Dean Spade é professor de direito na Universidade de Seattle e fundador do Sylvia Rivera Law Project , que oferece assessoria jurídica a pessoas trans, intersexuais ou não binárias sem recursos financeiros. Ele também é um ativista contra a expansão do sistema penal e policial.
O trabalho de Spade está focado em desvendar os principais problemas do ativismo popular que, nos últimos anos e com a pandemia, cresceu enormemente nos Estados Unidos. Ele dedica seu último livro a essas formas organizacionais, Apoio Mútuo: Construindo Solidariedade Durante Essa Crise (e a Próxima). Já Uma vida “normal” (Ed. Bellaterra) –publicado em 2015– é um ensaio sobre como a violência institucional, o racismo ou a criminalização do uso de drogas influenciam a vida das pessoas LGBTQIA+, temas que normalmente não são abordados pela militância ou pelo ativismo que pauta reformas jurídicas.
Na Espanha, está prestes a ser aprovada uma nova lei trans que envolve a autodeterminação de gênero e algumas políticas de apoio às pessoas trans. Que impacto têm estas leis na transformação da vida das pessoas?
Uma das coisas com que lidamos nos movimentos sociais é a questão de como não focar apenas na produção de leis, ou na introdução de questões como o discurso de ódio sobre grupos marginalizados, porque isso nos faz colocar muito foco no poder do Estado . É como se só o governo pudesse resolver todos os nossos problemas. Além disso, reforça a ideia de que o que dizem as leis se refletirá automaticamente na vida das pessoas, e a realidade é que existe uma grande lacuna. Esta lacuna surge de diferenças dentro de grupos, dentro de cidades ou regiões, entre bairros, ou de diferenças na forma como os funcionários do governo e outros intervenientes veem as pessoas trans com deficiência, os imigrantes ou as pessoas transgênero de classe alta. Todas estas diferenças dentro de um grupo fazem com que a aplicação da lei tenha um impacto diferente, porque as leis são implementadas por pessoas e terão prioridades diferentes sob diferentes administrações ou sob diferentes partidos.
Outra preocupação é que quando as leis são legisladas ou as leis são alteradas, os governantes dizem: “Agora este grupo de pessoas é igual” ou “De agora em diante, serão bem tratados”. Dizem que resolveram os problemas na tentativa de desmobilizar os nossos movimentos. Nosso trabalho é dizer que nada será resolvido até que nosso povo consiga sobreviver, e a lei não é a ferramenta ideal para isso. O que realmente precisamos é de uma população fortemente mobilizada e de movimentos interseccionais radicais em constante resistência, que procurem verdadeiramente o bem-estar das pessoas frente ao que enfrentamos no capitalismo ou no neoliberalismo.
Acredito no trabalho de reforma legislativa dos movimentos sociais, mas isso não deve ter um papel central. Devemos ter também um papel crítico.
De que tipo de leis as pessoas trans precisam ou quais seriam verdadeiramente transformadoras?
Deveríamos buscar uma reforma jurídica baseada no alívio do pior sofrimento enfrentado pelas pessoas trans, aquelas que se encontram nas situações mais complicadas e perigosas ou que estão verdadeiramente à margem: as pessoas trans que estão na prisão, aquelas que enfrentam a deportação, os mais pobres, as pessoas mais criminalizadas, as pessoas trans com deficiência. Observem as suas vidas e pensem se as reformas legais que estão a sendo consideradas vão resolver os seus problemas, porque se não, acabamos por criar leis que apenas aperfeiçoam o sistema que os mantém marginalizados. Sendo assim, a justiça se transforma em algo que só pode ser acessado se você tiver um emprego com status, ou se não estiver a margem. Isso significa que temos que analisar o impacto material das leis. Queremos evitar leis que sejam apenas simbólicas, que não ofereçam ajuda, que sirvam apenas pessoas de status elevado ou que tenham vida mais privilegiada, que é, na verdade, o que a maioria das leis acabam fazendo.
Queremos pensar em soluções jurídicas que vão além de ter a palavra “trans” escrita. Por exemplo, nos Estados Unidos, qualquer lei que ajude a reduzir o número de policiais será boa para as pessoas trans, porque a polícia as persegue; ou qualquer lei que ajude a reduzir as penas criminais por serem pobres ou usarem drogas, porque é assim que a maioria deles acaba na prisão. Aparentemente, essas leis não são para pessoas trans, mas, em última análise, seriam as mais benéficas. Devemos nos concentrar nelas. Por exemplo, nos Estados Unidos, foram aprovadas leis há décadas para endurecer as penas para ataques a pessoas trans por serem trans (crimes de ódio). Não há provas de que previnam a violência e geralmente servem para aumentar o financiamento da polícia e dos procuradores, e qualquer coisa que dê poder à polícia e aos procuradores é mau para as pessoas trans. Temos que pensar bem: como saber se a lei é realmente boa? Analisar se é bom para pessoas trans que se encontram nas situações mais vulneráveis.
As leis que criminalizam o trabalho sexual entrariam em jogo aqui?
Exatamente. Esta é uma das formas mais importantes de criminalizar as pessoas trans. Se conseguirmos descriminalizar o trabalho sexual e reduzir o impacto da polícia na vida dos trabalhadores do sexo, isso seria uma reforma legal que realmente ajudaria as pessoas trans.
No seu último livro você fala sobre apoio mútuo. Podemos combiná-lo com ação judicial ou estamos perdendo o horizonte de onde intervir?
Se quisermos uma mudança que seja libertadora, temos que exercer uma pressão significativa e sustentada dos movimentos sociais, precisamos da participação de muitas pessoas. Por vezes, o problema da reforma jurídica é que ela é levada a cabo apenas por algumas ONGs e envolve apenas algumas pessoas da elite. Não é uma estratégia muito participativa. E o que vejo tanto nos EUA como noutras partes do mundo é que, mesmo que existam boas leis, se não houver forma de sustentar a pressão da mobilização, elas não serão necessariamente aplicadas. O verdadeiro motor da mudança social para as pessoas trans deve ser a mobilização de base, por isso precisamos de organizações militantes trans fortes, mas também devemos estar conectados com outras organizações, como por exemplo, das trabalhadoras sexuais, de descriminalização das drogas, etc.
As redes de apoio mútuo são hoje locais onde muitas pessoas aderem aos movimentos sociais. É onde as pessoas comuns vêm e participam de mais do que ações para mudar a lei. O trabalho legislativo, quando vem da mobilização popular, tem mais qualidade, porque sabe quais são os problemas materiais cotidianos das pessoas vulneráveis e, provavelmente, também como as leis existentes são aplicadas. Se você está fazendo um trabalho de apoio mútuo, você sabe antes de tudo detectar o problema e sabe exatamente como o sistema jurídico funciona atualmente. Ou seja, não como aparece na redação da lei, mas na prática, na sua aplicação.
