A luta contra a opressão de todas as mulheres é,mais do que nunca, um imperativo necessário e urgente, mas tem que se sustentar em uma libertação das mulheres articulada de tal forma que a emancipação da singularidade não passe a crer mais em hierarquias (do homem em relação à mulher, de todos os seres humanos em relação aos animais, plantas, inclusive da materia inanimada). Essa é a inovadora e articulada proposta da filósofa italiana Chiara Bottici em Anarcafeminismo, uma abordagem especificamente anarcafeminista adaptada aos desafios atuais.
Anarcafeminismo oferece um extenso marco teórico a partir do qual nasce o Manifesto Anarcafeminista.
Anarcafeminismo parte de uma visão utópica de uma sociedade onde as pessoas desejam e lutam pela sua liberdade sem criar ainda mais hierarquias para outras pessoas e para seres vivos não humanos. As utopias são realistas porque nos dizem onde (não) estamos. Uma utopia anarcafeminista nos diz que uma sociedade em que todas e cada uma das mulheres são livres ainda está distante, mas também nos mostra que somos a maioria avançando nessa direção. Algumas falam sobre feminismo interseccional, outras ecofeminismo, outras chamam de movimento queer, ou feminismo sem fronteiras: muda o nome e mudam as prioridades politicas, mas a mensagem fundamental é a mesma – o feminismo não significa a libertação de algumas mulheres privilegiadas: significa a libertação de todas nós.
“O feminismo por si só não é suficiente, porque o que vem se demonstrando é que pode se tornar compatível com estruturas de dominação. Por isso, é imprescindível uma filosofia anarcafeminista.”
Chiara Bottici.
A filosofia anarcafeminista permite combinar duas evidência: que há algo específico na opressão das mulheres e das feministas em geral, e que para enfrentar essas opressões precisamos falar delas em todas as suas formas. Para ela, na primeira parte desse extraordinário livro, Bottici estabelece un dialogo com a literatura feminista negra em relação à interseccionalidade e analisa sua relação com teorias e ideias anarcafeministas: delineia um tipo de anarquismo “mais além do eurocentrismo e do sexismo”. Finalmente situa o anarcafemiqnismo entre o feminismo e a teoria queer e trans.
O Intermezzo In nomine matris abre a segunda parte do livro, em que a procura desenvolver um conceito amplo de feminilidade e assim invocar uma filosofia monista da transindividualidade como a estrutura filosófica mais adequada para fazê-lo. Particularmente interessante é o capitulo em que explora como a perspectiva filosófica resultante das leituras feministas do célebre filosofo marrano do século XVII, Baruch Spinoza, podem visibilizar a natureza transindividual de todos os corpos e da filosofia monista – uma filosofia que não opõe corpos e mentes, reconhecendo a ambos como expressões sob diferentes atributos de uma mesma substância singular e infinita.
Essa perspectiva proporciona por sua vez uma base para sustentar que não se pode separar estritamente o sujeito do objeto de conhecimento, e por isso uma filosofia da transindividualidade é também uma filosofia transindividual, em que o discurso filosófico reivindica sua própria individualidade (o que explica por que Bottici começa a escrever com o pronome “eu” e logo passa para “nós” durante o processo de escrita). Seguindo essa linha, a autora aborda a questão que nos permite falar de uma “mulher” específica fora desse processo transindividual em curso, e com a ajuda de teorias filosóficas e práticas artísticas, responderemos que é através de um processo de contar histórias que conseguiremos.
O Intermezzo Itinerarium inaugura a terceira parte, na qual Bottici aprofunda o processo de ontogênese dos corpos generificados e sexuados considerando os níveis supra, inter e infraindividuais e focando nos interstícios que atualmente temos ao nosso alcance. Se o nível supra-individual leva à exploração da geopolítica global da ontogênese e à reivindicação de uma forma de feminismo “decolonial” e “desimperial”, o exame das interações entre corpos de gênero leva, em última análise, a uma análise do modo capitalista de (re) produção, onde o prefixo “re” entre parênteses pretende indicar que o capitalismo não produz se os trabalhadores não se reproduzem, apesar de precisamente colocar “reprodução” entre parênteses ter sido uma das ferramentas utilizadas para criar corpos com gênero.
Por fim, Bottici concentra-se nas infraações e em como os seres generificados nascem da capacidade (re)produtiva de animais, plantas e até mesmo de matéria inanimada, argumentando que uma ecologia transindividual não pode deixar de questionar a hierarquia do homem (acima de tudo). ) > mulheres ( sobre) > animais (sobre) > plantas (sobre) > matéria inanimada. Em suma, uma ecologia transindividual não pode deixar de ser uma ecologia de emancipação da singularidade.
“Enquanto outras feministas de esquerda cederam à explicação da opressão das mulheres com base num único fator, ou prenderam a libertação das mulheres num quadro estreito de compreensão da “feminilidade”, as anarquistas sempre deixaram muito claro que, para combater o patriarcado temos que combater as múltiplas formas e fatores de opressão – econômicos, culturais, raciais, políticos, sexuais, etc. — que comparecem mantendo-os; poderíamos dizer, àquelas que nos levam a privilegiar certas noções de feminilidade em detrimento de outras.”
