. Recuperar a alegria é a chave para facilitar a organização?

Ah, eu gosto desse tópico. Estou profundamente convencida de que, a nível internacional, está ocorrendo um grande processo de conscientização. A grande maioria de homens e mulheres, jovens e velhos, sabe que a sociedade capitalista é uma sociedade que produz morte e escassez em nome do progresso. A maioria da sociedade sabe que o progresso capitalista é uma mentira. Portanto, o desafio do feminismo atual é organizar essa maioria social com novas formas de luta comunitária. O propósito é, como mencionamos antes, liberar nosso tempo para criar uma mobilização forte, contundente e verdadeiramente transformadora. Para que isso aconteça, precisamos ter tempo livre. No entanto, há outro tópico igualmente importante a abordar: nossa forma de organização. Eu acredito que, por muito tempo, a forma de organização política foi muito masculina. Sendo um setor muito masculinizado, desenvolveu-se uma ideia do que é a política e como se faz política de forma muito regimentada. Eu acredito que as feministas, por outro lado, entenderam que ao se organizar para lutar, é preciso pensar em atividades que não sejam mais um trabalho. Devemos pensar em formas de organização e luta que não sejam mais um trabalho, que não nos causem mais sofrimento e que não pareçam mais uma carga em nossas vidas. Devemos nos esforçar para criar formas de organização, luta e mobilização que nos nutram, nos fortaleçam emocionalmente e sejam prazerosas e alegres. No entanto, a condição para que isso aconteça é conscientizar-se da importância das relações que criamos entre nós no processo de luta e mobilização. Devemos prestar atenção às relações que criamos e criar redes afetivas que nos façam desejar ir a uma reunião ou encontro porque nossas amigas, as mulheres que amamos, estarão lá. A organização também deve incluir momentos de felicidade: cantar, dançar e fazer atividades alegres juntas. Muitas mulheres já estão colocando tudo isso em prática. Um exemplo fantástico é Rafaela Pimentel de Território Doméstico (que participou da III edição da Escola Feminista de Ama Asturies). Precisamos integrar essa afetividade em nossa luta, especialmente quando temos companheiras que deixaram seus países e vivem longe de suas comunidades. A militância alegre consiste em criar novas famílias no sentido mais positivo da palavra. Eu sempre digo: se o trabalho de mobilização se tornar uma carga adicional, algo está errado. Nesta condição de tristeza e sofrimento adicionado às nossas vidas, é normal que as pessoas prefiram ir assistir ao futebol ou ao cinema. Precisamos criar uma militância alegre capaz de nos reproduzir, não apenas aos outros. Precisamos também reproduzir a luta, o que significa nos reproduzir em um aumento de alegria. Isso é solidariedade. A solidariedade não é apenas teoria, é algo que nos mobiliza, que move nossos corpos.

Para encerrar, quais são as tarefas pendentes do feminismo contemporâneo? Você falou sobre a importância de incluir na agenda feminista o trabalho reprodutivo e a reprodução da vida, a luta contra a guerra e a militarização da sociedade. Você acha que há algum novo campo de reflexão que não estamos conseguindo ver, justamente porque, como você nos ensina, o capitalismo limita nossa capacidade de imaginar?

Acredito que o que o movimento feminista está fazendo atualmente demonstra a amplitude do feminismo: o corpo, a sexualidade, a saúde, a educação e a produção do conhecimento são apenas alguns dos temas que o movimento feminista abordou ao longo das últimas décadas. Também não podemos esquecer da incrível luta pela recuperação da Memória Histórica realizada pelas companheiras na América Latina. Elas nos ensinam a importância de recuperar o senso de comunidade e a solidariedade com aqueles que lutaram antes de nós, não apenas para entender as lutas do passado, mas também para mantê-las presentes em nosso cotidiano. Compreender as lutas do passado e conhecer o rosto das companheiras e companheiros que perderam a vida lutando nos fortalece. Em última análise, entender que nossa luta faz parte de algo muito maior e que vai além de nossa vida individual nos dá coragem, sabedoria e solidariedade.

Além disso, a luta feminista envolve a luta pelos recursos e contra a devastação da natureza em sua totalidade: a terra, a água, os mares, os animais e as árvores. Também é a luta contra a dívida, que é muito forte na Argentina, como Verónica Gago menciona com frequência (ela participou da II edição da Escola Feminista de Ama Asturies). A dívida foi criada pelo capital e é outra forma de aprisionar as mulheres em suas casas. As mulheres são as mais endividadas: temos dívidas para comer, para nos curar e para estudar. Hoje em dia, as pessoas não se endividam para comprar coisas supérfluas, muito pelo contrário: hoje nos endividamos para comer, pagar as contas de luz e consultar um médico, porque os salários estão cada vez mais miseráveis. Portanto, a capacidade do movimento feminista de criar redes internacionais, que vão da América à Europa, passando pela África e Ásia, contra a dívida pessoal e nacional, é de extrema importância. Organizar-se internacionalmente contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional é fundamental, porque onde quer que sejam impostos planos de austeridade, as pessoas não terão escolha senão se endividar para sobreviver.

Em resumo, o movimento feminista tem se mostrado capaz de incluir em sua análise muitos temas, como mencionei antes. Agora precisamos nos concentrar em criar novas formas coletivas de organizar os cuidados, a educação e a produção de conhecimento sem passar pelo mercado. É necessário libertar a reprodução social do mercado, livrá-la da lógica do lucro, recuperá-la e focá-la em nosso bem-estar. Este é o objetivo do feminismo e já estamos a caminho de alcançá-lo. Um caminho que deve ser internacionalista, com passos para fortalecer as redes de mulheres já existentes e criar outras capazes de conectar as mulheres indígenas com as camponesas e com aquelas que lutam contra a repressão sexual. Em resumo, temos que conectar todas as nossas lutas. O feminismo é um território de análise e ação imenso, e eu acredito que ainda estamos entendendo que esta é nossa força. Estamos criando um território comum que serve como ponto de encontro para todas as lutas sociais. Esta é nossa força e, ao mesmo tempo, o presente e o futuro do movimento feminista.

Um enquadro feminista em Karl Marx, por Verónica Gago

Tradução: Antonio Martins.

Num desconcertante prefácio ao Manifesto Comunista, socióloga afirma: “faltou à obra enxergar a exploração do trabalho reprodutivo. Surpresa: nas lutas feministas pelo Comum e o Cuidado está hoje parte da resistência mais potente ao capital.”

Milhões de mulheres voltaram às ruas neste 8 de março em cidades de todo o mundo. Na Espanha, as manifestações foram particularmente numerosas em Madri (foto), Barcelona e dezenas de outras cidades,

1. Escrever um manifesto é criar um mundo. Ou melhor: torná-lo público. Dar conta da sua existência. Lançar luz sobre uma realidade subterrânea. Um manifesto tem força não porque seja prescritivo do que deve acontecer, mas porque reúne uma série de elementos que, considerados em conjunto, provam a existência deste mundo prenhe de novidades, mas já existente.

Deste ponto de vista, um manifesto não é utópico. Não é um decálogo de coisas que deveriam acontecer. Não é futurista, no sentido de inventar algo que é puramente imaginário. Pelo contrário, postula um realismo de uma outra vida que já está a acontecer, mesmo que reste saber se se trata de uma vida majoritária. Um manifesto exprime um realismo que é subterrâneo mas suficientemente forte para criar uma perspectiva de mudança do mundo.

O que já estava acontecia, o comunismo para Marx e Engels, tinha então uma consistência fantasmática. Isto implicava, nas palavras dos autores, que podia ser visto a contraluz: no reconhecimento das forças reativas encarnadas pelos poderes da Europa (o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os policiais alemães).

passagem do fantasma ao manifesto, então, é a decisão de se nomear com as suas próprias palavras. Fazer sair dos sótãos aqueie modo de vida que é detectado e conceitualizado pelo inimigo em termos de fantasma e ameaça. Para que haja um manifesto, tem primeiro de haver uma política noturna. Algo como uma noite dos proletários.