Você faz parte do movimento abolicionista nos Estados Unidos. O que está acontecendo?
No ano passado houve uma mobilização social e antipolicial incrível em todo o país. Após as mortes de George Floyd e Breonna Taylor, ocorreram protestos em todos os lugares. Isto levou à demanda para retirar fundos e repasses da polícia . Há décadas que trabalho pela abolição das prisões e da polícia e estas ideias nunca chegaram ao mainstream como estão agora.
Em muitas cidades, as pessoas têm lutado nas câmaras municipais e noutras instituições para literalmente acabar com o orçamento da polícia, ou reduzi-lo. Tem sido uma luta muito difícil porque nos últimos 40 ou 50 anos os orçamentos da polícia aumentaram todos os anos. É um dos momentos políticos mais emocionantes que já vi. As pessoas queer, trans e também as feministas são uma parte importante dessas lutas porque sabem que a polícia não nos deixa mais seguros. Isto é importante porque a desculpa da segurança das mulheres é frequentemente utilizada para pedir mais polícia. Onde eu moro, em Seattle, a polícia tem até adesivos de arco-íris, ou contrata um policial gay ou trans. Portanto, é muito importante que pessoas queer, trans, feministas e especialmente racializadas digam: “Isso não resolve nossos problemas, nós não queremos isso”.
O que contribui para reduzir a violência ou o que nos traz a sensação de estarmos mais seguros?
Sabemos que a polícia só acrescenta mais violência a qualquer situação – prende as pessoas, utiliza da própria violência para bater e violar, em algumas situações. Se algo acontecer com você, a polícia chega quando tudo já aconteceu. Nada é feito para impedir que as coisas aconteçam. Além disso, eles podem punir quem fez algo, mas nada muda, nada garante que essa situação não voltará a se repetir, então você não estará mais seguro do que antes.
Nos movimentos sociais, fazemos outros tipos de perguntas: “O que realmente faz com que estejamos mais seguros?” Uma das coisas que torna as pessoas mais seguras é o acesso à habitação, à alimentação e a um sistema de saúde público. Quando olhamos para as mulheres trans assassinadas nos Estados Unidos, muitas não tinham um lugar seguro para morar, o que as levou a situações perigosas, ou realizavam trabalho sexual de forma insegura, porque não tinham recursos para fazê-lo de outra forma. . Se quisermos segurança real, temos de transferir dinheiro dos orçamentos da polícia para habitação, saúde, cuidados infantis, etc., para cobrir necessidades básicas.
A segunda questão presente em pautas feministas, nos movimentos queer e trans, é sobre as suas própriascondições de vida. Nós nos perguntamos: o que as pessoas da nossa comunidade precisam? Devemos levá-los aos eventos e acompanhá-los depois? Precisamos que a comunidade ofereça formação sobre violência doméstica, sobre como apoiar os nossos amigos quando estão em situações de violência…? O que pode a militância de base fazer para mudar as condições de vida que tornam algumas pessoas da nossa comunidade tão vulneráveis?
Isto está relacionado com o que é chamado de justiça restaurativa?
Muitas pessoas nas nossas comunidades já realizam trabalho de justiça restaurativa, que envolve pensar que quando algo mau acontece, o que podemos fazer? Por exemplo, se estivermos num círculo social onde uma pessoa agride sexualmente outras, como podemos fazer com que isso pare? A vítima precisa de suporte? Por que a pessoa que cometeu esse crime fez isto? Essa pessoa tem problemas com drogas? Essa pessoa precisa de suporte em relação a sua saúde mental? Essa pessoa está fazendo isso porque precisa entender questões relacionadas a gênero e sexualidade de outra forma? E o que as pessoas que foram agredidas precisam para continuar fazendo parte da comunidade e se sentirem apoiadas em situações difíceis como essa? Como o dano causado não pode ser desfeito, pode haver uma maneira de curar e curar, de restaurar o seu bem-estar?
A polícia e os tribunais não oferecem nada disso. Portanto, tem mais a ver com a forma como respondemos para que isso pare de acontecer e todos os envolvidos fiquem em melhor situação, em vez de aplicar punições. A punição nunca diminui o dano causado. Na verdade, se uma pessoa violar outra e você a mandar para a prisão, ela poderá continuar a violar lá. Isso não resolve nenhuma das causas subjacentes.
Na Espanha vemos um certo feminismo muito pautado na produção de novas leis ou mesmo em pedir o aumento das penas de leis já existentes.
Nos Estados Unidos chamamos de “feminismo prisional” e não queremos um feminismo que se baseie no pedido de mais polícia e mais prisões. Vivemos num período, que começou na década de 1970 e continua desde então, em que a polícia e as prisões estão crescendo muito. Uma das razões pelas quais estão crescendo é sob o pretexto de “proteger as mulheres”. Assim, o governo começou a financiar programas para abordar a violência doméstica e sexual, trazendo como solução mais detenções e mais pessoas na prisão. Depois de aplicar isto durante 40 ou 50 anos, não vemos redução nos casos. Em relação à violência sexual, tivemos inclusive um aumento, porque a polícia é também uma importante fonte de violência sexual.
Queremos enterrar o feminismo prisional e concentrar-nos num feminismo que vai no cerne das causas da violência contra as mulheres, pessoas queer e trans, e que quer acabar com a violência em vez de apoiar o crescimento da polícia. E nos perguntamos por que a maioria das pessoas que sofrem violência em casa não denunciam? Muitos não querem que os seus entes sejam presos ou sabem que a polícia não vai acreditar neles, porque são pobres, não têm documentos ou porque têm medo da polícia, porque são homossexuais ou trans, e já sofreram com a violência policial.
A solução tem a ver com acreditar que as pessoas, mesmo aquelas que causaram dor, fazem parte da nossa comunidade, e devemos responsabilizá-las, mas também possibilitar o retorno ao seu lugar. O objetivo é ajudá-los a mudar seu comportamento em vez de expulsá-los. O que é necessário para assumirmos que as pessoas não são apenas as coisas horríveis que fizeram? Vamos usar soluções comunitárias para reduzir danos.
Foram as mulheres negras, os imigrantes, as pessoas com deficiência, que tiveram de buscar e encontrar essas estratégias de sobrevivência. Nunca conseguiram chamar a polícia, porque sabem que se vierem causarão ainda mais danos. Esse trabalho prático emergiu do feminismo.
Nos recentes protestos nos Estados Unidos tem havido grandes manifestações lideradas pelo slogan: “Black Trans Live Matter”. Como estão acontecendo essas alianças entre lutas?
A forma como o Black Lives Matter está crescendo levou as pessoas a organizarem grupos em todo o país nos últimos anos e, mesmo antes de 2020, esse tem sido um movimento verdadeiramente interseccional. Têm pessoas trans, negras, queer, feministas que apoiam a causa palestina… Um dos objetivos tem sido mostrar as histórias de mulheres negras, de pessoas negras com deficiência… A solidariedade que existe dentro do movimento tem sido muito orgânico e sempre existiram muitas pessoas trans em posições de liderança.
