“O orçamento da polícia deve ser transferido para cobrir necessidades básicas”, por Dean Spade

Dean Spade é professor de direito na Universidade de Seattle e fundador do Sylvia Rivera Law Project , que oferece assessoria jurídica a pessoas trans, intersexuais ou não binárias sem recursos financeiros. Ele também é um ativista contra a expansão do sistema penal e policial. 

O trabalho de Spade está focado em desvendar os principais problemas do ativismo popular que, nos últimos anos e com a pandemia, cresceu enormemente nos Estados Unidos. Ele dedica seu último livro a essas formas organizacionais, Apoio Mútuo: Construindo Solidariedade Durante Essa Crise (e a Próxima). Já Uma vida “normal” (Ed. Bellaterra) –publicado em 2015– é um ensaio sobre como a violência institucional, o racismo ou a criminalização do uso de drogas influenciam a vida das pessoas LGBTQIA+, temas que normalmente não são abordados pela militância ou pelo ativismo que pauta reformas jurídicas.

Na Espanha, está prestes a ser aprovada uma nova lei trans que envolve a autodeterminação de gênero e algumas políticas de apoio às pessoas trans. Que impacto têm estas leis na transformação da vida das pessoas?

Uma das coisas com que lidamos nos movimentos sociais é a questão de como não focar apenas na produção de leis, ou na introdução de questões como o discurso de ódio sobre grupos marginalizados, porque isso nos faz colocar muito foco no poder do Estado . É como se só o governo pudesse resolver todos os nossos problemas. Além disso, reforça a ideia de que o que dizem as leis se refletirá automaticamente na vida das pessoas, e a realidade é que existe uma grande lacuna. Esta lacuna surge de diferenças dentro de grupos, dentro de cidades ou regiões, entre bairros, ou de diferenças na forma como os funcionários do governo e outros intervenientes veem as pessoas trans com deficiência, os imigrantes ou as pessoas transgênero de classe alta. Todas estas diferenças dentro de um grupo fazem com que a aplicação da lei tenha um impacto diferente, porque as leis são implementadas por pessoas e terão prioridades diferentes sob diferentes administrações ou sob diferentes partidos.

Outra preocupação é que quando as leis são legisladas ou as leis são alteradas, os governantes dizem: “Agora este grupo de pessoas é igual” ou “De agora em diante, serão bem tratados”. Dizem que resolveram os problemas na tentativa de desmobilizar os nossos movimentos. Nosso trabalho é dizer que nada será resolvido até que nosso povo consiga sobreviver, e a lei não é a ferramenta ideal para isso. O que realmente precisamos é de uma população fortemente mobilizada e de movimentos interseccionais radicais em constante resistência, que procurem verdadeiramente o bem-estar das pessoas frente ao que enfrentamos no capitalismo ou no neoliberalismo. 

Acredito no trabalho de reforma legislativa dos movimentos sociais, mas isso não deve ter um papel central. Devemos ter também um papel crítico.

De que tipo de leis as pessoas trans precisam ou quais seriam verdadeiramente transformadoras?

Deveríamos buscar uma reforma jurídica baseada no alívio do pior sofrimento enfrentado pelas pessoas trans, aquelas que se encontram nas situações mais complicadas e perigosas ou que estão verdadeiramente à margem: as pessoas trans que estão na prisão, aquelas que enfrentam a deportação, os mais pobres, as pessoas mais criminalizadas, as pessoas trans com deficiência. Observem as suas vidas e pensem se as reformas legais que estão a sendo consideradas vão resolver os seus problemas, porque se não, acabamos por criar leis que apenas aperfeiçoam o sistema que os mantém marginalizados. Sendo assim, a justiça se transforma em algo que só pode ser acessado se você tiver um emprego com status, ou se não estiver a margem. Isso significa que temos que analisar o impacto material das leis. Queremos evitar leis que sejam apenas simbólicas, que não ofereçam ajuda, que sirvam apenas pessoas de status elevado ou que tenham vida mais privilegiada, que é, na verdade, o que a maioria das leis acabam fazendo.

Queremos pensar em soluções jurídicas que vão além de ter a palavra “trans” escrita. Por exemplo, nos Estados Unidos, qualquer lei que ajude a reduzir o número de policiais será boa para as pessoas trans, porque a polícia as persegue; ou qualquer lei que ajude a reduzir as penas criminais por serem pobres ou usarem drogas, porque é assim que a maioria deles acaba na prisão. Aparentemente, essas leis não são para pessoas trans, mas, em última análise, seriam as mais benéficas. Devemos nos concentrar nelas. Por exemplo, nos Estados Unidos, foram aprovadas leis há décadas para endurecer as penas para ataques a pessoas trans por serem trans (crimes de ódio). Não há provas de que previnam a violência e geralmente servem para aumentar o financiamento da polícia e dos procuradores, e qualquer coisa que dê poder à polícia e aos procuradores é mau para as pessoas trans. Temos que pensar bem: como saber se a lei é realmente boa? Analisar se é bom para pessoas trans que se encontram nas situações mais vulneráveis.

As leis que criminalizam o trabalho sexual entrariam em jogo aqui?

Exatamente. Esta é uma das formas mais importantes de criminalizar as pessoas trans. Se conseguirmos descriminalizar o trabalho sexual e reduzir o impacto da polícia na vida dos trabalhadores do sexo, isso seria uma reforma legal que realmente ajudaria as pessoas trans.

No seu último livro você fala sobre apoio mútuo. Podemos combiná-lo com ação judicial ou estamos perdendo o horizonte de onde intervir?