2. Sinto-me tentada a escrever: Um fantasma percorre a América Latina, o fantasma do feminismo. Porque ao pensar num manifesto, remeto-me a um escrito recente: o apelo a uma greve internacional de mulheres em 2017, cujo caráter “manifesto” me coloca numa possibilidade concreta de pensar sobre a atualidade desta forma de intervenção. Poderíamos muito bem enumerar as forças reativas que enxergam o movimento feminista como uma ameaça: a formulação doutrinária do Papa e da Igreja de uma “ideologia de gênero”; as forças conservadoras que desafiaram os acordos de Havana para boicotar a paz na Colômbia, as que promoveram o impeachment dapresidente do Brasil ou as que repudiam a educação sexual no Peru. Todas convergem na condenação em nome da moralidade familiar, da dissolução dos papéis de gênero e da promiscuidade da ordem social. O “epíteto calunioso” de “feminista” funciona como insulto e desqualificação. Já não no mundo partidário (como Marx e Engels apontavam, ao falar sobre a acusação de “comunismo”), mas para mencionar uma força desintegradora que opera sobretudo a nível de sensibilidades e corpos, de gostos e costumes, do confinamento de espaços e papéis na divisão sexual do trabalho.

Passar do fantasma ao manifesto, no caso do feminismo, implica nomear o medo da revolução de um feminismo que se torna popular porque está enredado com o conflito territorial (um corpo extenso, que de fato desafia os limites do corpo como “indivíduo”), que está atado com uma transformação nos modos de vida e que permite, pela sua amplitude e transversalidade, ser lido hoje como “um movimento histórico que se desenrola diante dos nossos olhos”. Por isso, como método, tentarei ler aqui algumas das questões levantadas pelo Manifesto Comunista – e em particular o seu apelo final: “Proletários de todos os países, uni-vos!

É um duplo exercício de tradução. Traduzir é trabalhar com uma língua estrangeira “mas também com o estado da língua para a qual se traduz” (assim diz o escritor argentino Ricardo Piglia para explicar por que, de vez em quando, se sente a necessidade de fazer novas traduções dos mesmos textos). Ampliando esta hipótese, eu diria que a língua comunista como língua revolucionária hoje – e com isso me refiro a certos problemas-chave de formas de exploração e dominação, de organização política e transformação radical, das classes e das subjetividades que as encarnam, do internacionalismo e da política de coligações — cruza-se necessariamente, para ser atualizada, com a língua feminista. Esta que é hoje talvez a mais múltipla das línguas em movimento.

3. No caso do Manifesto Comunista, é um texto cujo precedente é uma realidade proletária (a política noturna de que falamos anteriormente) e que em seguida parece referir-se – ou antecipar e convocar – a sua aparição nas ruas: a Revolução de Fevereiro de 1848, que abalou Paris com uma experiência de comuna. Assim, parece também que um manifesto funciona misteriosamente ligado aos acontecimentos, como se secretamente os tivesse prefigurado. Ou que faz parte de um fluxo de coisas e palavras que têm relações íntimas mas clandestinas. O manifesto, portanto, não funciona sob modo de causalidade (um manifesto não “provoca” ou “desencadeia” eventos pelo poder da sua palavra), mas faz parte (intui, colabora, prolonga) de um processo que faz das palavras vivas matéria e da conjuntura uma realidade aberta.

Isto supõe que a palavra (o que nela se manifesta) sintetiza de modo expressivo um devir, mas não define o processo. E isto porque um manifesto não deixa de ser um jogo – de leitura, de orientação, de antecipação e de projeção – sempre posto à prova.

Arrastada pelo movimento real, parte desta aposta pode então ser refutada, questionada, reorganizada. No caso de Marx e Engels, a Comuna de Paris obrigou-os a rever uma das suas principais teses para dizer que “a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina estatal existente e pô-la em marcha para os seus próprios fins” (prefácio da edição alemã de 1872), como especulavam com os pontos programáticos que tinham incluído na seção II. Assim, a orientação que impulsiona um manifesto (a sua síntese expressiva) não é dogmática, mas tem algo de plasticidade tática: deve ser capaz de ressoar com avaliações coletivas que ocorrem simultaneamente e em várias instâncias diferentes. Nas lutas e nas casas, nos sótãos e nos bares, nas fábricas e nas praças, nas barricadas e nos rumores. Um manifesto desenha então algo como um plano de coexistência, onde palavras, hipóteses e acontecimentos se referem, reforçam e reforçam mutuamente na medida em que conseguem vibrar e ressoar em diferentes realidades. Isto é também o que produz e alimenta as suas múltiplas traduções.

4. O que significa pensar na existência do proletariado do ponto de vista feminista? Manifesto postula o sujeito da política comunista, lendo-o à contraluz do capital, estabelecendo o antagonismo fundamental (“A condição do capital é o trabalho assalariado”). Poderíamos dizer, em princípio, que os cruzamentos de certas perspectivas feministas, marxistas e anticoloniais fazem um movimento semelhante à afirmação de Marx, mas no interior de um dos pólos do antagonismo. A condição do trabalho assalariado é o trabalho não assalariado, ou a condição do trabalho livre é o trabalho não livre. O que acontece quando um dos pólos é aberto? É o movimento fundamental pelo qual a diferença e a classe se cruzam.

Isto nos permite contradizer a própria leitura de Marx e Engels sobre a diferença em relação ao trabalho feminino. Argumentam que o desenvolvimento da indústria moderna através do trabalho manual tecnificado implica uma espécie de simplificação do trabalho, que permite que os homens sejam substituídos por mulheres e crianças. No entanto, “no que diz respeito à classe trabalhadora, as diferenças de idade e sexo perdem todo o significado social”, salientam eles. Neste sentido, lemos que a incorporação da diferença é feita sob o signo da sua anulação. As mulheres e as crianças são incorporadas na medida em que são homogeneizadas como mão-de-obra (funcionando como apêndices da máquina), o que lhes permite serem indiferenciadas. A diferença, no argumento que Marx e Engels empregam, é reduzida a uma questão de custo. A idade e o sexo são variáveis de barateamento, mas sem significado social. Compreendemos que aqui lidamos com o ponto de vista do capital. Marx dirá também no Capital que a maquinaria alarga o material humano explorado, na medida em que o trabalho infantil e feminino é a primeira consigna da mecanização. Mais uma vez, este alargamento é em termos de uma homogeneização ditada pela máquina, mas a diferença é anulada ou reduzida a uma vantagem homogeneizada também pela noção de custo. Assim, parece haver uma dupla abstração da diferença: do lado das máquinas (do processo técnico de produção), mas também do lado do próprio conceito de força de trabalho.

Quando reescrevemos o manifesto numa chave feminista, fazemos a operação inversa. Fazemos uma leitura inclusiva daquelas que somos produtoras de valor, na chave do pensamento sobre como a diferença reconceitua a própria noção de força de trabalho. Os corpos em jogo são responsáveis pelas diferentes tarefas em termos de um diferencial de intensidade e reconhecimento, impedindo a cristalização de uma figura homogênea do sujeito trabalhador. O trabalho, de uma perspectiva feminista, vai além daqueles que recebem um salário, porque é uma condição comum experimentar diversas situações de exploração e opressão, para além e para aquém da medida remuneratória. O trabalho, a partir de uma lente feminista, faz do corpo uma medida que vai além da noção de força de trabalho meramente associada ao custo.

Fazemos também uso da perspectiva feminista, que colocou a ênfase no fato de a crítica a esta homogeneidade da mão-de-obra dever partir do elemento que “opera” a homogeneização, uma vez que não seriam apenas as máquinas (como diz o Manifesto), mas o “patriarcado dos salários” (Federici). Isto implica duas operações: o reconhecimento de apenas uma parte do trabalho (trabalho assalariado) e depois a legitimidade do seu diferencial de acordo com o sexo e a idade apenas como uma desvalorização. Nesta linha, entendemos o trabalho assalariado como uma forma específica de invisibilização do trabalho não assalariado que tem lugar em múltiplas geografias e que recobre o que entendemos como tempo de trabalho.