Esse momento representa uma transformação nos Estados Unidos daqueles movimentos civis com políticas e estratégias que buscavam a respeitabilidade e que historicamente têm sido mais patriarcais e mais heterossexuais, menos interseccionais. O movimento Black Lives Matter já emergiu de mulheres queer, tem sido inerentemente mais queer e trans. É um momento impressionante e, além disso, vem no mesmo período do renascimento da resistência indígena em Standing Rock, dos movimentos feministas indígenas, que são muito inclusivos… Estamos em um momento de emergência do movimentos de base, que são muito interseccionais.
O que você acha da aparente aliança que está ocorrendo entre certo feminismo transfóbico e alguns fundamentalistas cristãos ou de direita?
Infelizmente, ainda vivemos uma reação contra o feminismo que começou nos anos 80. Nos Estados Unidos, assistimos a momentos muito específicos desses movimentos transfóbicos. Há um número surpreendente de leis que se concentram em dificultar ou impossibilitar o acesso dos jovens trans aos cuidados de saúde e aos esportes. Apesar do período de efervescência política trans e dos esforços de reforma jurídica que ocorreram desde o final dos anos 90 até hoje, na verdade não conseguimos tantos avanços.
Existe uma lei federal, uma lei sobre crimes de ódio que dá dinheiro à polícia e há algumas pequenas coisas que foram alcançadas com Obama, mas a maioria das pessoas trans ainda vive à margem. Houve também algumas melhorias na identidade recolhida nos DNIs, mas ainda existem muitos obstáculos à sobrevivência. No entanto, nos últimos cinco anos houve mais aparições de pessoas trans na televisão convencional . Assim, embora não tenha havido mudanças importantes no cotidiano das pessoas trans, houve uma reação violenta muito significativa da direita a essas pequenas conquistas que se intensificou.
Por volta de 2013, começa um período em que muitas leis estaduais tentam criminalizar ainda mais as pessoas trans por usarem os banheiros (com os quais elas se sentem confortáveis) e agora muitas leis estaduais estão tentando aprovar dizendo que os jovens trans não podem receber cuidados de saúde específicos. Também tentam impedi-los de praticar esportes nas escolas de acordo com seu gênero. Por exemplo, as meninas trans não podem praticar esportes com outras meninas.
Há uma conduta, na forma de uma guerra cultural, e é interessante como ela coincidiu com a ação do TERF (anti-transfeminismo), o que me lembra a década de 1980, quando ativistas de direita anti-pornografia se aliaram com feministas anti-sexo que eram contra o trabalho sexual, a pornografia e a favor da censura. Sinto que essa coligação está se repetindo. O fato dessas pessoas se considerarem feministas e estarem dispostas a alinhar-se com a direita que tenta proteger o patriarcado e o controle sobre os corpos das mulheres e o corpo queer e trans é chocante para mim.
Uma análise de “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, por Rory Elliot*
Com “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, o ativista trans e professor de direito Dean Spade desafia o leitor e o movimento de esquerda como um todo a perceber o poder do apoio mútuo nas lutas coletivas pela libertação. Spade ajuda a definir a longa e muitas vezes não contada história do apoio mútuo como um ato de “construir redes subversivas de cuidado que são de extrema importância para envolver, radicalizar e fornecer diretamente para nossas comunidades”. Citando a história revolucionária e a luta contemporânea do Partido dos Panteras Negras, os esforços do Apoio Mútuo em Desastres, ao movimento de protesto antigovernamental de Hong Kong, Spade deixou cair em nosso colo coletivo um roteiro fácil de ler para semear, cultivar e fortalecendo nossos movimentos, exatamente quando mais precisávamos.
Profundamente influenciado pela visão abolicionista e pela acessibilidade do texto de Angela Davis entitulado “Estarão as prisões obsoletas?”, o livro “Apoio Mútuo” tem menos de 200 páginas, impecavelmente pesquisado e crítico para sustentar e florescer nossa imaginação radical agora e nas lutas futuras. Spade expõe que desastres e crises planejadas ou inesperadas há muito são oportunidades para manobras políticas, repressão violenta, ocupação militar, floreios de novas tecnologias de vigilância e, mais insidiosamente, reformas. Com demonstrações históricas de solidariedade inflexível e poder popular, o autor mostra como e quando esses mesmos desastres se tornam oportunidades para ativistas e militantes se envolverem em mudanças radicais por meio da hibridização de ação local e redes massivas de assistência comunitária.
2020 revelou a muitos, e garantiu a alguns poucos, que a manutenção do status quo é a crise; o Estado e seus mecanismos e políticas, suas raízes, suas reformas e o firme desejo oportunista. COVID-19, mudança climática, imigração, assassinato policial, vigilantismo branco, número de mortos na prisão e a ascensão do fascismo direto e revelado em todo o mundo não são fenômenos inseparáveis. Muitos perceberam que diante de tanto caos, a única coisa que temos é uns aos outros; O apoio mútuo é a nossa salvação.
Embora profundamente ancorado no pensamento e análise revolucionários, este não é um livro de teoria política, nem uma exploração do que aconteceu. É um olhar ansioso para o que é possível e necessário.
O apoio mútuo, feito de forma radical, permite que as pessoas determinem e atualizem os caminhos para sua própria libertação por meio do crescimento coletivo, participação na liderança e ação. Também pode atuar e ser usado como rampa de acesso à luta política; uma resistência praticada aos modelos de organizações sem fins lucrativos dos supremacistas brancos.
“Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” fornece uma estrutura crítica para desafiar os movimentos dos quais fazemos parte, além de fornecer um roteiro para desafiar organizações, desafiar a nós mesmos como ativistas e militantes e desafiar uns aos outros para estarmos prontos para a luta que está à frente. Dá-nos o contexto de negligência governamental e resistência antigovernamental, os padrões de concessões, cooptações e exemplos de movimentos radicais que conseguem criar mundos melhores que sabemos serem possíveis.
À medida que o verão se transforma em outono, e porque tudo está em jogo e estamos lutando para vencer, precisamos de Apoio Mútuo.
*Rory Elliott é estudante de Portland, membro da organização abolicionista Critical Resistance, membro do coletivo editorial do The Abolitionist Newspaper e organizador da campanha Antipolicial Care Not Cops PDX. Atualmente, co-dirige a campanha de arrecadação de fundos do ACT UP Oral History Project. Colabora com Between Certain Death and a Possible Future: Queer Writing on Growing up with the AIDS Crisis.
“Apoio Mútuo é o ato radical de cuidar uns des outres enquanto trabalhamos para mudar o mundo.