Chiara Bottici
Consequentemente, o feminismo não é um movimento preocupado apenas com questões que tangem às mulheres, mas com a forma crítica de manter toda ordem social que, na situação crítica atual, é inseparável do “sistema de gênero moderno/colonial”, que reduz os papéis de gênero a um dimorfismo biológico e patologiza aqueles que se desviam dele. As normas de gênero e as dicotomias binárias de “homens” x “mulheres” são opressivas para qualquer pessoa, não apenas para as pessoas designadas como mulheres à nascença, embora os homens possam de fato beneficiar-se de um sistema de gênero binário onde eles têm muito mais possibilidades do que as mulheres de ocupar posições predominantes.
A Editora Criação Humana publicará, ainda o primeiro semestre de 2024, a tradução do livro “Anarcafeminismo”, da filósofa italiana Chiara Bottici.
Italiana Silvia Federici, de 81 anos, que veio ao Brasil lançar dois livros, é uma das intelectuais feministas de maior projeção em atividade.
PorTalita Duvanel.
No Brasil para lançar dois livros (“Além da pele”, editora Elefante e “Quem deve a quem”, em parceria com editora Elefante e Criação Humana), a italiana Silvia Federici, de 81 anos, uma das intelectuais feministas de maior projeção em atividade, aproveitou para adiantar as comemorações dos 20 anos da primeira edição de “Calibã e a bruxa” (2004). Numa de suas obras mais importantes, ela— que mora nos Estados Unidos desde 1967 e, desde então, batalha para que haja pagamento pelo trabalho não remunerado de mulheres em seu próprio lar — mostra como, na transição do feudalismo para o capitalismo, foi crucial para o sucesso do novo sistema confiar às mulheres o papel único e exclusivo de reprodutoras da força de trabalho. Aquelas que conseguiam controlar a própria natalidade e tinham posições de poder foram tachadas de bruxas e dizimadas. Assim, ela relata, estabeleceram-se as bases da divisão sexual do trabalho — com as mulheres cuidadoras maternais — que permeia o modo de vida predominante nas sociedades ocidentais.
Na entrevista a seguir, realizada em Paraty durante sua passagem pela Flipei e antes de embarcar para São Paulo, a autora, que interrompe a conversa para ajudar o marido (ele se movimenta com dificuldade), fala sobre a sobrecarga da economia do cuidado, analisa uma volta da “caça às bruxas” e conta como seria sua redação no Enem 2023 sobre o tema “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher”.
O mundo está melhor ou pior para as mulheres, de uma forma geral, desde que a senhora escreveu “Calibã e a bruxa”?
Estamos vendo a situação piorar. Pessoas estão sendo expulsas de suas terras, há uma deterioração das condições de produção, cortes nos orçamentos, uma crescente militarização da vida. E às mulheres cabe suportar o fardo do trabalho reprodutivo mais e mais com menos recursos. Agora ainda há uma nova caça às bruxas em todo o mundo, especialmente na África, Índia, América Latina e no Brasil. Por exemplo, no dia 18 de setembro, Sebastiana, líder dos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, foi queimada viva (Nhandesy Sebastiana era líder religiosa dos guarani-kaiowá, em Aral Moreira, e teve o corpo carbonizado juntamente com o do marido, Nhanderu Rufino). Ela comandava uma luta contra a expropriação de terras comunais para o cultivo de soja. Esse foi mais um caso de mulher acusada de ser bruxa pelo fundamentalismo cristão. No Sul Global, fica muito claro que as motivações econômica e política e a briga pela terra dão um empurrão contra a luta das mulheres por autonomia.
Como a inteligência artificial e as redes sociais têm transformado a exploração dos corpos e da força de trabalho feminina?
Estão tentando nos convencer de que não precisam mais do trabalho humano com a IA. Isso é uma arapuca. As pessoas trabalham mais do que nunca hoje. Esse é um primeiro aspecto. O segundo é a completa tecnologização da vida. Existe essa ideia de que podemos ter máquinas fazendo trabalhos de cuidado. É o contra-ataque à luta que as mulheres travaram. Esta tem sido a história do capitalismo. Quando os trabalhadores combatem uma forma específica de exploração, o capitalismo se precipita em pensar numa máquina. Há uma explosão de estudos sobre simpáticos robôs que andam, falam e podem cuidar de idosos e crianças. Isso é o contrário do pregamos: precisamos falar sobre formas coletivas de cuidado. Precisamos superar o isolamento em que mulheres foram obrigadas a cuidar da reprodução, dos idosos, das crianças, dos enfermos. Mas eles vão nos dar robôs legais…
Com voz feminina…
E com voz feminina! Precisamos de uma crítica feminista da inteligência artificial. Uma crítica que tenha lados múltiplos, que olhe para a destruição ecológica, para a ilusão de liberdade e em termos de alienação das relações humanas.
No Brasil, temos o Enem, uma prova nacional para alunos do Ensino Médio entrarem na universidade, e todo ano há uma redação, com um tema…
Ah, sim, este ano foi sobre trabalho doméstico! Eu soube. Muito interessante. Fiquei bem feliz.
Se conversasse com estudantes agora, o que diria ser mais importante de estar nesta redação?