Hoje, graças às lutas e teorizações feministas, podemos argumentar a partir de uma realidade contrária: o alargamento do material humano explorado, de que Marx falou, é feito por meio da exploração da sua diferença. Invisibilizando-o, traduzindo-o como hierarquia, depreciando-o politicamente e/ou metamorfoseando-o numa mais-valia para o mercado. Um manifesto feminista é hoje um mapa da heterogeneidade do trabalho vivo capaz de mostrar, em termos práticos, o diferencial de exploração que, tal como numa geometria fractal, usufrui todas as diferenças que se quis abstrair na hipótese de universalizar o proletariado assalariado. Mas um manifesto é mais do que uma denúncia. É uma proposta de ação. É por isso que um manifesto feminista reconhece nesta diversidade de experiências de exploração e extração de valor a necessidade de uma nova modalidade de organização que não se enquadra na hipótese que o partido universalizava.

5. O instrumento da greve, reapropriado e reinventado pelo movimento feminista, tornou-se um instrumento de organização. Pode-se dizer, retomando o Manifesto, que através da greve feminista se luta por “objetivos e interesses imediatos” e se constrói o “futuro do movimento”. Incluem-se assim duas línguas, duas perspectivas: a da exigência e a que não se reduz a exigências, mas que enuncia precisamente o desejo de querer mudar tudo. Por esta razão, a greve também integra e vai além de exigências específicas. Assim considerada, a greve é poderosa porque assume as múltiplas formas de exploração da vida, do tempo e dos territórios, de uma forma que transborda e integra a questão laboral porque envolve tarefas e trabalho que não são geralmente reconhecidas: dos cuidados à autogestão do bairro, das economias populares ao reconhecimento do trabalho social não remunerado, do desemprego à natureza intermitente do rendimento. Neste sentido, coloca a chave da vida de um ponto de vista que vai além dos limites do trabalho, sem deixar de pensar nas mutações do trabalho vivo. Ao incluir, tornando visíveis e valorizando os diferentes terrenos de exploração e extração de valor pelo capital na sua fase atual de acumulação, a greve feminista internacional torna possível dar conta das condições em que as lutas e resistências atuais começam a reinventar uma política de classes, na medida em que expressam e difundem uma mudança na composição das classes trabalhadoras, transbordando as suas classificações e hierarquias.

Por isso, a greve apropriada pelo movimento feminista transborda literalmente: deve ser responsável por múltiplas realidades laborais que escapam às fronteiras assalariadas e sindicalizadas, que questionam as fronteiras entre produtivo e reprodutivo, formal e informal, remunerado e não remunerado, entre trabalho migrante e nacional, e entre pessoas empregadas e desempregadas. Sob esta dinâmica, aponta diretamente para um dos núcleos do sistema capitalista: a divisão sexual e colonial do trabalho. E ao mesmo tempo abre uma questão de investigação concreta e situada: o que significa parar em cada realidade diversa, levando a sério a singularidade e complexidade de cada experiência de vida laboral diferente? Como é que esta redefinição e alargamento das classes trabalhadoras se interliga com as diferenças que tornam o mapa do trabalho radicalmente heterogêneo e segmentado? Como se consegue um plano de ação comum face à multiplicidade que desafia a própria ideia da acumulação de forças?

As respostas a estas perguntas podem ter uma primeira fase que consiste em explicar por que não é possível fazer greve em casa ou como vendedor ambulante ou como prisioneiro ou como trabalhador agrícola ou como trabalhador independente ou como trabalhador migrante (identificando-nos como aqueles que “não podem” fazer greve). Porém, imediatamente a seguir assume outra potência: obriga essas experiências a ressignificar e expandir o que está suspenso, o que é bloqueado e ignorado quando a greve deve acomodar essas realidades, alargando o campo social em que a greve está inscrita e produz efeitos. Um manifesto feminista é também uma evocação e um incitamento a esta passagem, uma transcrição (uma tradução) noutra chave do que o Manifesto define como o “objetivo imediato dos comunistas”: a “formação do proletariado numa classe”.

6. Assim, a questão da classe pode expandir-se nos movimentos e lutas do nosso presente, mesmo sem ser nomeada como tal. Talvez possamos localizar onde se situa hoje a “guerra civil” entre trabalho e capital. Marx identificou-a na jornada de trabalho, mas estamos assistindo justamente a seu alargamento e expansão em termos territoriais (para além da fábrica) e temporais (para além da jornada de trabalho reconhecida). Que formas violentas assume hoje esta guerra civil, se a considerarmos a partir de uma cooperação social que tem as economias informais, migrantes e populares e o trabalho doméstico-comunitário como a chave para novas zonas proletárias no neoliberalismo?

Há quatro “cenas” que podem produzir, creio, uma explicação do porquê de neste momento podermos ver a violência funcionando diretamente como força produtiva fundamental, uma vez que a mediação salarial deixa de ser a principal operação de contenção da força de trabalho. Por um lado, caracterizamos a implosão da violência no lar como um efeito da crise da figura do macnho provedor e da sua desierarquização derivada, em relação ao seu papel no mundo do trabalho. Por outro lado, a organização de nova violência como princípio de autoridade nos bairros da classe trabalhadora, como resultado da proliferação de economias ilegais que reabastecem, sob outras lógicas, formas de fornecimento de recursos e que competem e coordenam, por vezes, com as economias da classe trabalhadora como redes subalternas de produção da vida. Terceiro: a expropriação e pilhagem de terras e recursos comuns por projetos neoextractivistas transnacionais que atacam diretamente as redes comunitárias. Finalmente, a articulação de formas de exploração e extração de valor que têm a financeirização da vida social – e, em particular, o dispositivo da dívida – como um código comum. Com estas cenas, o objetivo é enquadrar uma leitura da violência do neoliberalismo como um momento de acumulação de capital, que contabiliza, ao mesmo tempo, as medidas de ajustamento estrutural, mas também a forma como a exploração está enraizada na produção de subjetividades compelidas à precariedade e, ao mesmo tempo, luta para prosperar em condições estruturais de despossessão.

Será hoje possível dividir o mundo em categorias tão afiadas como “burgueses e proletários” e “proletários e comunistas”? A possibilidade de “dividir” as existências desta forma torna possível configurar um antagonismo claro e, portanto, uma política de classe. Já comentamos como este antagonismo é reconfigurado pela introdução da diferença dentro de um dos seus pólos. Mas é possível regressar a uma premissa de Marx e Engels: o movimento proletário é uma “grande maioria”. No entanto, é a sua constituição como uma classe que o lança na “conquista da democracia”. Isto significa que a definição de classe não se traduz automaticamente em política de classe: esta é constituída com base na luta contra a opressão sintetizada no domínio da propriedade privada. A definição de classe tem então como base uma despossessão que se traduz em opressão e a partir daí aposta num outro tipo de “unidade”: aquela dada pela despossessão como premissa de uma condição comum.

Verónica Gago é doutora em Ciências Sociais, pesquisadora e militante do coletivo NiUnaMenos. Reflete sobre as chaves para consolidar redes feministas a nivel global. Escreveu diversos livros, entre eles “Uma leitura feminista da dívida”, junto com Luci Cavallero.

MAIS: Este texto é a primeira parte do prefácio de uma nova edição, em castelhano, do Manifesto Comunista . Foi publicada há pouco pela Verso Libros, de Barcelona. Sílvia Federici escreve o posfácio

‘Ni una menos’: Como o 3 de junho se tornou o dia de protesto contra o feminicídio

A Pública conversou com a ativista argentina Lucía Cavallero sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina, por Mariama. Correia.

No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.

Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.

A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.

A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?

O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015. 

A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.

No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?

Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.

Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?

Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas. 

O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.

E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?

As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.

E de gênero também?

Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.

Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil? 

Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil. 

Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.

Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.  

Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?

O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil. 

Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política. 

Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.

Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?

Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.

Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.

Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.

 

Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas. 

Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015? 

Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.

As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.

No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero. 

Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.

Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.

Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?

A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.

Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?

Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.

Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça. 

Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.

Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?

O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região. 

Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.

Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui

A POTÊNCIA DOS FEMINISMOS NA LUTA CONTRA
A RAZÃO NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA:
uma entrevista com Verónica Gago

Por Mônica Vilaça e Bárbara Freitas.

Esta entrevista com Verónica Gago, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de San Martin (UNSAM), busca dialogar com as recentes movimentações construídas no bojo das lutas e interpretações que têm marcado os últimos anos na América Latina. Este tem sido um período atravessado por uma pujante produção e tradução para o português de livros de mulheres intelectuais e feministas de várias tradições, e por intensas mobilizações pelos direitos das mulheres, como as lutas pelo direito ao aborto e de enfrentamento ao feminicídio, que criaram ressonância em diversos países e continentes, e que vêm provocando uma inflexão por novas perguntas e métodos de ler, interpretar e incidir na realidade social. No conjunto destas articulações, tem-se ampliado ações que buscam melhor conhecer a produção latino-americana e é neste movimento que se inserem os diálogos com Verónica Gago. Em nosso encontro, durante o Seminário Internacional “As perspectivas feministas sobre a geopolítica global patriarcal e racista”, realizado em Salvador (BA), em 2019 – momento de articulação dos movimentos e intelectuais feministas da América Latina, que coincidia com a visita realizada pela italiana Silvia Federici para o lançamento do livro “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” –, propusemos a realização desta entrevista. Com a impossibilidade de realizá-la durante o seminário, contamos com a generosidade de Verónica de responder às perguntas que formulamos por escrito. Esta forma de realização da entrevista permitiu uma elaboração densa e rica, e que compartilha também novos debates produzidos pós-seminário, que coincidem com novas publicações suas, mencionadas ao longo da entrevista. Nossa tradução buscou preservar com o máximo cuidado as complexas elaborações apresentadas, mantendo aspectos da formatação do texto da entrevista – grifos e itálicos – enviado por Verónica, que buscavam destacar e salientar algumas ideias nas análises. Esperamos que o diálogo consolidado nesta entrevista contribua com a partilha, mas também o reconhecimento, das elaborações que se têm construído na íntima relação entre academia e militância, expressas na experiência da Verónica Gago e que refletem uma estratégia de produção de conhecimento mobilizada por muitas mulheres nas universidades da América Latina.

Você poderia se apresentar, falar um pouco sobre você?
Verónica Gago – Me chamo Verónica Gago. Vivo em Buenos Aires (ainda que não tenha nascido aqui, e sim em um povoado a 200 quilômetros da capital). Estudei Ciência Política na Universidade de Buenos Aires e depois de vários anos, nos quais só me dediquei à militância e ao trabalho, iniciei o Doutorado em Ciências Sociais. Sou professora nesta mesma Universidade de ensino na graduação e pós-graduação sobre economia internacional e teoria política. Também trabalho na Universidade Nacional de San Martin, onde sou responsável pelos cursos de teoria crítica, economias populares e economia feminista. Sou investigadora no Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Técnicas (CONICET). Comecei minha militância na Universidade como estudante e continuei vinculada a um grupo de investigação e ação militante que se chama Coletivo Situações. Como parte dessa iniciativa também se formou a Editora independente Tinta Limón, da qual sigo sendo editora. Desde 2016, sou parte do coletivo NiUnaMenos.

Como foi o teu encontro com o feminismo, enquanto teoria e movimento social?
Verónica Gago – Na militância na universidade, o feminismo estava presente entre as companheiras que conformavam o Coletivo Situações, porém de uma forma que não buscava, acredito, impactar de modo direto as lógicas mistas da organização do próprio coletivo. Sem dúvida, a discussão sobre o papel das mulheres na política – ainda sem nomear especificamente como feminismo – era muito forte nos debates que circulavam então nos anos 1970, também sobre as trajetórias de várias militantes que se fizeram feministas durante seus exílios, e também sobre como essas dinâmicas e biografias se expressaram na década de 1980, momento que aqui se chamou “transição à democracia”. Tem um ponto fundamental que marca a sensibilidade de várias gerações, o papel das Mães e Avós da Praça de Maio, como um fio vermelho de longa duração. Neste contexto, a militância vinculada aos direitos humanos dessa geração foi fundamental para nós que tínhamos em torno dos 20 anos nos anos de 1990, já que foi um primeiro momento
de ação direta, em que o “escracho” aos genocidas, que estavam impunes em suas casas, foi um modo de pôr em prática outra ideia de justiça. Nesse momento, se tenho que me referir a uma experiência de feminismo que me/nos marcou, a nós que militávamos juntas naquele momento, foi conhecer a prática de Mulheres Criando, da Bolívia. Tanto seus grafitis, como seu periódico, que difundíamos em Buenos Aires. Logo, uma das experiências de formação mais intensas para mim foi vivenciar a crise de 2001, na qual movimentos sociais muito importantes, especialmente de trabalhadorxs desempregadxs, abriram um horizonte político popular muito radical. Nestas experiências, com as quais me vinculei a partir do coletivo do qual era parte, elaborou-se um desafio à legitimidade política do neoliberalismo e para todxs nós, que nos comprometemos com as assembleias, os piquetes e as redes de intercâmbio e organização, foi como atravessar um limiar de como habitar as ruas e vivenciar uma nova política. A partir do trabalho editorial, alguns anos depois, também estabelecemos uma relação com companheiras cuja trajetória de luta e pensamento são chaves para uma sensibilidade e um arquivo feminista que, para mim, seria muito importante. Refiro-me a pessoas como Silvia Federici, Raquel Gutiérrez Aguilar,
Silvia Rivera Cusicanqui e Suely Rolnik. Logo, com minha militância no coletivo NiUnaMenos, sou parte de uma experiência que nos permite viver e militar de forma plena o feminismo, no preciso momento em que ele se torna um movimento social, massivo e radical, algo que é uma novidade em nosso país e, ao mesmo tempo, que existe dessa forma na medida em que expressa uma conexão e uma força transnacional muito potente.


Como tua militância no NiUnaMenos e tua formação como cientista social se encontram na tua atuação como pesquisadora?
Verónica Gago – Minhas problemáticas de investigação estiveram sempre vinculadas ao trabalho, desde o ponto de vista das dinâmicas do que se chama feminização do trabalho, e do trabalho migrante, que se encontram, sem dúvida, com as economias subalternas. Isto imediatamente me levou a indagar a partir das perspectivas feministas. Tanto no que sistematizei para meu trabalho de tese, como nas questões que me interessavam previamente em termos teóricos e de minhas experiências, essas questões se conectavam. Daí também é que comecei a aprofundar minhas formulações sobre o mapa do neoliberalismo na América Latina. O fiz partindo de minha investigação que se localizava na Argentina, mas à medida que envolvia trajetórias feminizadas migrantes e pela própria dinâmica do capital transnacional – especialmente em sua fase de hegemonia financeira –, tornou-se essencial sair de um “nacionalismo metodológico” para pensar outras chaves explicativas. Minha investigação sempre teve, para mim, um caráter
de intervenção política e esteve associada a formas de militância, mesmo quando parte dela era realizada na universidade. Isto tem relação também com uma tradição de compromisso político da universidade pública e gratuita em nosso país. Minha militância no NiUnaMenos e especialmente na dinâmica de organização da greve feminista internacional certamente se articula e impacta de múltiplas maneiras minha própria pesquisa, sobretudo porque a greve produz um mapeamento prático da heterogeneidade das formas de trabalho em uma chave feminista, colocando, em primeiro lugar – como falarei mais à frente – trajetórias de vida e
trabalho historicamente desvalorizadas e superexploradas. Desta maneira, acredito que tenha uma contaminação recíproca das formas de prática política e da investigação militante que faz com que a produção de conceitos não seja um monopólio da academia, nem que a prática política se reivindique como anti-intelectual.