Em todo o mundo, as pessoas enfrentam uma sucessão em espiral de crises, desde a pandemia de Covid-19 e incêndios, inundações e tempestades induzidas pelas mudanças climáticas até os horrores contínuos do encarceramento em massa, policiamento racista, fiscalização brutal da imigração, violência endêmica de gênero, e grave desigualdade de riqueza. À medida que os governos falham em responder – ou projetar ativamente – cada crise, as pessoas comuns estão encontrando maneiras ousadas e inovadoras de compartilhar recursos e apoiar pessoas vulneráveis.
O trabalho de sobrevivência, quando feito ao lado das demandas dos movimentos sociais por mudanças transformadoras, é chamado de ajuda mútua.
Este livro é sobre apoio mútuo: por que é tão importante, como é e como fazê-lo. Ele fornece uma teoria básica de ajuda mútua, descreve como o apoio mútuo é uma parte crucial de movimentos poderosos por justiça social e oferece ferramentas concretas para a organização, como trabalhar em grupos, como promover um processo coletivo de tomada de decisão, para prevenir e resolver conflitos e como lidar com o esgotamento.
Escrevendo para quem que é novx no ativismo, bem como para quem está em movimentos sociais há muito tempo, Dean Spade baseia-se em anos de organização para oferecer uma visão radical de mobilização comunitária, transformação social, ativismo compassivo e solidariedade.”
Dean Spade no livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”.
A expressão “apoio mútuo” pode aferir pouca radicalidade quando desassociada do corpo coletivo que lhe dá sentido. Apoiarmo-nos mutuamente, o que isso significa?
Como Dean Spade nos evidencia, trata-se da forma mais radical, criativa e transformadora de construir comunidades e estratégias para enfrentar os problemas sociais em tempos de crises sucessivas. Isso significa dizer que não há superficialidade nessa experiência. Ao contrário, apoio mútuo confere respostas concretas e solidárias aos contextos de urgência, sem ancorar-se no modelo moralizante da caridade, e reelabora dinâmicas de sobrevivência e aliança que vão muito além de propostas estatais temporárias e parcialmente destinadas a determinados grupos e territórios.
Apoio mútuo é a nuance visível das práticas do comum, pois, ao mesmo tempo que exige, também confere responsabilidade, partilha, comprometimento recíproco e desejo de constituir comunidade.
A obra de Dean Spade chega ao Brasil num momento que lhe confere especial significado. Se muites de nós sobrevivemos aos efeitos nefastos da pandemia viral e ao projeto genocida do governo Bolsonaro, foi em decorrência das ações tecidas situadamente e partilhadas entre as pessoas interessadas em transformar o cenário cotidiano de violência que se impunha.
A tecitura sensível de articulações de apoio mútuo foram expressivas nos locais e entre as pessoas mais afetadas pelos efeitos da falta de recursos e pelo incremento agudo das vulnerabilidades sociais. No caso das favelas no Brasil, que no início da pandemia eram consideradas locus de atenção referente à concentração de transmissão – o que não se confirmou –, foram criadas diversas estratégias comunitárias de contenção aos problemas consequentes da política de isolamento. A disseminação da doença, o desemprego e a fome foram combatidos com ações coletivas realizadas pelas próprias comunidades por meio de mutirões de limpeza das ruas, arrecadação de cestas básicas, cuidados de higiene, mobilização por acesso à água e atendimento à saúde. As estratégias de mobilização entre vizinhes para arrecadação de cestas básicas, o voluntariado entre pessoas desconhecidas para ajudar moradorxs mais velhes nas compras, a auto-organização da limpeza das vielas e a contratação de moradorxs da própria comunidade como prioridade na área da Saúde para o levantamento do número de pessoas infectadas e óbitos, se deu em dimensões nacionais e num tom de necessário suporte em termos de manter a vida possível coletivamente.
Apoio mútuo é sustentar a vida de único modo que ela pode existir, compartilhada. Para isso é necessário empregar esforços nas formas horizontais de organização promovidas por movimentos sociais, coletivos e outras expressões da sociedade civil. Entre os destaques do trabalho de Dean Spade está a sistematização de como se organizar coletivamente sem se utilizar de relações que imitam as hierarquias verticais de Estados e das instituições. Isto é, abrir mão de mestres e lideranças com a finalidade de articular responsabilidades recíprocas com os objetivos do projeto e seus efeitos a partir de relações de cumplicidades reafirmadas entre antigas alianças e de novos pactos de ações conjuntas.
O que a obra “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” deixa aparente é que a atuação solidária e organizada da sociedade civil não precisa ser apenas realizada em larga dimensão para que seja eficaz, concreta e transformadora. A atuação pequena, localizada, coletivamente organizada e desenvolvida entre poucas pessoas também possui a dimensão significativa de produzir impactos radicais na sociedade. Trata-se de atuar considerando a mutualidade social que nos consiste, em que cada vida merece apoio, atenção e resposta, e a urgência de nos encontrarmos através de um agir comunitário pautado em racionalidades criativas que não cedam espaço às convocações neoliberais e aos nossos mais profundos desejos por autoridade e liderança.
Por isso, evoca uma espécie de tessitura. Muito mais afeita à maleabilidade que importa e à cobertura adaptável que sua forma apresenta. No tecido, cada um somos fios ínfimos e apenas ganhamos força pelo entrelaçamento que se pode dar através de vários nós e em diversas direções e modelos. Longe da qualquer construção vertical em que por trás de sua estrutura estável e dura espelha a fixidez e perenidade, na tessitura sempre somos tocadas de outra maneira. Produzem-se desenhos, formatos e densidades próprias, que bem trazem a diversidade de seus modos de ser. Eis sua condição ética por excelência, com rastro na relação, muito antes e para além de qualquer ser.
Nesse sentido, a obra de Dean Spade é instrumento estratégico prático-intelectual para resistências comprometidas com o apoio mútuo. Ao apontar o quanto necessitamos uns des outres, o que o autor nos interpela a reconhecer é a necessidade de constituirmos ou fortificarmos laços que sejam capazes de gerar dinâmicas criadoras e saídas inventivas e corajosas aos problemas gerados pelos Estados e pelos desdobramentos imediatos da exploração, extração e usurpação das terras, das águas e dos corpos. Desse modo, o autor nos dispõe das ferramentas necessárias para construirmos solidariedades com ousadia durante essa crise e as próximas, que sempre nos aponta para todo o instante de decisão.
Fernanda Martins é feminista e professora.
Augusto Jobim do Amaral é professor.
Ambos assinam a apresentação do livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, disponível aqui.
O radical professor de Direito explica como podemos atender às necessidades uns des outres com dignidade, cuidado e justiça.
Quer se trate da crise climática, perda de salários, custos de moradia, brutalidade policial, deportação, assistência médica corporativa ou simples má conduta política, é fácil olhar para os Estados Unidos e ver nada além de uma catástrofe à frente.