Meu argumento principal seria de que, quando olhamos para a organização do trabalho doméstico no capitalismo, temos uma janela para entender a lógica que faz esse sistema prosperar. O trabalho doméstico é considerado uma atividade biológica, mas é fundamental porque produz mão de obra. É o que faz a roda girar. Não produzimos carros ou ferramentas, produzimos seres humanos. O movimento feminista redefiniu (o olhar) para este trabalho. A questão é: por que é tão desvalorizado? Ele é tão importante, tão crucial que, se tivessem que compensar as mulheres, não teriam conseguido acumular a grande riqueza que acumularam. Isso é o início do entendimento de que vivemos numa sociedade baseada na exploração e na desvalorização da nossa vida. E isso devia ter feito parte da redação: tem havido uma revolução do conceito de trabalho doméstico. Mais e mais pessoas têm tido consciência de que não é só limpeza e cozinha. É um trabalho emocional, sexual, intelectual, de conciliação de todas as diferentes necessidades das pessoas: do homem, da crianças, dos outros parentes. São as mulheres que mantêm a comunidade unida.
A senhora falou de terra, Sul Global… Soa como um “neo neocolonialismo”.
Há um movimento progressivo em direção a uma recolonização. Vemos um novo colonialismo muito violento. Alguém escreveu, e penso que muito bem, que a Palestina hoje é o mundo. No sentido de que, numa visão macro, o capitalismo está se expandindo e expulsando as pessoas de suas terras e empurrando-as para campos de refugiados ou para a imigração. Por causa desta tomada de posse de terras — particularmente por empresas extrativistas e pelo agronegócio — e também por uma constante erosão do investimento nas pessoas, são as mulheres que pagam o preço mais elevado. Elas precisam compensar com trabalho e sacrifícios extras pelos recursos que estão diminuindo.
Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), evento de que a senhora veio participar, mesas de sucesso falaram sobre o tema do encarceramento em massa de pessoas negras, principalmente mulheres. Num país como o Brasil, como isso contribui para a manutenção do capitalismo?
Este é um sistema de terror de Estado. E ele é utilizado para que a sociedade mantenha uma força intensiva de exploração, com desigualdade produzindo cada vez mais desigualdade. O capitalismo acumula dinheiro, injustiças e hierarquias. Está muito claro que a escravidão não acabou. Temos novas formatos, que vão desde modelos financeiros e ao encarceramento em massa. Vejo o Brasil como um dos países do mundo com o maior nível de hierarquias racializadas. Então, faz sentido que os negros sejam intimidados, afinal essas hierarquias são fundamentais para a continuação do sistema, dando aos brancos o poder de oprimir os negros, aos homens o poder de oprimir mulheres. Este é realmente o problema de tantos grupos e organizações políticas. Como podemos desfazer isso? Como criamos demandas organizacionais, movimentos e lutas que sejam capazes de subverter essas divisões hierárquicas?
Silvia Federici (Parma, Itália, 1942) encerrou outubro de 2023 com uma conferência on-line na quarta edição da Escola Feminista da Assembleia Moza d’Astúrias, na Espanha. Autora de Calibã e a bruxa, O ponto zero da revolução, Reencantando o mundo e Além da pele, Federici é uma das teóricas mais importantes e reconhecidas do feminismo anticapitalista mundial, com uma longa trajetória de ativismo e reflexão. Viveu o feminismo dos anos 1970 na Itália, as campanhas pelo salário para o trabalho doméstico em Nova York, a luta contra os planos de ajuste estrutural na África, a crítica ao processo de globalização neoliberal e seus efeitos em todo o planeta, o movimento pela recuperação dos bens comuns e, mais recentemente, o ciclo de lutas que se abriu em 2011 e que tem continuado na última onda feminista. Em outras palavras, Federici passou décadas conciliando o ativismo com a reflexão e, assim, tem nos fornecido chaves para pensar e entender nosso presente. Hoje, quando o movimento feminista internacional está passando por intensos debates internos, voltamos a conversar com ela sobre este momento político.
Começamos pelo passado mais recente do movimento feminista, que foi um período massivo e expansivo de protestos, mobilização e reivindicação social. Como você interpreta e como acha que devemos interpretar esse “crescimento político” em um presente menos ativo? E como podemos pensar no movimento feminista de hoje em dia?
Em primeiro lugar, não estou surpresa com o grande crescimento do movimento feminista internacional. Na verdade, teorizo há muito tempo — junto com outras companheiras, como Verónica Gago — que o movimento feminista, em potencial, é o movimento mais importante. E é assim porque luta no território mais importante da transformação social, que é o da reprodução social. O feminismo, desde o início, concentrou-se na análise da reprodução social como o conjunto de atividades fundamentais para a reprodução da vida no sistema capitalista. Nesse contexto, a perpetuação da sociedade capitalista é mais importante do que a procriação, os cuidados, a saúde, a educação e toda a formação cultural. Como Verónica Gago já disse muitas vezes, ao lado das companheiras do movimento Ni Una Menos, a reprodução não é equivalente à produção. Pelo contrário, a reprodução é algo muito mais abrangente: é o conjunto de atividades que constituem a condição de possibilidade da perpetuação do mercado de trabalho. Portanto, a luta não é outra coisa senão o território onde se torna possível unir diferentes movimentos, reunir várias disputas. Esse território é a luta feminista. É exatamente isso que a luta feminista demonstrou a nível internacional: o feminismo, entendido como protesto contra a opressão e discriminação das mulheres, amadureceu muito em suas análises e, na prática, possibilitou o surgimento de muitas mais reivindicações. Nas últimas décadas, entendemos que não é possível mudar a situação das mulheres no mundo sem mudar o próprio mundo. O feminismo atual agora tem essa consciência e sabe que, como mulheres e dissidentes sexuais, não podemos melhorar nossa condição sem mudar o sistema social capitalista, que se baseia em uma lógica de guerra, violência, exploração do trabalho e da natureza. Em última análise, não podemos mudar nossa condição sem lutar contra o sistema capitalista em todas as suas formas.