Se quisermos uma mudança que seja libertadora, temos que exercer uma pressão significativa e sustentada dos movimentos sociais, precisamos da participação de muitas pessoas. Por vezes, o problema da reforma jurídica é que ela é levada a cabo apenas por algumas ONGs e envolve apenas algumas pessoas da elite. Não é uma estratégia muito participativa. E o que vejo tanto nos EUA como noutras partes do mundo é que, mesmo que existam boas leis, se não houver forma de sustentar a pressão da mobilização, elas não serão necessariamente aplicadas. O verdadeiro motor da mudança social para as pessoas trans deve ser a mobilização de base, por isso precisamos de organizações militantes trans fortes, mas também devemos estar conectados com outras organizações, como por exemplo, das trabalhadoras sexuais, de descriminalização das drogas, etc.

As redes de apoio mútuo são hoje locais onde muitas pessoas aderem aos movimentos sociais. É onde as pessoas comuns vêm e participam de mais do que ações para mudar a lei. O trabalho legislativo, quando vem da mobilização popular, tem mais qualidade, porque sabe quais são os problemas materiais cotidianos das pessoas vulneráveis ​​e, provavelmente, também como as leis existentes são aplicadas. Se você está fazendo um trabalho de apoio mútuo, você sabe antes de tudo detectar o problema e sabe exatamente como o sistema jurídico funciona atualmente. Ou seja, não como aparece na redação da lei, mas na prática, na sua aplicação.

Você faz parte do movimento abolicionista nos Estados Unidos. O que está acontecendo?

No ano passado houve uma mobilização social e antipolicial incrível em todo o país. Após as mortes de George Floyd e Breonna Taylor, ocorreram protestos em todos os lugares. Isto levou à demanda para retirar fundos e repasses da polícia . Há décadas que trabalho pela abolição das prisões e da polícia e estas ideias nunca chegaram ao mainstream como estão agora. 

Em muitas cidades, as pessoas têm lutado nas câmaras municipais e noutras instituições para literalmente acabar com o orçamento da polícia, ou reduzi-lo. Tem sido uma luta muito difícil porque nos últimos 40 ou 50 anos os orçamentos da polícia aumentaram todos os anos. É um dos momentos políticos mais emocionantes que já vi. As pessoas queer, trans e também as feministas são uma parte importante dessas lutas porque sabem que a polícia não nos deixa mais seguros. Isto é importante porque a desculpa da segurança das mulheres é frequentemente utilizada para pedir mais polícia. Onde eu moro, em Seattle, a polícia tem até adesivos de arco-íris, ou contrata um policial gay ou trans. Portanto, é muito importante que pessoas queer, trans, feministas e especialmente racializadas digam: “Isso não resolve nossos problemas, nós não queremos isso”. 

O que contribui para reduzir a violência ou o que nos traz a sensação de estarmos mais seguros?

Sabemos que a polícia só acrescenta mais violência a qualquer situação – prende as pessoas, utiliza da própria violência para bater e violar, em algumas situações. Se algo acontecer com você, a polícia chega quando tudo já aconteceu. Nada é feito para impedir que as coisas aconteçam. Além disso, eles podem punir quem fez algo, mas nada muda, nada garante que essa situação não voltará a se repetir, então você não estará mais seguro do que antes. 

Nos movimentos sociais, fazemos outros tipos de perguntas: “O que realmente faz com que estejamos mais seguros?” Uma das coisas que torna as pessoas mais seguras é o acesso à habitação, à alimentação e a um sistema de saúde público. Quando olhamos para as mulheres trans assassinadas nos Estados Unidos, muitas não tinham um lugar seguro para morar, o que as levou a situações perigosas, ou realizavam trabalho sexual de forma insegura, porque não tinham recursos para fazê-lo de outra forma. . Se quisermos segurança real, temos de transferir dinheiro dos orçamentos da polícia para habitação, saúde, cuidados infantis, etc., para cobrir necessidades básicas.

A segunda questão presente em pautas feministas, nos movimentos queer e trans, é sobre as suas própriascondições de vida. Nós nos perguntamos: o que as pessoas da nossa comunidade precisam? Devemos levá-los aos eventos e acompanhá-los depois? Precisamos que a comunidade ofereça formação sobre violência doméstica, sobre como apoiar os nossos amigos quando estão em situações de violência…? O que pode a militância de base fazer para mudar as condições de vida que tornam algumas pessoas da nossa comunidade tão vulneráveis?

 

Isto está relacionado com o que é chamado de justiça restaurativa?

Muitas pessoas nas nossas comunidades já realizam trabalho de justiça restaurativa, que envolve pensar que quando algo mau acontece, o que podemos fazer? Por exemplo, se estivermos num círculo social onde uma pessoa agride sexualmente outras, como podemos fazer com que isso pare? A vítima precisa de suporte? Por que a pessoa que cometeu esse crime fez isto? Essa pessoa tem problemas com drogas? Essa pessoa precisa de suporte em relação a sua saúde mental? Essa pessoa está fazendo isso porque precisa entender questões relacionadas a gênero e sexualidade de outra forma? E o que as pessoas que foram agredidas precisam para continuar fazendo parte da comunidade e se sentirem apoiadas em situações difíceis como essa? Como o dano causado não pode ser desfeito, pode haver uma maneira de curar e curar, de restaurar o seu bem-estar?

A polícia e os tribunais não oferecem nada disso. Portanto, tem mais a ver com a forma como respondemos para que isso pare de acontecer e todos os envolvidos fiquem em melhor situação, em vez de aplicar punições. A punição nunca diminui o dano causado. Na verdade, se uma pessoa violar outra e você a mandar para a prisão, ela poderá continuar a violar lá. Isso não resolve nenhuma das causas subjacentes. 

Na Espanha vemos um certo feminismo muito pautado na produção de novas leis ou mesmo em pedir o aumento das penas de leis já existentes. 