O que menos se comenta é como podemos aprender a enfrentar desafios tão imensos e o que significa reconhecer a dimensão dos problemas sem perder a esperança. Em um livro novo – “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” -, Dean Spade, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Seattle e fundador do “Silvia Rivera Law Project”, oferece um guia para a criação de movimentos duradouros para combater a injustiça, ao mesmo tempo em que atende às necessidades imediatas das pessoas prejudicadas pela pobreza, criminalização, racismo, transfobia e capacitismo.
Spade argumenta que nós vivemos em uma das “sociedades mais atomizadas da história da humanidade, o que torna nossas vidas menos seguras e prejudica nossa capacidade de nos organizarmos juntos para mudar condições injustas em grande escala”. É nesse contexto — definido tanto pelo isolamento social quanto pela dependência de instituições tóxicas e hostis — que Spade situa o conceito de apoio mútuo. Sua escrita nos dá as ferramentas para atender “às necessidades uns des outres com base em comprometimentos compartilhados com dignidade, cuidado, e justiça.” Enquanto alguns imaginam a política nacional como o principal via para a mudança social, Spade argumenta que a transformação real e duradoura vem da organização dentro de nossas comunidades. Seu livro é ao mesmo tempo um apelo à luta, um bálsamo para todes aqueles que se desesperam com o que se mostra no presente e com o futuro e um modelo de como podemos viver melhor uns com es outres.
No início de seu livro, você pontua que apoio mútuo não é a mesma coisa que caridade. Como essas duas práticas se diferem?
O apoio mútuo descreve o trabalho que fazemos nos movimentos sociais para apoiar diretamente as necessidades de sobrevivência uns des outres, com base em um entendimento compartilhado de que as crises que enfrentamos são causadas e agravadas pelo sistema em que vivemos. O apoio mútuo foca em ajudar as pessoas a obter o que precisam agora, enquanto trabalhamos para chegar à raiz desses problemas.
Caridade, por outro lado, se baseia em pessoas ricas – e os governos que dirigem – dando pequenas quantias de sua riqueza roubada para pessoas pobres, geralmente para reprimir revoltas em que as pessoas se envolveriam contra sistemas tão extrativistas. A caridade também se define por quem merece e quem não merece ajuda, o que significa que a caridade sempre tem muitas amarras. Pode ser que esses programas apoiem apenas indivíduos que não têm antecedentes criminais ou apenas aqueles que têm filhos ou apenas aqueles que são documentados, cristãos ou sóbrios. A caridade tem tudo a ver com encontrar pessoas em crise e dizer: “Como essas pessoas podem ser consertadas?”. O apoio mútuo encontra pessoas em crise e diz: “Você deve ter tudo o que precisa e os sistemas são os culpados por essas crises, não você”. Ele oferece ajuda sem amarras e sem esses rigorosos requisitos de elegibilidade, com base na ideia de que todos devem ter moradia, remédios, creches ou o que precisarem.
Uma parte que me chamou a atenção enquanto lia é que “desastres muitas vezes simulam fantasias de um governo benevolente enquanto enfrentamos o fracasso brutal do governo e desejamos que as coisas fossem diferentes”. Como o apoio mutuo nos ajuda a lidar com desastres imediatos? O que ele faz para tornar as coisas diferentes?
Às vezes, quando temos movimentos potentes que incluem apoio mútuo, conseguimos concessões do governo. E às vezes o governo pode fornecer benefícios em uma escala maior do que os projetos de apoio mútuo, porque tem diferentes quantidades de recursos e equipamentos e capacidade administrativa. Mas o problema da ajuda do governo é que ela sempre é restrita por critérios de elegibilidade e pode ser retirada a qualquer momento. Quando os ventos políticos mudam ou não estamos mais tão mobilizados, a ajuda pode ser reduzida ou removida completamente. Esperar por um estado benevolente que algum dia forneça ajuda de uma forma que não seja racista ou capacitista ou que não deixe de fora as pessoas mais pobres e estigmatizadas não é realidade nos EUA.
Devemos, é claro, comemorar quando nossos movimentos conseguem obter concessões. Mas o que realmente estamos tentando construir é nossa capacidade de atender às nossas próprias necessidades em nossas próprias comunidades, para decidir por nós mesmes, juntes, levando em consideração como nossas vidas funcionam, em vez de deixar que pessoas ricas e seus fantoches decidam. Nós queremos que a população local controle sua rede elétrica, crie e controle sistemas de produção de comida, saúde e moradia sustentáveis, acessíveis, e possam fornecer para todes, ao invés de esperar que o governo vá algum dia fazer tudo isso de maneira correta.
Essa “desconfiança” do Estado é um tema recorrente em seu livro. Estou curioso para saber: como você responde às pessoas que dizem que certas crises só podem ser resolvidas por um governo grande e centralizado?
As pessoas precisam entender que o que o governo faz agora é, na verdade, um projeto massivo de redistribuição ascendente. Ele tributa todo mundo e depois dá esse dinheiro para corporações, militares, prisões e policiais. Nós perguntamos: “Por que temos pobreza?” e é porque existe um enorme aparato estatal que garante a extração de lucro da maioria das pessoas para um número muito pequeno de pessoas. O estado garante que a água e o ar das pessoas pobres possam ser poluídos e que suas necessidades de alimentação, saúde e moradia possam gerar lucro para outras pessoas.
Você precisa de um sistema enorme, complexo e coercitivo para forçar as pessoas a trabalharem nas fábricas da Tyson, a pagar aluguel, a se submeter a todos os terrores e humilhações de viver assim. Com o apoio mútuo, nós estamos falando sobre redistribuição para as classes mais baixas, e isso não é algo que o governo dos Estados Unidos faz, mesmo que ocasionalmente jogue alguns trocados para pessoas que consideram pobres merecedores.
Existem vários tipos de liberais interessados em dizer que houve um tempo em que as coisas eram melhores. Muitas pessoas fantasiam sobre o New Deal. Mas o estado sempre usa sua capacidade administrativa para articular o controle de gênero-raça, a extração e a má distribuição. A seguridade social foi criada para excluir os trabalhadores domésticos e agrícolas e para subcompensar as trabalhadoras. Essas coisas não são acidentais – elas são propositais.
Como você diferencia o apoio mútuo que cresceu com as falhas do que se espera do estado e os programas de ajuda mútua que as organizações liberais adoram elogiar?
O fato de as pessoas de extrema direita terem uma crítica ao estado de bem-estar social e de as pessoas de esquerda também o fazerem não significa que seja a mesma crítica. A direita tem medo de ter que apoiar pessoas que ela despreza e cuja vida acha que não vale a pena. As forças de direita querem deixar congelada a desigualdade extrema, que é muito racializada e de gênero, e então tirar todo o apoio do governo para pessoas que se tornaram pobres e miseráveis por programas estatais que distribuíram terra e trabalho de maneiras particulares e garantiram que certas populações não tenham suas necessidades básicas atendidas.