Como se explica o crescimento político feminista dos últimos anos?
Eu acredito que o crescimento político dos últimos anos se deve, principalmente, às crescentes evidências da crise do sistema capitalista. Poderíamos discutir o porquê dessa crise, mas é evidente que a crise do capitalismo está se aprofundando. Temos um capitalismo cada vez mais violento, que promove a militarização da vida, a intensificação da exploração do trabalho e da natureza, e a desapropriação de terras. Estamos vivendo um presente aterrador no qual milhares de pessoas são forçadas a deixar seus locais ancestrais para que se tornem terras úteis e produtivas para o capital. A resposta a essa guerra e a esse ataque sistemático internacional à vida e à sua reprodução tem vindo das mulheres. São as mulheres que lutam na linha de frente contra a destruição da Amazônia e da África, são as mulheres que lutam contra o desmatamento e contra as empresas de mineração e petrolíferas. Elas percebem que a chegada de uma empresa de mineração significa que há mercúrio na água e que isso significa o fim de sua comunidade. Acredito que, por serem o sujeito principal da reprodução social, as mulheres se envolvem mais na luta contra as políticas que destroem a vida e impedem sua reprodução. Hoje, este é o tema fundamental da política internacional.
Você tem falado há muito tempo sobre os altos custos da reprodução social do sistema capitalista para as mulheres. Como essa imposição nos afetou e nos afeta?
Muitas mulheres, desde o início do movimento feminista, denunciaram, de diversas maneiras e com muitas palavras, o significado dessa imposição às mulheres na sociedade capitalista, o que implica cuidar da reprodução da vida. Explicamos que essa imposição gerou um trabalho desvalorizado, não remunerado, sem horário e aposentadoria. No entanto, acredito que também é importante dizer que essa imposição nos deu muito conhecimento: não é por acaso que as mulheres hoje têm maior consciência da fragilidade e do valor da vida, da teia de relações que sustenta a vida e nos permite superar o individualismo. Em resumo, a importância de construir uma comunidade. Para mim, esses são os dois temas centrais do feminismo: a luta contra a devastação capitalista, colonial e racista e a capacidade de pensar em uma alternativa e praticá-la a partir do presente, de nossa vida cotidiana. Pensar nisso, no contexto da perigosa situação política internacional atual, na qual muitas pessoas enfrentam constantemente a morte, me enche de esperança. Nesse contexto, o crescimento do movimento feminista e de sua capacidade organizativa internacional não é algo insignificante. Especialmente nos últimos anos, o movimento feminista tem demonstrado sua grande capacidade de criar alianças para a internacionalização da greve, indo da Argentina à Europa e gritando para o estado: ‘O estuprador é você’. A tecnologia nos ajudou a nos comunicar entre nós, mas essa grande capacidade vem, acredito eu, da consciência de que as mulheres estão enfrentando, de maneiras muito diferentes, os problemas fundamentais da política internacional atual. Nossas vidas dependem de como esses problemas serão resolvidos.
Você fala muito sobre experimentação. O que isso significa? Você acha que nosso presente é ou poderia ser um momento de experimentação?
Meu conceito de experimentação surge da ideia de que não podemos mais pensar na mudança social como uma tarefa do futuro. Estou pensando agora no conceito de “revolução” da esquerda tradicional, que considera a revolução como algo muito distante de nosso presente, algo que nunca chega. Minha ideia de experimentação, que considero muito importante para a prática feminista, diz exatamente o contrário: a revolução é hoje, a mudança acontece hoje. Não podemos continuar lutando contra tudo sem construir algo de forma positiva, não podemos lutar apenas organizando protestos. Dizer “não” é fundamental, sair às ruas e se opor é fundamental, mas não podemos nos limitar a isso. Precisamos começar a construir e fazê-lo em conjunto. Precisamos mudar nossa vida cotidiana experimentando novas formas de criar uma comunidade, que é a própria condição de nossa luta. Quando falamos em construir bens comuns, não o fazemos apenas pensando em um futuro comunitário, mas sim a partir da convicção da necessidade de fazê-lo agora. Precisamos começar a mudar as condições de reprodução da vida. O capitalismo, para se reproduzir, nos dividiu, nos individualizou e nos atomizou. Leopoldina Fortunati explica isso muito bem: o capitalismo nos unia nas fábricas e nos dividia na vida, com base na individualidade. A ideia da casa separada das outras, da família nuclear que cuida dos assuntos sujos em casa, da privacidade que rompe as relações entre vizinhos, tudo isso precisamos quebrar. Nos últimos anos, temos dito alto e claro: vamos derrubar os muros. Para mim, esse foi um dos maiores contributos do feminismo, ou seja, colocar a necessidade de nos unirmos e compartilhar nossos problemas na mesa.
Como podemos colocar em prática esse aprendizado?