Nos Estados Unidos chamamos de “feminismo prisional” e não queremos um feminismo que se baseie no pedido de mais polícia e mais prisões. Vivemos num período, que começou na década de 1970 e continua desde então, em que a polícia e as prisões estão crescendo muito. Uma das razões pelas quais estão crescendo é sob o pretexto de “proteger as mulheres”. Assim, o governo começou a financiar programas para abordar a violência doméstica e sexual, trazendo como solução mais detenções e mais pessoas na prisão. Depois de aplicar isto durante 40 ou 50 anos, não vemos redução nos casos. Em relação à violência sexual, tivemos inclusive um aumento, porque a polícia é também uma importante fonte de violência sexual. 

Queremos enterrar o feminismo prisional e concentrar-nos num feminismo que vai no cerne das causas da violência contra as mulheres, pessoas queer e trans, e que quer acabar com a violência em vez de apoiar o crescimento da polícia. E nos perguntamos por que a maioria das pessoas que sofrem violência em casa não denunciam? Muitos não querem que os seus entes sejam presos ou sabem que a polícia não vai acreditar neles, porque são pobres, não têm documentos ou porque têm medo da polícia, porque são homossexuais ou trans, e já sofreram com a violência policial.

A solução tem a ver com acreditar que as pessoas, mesmo aquelas que causaram dor, fazem parte da nossa comunidade, e devemos responsabilizá-las, mas também possibilitar o retorno ao seu lugar. O objetivo é ajudá-los a mudar seu comportamento em vez de expulsá-los. O que é necessário para assumirmos que as pessoas não são apenas as coisas horríveis que fizeram? Vamos usar soluções comunitárias para reduzir danos. 

Foram as mulheres negras, os imigrantes, as pessoas com deficiência, que tiveram de buscar e encontrar essas estratégias de sobrevivência. Nunca conseguiram chamar a polícia, porque sabem que se vierem causarão ainda mais danos. Esse trabalho prático emergiu do feminismo.

Nos recentes protestos nos Estados Unidos tem havido grandes manifestações lideradas pelo slogan: “Black Trans Live Matter”. Como estão acontecendo essas alianças entre lutas?

A forma como o Black Lives Matter está crescendo levou as pessoas a organizarem grupos em todo o país nos últimos anos e, mesmo antes de 2020, esse tem sido um movimento verdadeiramente interseccional. Têm pessoas trans, negras, queer, feministas que apoiam a causa palestina… Um dos objetivos tem sido mostrar as histórias de mulheres negras, de pessoas negras com deficiência… A solidariedade que existe dentro do movimento tem sido muito orgânico e sempre existiram muitas pessoas trans em posições de liderança.

Esse momento representa uma transformação nos Estados Unidos daqueles movimentos civis com políticas e estratégias que buscavam a respeitabilidade e que historicamente têm sido mais patriarcais e mais heterossexuais, menos interseccionais. O movimento Black Lives Matter já emergiu de mulheres queer, tem sido inerentemente mais queer e trans. É um momento impressionante e, além disso, vem no mesmo período do renascimento da resistência indígena em Standing Rock, dos movimentos feministas indígenas, que são muito inclusivos… Estamos em um momento de emergência do movimentos de base, que são muito interseccionais.

O que você acha da aparente aliança que está ocorrendo entre certo feminismo transfóbico e alguns fundamentalistas cristãos ou de direita?

Infelizmente, ainda vivemos uma reação contra o feminismo que começou nos anos 80. Nos Estados Unidos, assistimos a momentos muito específicos desses movimentos transfóbicos. Há um número surpreendente de leis que se concentram em dificultar ou impossibilitar o acesso dos jovens trans aos cuidados de saúde e aos esportes. Apesar do período de efervescência política trans e dos esforços de reforma jurídica que ocorreram desde o final dos anos 90 até hoje, na verdade não conseguimos tantos avanços.

Existe uma lei federal, uma lei sobre crimes de ódio que dá dinheiro à polícia e há algumas pequenas coisas que foram alcançadas com Obama, mas a maioria das pessoas trans ainda vive à margem. Houve também algumas melhorias na identidade recolhida nos DNIs, mas ainda existem muitos obstáculos à sobrevivência. No entanto, nos últimos cinco anos houve mais aparições de pessoas trans na televisão convencional . Assim, embora não tenha havido mudanças importantes no cotidiano das pessoas trans, houve uma reação violenta muito significativa da direita a essas pequenas conquistas que se intensificou.

Por volta de 2013, começa um período em que muitas leis estaduais tentam criminalizar ainda mais as pessoas trans por usarem os banheiros (com os quais elas se sentem confortáveis) e agora muitas leis estaduais estão tentando aprovar dizendo que os jovens trans não podem receber cuidados de saúde específicos. Também tentam impedi-los de praticar esportes nas escolas de acordo com seu gênero. Por exemplo, as meninas trans não podem praticar esportes com outras meninas.

Há uma conduta, na forma de uma guerra cultural, e é interessante como ela coincidiu com a ação do TERF (anti-transfeminismo), o que me lembra a década de 1980, quando ativistas de direita anti-pornografia se aliaram com feministas anti-sexo que eram contra o trabalho sexual, a pornografia e a favor da censura. Sinto que essa coligação está se repetindo. O fato dessas pessoas se considerarem feministas e estarem dispostas a alinhar-se com a direita que tenta proteger o patriarcado e o controle sobre os corpos das mulheres e o corpo queer e trans é chocante para mim.

*Entrevista originalmente publicada no Periódico Contexto y Acción.

Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui

Não pensem que é preciso ser triste para ser um militante: cartas para uma vida não fascista

foto do livro Modulações militantes por uma vida não fascista no Rio de Janeiro.