Não é disso que as pessoas que vêm de uma perspectiva feminista antirracista estão falando. Queremos acabar com a violência do Estado que mantém a extrema concentração de riqueza. Nos opomos às estruturas corporativas e governamentais que concentram a riqueza e mantêm o lucro, e nos interessa criar novas relações sociais nas quais todes tenham o que precisam.
Você percebe que muitas vezes estamos fixados em ganhos a curto prazo, ao invés de construir uma possibilidade de melhoria a longo prazo para nosso bem-estar e o bem-estar dos movimentos com os quais nos preocupamos. O que é preciso para nos reorientarmos para esse tipo de trabalho?
A maioria das pessoas entra em movimentos porque precisa de algo, “Preciso de alguém para me ajudar com meu despejo e ouvi dizer que vocês estão ajudando pessoas com a mesma demanda neste projeto de apoio mútuo”. Muito do que os grupos de apoio mútuo podem fazer é ser um lugar para receber pessoas que estão se envolvendo em movimentos recentemente, e não: “Vocês todos já precisam ter a mesma condição”. Em vez disso, queremos nos envolver com as pessoas e perguntar: “Você está mal com que? O que você quer fazer? Você quer nos ajudar a tentar resolver algumas dessas questões?” E por meio disso, vamos continuar conversando e construindo uma análise do que pensamos ser a causa raiz disso tudo.
Como nós podemos construir desde pequenas vitórias, que podem nos fortalecer pessoalmente, até o tipo de vitórias políticas que podem melhorar materialmente a vida de dezenas de milhões de pessoas?
Acho que a maior parte da oportunidade de vitórias políticas estão nas vitorias locais, e a maior parte dos desastres também acontecem no nível mais local. Quando um incêndio atinge nossa comunidade ou quando estamos tentando pensar em como lidar com a Covid, é onde encontramos o desastre e a oportunidade política. E quando as pessoas são encorajadas a assistir passivamente ao espetáculo secundário da política nacional, parece muito, muito desmobilizador. Essa é uma das grandes mitologias dos EUA – que a política acontece principalmente nas e a partir das eleições.
Mas a política está acontecendo em todos os lugares, o tempo todo. Está acontecendo nas interações que as pessoas têm todos os dias para sobreviver e conseguir o que precisam. Acontece em todas as suas interações com a polícia e todos esses órgãos do governo que controlam suas vidas. Então, quando falamos dos discursos famosos e dos líderes carismáticos de um momento, como “Montgomery Bus Boycott”, não falamos detalhadamente sobre todas as pessoas que coordenaram os passeios, todo o trabalho necessário para que isso fosse possível. Temos que mudar nossas ideias sobre escala e entender que escala significa algo não por estar centralizado em um lugar, ou porque há uma pessoa para quem você pode olhar, mas porque significa que muitas pessoas estão praticando algo como apoio mútuo em nível local.
Então você diria que o apoio mútuo acontece principalmente de forma local?
Eu ficaria triste se os projetos de apoio mútuo fossem caracterizados apenas como um trabalho local, porque eu me envolvi e me preocupo com muitos movimentos que funcionam em diferentes escalas. Estou coordenando projetos com pessoas em várias cidades diferentes que estão tentando tirar o dinheiro da polícia de suas cidades e estamos compartilhando estratégias. Pessoas de todo o mundo estão se coordenando para responder à preocupação de que Biden recoloque as terríveis políticas de imigração de Obama, mas estão respondendo de sua localidade, onde estão apoiando pessoas dentro de centros de detenção ou passando por processos de deportação ou vivendo com medo do ICE raids. Estamos todos mobilizando localmente e apoiando as pessoas localmente, enquanto coordenamos e compartilhamos análises e estratégias. Essa descentralização importa, e é o contrário do que o Estado quer fazer, que é centralizar. É uma ajuda que é realmente determinada por aqueles que estão participando ativamente, compartilhando sabedoria local e práticas úteis, não implementando soluções padronizadas que inevitavelmente impõem exclusões.
A natureza local e descentralizada do apoio mútuo é essencial, e podemos ver isso especialmente na resposta a desastres, onde a FEMA é geralmente inútil no terreno, enquanto os projetos locais de apoio mútuo realizados por pessoas que conhecem seus vizinhos e conhecem o local são mais eficazes. É um erro caracterizar as práticas baseadas no conhecimento local e no controle local como projetos de “pequena escala” quando as pessoas estão fazendo tudo e compartilhando conhecimento e recursos mesmo em grandes distâncias.
Estou curioso para saber se você tem algum conselho para as pessoas sobre como se manter ativamente mobilizado – como não deixar que o que aconteceu nos últimos meses seja o fim de sua participação política. Para onde vamos daqui pra frente?
As crises que enfrentamos não vão desaparecer. Acho que cada vez mais pessoas sentem isso, e essa eleição desiludiu ainda mais as pessoas que pensavam que poderíamos simplesmente votar e sair de qualquer coisa que estamos enfrentando agora. Acho que é por isso que tantas pessoas estão se envolvendo em projetos de apoio mútuo e estão ansioses para encontrar maneiras de se sentirem mais conectadas a algo que realmente faça a diferença.
Até certo ponto, temo que as pessoas que foram mobilizadas pelo terror vivido durante o governo de Trump possam se desmobilizar por uma pequena melhoria durante a presidência de Biden. Mas muitas pessoas ainda vão observar que as crises estão na nossa cara. O clima que tivemos este ano, os incêndios e tempestades que tivemos este ano, a experiência de ter o governo respondendo à Covid de uma forma que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas, sugere a urgência de muitos diferentes tipos de ação política, incluindo apoio mútuo e ação direta e organização muito profunda e muito difundida.
Vimos a concentração de riqueza, a força policial e a máquina de deportação crescer e o imperialismo militar dos EUA se expandir, e todas essas guerras incrivelmente longas. Uma resposta apropriada a isso é ficar horrorizado e sentir pesar, e essas realidades e sentimentos também podem nos mobilizar. Temos vivido essas incríveis revoltas contra a supremacia branca e a violência policial, onde muita gente nova tem saído para as ruas. E por meio dessa combinação de apoio mútuo, educação política, construção de solidariedade e ação direta e disruptiva nas ruas, vimos as pessoas desenvolverem uma nova maneira de pensar sobre qual pode ser seu papel para enfrentar essas crises e salvar as nossas vidas.
Ativista nas lutas pelos direitos das pessoas trans ou pela abolição das prisões, o autor americano Dean Spade encontra no apoio mútuo a única possibilidade de transformação e de futuro.