Desde o início, o feminismo entendeu que não podemos lutar sem mudar nossa vida cotidiana e sem socializar nosso sofrimento e nossos medos. Os grupos de autoconsciência foram muito importantes. Quando as mulheres começaram a falar e compartilhar seus medos, suas culpas e sua sensação de não valer nada umas às outras, perceberam que todas compartilhavam os mesmos problemas. Perceberam que não eram problemas individuais, mas sim estruturais. Os grupos de autoconsciência nos permitiram entender que o problema não éramos nós, não eram nossos corpos nem nossas mentes, o problema era a sociedade. Portanto, o que precisávamos naquela época e ainda precisamos agora é mudar a sociedade, não nós mesmas. Nós temos uma grande capacidade de socializar e compartilhar nossos problemas, agora precisamos mudar a organização da reprodução cotidiana, criando momentos compartilhados de cuidado, como hortas urbanas.
A organização feminista deve ser também uma organização da mudança na vida cotidiana, que passa pelo que é comum: nos unir significa fortalecer e ganhar confiança, conhecimento e poder para enfrentar o estado que detém mais poder. Enfrentar o estado não significa se fechar em grupos pequenos, pelo contrário: significa se unir para reivindicar a riqueza social que está sendo roubada de nós e deter as decisões destrutivas que estão sendo tomadas. Portanto, experimentar também significa criar formas de luta capazes de recuperar e reivindicar espaços, tempo, riqueza social e recursos que nos foram roubados e continuam sendo roubados. Isso é muito importante, pois não podemos criar um mundo diferente sem antes nos apropriarmos da riqueza social. Eu acredito que esse é o verdadeiro campo de luta. Tenho dito há algum tempo que os comuns, ou seja, a criação em comum, não é apenas o objetivo da luta, mas sim a condição cotidiana da luta e seu poder de desafiar o estado e aqueles que estão sufocando nossa possibilidade de mudança.
Há alguns meses, durante uma entrevista publicada pela Contexto, você desenvolveu uma pergunta-chave para o movimento feminista internacional: “Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução de nosso poder de luta?”. Além disso, você disse que “isso é a medida de nosso crescimento político”. O que isso significa?
É a capacidade de nos unirmos para criar, superando a atomização de nossa vida. Isso é essencial para uma mudança social radical. Somente assim poderemos reduzir o tempo que investimos em realizar trabalhos que nos disciplinam e que geram pessoas mais facilmente exploráveis, e, dessa forma, poderemos nos dedicar a criar as condições necessárias para nos fortalecer e mudar nossa situação, tanto pessoal quanto coletiva. O tempo e os recursos, como mencionei, são fundamentais. Nossa vida está constantemente em contradição, e a reprodução torna isso evidente. A reprodução sustenta nossa vida, a de nossas famílias e comunidades, e, ao mesmo tempo, ocorre em condições que não escolhemos, que nos são impostas e que não são desejáveis. Essas condições são impostas pelo capitalismo, que precisa explorar para se reproduzir. O tema agora, então, é como mudar e como fazer isso: como nos organizamos para obter o poder de não ter que trabalhar dez horas por dia? Como fazemos para que nossas filhas e filhos não reproduzam nossa miséria e possam ter a liberdade de rejeitar a exploração e o despojo? É sobre isso que estou falando com o conceito de “experimentação”.
Qual é o caminho para nos reapropriarmos do nosso tempo e poder, e assim nos organizarmos?
A força que vamos construir é a de recuperar nossa vida e criatividade. Eu acredito que o que fazemos na vida cotidiana tem consequências nas casas, escolas, escritórios e fábricas, e essa é a medida do nosso crescimento político: influenciar as pessoas que atravessam os espaços que mudamos com nossas ações diárias. Neste contexto, os sindicatos deveriam desempenhar um papel ativo. Acredito que chegou a hora de os sindicatos incluírem a questão da reprodução da vida na luta pela melhoria das condições de trabalho da classe trabalhadora. A luta trabalhista deve se expandir e se interessar pelo que está sendo produzido. Não se trata apenas de fazer com que as horas de trabalho sejam respeitadas e de garantir condições de trabalho dignas, mas também de reivindicar o direito de decidir se queremos produzir mercadorias úteis ou materiais tóxicos e armas que acabarão com a humanidade e a natureza. A reprodução não é apenas uma questão doméstica, pelo contrário, é muito ampla e afeta todas as esferas de nossas vidas. Em última análise, trata-se de decidir se queremos produzir morte e miséria ou algo que reproduza nossa criatividade e bem-estar.