Em teu livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” 2, você discute a greve internacional de mulheres. Neste contexto podemos pensar em uma ressignificação da greve a partir da luta feminista? A greve assumiria um novo sentido? Qual?
Verónica Gago – Sim, acredito que a prática da greve vivenciada a partir do movimento feminista modifica-a por completo porque, para dizê-lo de modo simples, a greve se pratica “fora do lugar”. Devo explicar: em primeiro lugar, a greve torna-se um dispositivo específico para politizar as violências contra as mulheres, lésbicas, travestis, trans e não binários. Em outras palavras, a greve cruza duas questões que historicamente se viam desencontradas. Conectar as violências machistas com a ferramenta da greve realmente amplia nossa compreensão das violências. Com a ferramenta do “paro”3 [greve] começamos a vincular de modo prático as violências que se enlaçam com a violência machista: a violência econômica na diferença salarial e nas horas de trabalho doméstico não reconhecido e não pago, com o disciplinamento que se enlaça com a falta de autonomia econômica; a violência da exploração que se traduz no lar como impotência masculina e explode em situações de violência “doméstica”; a violência do sucateamento dos serviços públicos com a sobrecarga do trabalho comunitário. A greve, neste sentido, é uma ação que nos situa como sujeitxs políticos frente às violências e sua tentativa sistemática de reduzir nossas dores, colocando-nos na posição de vítimas, a serem culpadas e revitimizadas. A greve nos põe em situação de luta. Não esquece a dor, porém nos retira do “estado” de dor. Mas também, fazendo isso, expande-se e é apropriada por aquelxs que supostamente não estavam autorizadas nem legitimadas para fazer greve, uma ferramenta clássica monopolizada pelo movimento trabalhista e sindical (e majoritariamente masculino, heterossexual e branco). Daí coloca-se uma pergunta prática e teórica muito desafiante: Como a greve feminista é protagonizada simultaneamente desde territórios, sujeitxs e experiências que não cabem na tradicional ideia de trabalhadorxs e que, por isso mesmo, têm a capacidade de reinventá-la e transformá-la? Neste sentido, a greve analisada a partir do movimento feminista, como tem acontecido nos últimos quatro anos inclui, reconhece e visibiliza como força de trabalho, como potência produtiva, como criadoras de valor, uma multiplicidade de sujetxs que historicamente foram definidxs como improdutivxs, ao mesmo tempo que eram superexploradxs. Desta maneira, o “paro” conseguiu traduzir novas gramáticas de exploração, nomeá-las e situá-las, estabelecendo novas gramáticas de conflito. Redefine assim o que é um conflito de “trabalho” porque o alarga: localiza-o, não só nas fábricas ou em espaços de trabalhos formais, para levá-lo a outros lugares – do lar às economias populares, das camponesas às migrantes sem documentos, das feiras aos restaurantes comunitários. Essa trama, que implica um processo político de organização, envolvimento e de compartilhamento, produz as condições para entender a conexão entre o trabalho doméstico e a exploração financeira, o trabalho precário e a hierarquia nos sindicatos, evidenciando as áreas de exploração que historicamente foram invisibilizadas e sua relação íntima com áreas de trabalho “visíveis”. O paro, por esta capacidade de mapear a heterogeneidade do trabalho a partir de uma chave feminista, tomou múltiplas formas, distintas modalidades de protesto, de assembleia, de usos da própria noção de parar e bloquear, de ocupar e esvaziar os espaços de trabalho, as casas e os espaços de produção nos bairros. A partir dessa multiplicidade, outra pergunta também encontra espaço: Por que o paro expressa um modo de subjetivação política, um modo de atravessar fronteiras sobre o limite do possível? Em meu livro, proponho o paro feminista como “lente” de leitura para as reconfigurações do capitalismo contemporâneo, de seus modos específicos de exploração e extração de valor, e das dinâmicas que lhe resistem, sabotam e contestam. Porque se o paro é um modo de parar a continuidade da produção do capital, entendido como relação social, é porque põe em marcha uma desobediência à contínua expropriação de nossas energias vitais, espoliadas em rotinas exaustivas. Por essas razões, novas perguntas continuam se abrindo:
que acontece com a prática do paro quando é pensado e praticado com base em sensibilidades que não se reconhecem a priori como de classe e que, sem dúvida, desafiam a própria ideia de classe? Em que sentido esse “deslocamento” do paro, seu “uso” fora do lugar, remapeia as espacialidades e temporalidades da produção e do antagonismo? O paro reinventado pelo feminismo se transformou em seu sentido histórico também ao sair do âmbito estrito dos sindicatos: deixou de ser uma ordem emanada de cima (hierarquia sindical) que se acata ou adere, para converter-se em uma pergunta-investigação concreta e situada: que significa parar para cada realidade existente e de trabalhos diversos? Essa pergunta pode ter um primeiro momento que consiste em explicar por que não se pode fazer paro no lar, ou como vendedora ambulante, ou como encarcerada, ou como trabalhadora freelance (identificando-nos
como as que não podem parar), mas imediatamente depois de verificada essa impossibilidade (completamente massiva em nossos países) assume outra força: essas experiências são levadas a ressignificar e expandir o que se suspende quando a greve deve compreender e acomodar essas realidades, ampliando o campo social em que a greve se inscreve e produz efeitos. No livro, descrevo várias situações concretas nas quais essa simultaneidade entre impossibilidade e desejo de parar abrem caminho para uma imaginação política radical. Por último, gostaria de sublinhar que o paro vai além e integra a questão trabalhista porque torna visível que paramos nosso trabalho e paramos contra as estruturas e a ordem que tornam possível a valorização do capital. Esses ordenamentos (da família heteropatriarcal à maternidade compulsória, do aborto clandestino à educação sexista) não são meramente questões culturais ou ideológicas. Eles respondem ao próprio entrelaçamento do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo e destacam que tipo de violência específica necessita hoje o capital e contra quais corpos e territórios ela incide de maneira diferenciada.

A economia feminista tem problematizado a invisibilidade dos trabalhos domésticos e de cuidados na Economia. Como as greves ajudaram a ampliar a visibilidade destas fronteiras do trabalho na produção e reprodução da vida?
Verónica Gago – A greve feminista tem colocado o foco no terreno da reprodução para, como dizia antes, relevar e revelar todas essas tarefas como diretamente produtivas e obrigatórias por ordenamentos de gênero. O modo de visibilizar esses trabalhos imprescindíveis foi a base para sua interrupção: deixar de fazê-los para que sua ausência os torne evidentes em toda a sua presença historicamente invisível e desvalorizada. As teorizações feministas popularizaram a noção de tripla jornada: trabalho fora de casa, trabalho dentro de casa e trabalho afetivo de produção de vínculos e redes de cuidado. Parar essa multiplicidade de tempos é uma subtração que parece quase impossível, porque é nesse excesso que a vida e o trabalho se encontram e onde a reprodução visibiliza-se imediatamente como produção. Fazer “paro”, em todos estes tempos de trabalho, põe em relevo o tempo a partir do ponto de vista feminista, em sua condição sobreposta: como se “produz” a hora que mais tarde é contada como trabalho? Como se produzem xs trabalhadorxs para sua reprodução vital e cotidiana? Portanto, “parar”, nesta chave, é repensar tudo. No trabalho político da greve, realizado entre organizações territoriais e sindicatos, em universidades e em grupos de migrantes, tem-se feito tão popular o que Silvia Federici sintetiza sobre o trabalho reprodutivo dizendo: “não é amor, é trabalho não pago”. Isso significa uma historicização de como se tem organizado o trabalho reprodutivo em nossas sociedades capitalistas, patriarcais e coloniais. Destaca sua obrigatoriedade e sua gratuidade – também obrigatória, seu vínculo com a heteronormatividade, seu caráter de subordinação política ao trabalho considerado produtivo e, também, sua sobreposição com os trabalhos no mercado de trabalho, porque são poucas as que hoje fazem apenas trabalho reprodutivo em suas casas (a figura ideal da “dona de casa”). Além disso, o trabalho reprodutivo não é apenas o que acontece nos lares; também reúne uma série de qualidades que caracterizam cada vez mais o trabalho precarizado – e, por isso, fala-se de uma feminização do trabalho – em geral. Colocando em termos concretos: a dimensão gratuita, não reconhecida, subordinada, intermitente, e às vezes permanente, do trabalho reprodutivo serve hoje para ler os componentes que compõem as formas históricas das economias populares; mas também a precarização como um processo transversal atual. Fornece chaves sobre as formas de exploração intensiva das infraestruturas afetivas e, por sua vez, permite compreender o alargamento extensivo da jornada de trabalho no espaço doméstico e a disponibilidade permanente como recurso subjetivo primordial. Neste sentido, ao incluir o trabalho reprodutivo, mas também o trabalho migrante, precário, de rua, feminizado, a greve feminista tem permitido repensar, requalificar e relançar outro sentido para a greve geral. A tese seria assim: a greve geral se torna realmente geral quando se torna feminista. Porque ela primeira vez alcança todos os espaços, tarefas e formas de trabalho. Por isso, consegue enraizar-se e territorializar-se sem deixar nada de fora e a partir daí produz generalidade. Abarca cada rincão de trabalho não pago e não reconhecido. Traz à luz cada tarefa invisibilizada e não contabilizada como trabalho. E, ao mesmo tempo que as afirmam como espaços de produção de valor, as conecta em sua relação subordinada com outras formas de trabalho. Assim torna-se visível a cadeia de esforços que traçam um continuum
entre a casa, o emprego, a rua e a comunidade. Ao contrário do confinamento a que se quer reduzir os feminismos (a um setor, a uma demanda a uma minoria), assumir que a greve é geral só porque é feminista, é uma vitória e é uma vingança histórica. É uma vitória, porque dizemos que se nós paramos, para o mundo. É, por fim, evidenciar que não há produção sem reprodução. E é uma revanche em relação às formas de greve em que o “geral” era sinônimo de uma parcialidade dominante: trabalho assalariado, masculino, sindicalizado, nacional, que sistematicamente excluía o trabalho não reconhecido pelos salários (e sua ordem colonialpatriarcal).