Em 1977, Michel Foucault escreveu o prefácio para a edição estadunidense de O Anti-Édipo – livro de Gilles Deleuze e Felix Guattari cuja primeira publicação se deu em 1972 na França. Neste texto, Foucault indica que a obra que prefaciava realizara algo muito importante: a montagem de uma nova maneira de pensar e de viver contrária a todas as formas de fascismo. Não é por outro motivo que o título que dá a seu pequeno texto – em uma estranha homenagem a São Francisco de Sales e sua Introdução à vida devota – é justamente Introdução à vida não fascista.

Ao longo de quatro páginas, acompanhamos a genealogia de um duplo movimento de demarcação de uma certa ética sob a qual se poderia enunciar a verdade sobre si mesmo e sua época. Demarcação de algumas balizas políticas e intelectuais que, na Europa do período entre os anos de 1945 e 1965, pregavam que era preciso ser unha e carne com Karl Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Sigmund Freud e assujeitar a linguagem aos sistemas de signos e significantes; dilatação de um campo experiencial onde já não se podia vislumbrar uma separação entre desejo, subjetividade e política: movimentos que, a partir de 1965, liberaram as lutas políticas do modelo prescrito pela tradição marxista e as tecnologias do desejo das interpretações freudianas. O combate se deslocara e ganhara novas zonas: outras questões, outras políticas, outras modulações militantes.

E é justamente no front desterritorializado desse inédito combate – dessas outras modulações militantes – que o livro de Deleuze e Guattari se viu belamente convocado a existir. Em uma espécie de continuação literária, filosófica e analítica de Maio de 68, O Anti-Édipo enfrentou adversários simultaneamente tão distintos e tão semelhantes entre si, e localizados tão longe e tão perto do ponto de emergência das questões evocadas: os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, os burocratas da revolução, os funcionários da verdade e os lastimáveis técnicos do desejo. Enfrentava, portanto, uma trama menor alastrada pelo campo social em suas mais diversas instâncias.

Mas Foucault não se furta, nessa miscelânea de pequenos adversários, a encontrar o inimigo maior – ou o adversário estratégico – do livro escrito por Deleuze e Guattari: o fascismo. E é preciso dizer – é preciso dizer? – que não se tratava somente do fascismo enorme e localizável como aquele conduzido por Benito Mussolini e Adolf Hitler na Itália e na Alemanha dos anos 1920 e 1930, mas do fascismo molecular: o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora. E é também preciso dizer
– é preciso dizer! – que, se assim é, tal enfrentamento não se dirige tão somente à dita direita, mas também – e talvez especialmente
– aos companheiros e camaradas localizados à esquerda do espectro político. E se desejo, subjetividade e política encontram-se em tensa trama, é no tecido da própria vida que o combate se faz.

Questões muito singulares e cortantes dirigidas mais à esquerda do que à direita aparecem no prefácio escrito por Michel Foucault: “como fazer para não se tornar fascista mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?” É, pois, a partir desta série inusitada e estranha de interrogações – interrogações nada óbvias, interrogações nada
triviais – levantadas à esquerda que algumas insinuações – insinuações nada óbvias, insinuações nada triviais – se montam. E é assim que diz Foucault – ainda e sempre à esquerda: “não imagine que seja preciso ser triste para ser um militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável”.

Maio de 68, França, O Anti-Édipo, 1972, Gilles Deleuze, Felix Guattari, “Introdução à vida não fascista”, Michel Foucault, Estados Unidos da América, 1977: são essas as marcas das passagens das obras mencionadas acima. São marcas que necessariamente impelem à questão da localização política do tempo e do espaço, de uma Europa e dos Estados Unidos de aproximadamente cinquenta anos atrás. E se podemos entender – ou, no mínimo, supor – por que e para quem esse recado era dado naquele espaço-tempo, talvez precisemos nos indagar: as indicações e interrogações supracitadas fariam sentido no Brasil de 2018?

No livro Modulações militantes por uma vida não fascista, escrito pela professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alice De Marchi Pereira de Souza, e publicado pela editora Criação Humana em agosto de 2018, a resposta parece ser afirmativa. Nele, surgem as condições de possibilidade para uma estranha série – como a enciclopédia chinesa de Borges citada por Foucault em As palavras e as coisas – que faz aparecer uma sequência à primeira vista inusitada em suas marcações de espaço e de tempo: maio de 68, França, O Anti-Édipo, 1972,Gilles Deleuze, Felix Guattari, “Introdução à vida não fascista”, Michel Foucault, Estados Unidos da América, 1977, Alice de Marchi Pereira de Souza, Brasil, 2018, Modulações militantes por uma vida não fascista.

Em seu ensaio Por que ler os clássicos?, Italo Calvino defende a tese de que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Diríamos, de outro modo, que um clássico é um livro que ainda não terminou de dizer aquilo que tinha a dizer – o que no Brasil de 2018, a partir do que indica o livro que ora resenhamos, talvez faça tanto de O Anti-Édipo quanto de “Introdução à vida não fascista”, textos ainda clássicos: as forças que os instigaram a existir, no cenário militante francês dos anos 1970, talvez persistam, estranha e tristemente, no jogo do contemporâneo. É assim que, fazendo jus ao nome, as páginas de Modulações militantes para uma vida não fascista montam um campo de problematização que, a partir do Brasil do século XXI, indagam o êthos da militância de esquerda num extenso arco espaço-temporal; nelas ecoa tanto o inacabamento das lutas do passado, tão caras aos autores já mencionados, quanto a candência da problemática militante em nível global, em questões muito próximas às colocadas recentemente pelo coletivo Comitê Invisível, por exemplo. Desse mosaico, o leitor extrai não só pistas preciosas à cartografia das linhas de força do presente, mas também armas para os combates vindouros.