Uma das questões que enfrentamos dentro do feminismo é liberar o tempo das mulheres, liberar nosso tempo. Eu acredito que há milhões de mulheres em todo o mundo que estariam dispostas a sair às ruas e se organizar, mas o trabalho de cuidados, que nunca termina, as mantém presas em suas casas. Precisamos pensar no trabalho de cuidados de forma mais ampla do que costumamos fazer. Cuidar não é apenas criar nossos filhos, é cuidar de milhares de coisas que o corpo e a mente precisam. Devemos pensar no cuidado emocional que as pessoas que criamos precisam. Cuidar é o trabalho mais árduo, pois exige todas as nossas energias físicas, mentais e emocionais. É um trabalho desgastante. Portanto, acredito que pensar em formas comunitárias de cuidar é uma tarefa pendente do feminismo. Precisamos de tempo, precisamos liberar o tempo das mulheres que ainda hoje estão aprisionadas em suas casas, equilibrando seu trabalho com o cuidado de idosos, crianças e pessoas com deficiência física. Isso é uma das questões mais urgentes a serem abordadas pelo movimento feminista: se estamos sendo consumidas física e emocionalmente para reproduzir, como poderemos investir nossas energias na luta? A mudança na vida cotidiana, portanto, é fundamental para estarmos na luta. Tenho receio de que o movimento feminista, nesse sentido, não tenha feito o suficiente. Acredito que seja necessário um esforço maior para pensar não apenas em como podemos mudar a forma como as comunidades se relacionam umas com as outras, mas também como planejamos enfrentar o estado. Não podemos esquecer que, quando pedimos serviços sociais ao estado, precisamos ser capazes de controlar que tipo de serviços nos são fornecidos. Acredito que qualquer mulher que tenha lidado com o sistema de saúde sabe muito bem que vivemos em um estado de crise contínua e permanente. O estado pode fornecer serviços, mas, às vezes, a forma como o faz está tão equivocada que a situação acaba piorando. Lamento estar falando tanto sobre esse assunto, mas, por estar vivendo isso em primeira mão, assim como muitas companheiras, sinto que é um assunto que deve ser abordado. Recentemente, percebi que, a partir de certa idade, a questão dos cuidados se torna mais complexa, e hoje não temos uma alternativa ao trabalho realizado pelas mulheres em casa. Acho isso terrível e deve ser um tema central para o movimento feminista atual.
Falando sobre sua trajetória, você viveu em primeira pessoa as lutas dos anos 70 e a última onda feminista da qual falamos no início. O momento atual é marcado por uma forte rejeição ao feminismo e um questionamento dos avanços que alcançamos. Você acha que há alguma conexão entre a rejeição ao feminismo que ocorreu nos anos 70 e a atual?
Sim, claro que há. É uma pergunta complicada porque há muitos fatores em jogo. Em primeiro lugar, não é por acaso que a partir dos anos 70 as Nações Unidas começaram a intervir na política feminista. As Nações Unidas, ou seja, o capital internacional, perceberam muito antes que a esquerda tradicional o quão perigoso o feminismo poderia ser para a sua perpetuação. A partir de 1975, houve inúmeras conferências e intervenções das Nações Unidas (Cidade do México, Copenhague, Nairobi, Pequim, etc.) que tinham como objetivo apropriação do movimento feminista e o uso de parte de nossa ideologia contra nós, usando nosso pensamento para nos controlar e integrar as mulheres no processo de globalização como mão de obra barata. Até hoje, as mulheres realizam dois trabalhos. Portanto, o capital queria apropriar-se do movimento feminista por meio da ideologia da emancipação por meio do trabalho. Ninguém se emancipa através do trabalho em uma sociedade capitalista, isso é uma mentira. Eu acredito que essa cooptação do capital nos causou muito dano. Essa massificação do feminismo nos prejudicou. Muitas pessoas, principalmente muitas mulheres jovens da nova geração, acreditam que uma mulher feminista é aquela que luta pela igualdade entre homens e mulheres e que deseja ocupar um cargo de poder em seu trabalho. Em resumo, uma mulher feminista se torna uma mulher capturada pela instituição. Em parte isso é verdade: muitas feministas estão presas nas instituições porque muitos governos, embora nem todos, perceberam que a emancipação das mulheres poderia ser usada de forma instrumental para seu próprio benefício. As mulheres, então, podem ser exploradas não apenas em casa, mas também nas instituições com salários miseráveis e em outros trabalhos que não geram autonomia alguma. Tudo isso aumenta a miséria das mulheres, não as liberta, e mesmo assim, há quem continue dizendo que esse é o caminho. Bem, tenho minhas dúvidas e acredito que, devido a isso, muitas jovens começaram a falar de pós-feminismo. Estou pensando em um cântico que é muito ouvido por aqui, que diz: “vamos ser pós-feministas em uma sociedade pós-patriarcal”. Isso é mentira: a sociedade atual ainda é muito patriarcal, e vemos isso todos os dias.
Nos últimos anos, vimos o crescimento e disseminação de muitos partidos de extrema direita em todo o mundo, totalmente contrários aos avanços feministas. Como essa onda reacionária global nos afeta? Em seus últimos livros, você fala sobre seu conceito de “fascistização” da sociedade. Você pode explicar?