Como podemos pensar as recentes lutas pela legalização e descriminalização do aborto que atravessaram a América Latina e o mundo no último período frente a um contexto de fortalecimento de narrativas fascistas e retomada de uma agenda neoliberal mais ampla?
Verónica Gago – Estou interessada em pensar qual é a relação entre ambas as coisas. Por isso, acredito que podemos entender o momento da fascistização atual em termos de contraofensiva. Quer dizer, constatar uma reação à força demonstrada pelos feminismos na região. É importante observar a sequência: a contraofensiva responde a uma ofensiva, a um movimento anterior. Isso envolve situar a emergência dos feminismos, em seu papel de desestabilização da ordem sexual, de gênero e política e tornando-se um ator-chave na disputa das fragmentações da crise econômica em curso. Acredito que é este movimento que deve localizar-se como anterior em relação à virada fascista subsequente na região, com conexões em nível global. Duas considerações emergem daqui. Em termos metodológicos: localizar a força dos feminismos em primeiro lugar, como força constituinte. Em termos políticos: afirmar
que os feminismos colocam em marcha uma ameaça aos poderes estabelecidos e ativam uma dinâmica de desobediência que esses poderes tentam conter, opondo formas de repressão, disciplinamento e controle em várias escalas em um momento em que as relações de acumulação estão instáveis. A contraofensiva, em boa medida sintetizada pela “cruzada contra a ideologia de gênero”, é um chamado à ordem e é a produção de inimigos internos que concentra seu ataque nxs sujeitxs dxs feminismo. Por esta razão, a feroz contraofensiva desencadeada contra os feminismos nos dá uma leitura inversa, ao contrário, da força de insubordinação que se tem percebido como já acontecendo e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua radicalização. Neste sentido, o papel das lutas pela legalização do aborto na Argentina e em toda a América Latina acredito que é fundamental. Mas lembremos também que o “paro” na Polônia, em outubro de 2016, também protestava contra a restrição do direito ao aborto. E, ao mesmo tempo, vemos hoje um retrocesso a esse respeito em vários estados dos Estados Unidos. Em outras palavras, não é apenas uma questão do terceiro mundo. No direito ao aborto, está em jogo o poder masculino e eclesial sobre o corpo de mulheres e os corpos gestantes. Na Argentina, com
a maré verde de 2018, temos visto a ampliação do debate sobre o aborto em termos de soberania, autonomia e classe, ao mesmo tempo que tem acontecido uma radicalização militante pelas novas gerações. A luta pelo aborto (e toda a reação conservadora que desperta) evidencia que não há forma de governo que não pressuponha intrinsecamente a subordinação das mulheres como o a priori dessa ordem estruturada por, como diz Carole Pateman, um contrato sexual. Por isso, a discussão leva diretamente a pensar a soberania dos corpos e, em particular, um vínculo interessante que concebe os corpos como territórios, segundo o conceito de corpoterritório lançado pelas feministas da América Central. Simultaneamente, a discussão sobre sua clandestinidade remeteu diretamente à importância dos abortos seguros e gratuitos, uma vez que são os custos que o tornam uma prática diferencialmente arriscada, de acordo com as condições sociais e econômicas. Aqui, como um desenvolvimento também presente no livro, tentou-se inverter a força que assumiu esse argumento classista para repudiar a clandestinidade, e a campanha construída a partir da hierarquia da Igreja Católica dizendo que o aborto é algo “estranho” e “externo” às classes populares; em outras palavras: que é uma preocupação exclusiva da classe média. Há mais uma questão: o debate ultrapassou o marco único do argumento da saúde pública, e do aborto como questão preventiva da gravidez não desejada, para abrir justamente as veias de exploração do desejo. A partir da palavra de ordem “a maternidade será desejada ou não será” até a reivindicação por educação sexual integral no currículo educacional, aprofundaram-se os debates sobre sexualidades, corporalidades, vínculos e afetos que deslocaram a questão de modo também radical. Isso permitiu inclusive variações das palavras de ordem sobre o aborto legal: não apenas no hospital, mas reivindicado também nas redes autônomas que o vêm praticando “em qualquer lugar”; não apenas educação sexual para decidir, mas para descobrir; não apenas contraceptivos para não abortar, mas sim para desfrutar; e não apenas aborto para não para morrer, mas para decidir.

A localização histórica das mulheres na economia reprodutiva e de responsabilidade com a reprodução da vida permitiria explicar as mulheres tornarem-se protagonistas nas lutas recentes, considerando as agendas de cuidados, as novas expressões de violência como o avanço sobre os territórios e a expropriação de bens naturais?
Verónica Gago – Sim, acredito que hoje é evidente como a reprodução social da vida aparece retificando e repondo e, ao mesmo tempo, criticando o desmonte da infraestrutura pública e lutando na linha de frente contra as desapropriações dos territórios. Vemos isso tanto nas lutas antiextrativistas pela defesa da água e dos territórios como na maneira em que as economias populares constroem hoje infraestrutura comum para a prestação dos serviços chamados básicos, mas que não são: da saúde à urbanização, da eletricidade à educação, da segurança até os alimentos. Deste modo, eu me concentro no livro em como as economias populares funcionam simultaneamente como tecido reprodutivo e produtivo e, como tais, põem em debate as formas concretas de precarização das existências em todos os planos. É por isso que eles conseguem denunciar o nível de desapropriação nos territórios urbanos e suburbanos, que é o que possibilita novas formas de exploração. Por sua vez, isto implica a implantação de um conflito concreto sobre os modos de entender o território como uma nova fábrica social. Com a contraofensiva econômica atual (que anda junto com a contraofensiva militar e a contraofensiva dos fundamentalismos religiosos) vemos uma característica fundamental do neoliberalismo: o aprofundamento da crise da reprodução social que é sustentada por um aumento do trabalho feminizado que substitui as infraestruturas públicas e permanece envolvida na dinâmica da superexploração. A privatização dos serviços públicos ou a restrição de seu alcance significa que essas tarefas (saúde, cuidados, alimentação etc.) devem ser supridas pelas mulheres e os corpos feminizados como tarefa não remunerada e obrigatória. Nesta chave, acredito que se compreende uma agenda de uma ética de cuidado que vocês mencionam: ampliando a noção de cuidado para além do marco familiar e, ao mesmo tempo, transformando-a em uma ferramenta de valorização das resistências vitais.