Acessível, didático e divertido. Foi assim que o advogado, professor universitário e ativista Dean Spade se apresentou às pessoas que foram ouvi-lo falar sobre apoio mútuo no dia 10 de junho de 2022, no Ateneo la Maliciosa. O escritor apresentou seu último livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” [que ganhou uma edição brasileira recentemente pela Editora Criação Humana – para adquirir com desconto de pré-venda clique aqui]. A obra é um breve relato sobre algo que Spade desenvolveu na militância contra as prisões e a polícia, na luta contra as fronteiras, ou no ativismo trans e que conhece bem: a solidariedade que surgiu entre as pessoas, a organização horizontal daqueles que decidem se encarregar de transformar suas condições materiais ou imaginar outros futuros ombro a ombro com outros, outras e outres como eles.
Acompanhado durante o evento pelo ativista espanhol Lucas Platero, antigo colega de reflexões e ações, Spade abordou, como faz em seu livro, algumas ideias centrais sobre apoio mútuo, ilustradas por exemplos claros de como as pessoas se organizam e colaboram, pois entendem que falar sobre essas experiências é mobilizador e necessário. Mas, também, das dificuldades, desafios e derivas que o apoio mútuo às vezes deve enfrentar. No entanto, longe de ceder à repressão e ao espectro das muitas crises pelas quais estamos passando e que estão por vir, o professor da Universidade de Seattle alerta: quanto mais você exige, mais você recebe.
Você sustenta que, de certa forma, o primeiro e complicado passo para entrar na lógica do apoio mútuo é entender que o Estado, as autoridades, não vão nos salvar de todos os apocalipses que estão por vir.
Sim, acredito que deva ser assustador para muitas pessoas perceber que, da forma como nossos governos estão organizados, vão continuar prejudicando o clima, vão manter acordos que beneficiam as corporações e a acumulação, e que mantêm as pessoas sendo exploradas. É algo que dá medo. O que acontece se eu reconhecer que não parece que nada disso vai mudar? Claro que podem introduzir novos discursos, digamos: nós nos preocupamos com isso. Mas então, quando você olha para o que realmente acontece, tudo segue sendo realmente terrível. Portanto, há uma espécie de despertar do sonho de que os sistemas de elite podem trazer a mudança, que se pudermos convencê-los o suficiente, ou entrar com o processo certo, ou eleger a pessoa certa, veremos a libertação: isso simplesmente não acontecerá. E não apenas isso não está acontecendo, mas estamos em perigo real, não apenas no que diz respeito ao clima, mas também como resultado da crise habitacional, da crise alimentar, todos esses sistemas em que vivemos estão colapsando.
Perceber que as instituições das elites não vão consertar as coisas e que tudo depende de nós pode ser mobilizador. Eu vejo muito isso com relação aos desastres naturais: as pessoas veem como nos EUA, o governo não vem prestar ajuda às pessoas depois de um grande incêndio ou furacão, a pouca ajuda que existe é apenas para aqueles que já tem a maioria dos recursos, como os proprietários de casas. Porém, não há ajuda para as pessoas que estão alugando ou morando em seus carros e, quando há, já é tarde demais. Algo comum é que depois de uma grande tempestade eles te oferecem empréstimos, mas um empréstimo não é o que você precisa quando você perde tudo, não é uma ajuda obter mais dívidas.
Quando as pessoas veem isso, às vezes pode ser impulsionador: como podemos nos preparar juntos para a próxima tempestade? O que gostaríamos de ter? Gostaríamos de ter sido mais eficientes para nos reunirmos com as pessoas que vivem no mesmo quarteirão? Gostaríamos de estar mais conscientes de quem vive ao nosso redor e quais são suas vulnerabilidades? Gostaríamos de ter água armazenada? Gostaríamos de ter certas ferramentas para nos ajudar a fazer alguns reparos? Ou há certos reparos que devemos fazer agora para tornar nossas casas mais fortes antes que a próxima tempestade chegue? É como se as pessoas estivessem começando a dizer: nós vamos assumir. E isso é apoio mútuo mesmo, são pessoas dizendo que na realidade as coisas já dependem de nós mesmos. Assim, poderíamos nos organizar para ter uma conexão melhor, uma cooperação melhor, mais habilidades para trabalharmos juntos, para descobrir como tratar melhor uns aos outros, como cuidar mais uns dos outros, não apenas em tempos de crise severa, mas para pensar: há algo que podemos fazer para nos preparar para a próxima crise?
Seguindo seu argumento, parece que é ingênuo confiar no Estado e em suas estruturas. No entanto, há um certo senso comum que defende o contrário, que é ingênuo ou utópico pensar que as pessoas podem se organizar sem contar com o sistema.
Na verdade, há uma perda de fé no Estado que está acontecendo automaticamente, porque as pessoas viram as falhas dos governos durante a covid. Isso é muito óbvio no caso dos Estados, por exemplo: não só os Estados Unidos fizeram um péssimo trabalho na gestão da pandemia, matando muitas pessoas, como também organizou-se nosso sistema de saúde para que as empresas de vacinas ganhassem muito dinheiro, enquanto a maioria das pessoas no mundo não recebe a vacina. Agora lê-se essas novas manchetes sobre a quantidade de vacina desperdiçada nos Estados Unidos. Assim, podemos dizer que a intervenção do governo produziu os piores resultados. As pessoas não conseguem o que precisam e tudo é organizado para o lucro.
Durante a pandemia de covid-19 os oito homens mais ricos do mundo se tornaram muito mais ricos, fazendo com que essa esperança de que o governo nos salvaria entra em contradição com a realidade de que a crise é apenas uma outra oportunidade para a extração e para a exploração. Muita gente não acredita que nos possamos confiar uns nos outros, porque há uma narrativa no capitalismo de que nós somos naturalmente gananciosos e violentos e maus e que não devemos confiar em ninguém. E, na verdade, quando você vê as catástrofes acontecendo, o que as pessoas fazem é ajudar umas as outras. Quando as coisas estão realmente ruins, as pessoas se ajudam.
Temos que falar sobre isso em nossas comunidades. É realmente verdade que todos no mundo são gananciosos, mesquinhos e violentos? Ou é verdade que as pessoas são naturalmente compassivas e empáticas e que vivemos em um sistema que quer que compitamos uns com os outros e desconfiemos uns dos outros, porque quer mediar todos os nossos relacionamentos através de sua ganância? Acredito que a maioria das pessoas aprende, digere e contempla isso normalmente porque há uma crise. É quando muitas pessoas dizem: “Espere um minuto, acho que o sistema está uma bagunça e minha melhor opção são as pessoas da minha comunidade”. Eu gostaria que mais pessoas tivessem essa experiência antes da chegada da próxima crise.
Falando em ajuda e como responder à crises, você é muito crítico com o terceiro setor, que você classifica como a profissionalização da justiça social.
Eu acho que a profissionalização faz com que as pessoas pensem que se não for o meu trabalho, eu realmente não tenho nada para fazer ali. Você deve enviar uma doação de vez em quando ou não enviar, como se o objetivo do terceiro setor fosse despolitizar a maioria das pessoas. Além disso, se você tem um pequeno setor profissional de justiça social, você definitivamente não pode ganhar, porque se vamos ganhar, será porque temos toneladas e toneladas e toneladas de pessoas organizadas. Não é assim?