Além de tudo o que mencionei, hoje em dia, estamos enfrentando o fascismo em seu estado mais puro. Um fascismo que parece ter perdido qualquer tipo de vergonha. Por um lado, temos Giorgia Meloni na Itália, que é grotesca. Ela, uma mulher, líder de um partido chamado Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), nunca pensou em mudar o nome de sua organização política para que ela fosse incluída. Por outro lado, temos o Sr. Trump e a bem-sucedida luta do Partido Republicano para acabar com o direito ao aborto. Nesse contexto atual, muito complexo, precisamos ser sábias e analisar cuidadosamente, porque há um perigo real em nosso presente. Identificamos como fascismo o de Trump e o de Meloni, que é um fascismo muito óbvio, tão óbvio que é grotesco. No entanto, há outro fascismo mais sutil que permeia a política e a economia atuais. Em nosso presente, em sociedades que se autodenominam democráticas, estamos testemunhando uma “fascistização” da sociedade e da política econômica. Nos Estados Unidos, onde moro, tudo isso é muito evidente. As políticas que destruíram o bem-estar social americano foram implementadas por governos como o de Clinton, que foi capaz de alterar as leis de combate ao terrorismo, de administração de prisões e de militarização de toda a fronteira com o México. O governo Biden, que parece estar aberto ao feminismo e às pessoas trans, na verdade não está fazendo nada concreto. No entanto, envia milhões de dólares em todo o mundo para apoiar guerras imperialistas. Estamos testemunhando uma política imperialista brutal por parte do Partido Democrata nos Estados Unidos. O que está acontecendo na África e na Ucrânia é evidente: a guerra continua porque os Estados Unidos querem que continue e estão se preparando para uma guerra contra a Rússia e a China. Nos últimos dias, o governo Biden aprovou um orçamento militar de um trilhão de dólares. Em resumo, em 2023, o governo atual investirá um trilhão de dólares em guerra. Pense em quantas coisas poderiam ser feitas com um trilhão de dólares, quanto apoio à reprodução social poderia ser fornecido com todo esse dinheiro. A partir do que é investido na militarização da sociedade, cortes contínuos são feitos na já escassa saúde pública. No início deste ano, foram retirados os benefícios de saúde pública de mais de um milhão de pessoas e foi negado todo tipo de apoio aos estudantes universitários, que continuarão endividados pelo resto de suas vidas por terem buscado educação. Estudar nos Estados Unidos é caro e, diante dessa situação esmagadora, decide-se investir um trilhão de dólares em morte e guerra. Essa deve ser uma questão importante para o movimento feminista. Estamos em um momento muito perigoso, preparando-se para guerras internacionais, e o capitalismo se alimenta das guerras e se reproduz com elas. A guerra sempre foi um momento de mudança social profunda, pois serve para transformar a economia e as relações de poder em nível local e internacional. Além disso, a guerra serve para destruir os movimentos sociais. Neste momento de profunda crise do capitalismo internacional, estão sendo criadas as condições para a guerra, dia após dia. Portanto, a luta contra a guerra deve ser incluída na agenda feminista em todos os níveis. Foi uma grande derrota para o feminismo a inclusão de mulheres nas forças armadas no final dos anos 70 e início dos anos 80. Houve pessoas que lutaram pela entrada das mulheres nos exércitos nacionais, enquanto eu me oponho a essa barbaridade há décadas. Igualdade, nesse caso, não significa que homens e mulheres sejam iguais; igualdade significa que ninguém mais deve morrer em uma guerra. Precisamos deter a militarização da vida cotidiana e, para isso, precisamos de um feminismo que lute contra a guerra. Essa deve ser uma questão central para o movimento feminista internacional: lutar contra a guerra, contra a militarização da vida cotidiana, contra o investimento em armas e militares e contra o controle social nas cidades e bairros.
Você descreveu um presente muito complicado através do seu quadro de fascistização, que permite resolver muitos nós da análise social, econômica e política do momento atual. Qual é o papel das mulheres nesse processo de fascistização? E o que o movimento feminista pode fazer para enfrentar essa onda fascista? Em seus escritos mais recentes, você fala sobre a militância alegre e gozosa. Recuperar a alegria é a chave para facilitar a organização?
Ah, eu gosto desse tópico. Estou profundamente convencida de que, a nível internacional, está ocorrendo um grande processo de conscientização. A grande maioria de homens e mulheres, jovens e velhos, sabe que a sociedade capitalista é uma sociedade que produz morte e escassez em nome do progresso. A maioria da sociedade sabe que o progresso capitalista é uma mentira. Portanto, o desafio do feminismo atual é organizar essa maioria social com novas formas de luta comunitária. O propósito é, como mencionamos antes, liberar nosso tempo para criar uma mobilização forte, contundente e verdadeiramente transformadora. Para que isso aconteça, precisamos ter tempo livre. No entanto, há outro tópico igualmente importante a abordar: nossa forma de organização. Eu acredito que, por muito tempo, a forma de organização política foi muito masculina. Sendo um setor muito masculinizado, desenvolveu-se uma ideia do que é a política e como se faz política de forma muito regimentada. Eu acredito que as feministas, por outro lado, entenderam que ao se organizar para lutar, é preciso pensar em atividades que não sejam mais um trabalho. Devemos pensar em formas de organização e luta que não sejam mais um trabalho, que não nos causem mais sofrimento e que não pareçam mais uma carga em nossas vidas. Devemos nos esforçar para criar formas de organização, luta e mobilização que nos nutram, nos fortaleçam emocionalmente e sejam prazerosas e alegres. No entanto, a condição para que isso aconteça é conscientizar-se da importância das relações que criamos entre nós no processo de luta e mobilização. Devemos prestar atenção às relações que criamos e criar redes afetivas que nos façam desejar ir a uma reunião ou encontro porque nossas amigas, as mulheres que amamos, estarão lá. A organização também deve incluir momentos de felicidade: cantar, dançar e fazer atividades alegres juntas. Muitas mulheres já estão colocando tudo isso em prática. Um exemplo fantástico é Rafaela Pimentel de Território Doméstico (que participou da III edição da Escola Feminista de Ama Asturies). Precisamos integrar essa afetividade em nossa luta, especialmente quando temos companheiras que deixaram seus países e vivem longe de suas comunidades. A militância alegre consiste em criar novas famílias no sentido mais positivo da palavra. Eu sempre digo: se o trabalho de mobilização se tornar uma carga adicional, algo está errado. Nesta condição de tristeza e sofrimento adicionado às nossas vidas, é normal que as pessoas prefiram ir assistir ao futebol ou ao cinema. Precisamos criar uma militância alegre capaz de nos reproduzir, não apenas aos outros. Precisamos também reproduzir a luta, o que significa nos reproduzir em um aumento de alegria. Isso é solidariedade. A solidariedade não é apenas teoria, é algo que nos mobiliza, que move nossos corpos.