Você propõe em seu livro, A razão neoliberal, compreender a “captura” das tramas vitais da produção do cotidiano por uma racionalidade neoliberal, e a partir dessa “captura”, como a produção da vida passa a trabalhar para uma “financeirização” da vida. Como podemos pensar essa produção de subjetividades e de economias barrocas?
Verónica Gago – Em A razão neoliberal me propus discutir a noção mesma do neoliberalismo, o modo de historicizá-lo em nossa região, de aprofundar debates teóricos e de traçar genealogias a partir das lutas, dando uma ênfase especial ao que significou na Argentina a crise de 2001. Este interesse surgiu junto com a investigação que realizei durante muitos anos sobre economias populares, as estratégias de trabalho, de comercialização e de politização que daí se desdobram. Daqui também começo a refletir como o neoliberalismo não vem só “desde cima” (governos, corporações e organismos internacionais), mas que se faz persistente justamente porque consegue ler e capturar – ou seja, expropriar – tramas vitais que operam produzindo valor, inventando recursos onde não existem, repondo infraestrutura popular ante a expropriação e criando modos de vida que excedem as fronteiras do capital. Como o neoliberalismo vai metamorfoseando-se em nossos países me parece um ponto-chave, que geralmente fica fora de certas caracterizações mais gerais que “aplicam” o termo chave do neoliberalismo a todo o planeta. Eu me propus entendê-lo e contextualizá-lo a partir de seu desembarque e ensamblagens com situações concretas. Na nossa região, essas situações concretas são os territórios nos quais se cozinhou a revolta popular contra a legitimidade política do neoliberalismo nas crises do início dos anos 2000 a que me referia antes. Aí há uma singularidade porque são essas situações nas quais a exigência popular abre uma temporalidade de revolta que logo se mistura com uma tentativa de reconhecimento e estabilização por cima. São estas “economias barrocas”, como as chamo, que obrigam a pluralizar o neoliberalismo além de suas características mais conhecidas (privatizações,
desregulamentação, mercantilização etc.). Aqui situo claramente uma perspectiva que olha para “baixo” para encontrar aquilo que antagoniza, e que arruína, estraga e/ou confronta essa pretensa hegemonia, sem por isso ter um programa “anticapitalista” em termos puros ou precisos, mas que não abandona a luta “contra” os modos de expropriação do capital. Essa zona do “entre”, heterogênea e promíscua, é o que me interessa colocar em foco. Com a questão financeira isto se exaspera, acelera, volta mais intensa. Na América Latina, entender como a dívida extrai valor das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias populares, das economias camponesas, das economias consideradas historicamente não produtivas, permite captar os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de colonização da reprodução social. Entendo que a partir daqui podemos ver como funcionam hoje
novas formas de extração de valor que exploram trabalhos precários e informais e, ao mesmo tempo, como esses dispositivos de dívida funcionam a partir da moralização das existências desprezadas nas ordens de gênero. Quer dizer, na captura de valor que a dívida pratica, podemos ver uma certa articulação entre reprodução e produção que tem a família heterossexual como núcleo e a superexploração como trama contínua. Com Luci Cavallero temos aprofundado esta investigação fazendo “uma leitura feminista da
dívida”, no calor da organização da greve feminista. Temos trabalhado a articulação entre endividamento e trabalho reprodutivo, e também, como a violência machista se faz ainda mais forte com a feminização da pobreza e a falta de autonomia econômica que o endividamento implica. As companheiras da Criação Humana Editora publicaram, esse texto no Brasil, pelo qual esperamos que se
converta em uma possibilidade de intercâmbios aqui também.


Você propõe que o neoliberalismo se enraíza nas lógicas comunitárias e isso produz uma experiência de ambivalência na produção do cotidiano, porque a lógica comunitária se opõe à organização macroeconômica. O que poderíamos chamar de resistência nesses contextos?
Verónica Gago – Entendo que as dinâmicas comunitárias são um compêndio de saberes, tecnologias e temporalidades históricas que entram em um complexo sistema de relações variáveis com os diversos momentos do capitalismo em suas, também diversas, fases coloniais. Mas, sobretudo, são recursos enormes que se põem em jogo nos protestos, nos movimentos sociais, e também nas formas de economia popular e nas trajetórias migrantes, tanto em sua capacidade de disputar formas de vida com o capitalismo colonial e patriarcal como por abrir espaço em realidades de extrema expropriação e violência. Claro, também há um aproveitamento e uma exploração dessas modalidades comunitárias na medida que se busca compatibilizá-las com as ordens de flexibilidade, precariedade e autogestão da reprodução social como maneira de desresponsabilizar os Estados de certas obrigações. Em todo caso, para pensar essas questões eu trabalho principalmente em diálogo com os textos da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e com os da matemática mexicana Raquel Gutiérrez Aguilar, as quais, para mim, são fundamentais para compreender e situar uma riqueza comunitária que está em permanente tensão entre a exploração e as reinvenções de um horizonte comunitário-popular, para uma multiplicidade de lutas. Esses debates se cruzam com as dinâmicas ambivalentes de subjetivação na governamentalidade neoliberal e, portanto, complexificam as experiências de resistência e insubordinação, tanto nos momentos cotidianos como nos momentos de desdobramento massivo e coletivo. Aqui também me parecem importantes as reflexões das feministas J. K. Gibson-Graham7 e seu trabalho por visibilizar “economias diversas”. Elas o fazem também derivando de Marx uma noção de diferença. A partir daí põem a ênfase em economias que teriam capacidade prefigurativa, antecipatória, em seus desenvolvimentos no presente como não capitalistas. Trata-se de uma perspectiva que põe em relevo o caráter experimental das economias comunitárias que conseguem abrir e descolonizar a imaginação econômica sobre como representamos as alternativas anticapitalistas e como desconstruir a hegemonia do capital a partir dos espaços, aqui e agora. A diferença age para iluminar a realidade efetiva de práticas que negam o capital. Mas, também buscam dar à noção de diferença um caráter processual e experimental. Sua aposta nos permite pensar as economias diversas desde o devenir: elas argumentam que se tem que “cultivar” o desejo e as subjetividades que habitam esses espaços não capitalistas. Deste modo, entrelaçam uma subjetividade que está por vir, mas que por sua vez se constrói com a materialidade do desejo de outra vida no presente. Isso me parece que é importantíssimo para não seguir idealizando um programa “anticapitalista” puro e perfeito, pronto para ser aplicado e, portanto, sujetxs igualmente purxs e já completxs. Para voltar ao início: acredito que exercícios coletivos como o processo político da greve feminista permitem-nos praticar esse caráter processual e experimental do desejo de transformação de nossas resistências.