Não é à toa que Alice De Marchi, a partir de sua larga e consistente trajetória de trabalho no campo da esquerda e dos direitos humanos, faz do eco de uma da frases de Michel Foucault no prefácio supracitado uma espécie de charneira para o livro que escreveu. Não à toa, é junto com Deleuze, Guattari, Foucault e Alice que devemos, seguir interrogando a entonação da esquerda que às vezes se esquece de que não é preciso ser triste para ser um militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. Se nossa atenção se dirigir menos às causas que produzem uma interrogação e mais aos efeitos que uma interrogação pode produzir, como essa pergunta simples e afiada como um bisturi, que pode lenta e precisamente convocar a desfazer o vínculo histórico entre tristeza e militância?

Foi, portanto, a partir da experiência de quase uma década de militância no campo da esquerda e dos direitos humanos – em organizações não-governamentais, autarquias, articulações políticas, no trabalho profissionalizado, na informalidade e em movimentos sociais – que algumas posturas e práticas se tornaram uma questão para Alice De Marchi Pereira de Souza. Porque se era nítido que suas práticas se conduziam pela tentativa de resistir à força hegemônica do capitalismo e todas as formas variantes de exploração, opressão e desigualdade social, doravante será um outro exercício de resistência que se acrescentará como exigência para persistir na árdua tarefa de criação do mundo. Porque foi deste lugar, tantas vezes idealizado e imaculado, – e por não poucas vezes – que ela detectou que há também – e muito – a reprodução daquilo mesmo que se quer combater. E é justamente a partir desse diagnóstico experiencial que as perguntas fundamentais do livro se fazem e se refazem: como resistir aos microfascismos e paixões tristes que se alojam em nossos corpos militantes e se manifestam em nossos discursos e práticas? Como intensificar e criar práticas de resistência e invenção atravessadas pela alegria da potência de agir?

Equipada com a leitura de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, mas também montando sua caixa de ferramentas com outros ainda clássicos como Baruch de Espinosa e Friedrich Nietzsche, o livro de Alice lança o olhar sobre os atravessamentos tristes nos processos de subjetivação militantes. Tal visada, todavia, não se presta a derrotismos ou estagnações, a análise se dá como força motriz de diferenciação, sempre na direção da aposta em uma ultrapassagem possível daquilo que nos tornamos. Sem embargo, Alice defende que nessa ontologia histórica de nós mesmos – se podemos de fato dizer que nós mesmos somos, neste caso, a corporificação das forças que atravessam os gestos da militância de esquerda – reside uma pergunta e um trabalho éticos: como lidar com essas linhas que compõem o que temos inventado para nossas existências? Se não queremos tão somente reproduzir as modulações do poder sobre a vida, como dobrá-las na relação consigo e com o mundo? E, portanto e mais importante, como se implicam a invenção de si e do mundo no arriscado jogo militante?

É tomando o plano macro e micropolítico da experiência ou, dito de outro modo, a própria vida como território do processo de inquietação e escrita que uma militante, psicóloga e pesquisadora escreve cartas a uma amiga anônima. Não é demais lembrar que a correspondência foi uma das primeiras formas da escrita de si enquanto prática ascética: um exercício de si para si necessário para aprender a arte de viver. A escrita operava uma transformação da verdade em ética, desempenhando a função de converter discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em atitude. Nessa espécie estranha de escrita de si realizada por Alice, autoria e endereçamento se veem diluídos, problematizando, no arrastão interrogativo que já levava consigo desde o início as militâncias e as esquerdas, uma estética da existência. Por outra, neste jogo metodológico e intensivo das missivas, em que a oralidade penetra a institucionalidade da escrita acadêmica clássica, talvez se faça ver que o problema das militâncias e das esquerdas sempre foi um problema de estética da existência. Ou, num sopro alvissareiro, que o problema das militâncias e das esquerdas poderia ser também um problema de estética da existência: escrever para desviar – desviar a si mesma e ao mundo.

E são, de fato, essas as questões que atravessam as vinte e uma cartas – além de uma breve introdução e de um desfecho – que compõem o livro Modulações militantes para uma vida não fascista. Nesse estilo movente e dialógico de work in progress, a primeira carta anuncia a dificuldade de escrita – e é justamente enfrentando a dificuldade de escrever que a escrita se faz, ecoando a célebre formulação deleuziana segundo a qual só escrevemos no limiar entre nosso saber e nossa ignorância, operando passagens incessantes entre um e outro; o que talvez também signifique dizer que é enfrentando a dificuldade de se fazer a si mesmo que o si mesmo se faz. Enfrentar a dificuldade de se fazer a si mesma – de se forjar nesse campo histórico e duro das militâncias de esquerda – é, portanto, todo o trabalho instaurado nesse jogo dialógico que se opera nas cartas que montam o fio narrativo e problemático do livro.

Assim, sob a árdua tarefa de escrita e transformação de si, o território da micropolítica foi o que mais interessou à Alice De Marchi, que identifica a esquerda muito mais ao campo dos afetos e das experimentações do que a um quadro macropolítico formal. Doravante, portanto, a posição de esquerda não poderia ser identificada ou limitada como a disputa pelo centro do poder de Estado, mas como um modo de vida. Ser de esquerda é disputar territórios existenciais e subjetividades. Trata-se, portanto, de manter o estranhamento – o que Alice chama de um agonismo micropolítico – que produza desprendimentos do que se deve ser e conexões com o que se pode ser: uma ética militante da potência molecular. Se essa é uma arte de viver, resta a pergunta: como sermos artesãos de nós mesmos e do mundo de maneira ativa e não reativa? E se essa pergunta se justifica, ela traz consigo outra interrogação: como não nos assujeitarmos, submissos, tristes e impotentes, ao poder ou desejo de outrem, e subverter isso de forma a urdir uma arte de agir de tal modo a abrir um campo de experimentações sem recair na ingenuidade?