Para encerrar, quais são as tarefas pendentes do feminismo contemporâneo? Você falou sobre a importância de incluir na agenda feminista o trabalho reprodutivo e a reprodução da vida, a luta contra a guerra e a militarização da sociedade. Você acha que há algum novo campo de reflexão que não estamos conseguindo ver, justamente porque, como você nos ensina, o capitalismo limita nossa capacidade de imaginar?
Acredito que o que o movimento feminista está fazendo atualmente demonstra a amplitude do feminismo: o corpo, a sexualidade, a saúde, a educação e a produção do conhecimento são apenas alguns dos temas que o movimento feminista abordou ao longo das últimas décadas. Também não podemos esquecer da incrível luta pela recuperação da Memória Histórica realizada pelas companheiras na América Latina. Elas nos ensinam a importância de recuperar o senso de comunidade e a solidariedade com aqueles que lutaram antes de nós, não apenas para entender as lutas do passado, mas também para mantê-las presentes em nosso cotidiano. Compreender as lutas do passado e conhecer o rosto das companheiras e companheiros que perderam a vida lutando nos fortalece. Em última análise, entender que nossa luta faz parte de algo muito maior e que vai além de nossa vida individual nos dá coragem, sabedoria e solidariedade.
Além disso, a luta feminista envolve a luta pelos recursos e contra a devastação da natureza em sua totalidade: a terra, a água, os mares, os animais e as árvores. Também é a luta contra a dívida, que é muito forte na Argentina, como Verónica Gago menciona com frequência (ela participou da II edição da Escola Feminista de Ama Asturies). A dívida foi criada pelo capital e é outra forma de aprisionar as mulheres em suas casas. As mulheres são as mais endividadas: temos dívidas para comer, para nos curar e para estudar. Hoje em dia, as pessoas não se endividam para comprar coisas supérfluas, muito pelo contrário: hoje nos endividamos para comer, pagar as contas de luz e consultar um médico, porque os salários estão cada vez mais miseráveis. Portanto, a capacidade do movimento feminista de criar redes internacionais, que vão da América à Europa, passando pela África e Ásia, contra a dívida pessoal e nacional, é de extrema importância. Organizar-se internacionalmente contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional é fundamental, porque onde quer que sejam impostos planos de austeridade, as pessoas não terão escolha senão se endividar para sobreviver.
Em resumo, o movimento feminista tem se mostrado capaz de incluir em sua análise muitos temas, como mencionei antes. Agora precisamos nos concentrar em criar novas formas coletivas de organizar os cuidados, a educação e a produção de conhecimento sem passar pelo mercado. É necessário libertar a reprodução social do mercado, livrá-la da lógica do lucro, recuperá-la e focá-la em nosso bem-estar. Este é o objetivo do feminismo e já estamos a caminho de alcançá-lo. Um caminho que deve ser internacionalista, com passos para fortalecer as redes de mulheres já existentes e criar outras capazes de conectar as mulheres indígenas com as camponesas e com aquelas que lutam contra a repressão sexual. Em resumo, temos que conectar todas as nossas lutas. O feminismo é um território de análise e ação imenso, e eu acredito que ainda estamos entendendo que esta é nossa força. Estamos criando um território comum que serve como ponto de encontro para todas as lutas sociais. Esta é nossa força e, ao mesmo tempo, o presente e o futuro do movimento feminista.
No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.
Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.
A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.
A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?
O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015.
A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.
No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?
Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.
Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?
Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas.
O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.
E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?
As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.
E de gênero também?
Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.
Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil?
Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil.
Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.
Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.
Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?
O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil.
Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política.
Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.
Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?
Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.
Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.
Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.
Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas.
Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015?
Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.
As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.
No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero.
Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.
Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.
Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?
A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.
Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?
Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.
Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça.
Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.
Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?
O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região.
Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.
Quando VerónicaGago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reproduçãosocial como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modeloneoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reproduçãosocial refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.
A entrevista é de EmilianaPariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reproduçãosocial, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.
Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reproduçãosocial serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.
Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.
No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?
“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzira vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.
É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutasfeministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reproduçãosocial, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.
Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismoé violento e que a violênciapatriarcal é, por sua vez, neoliberal”.
Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.
Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violênciaestrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.
Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.
Essa é mais uma potência dos feminismosatuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violênciasistêmica.
Soma-se a isso o fato de que os movimentosfeministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.
Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.
Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a ofertaneoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violênciasistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.
Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.
Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?
As crises facilitam certa criatividade política e a autogestãoereapropriaçãodefunções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentosfeministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reproduçãosocial, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutasfeministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.
Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?
É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.
Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.
Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?
Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirizaçãodareproduçãosocial, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reproduçãosocial que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.
Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.
Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.
Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?
Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.
Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.
Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formasde recolonizaçãodonossocontinente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.