A informalidade tem crescido e se transformado na América Latina apresentando contornos a cada dia mais complexos. Que lugar a informalidade ocupa na produção dos territórios?
Verónica Gago – A visão dominante sobre a informalidade aponta que se trata de uma economia realizada por pessoas pobres que desenvolvem atividades desorganizadas por fora dos marcos legais (podemos remontar aos anos 1970, quando se produz a incorporação da categoria “economia informal” impulsionada por parte da OIT a partir do trabalho de Keith Hart sobre
o Quênia). Parece-me que toda uma série de conceitos e premissas se encadeiam e devem ser criticados: a informalidade como sinônimo de ilegalidade e as assim chamadas economias de subsistência como sinônimo de pobreza. O colonialismo dessas caracterizações é histórico. Creio que há perspectivas, por outro lado, que buscam localizar a quem se desenvolve nas
economias populares como parte de uma relação social e laboral específica, na medida em que se trata de uma relação na qual a estrutura dos custos (fiscais, de bens e de capital) é assimétrica com a valorização do trabalho. Funda, neste sentido, um tipo de relação social de exploração que devemos entender com mais profundidade. Por exemplo, como a captação do mais trabalho passa pelo consumo, por uma estrutura fiscal regressiva e por um custo financeiro altíssimo no endividamento do qual falávamos antes. São realidades que emergem frente à desestruturação neoliberal do mundo do trabalho assalariado como modelo capaz de incluir as massas em sua maioria urbanas, e frente ao aprofundamento dos regimes laborais predominantemente flexíveis e desprotegidos no interior desse esquema global. Em termos espaciais, aparecem de modo mais generalizado como uma experiência de bairros marginais ou periféricos das metrópoles latino-americanas e terceiromundistas do chamado Sul Global. São nesses territórios e nessas economias onde se produzem novas imagens da conflitividade trabalhista, mas em uma chave de conflitividade social difusa, ampliando os limites da experiência proletária. Isso quer dizer que essas economias reconceitualizam praticamente o que entendemos por trabalho, enquanto sistematizam formas de trabalho que hoje em nosso continente são majoritárias e que não cabem na categoria de marginais simplesmente por não serem assalariadas de modo estrito. Pensando assim, emergem outras geografias do trabalho que permitem entender os processos de valorização do capital como parte de um processo de colonização em direção a novos territórios que se transformam em espaços de conflito. Claro que um novo tipo e escala de violência está profundamente entrelaçada com as economias populares que todo o tempo trabalham na fronteira (e borrando o limite) entre legalidade e ilegalidade. É justamente a regulação e gestão permanente dessas fronteiras que ficam a cargo das novas “forças” paramilitares, paraestatais etc. Essas violências se moldam em uma dimensão territorial específica. A conflitiva ocupação da terra em áreas urbanas e suburbanas dos últimos anos (que aumenta os conflitos nos territórios camponeses de longa data intensificados pela voracidade do agronegócio) tem assumido uma escala de violência e complexidade que está diretamente vinculada à multiplicação de atores que envolve a especulação imobiliária e que assume modalidades que são ao mesmo tempo formal e informal, legal ou ilegal.

Da época do lançamento de A razão neoliberal até hoje o contexto político e econômico mudou: vemos uma ofensiva ultraconservadora na América Latina e no mundo, um processo articulado e sistêmico. Como localizar as elaborações que você traz no livro para ler este momento?
Verónica Gago – A situação no Brasil com o assassinato de Marielle Franco e o triunfo de Bolsonaro tem levado a pergunta sobre o neoliberalismo mais longe: como se está relançando a acumulação neoliberal em aliança com o fascismo com formas extremas de racismo, sexismo e classismo? O neoliberalismo necessita agora aliar-se com forças conservadoras retrógradas porque a desestabilização das autoridades patriarcais põe em risco a própria acumulação do capital. Diríamos assim: o capital é extremamente consciente de sua acumulação orgânica com o colonialismo e o patriarcado para reproduzir-se como relação de obediência. Uma vez que a fábrica e a família heteropatriarcal (mesmo que imaginários) não consigam sustentar disciplinas e uma vez que o controle de segurança é desafiado por formas feministas de gestar a interdependência em épocas de precariedade existencial, a contraofensiva se redobra. Por isso, tem que introduzir em nossa atualidade outra “cena” que abre novas leituras dinâmicas do neoliberalismo. Refiro-me ao movimento feminista que nos últimos anos tem tomado as ruas de modo massivo e radical e que tem transbordado os limites nacionais impulsionando um movimento verdadeiramente internacionalista e cujas ressonâncias fundamentais se enlaçam na América Latina, o melhor: em Abya Yala, traçando novas temporalidades e geografias. Assim, vemos muito claramente por que neoliberalismo e conservadorismo compartilham objetivos estratégicos de normalização. Claro que isso não é uma novidade na América Latina. Aqui, a origem do neoliberalismo é indiscriminadamente violenta. São as ditaduras que vieram reprimir um ciclo de lutas trabalhistas, estudantis e de bairros que marcam seu início. Como princípio do método e como perspectiva desse continente, portanto, é necessário sublinhar a emergência do neoliberalismo como resposta a certas lutas. Por isso, o neoliberalismo se apresenta como um regime de existência do social e um modo do comando político instalado regionalmente, com o massacre estatal e paraestatal da insurgência popular e armada, e consolidado nas décadas seguintes a partir de grandes reformas estruturais, de acordo com a lógica de ajuste de políticas globais. Com isso, quero dizer que a conjunção do neoliberalismo e do fascismo tem, na América Latina, um arquivo-chave. Creio que esse ponto permite, como mencionava, colocar outra perspectiva à ideia de “novidade” de um neoliberalismo que tem deixado sua roupagem liberal e inclusive progressista para conectar sua atualidade com a experiência originária em certas regiões (sem dúvidas, terceiro-mundistas) do mundo.

Esse seminário internacional se propõe a construir uma leitura a partir de quatro preocupações: o extrativismo ampliado, o sistema financeiro, as economias populares e o futuro do trabalho, e apontar caminhos. Quais estratégias são possíveis para essa articulação feminista dentro do contexto que estamos vivendo?
Verónica Gago – O movimento feminista a partir da sua multiplicidade (feminismos populares, villeros, indígenas, comunitários, negros, queer, trans) tem desbloqueado uma articulação por baixo das conflitividades e das lutas. Mas isso não é fácil: hoje assume uma multiplicidade de violências articuladas e incrementadas que irrompem nos corpos e nos lares, nos territórios urbanos e rurais e nos locais de trabalho, nas camas e nas fronteiras. E o faz produzindo um diagnóstico feminista dessa conflitividade – que inclui desapropriações e feminicídios, exploração e endividamento, racismo e abusos – baseado em lutas concretas, o qual conecta e enlaça a dor de cada uma com um corpo-território mais amplo. Como dizia antes: por que o movimento feminista politiza de maneira nova e radical a crise da reprodução social como crises, ao mesmo tempo, civilizatória e da estrutura patriarcal da sociedade, o impulso fascista que se põe em marcha para enfrentá-lo propõe economias da obediência para canalizar a crise. Seja pelo lado dos fundamentalismos religiosos ou pelo lado da construção paranoica de um novo inimigo interno, o que constatamos é uma tentativa de aterrorizar as forças de desestabilização arraigadas em um feminismo que tem ultrapassado as fronteiras e é capaz de produzir um código comum entre lutas diversas. O movimento feminista, tomando também as finanças como um terreno de luta contra o empobrecimento generalizado, pratica uma contrapedagogia a respeito de sua violência e suas formas abstratas de exploração dos corpos e dos territórios. Tudo isso nos dá, outra vez, uma possibilidade mais ampla e complexa de entender o que diagnosticamos da aliança do neoliberalismo com as forças conservadoras que se expressam como violências que tomam os corpos feminizados como novos territórios de conquista. Por isso, é necessário animar a crítica ao neoliberalismo como um gesto feminista sobre a maquinaria
da dívida – como dispositivo generalizado de exploração financeira -, porque é também apontar contra a maquinaria neoliberal da culpabilização, sustentada pela moral heteropatriarcal e pela exploração de nossas forças vitais. O movimento feminista atual repõe a chave antineoliberal como antagonismo. Por isso mesmo reabre a dinâmica que redefine o neoliberalismo “desde baixo” em termos de seu confronto corpo a corpo. A razão neoliberal se opõe hoje a uma potência feminista (que é a sensibilidade, modo de cálculo, estratégia e produção de sentido): isto é, um modo de pensar, fazer, lutar e desejar que ultrapassa a opção imposta entre ser vítima ou empreendedora (ambas opções de subjetivação do catálogo neoliberal). Por isso mesmo, porque se mete na trincheira cotidiana de disputa com o capital e com os modos renovados de exploração e extração de valor, o movimento feminista atual recebe uma contraofensiva feroz: militar, financeira e religiosa. Estamos precisamente nessa luta agora: não nos deixando expropriar pelo neoliberalismo aliado com o fascismo, com dinâmicas feministas que, juntas, se responsabilizam “desde baixo” por
abrir novas possibilidades vitais para todes.

Mônica Vilaça é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, na linha de Trabalho, Políticas Sociais e Desenvolvimento. E-mail: [email protected]

Bárbara Freitas é mestre em Estudos Interdisciplinares em gênero, mulheres e feminismo, PPGNeim – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]