É claro que tais interrogações são feitas por alguém que se recusa a sair da esquerda e da defesa dos direitos humanos, mas que, nesta localização, recusa-se também a recair nos endurecimentos e entristecimentos do próprio campo ao qual não se furta a pertencer. Manter-se no campo interrogando-o faz com que o trabalho acompanhe, numa mescla de memórias, trechos de diários de campo, sonhos e acontecimentos que se davam na medida em que o texto era confeccionado, passagens desta curiosa experiência paradoxal de permanência e crítica. Narrar o trajeto, fazendo da escrita gesto cartográfico e movente, é, portanto, aquilo que conecta as cartas de uma amiga a outra. Passagens de reuniões de trabalho, de atos, de grandes manifestações, fricções e lanhados na relação entre o trabalho acadêmico e a militância. Tudo se torna matéria-prima para a afirmação interrogativa do campo da esquerda e dos direitos humanos, num gesto muito próximo ao que, já no final de sua vida, Michel Foucault chamou de cuidado de si.

Se onde há poder há resistência, há de se fazer valer um ponto de resistência política fundamental, situado na relação de si para consigo, a tarefa urgente de construir uma ética de si. Entre política e ética, cuidar de si é ocupar-se consigo, cuidar de si é problematizar a si mesmo. E é nesse gesto entendido por Alice como um convite amoroso à esquerda que reemergem as forças revoltosas e indignadas, os afetos que podem constituir a potência de agir quando ligados a uma alegria potente e política. Assim, uma experiência de esquerda vinculada a tal postura ética estará umedecida pela e na experiência, sem separar o que se pensa do modo como se vive. Atitude jamais estanque, sempre em vias de modificação. Atitude de esquerda, atitude militante para uma vida não fascista – modulações militantes mais libertárias, alegres, ásperas e potentes.

O mesmo Michel Foucault que empresta a provocação que serve de mantra ao livro – “não pense que é preciso ser triste para ser
militante” – declarara, certa feita, que em sua caneta existia uma velha herança do bisturi. Assim, a constelação epistolar montada pela escrita de Alice tem uma estranha coesão: é quando estamos aptos a saber que na verdade a suposta amiga com quem trocava cartas era ela mesma, em um trabalho de inquietação e agonística de si, tornamo-nos aptos também a ver a clareza problemática que tantas vezes só pode ser vislumbrada na confusão. Confusão que coloca na mesma imagem onírica os tantos tempos e locais em que a questão da militância se fez presente, fazendo tocarem-se corpos que nunca se viram, ladearem-se espaços mais distantes do que as bordas do Atlântico, sobreporem-se tempos que a cronologia pulsada da história jamais conseguirá sincronizar, mas que, sob a questão que interroga o fascismo da própria militância, aparecem tocados, ladeados e sobrepostos como num campo de batalha ainda e sempre em disputa. Nesse jogo de corte, montagem e escrita de si, vislumbramos em cada carta o impessoal e o intempestivo de uma militância pouco afeita a modelos e prescrições morais: o bisturi da autora, lenta e precisamente, cinde a história, a época e o próprio si, convocando o leitor a indagar e experimentar, ainda e sempre, a necessária tarefa de inventar a si mesmo, ao mundo e às infindas maneiras de disputar os sentidos da experiência da militância. É assim que Alice termina o livro e é assim que, com ela, com os que tombaram e com os que ainda virão, seguimos na luta: “Estava numa manifestação de rua, mas não fica bem nítido onde. Está com muita gente conhecida: amigos, namorado, algumas pessoas da família. Sua orientadora, de silhueta inconfundível, está bem ao lado, mas não grudada: mantém um espaço ótimo, seu caminhar tranquilo e confiante. Há outras silhuetas junto dela, que por ora não se vê a quem pertencem. (…) Chega-se a uma esquina e avista-se o Champs de Mars, a Torre Eiffel a perfurar o céu cinzento, milhares que dela se aproximam; seria 13 de maio, em 1968? Espere: mas aquilo ali não é uma barricada da Commune de 1871? Dobra-se a esquina e de repente se está em Barcelona, em plena guerra civil na década de 1930. (…) Olhando-se à frente, a paisagem muda completamente: avista-se a Cinelândia, a avenida Rio Branco com carros de som rodeados de bandeiras rubras, outras pretas, alguma confusão; era o Rio de Janeiro em 2013? Avista, no alto de um deles, Mao Tsé Tung. Alain Badiou e Zizek estavam ao lado. Estavam perto professores conhecidos. Há uma situação estranha, de instabilidade: não se consegue saber o que é – um desvio? Uma rota interrompida? Uma tensão entre grupos? Não há polícia. Parece haver uma ação para acontecer. É um grupo de libertários (…) Chega a se cogitar uma bomba, mas parece também uma performance artística. Parece haver fogo em algum lugar. Os que estão no alto do carro de som começam a ordenar que a multidão não entre na rua a que se estava rumando: não se entende exatamente as palavras que dizem, mas o tom é esse. Estão assustados. No grupo onde a militante-pesquisadora-psicóloga está há uma movimentação – só aí consegue distinguir Michel Foucault junto da orientadora e dos outros, seus amigos. Um grupo se afasta, parece mesmo investir num ato terrorista. Outro grupo recua, parece temer aquilo tudo. Ela, aquele grupo, ficam ali: em meio à alegria e ao perigo. Ela acorda” (pp. 326-327).

Resenha de Danichi Hausen Mizoguchi* e Gabriel Lacerda de Resende** em formato de artigo para a revista Ecopolítica.

*Professor do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Psicologia da UFF. Contato: [email protected] Lacerda de Resende

**Professor do curso de Psicologia da Faculdade Maria Thereza (Niterói/RJ). Mestre e doutor em Psicologia pela UFF. Contato: [email protected].

Referências bibliográficas
CALVINO, I. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. FOUCAULT, M. “Prefácio (AntiÉdipo: introdução à vida não-facista)”.
In: MOTTA, Manoel Barros de (org). Repensar a Política / Ditos e Escritos VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, pp. 103-106.

Lute para vencer

Uma análise de “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, por Rory Elliot*

Imagem: reprodução

Com “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, o ativista trans e professor de direito Dean Spade desafia o leitor e o movimento de esquerda como um todo a perceber o poder do apoio mútuo nas lutas coletivas pela libertação. Spade ajuda a definir a longa e muitas vezes não contada história do apoio mútuo como um ato de “construir redes subversivas de cuidado que são de extrema importância para envolver, radicalizar e fornecer diretamente para nossas comunidades”. Citando a história revolucionária e a luta contemporânea do Partido dos Panteras Negras, os esforços do Apoio Mútuo em Desastres, ao movimento de protesto antigovernamental de Hong Kong, Spade deixou cair em nosso colo coletivo um roteiro fácil de ler para semear, cultivar e fortalecendo nossos movimentos, exatamente quando mais precisávamos.

Profundamente influenciado pela visão abolicionista e pela acessibilidade do texto de Angela Davis entitulado “Estarão as prisões obsoletas?”, o livro “Apoio Mútuo” tem menos de 200 páginas, impecavelmente pesquisado e crítico para sustentar e florescer nossa imaginação radical agora e nas lutas futuras. Spade expõe que desastres e crises planejadas ou inesperadas há muito são oportunidades para manobras políticas, repressão violenta, ocupação militar, floreios de novas tecnologias de vigilância e, mais insidiosamente, reformas. Com demonstrações históricas de solidariedade inflexível e poder popular, o autor mostra como e quando esses mesmos desastres se tornam oportunidades para ativistas e militantes se envolverem em mudanças radicais por meio da hibridização de ação local e redes massivas de assistência comunitária.

2020 revelou a muitos, e garantiu a alguns poucos, que a manutenção do status quo é a crise; o Estado e seus mecanismos e políticas, suas raízes, suas reformas e o firme desejo oportunista. COVID-19, mudança climática, imigração, assassinato policial, vigilantismo branco, número de mortos na prisão e a ascensão do fascismo direto e revelado em todo o mundo não são fenômenos inseparáveis. Muitos perceberam que diante de tanto caos, a única coisa que temos é uns aos outros; O apoio mútuo é a nossa salvação.

Embora profundamente ancorado no pensamento e análise revolucionários, este não é um livro de teoria política, nem uma exploração do que aconteceu. É um olhar ansioso para o que é possível e necessário.

O apoio mútuo, feito de forma radical, permite que as pessoas determinem e atualizem os caminhos para sua própria libertação por meio do crescimento coletivo, participação na liderança e ação. Também pode atuar e ser usado como rampa de acesso à luta política; uma resistência praticada aos modelos de organizações sem fins lucrativos dos supremacistas brancos.

“Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” fornece uma estrutura crítica para desafiar os movimentos dos quais fazemos parte, além de fornecer um roteiro para desafiar organizações, desafiar a nós mesmos como ativistas e militantes e desafiar uns aos outros para estarmos prontos para a luta que está à frente. Dá-nos o contexto de negligência governamental e resistência antigovernamental, os padrões de concessões, cooptações e exemplos de movimentos radicais que conseguem criar mundos melhores que sabemos serem possíveis.

À medida que o verão se transforma em outono, e porque tudo está em jogo e estamos lutando para vencer, precisamos de Apoio Mútuo.

*Rory Elliott é estudante de Portland, membro da organização abolicionista Critical Resistance, membro do coletivo editorial do The Abolitionist Newspaper e organizador da campanha Antipolicial Care Not Cops PDX. Atualmente, co-dirige a campanha de arrecadação de fundos do ACT UP Oral History Project. Colabora com Between Certain Death and a Possible Future: Queer Writing on Growing up with the AIDS Crisis.

O texto acima foi publicado originalmente no Fifth Estate – Radical publishing since 1965 e traduzido e republicado no Blog da Criação Humana.

“Escrever como escavando um túnel em uma mina. Produzir textos que iluminam a cena, determinam tomadas de posição e, em seguida, como um disparo sinalizador ou como um coquetel molotov, dissolvam-se em seus próprios efeitos sem deixar rastro”, por Sandro Chignola

Escrever sobre Foucault nos expõe a um duplo risco. Por um lado, fazer dele um autor. Por outro, dissolvê-lo, extrapolando muito facilmente seus trabalhos-fórmulas, suas categorias ou seus conceitos para reutilizá-los em outros contextos e para outros fins. Sabemos que Foucault, muito relutante à primeira opção – aquela que lhe teria polido um perfil, reconstruído uma coerência, ignorado os bloqueios ou omitido suas recolocações para consagrá-lo como um capítulo da história da filosofia – esperava para seus textos preferencialmente a segunda. Escrever como escavando um túnel em uma mina. Produzir textos que iluminam a cena, determinam tomadas de posição e, em seguida, como um disparo sinalizador ou como um coquetel molotov, dissolvam-se em seus próprios efeitos sem deixar rastro. Esta segunda opção é, talvez, a que mais se sedimentou desde o ponto de vista das revisões, dos deslocamentos, das intersecções das análises foucautianas com outros saberes – não exclusivamente filosóficos – e com as problematizações radicais do estatuto das disciplinas. Todavia, essa não é a única ou, ao menos para mim, talvez não seja a mais relevante.

Estudar Foucault nos seus textos não significa atribuí-lo novamente à filosofia. Significa mais precisamente repensar a própria filosofia, a consistência e a pretensa autonomia dos seus arquivos, os limites entre os quais ela é circunscrita enquanto saber universitário para tentar forçá-los e pô-los em crise. Fazer isso não significa, por certo, abandonar a filosofia. Ao contrário, o que se libera, deste modo, é um movimento de caminhada e retorno entre o seu interior – suas séries autorais, seu cânone, seus estilos – e o seu exterior; um exterior feito de processos, práticas, conflitos sobre os quais se medem – no caso em que a filosofia saiba aceitar o desafio – seu ritmo e sua capacidade de resistência. Foucault, sob essa perspectiva, pode ser estudado como filósofo e, simultaneamente, como desestabilizador radical do estatuto da filosofia como saber. Oferece-nos um exemplo, um dos mais radicais, de uma autêntica política da filosofia. Uma política da filosofia capaz de romper a inércia de uma tradição, a da filosofia política em particular, e a separação entre a práxis e a teoria sobre a qual ela reproduz seu disciplinamento específico.

Os cursos que Foucault ministrou no Collège de France, cujas edições recentemente se encerraram, representam uma ocasião particularmente oportuna para levar adiante esta operação. Uma operação que Foucault realizou pessoalmente, utilizando os cursos como um laboratório onde colocava à prova seus próprios argumentos, modificando-os, retomando-os ou abandonando-os, tornando possível utilizá-los, em um segundo momento, em seguida, como portões de acesso a uma produção – aquela de Foucault – marcada por uma inquietude constante.

O mesmo se pode dizer das entrevistas, resenhas, intervenções, mesas redondas etc. incluídas nos Dits et Écrits, que, conjuntamente aos cursos no Collège de France, constituem uma parte significativa dos textos sobre os quais me baseei na redação destes seis seminários. Longe de representar momentos pouco relevantes de uma produção contingente e ocasional com relação aos seus grandes livros publicados – uma conclusão que seria possível extrair unicamente aplicando a Foucault um estigma autoral – estas intervenções condensam o significado geral de um empenho intelectual que se desenvolve inteiramente sob o signo da atualidade. Trata-se de tomada de posição que, em muitos casos, indicam a direção na qual o seu trabalho se movimenta e que se oferecem como portas de acesso ou como vias particularmente úteis ao laboratório foucaultiano.

“Portas de acesso”, “vias” ou “entradas”: não uso estes termos por acaso. Estes seminários não oferecem uma interpretação unitária ou definitiva de Foucault. Não o fazem devido aos motivos apontados na abertura. Representam trajetórias, caminhos, entrecruzamentos da produção de Foucault que partem de pontos de vista específicos e unilaterais – jamais casuais, com certeza –, e que buscam, ao menos para quem escreve, problematizar não mais – e não somente – uma obra, mas o estatuto e a discursividade dos saberes aos quais ela está ligada, ampliando seus efeitos.

O título escolhido para este volume pretende trazer à temática exatamente este movimento. Os seis seminários que apresento ao leitor não se concebem como capítulos de um livro cujo desenvolvimento avança progressivamente do primeiro ao último, mas como percursos dotados cada um de sua própria autonomia. As eventuais repetições e insistências que poderiam cansar aqueles que se decidam a percorrê-los em série não aparecerão àqueles que, do contrário, decidam ler, como é evidentemente possível ocorrer, cada um em si mesmo.

Os textos coletados neste volume foram escritos por ocasiões de seminários ou de intervenções pelas quais fui convidado na Itália ou no exterior. Entre eles, quero recordar aqueles particularmente vivazes pelas discussões que se seguiram: na École Normale Supérieure de Lyon, na Universidad Nacional de San Martin (Buenos Aires) e na Universidad de Córdoba na Argentina, na Université de Toulouse-Le Mirail, na Università di Palermo, em Roma-La Sapienza, Bologna e Trento, na Scuola di dottorato in Filosofia e na Scuola Galileiana da Università di Padova. Agradeço novamente a todas e a todos aqueles que os promoveram. Com exceção ao texto até agora inédito sobre Foucault e Marx, publicado aqui como capítulo segundo, “Fábricas do corpo”, os demais já foram publicados com título e em versões diferente. O primeiro, “O impossível do soberano. Governamentalidade e Liberalismo”, aqui quase inteiramente reescrito, foi incluído em S. Chignola (editor), Gorvernare la vita. Un seminario sui Corsi di Michel Foucault al Collège de France (1977-1979), Ombre corte, Verona 2006; o terceiro, “A política dos governados. Governamentalidade, forma de vida, subjetivação”, amplamente reelaborado para esta ocasião, saiu originalmente, em espanhol, na revista argentina Deus Mortalis, 2010; o quarto, “Koinonikon zoon. Os estoicos e a outra modernidade”, o único não diretamente sobre Foucault, mas escrito a partir dos problemas abertos pela leitura de “A Hermenêutica do Sujeito”, encontra-se incluído na compilação Concordia discors. Studi in onore di Giuseppe Duso, Padova University Press, Padova 2012; o quinto, “Phantasiebildern/Histoire fiction: Weber, Foucault”, foi publicado em P. Cesaroni e S. Chignola (editores), La forza del vero. Un seminario sui corsi di Michel Foucault al Collège de France (1981-1984), Ombre Corte, Verona 2013; o sexto, “A Coragem da verdade: parrhésia e crítica saiu quase simultaneamente a este livro, em Politica e Religione. Annuario di teologia política.

Muitas e muitos têm contribuído para a formação destes textos, para reescrevê-los, para corrigi-los e para apurar as interpretações que neles se vêm definindo. Entre eles, meu agradecimento particular a Emmanuel Biset, Claudio Cavallari, Pierpaolo Cesaroni, Edgardo Castro, Girolamo De Michele, Jorge Dotti, Bruno Karsenti, Sandro Mezzadra, Toni Negri, Michele Nicoletti, Judith Revel, Michel Senellart, Paolo Slongo, Lorenzo Rustighi, Giulia Valpione, Adelino Zanini.

O livro “Foucault além de Foucault: uma política da filosofia”, de Sandro Chignola, está disponível. Clique aqui para adquirir!