A única coisa que temos do nosso lado é o poder do povo. O outro lado tem todo o dinheiro e as armas. Eles fingem lidar com a justiça social para que haja apenas sete pessoas neste escritório e 20 pessoas em outro, que supostamente apresentam as soluções e que têm que convencer as elites a implementá-las. É uma ideia muito engessada de justiça social, como se fosse colocada em uma caixa. Eu não acho que isso seja culpa das pessoas que trabalham nas ONGs, isso não é uma crítica às pessoas que trabalham nessas organizações, eu já trabalhei em muitas. É uma crítica a um sistema que profissionalizou o trabalho de justiça social, que tenta convertê-lo em um trabalho de caridade, que tenta convertê-lo em um trabalho político das elites. O que funciona é a organização das passas e a mobilização das pessoas comuns em mudar suas vidas, transformar as condições em que vivemos e lutar contra o sistema. O que se pretende com a profissionalização é livrar-se dessa parte ameaçadora da mobilização das massas.
Mas para apoio mútuo, organização e mobilização, é preciso tempo, um bem escasso.
Às vezes, quando falo sobre essas ideias, as pessoas dizem: “Não tenho tempo ou recursos suficientes para me dedicar ao apoio mútuo”. Mas se você olhar para todos os movimentos sociais que aconteceram na Terra, todos eles foram realizados por pessoas que viviam nas piores condições, que tinham menos recursos: é por isso que eles começaram. É certo que agora trabalhamos muitas horas, que a moradia é muito cara, que as pessoas estão muito isoladas. Mas, em última instância, é como se não tivéssemos outra opcão. Temos que lutar.
Muitas pessoas estão presas em um ciclo de gastar muito tempo em entretenimento, porque lá fora as condições são muito difíceis, tudo é emocionalmente difícil e achamos que nos fará sentir melhor não pensar nisso, mas não é isso que acontece. Trata-se de redirecionar nossa energia para longe de comportamentos de adormecimento. Por outro lado, muitas pessoas estão realmente sobrecarregadas e ocupadas porque nossas vidas são muito individualizadas. Se você tem filhos e seus vizinhos têm filhos, cada um cuida dos seus filhos e nós não coletivizamos isso, porque leva muito mais investimento de tempo. Você tem uma cozinha e precisa cozinhar três refeições e eu tenho uma cozinha e tenho que cozinhar três refeições: se em vez disso eu cozinhasse algumas refeições para você e você cozinhasse algumas refeições para mim, teríamos menos trabalho. Ou, se apenas convivêssemos com mais pessoas, poderíamos ter menos cozinhas, menos panelas e frigideiras, e menos replicação de tudo, porque o sistema trata de individualizar tudo e nos isolar.
O que muitos radicais fizeram ao longo do tempo foi simplesmente coletivizar todo o trabalho de cuidado e tentar coletivizar a vida o máximo possível para que as pessoas tenham mais tempo para si. Quando nos juntamos a projetos, às vezes isso acontece organicamente, você fica tipo, “Ah, me diga o que você precisa que eu traga, eu vou lá de qualquer maneira”. Ou: “Cuidarei de seus filhos para que você possa ir a esta reunião”. Percebemos que podemos ser muito mais eficientes com nosso tempo se nos unirmos em vez de fazer tudo separadamente.
Talvez fazer as coisas sozinho, ter sua própria cozinha e cuidar de seus próprios filhos lhe dê uma sensação de escolha, uma sensação de liberdade baseada no fato de que você não precisa depender de ninguém para tomar decisões.
Mas uma coisa que sabemos é que somos verdadeiramente interdependentes. Não há verdadeira independência. O trabalho assalariado faz parecer que somos todos pequenas unidades individuais: temos nossa própria casinha individual, nossa creche individual e nosso plano de saúde individual. No entanto, na realidade, todos nós vivemos em sistemas, como o sistema alimentar ou o sistema ecológico. Estamos profundamente interligados e não podemos viver um sem o outro.
O capitalismo nos separa para que não percebamos que todos estamos produzindo vida. E poderíamos estar produzindo de forma libertadora ao invés de ter lucro. Há muito a ser feito para quebrar essa falsa sensação de liberdade e apontar para o que a liberdade realmente é, algo que acontece quando estou profundamente conectado com os outros e estamos escolhendo lutar pela libertação, estamos aprendendo uns com os outros, estamos apoiando uns aos outros para não estar mais sob o controle de patrões ou proprietários. É um tipo diferente de liberdade em oposição à “liberdade” de que posso comprar isso e assistir a esse programa de TV, e posso fazer todos os tipos de escolhas superficiais.
Você defende que a ação em si tem um conteúdo pedagógico, que fazer e estar uns com os outros pode ser mais útil para combater discursos de ódio ou discriminação, do que ficar sempre no campo do discursivo ou da narrativa.
É disso que trata meu livro, do por quê os projetos de apoio mútuo, seja fazer parte de uma horta comunitária em seu bairro que fornece comida para as pessoas, fazer parte de um grupo de pais, fazer parte de um grupo que visita idosos ou um grupo que escreve cartas a presos, ou que acompanhe migrantes em processos judiciais, qualquer tipo de ação que envolva apoiar diretamente pessoas em condições materiais de sofrimento, nos ajuda a afastar a ideia de que só podemos fazer ações simbólicas, postar coisas online, votar, enviar um cheque para uma organização sem fins lucrativos. Começamos a perceber cada vez mais que podemos trabalhar uns com os outros e podemos realmente lidar com o sofrimento humano em vez de apenas desejar que, se eu postar algo nas mídias sociais, de alguma forma se transforme em alguém além de mim a cargo daquilo. Acho que há uma forma de recuperar o poder colaborando na luta por condições materiais.
Talvez devêssemos parar de pensar no poder como algo que se exerce sobre os outros, para uma concepção de poder como controle sobre nossas próprias vidas, ou o poder que temos uns com os outros.
Estamos mudando a dinâmica de poder. Então, no lugar de sentirmos como se estivessemos principalmente sob controle do Estado e do chefe e do proprietário, devemos nos sentir como se estivessemos produzindo as condições para libertação humana e também algumas condições básicas para vivermos juntos. É como, “espere, talvez não precisemos ser coordenados. Talvez façamos um trabalho melhor coordenando a vida sem que alguém se beneficie de nós.”
Mas, para que esse tipo de dinâmica ocorra, não é necessário, além de abordar a questão do tempo, poder contar com um espaço? Um centro social, uma praça movimentada, um lugar em um parque onde você pode conhecer mais pessoas?
O apoio mútuo também abrange aqueles que fazem parte de pequenos projetos, que poderiam ser 10 pessoas coordenando um projeto de criação: estão imaginando como querem que sejam as coisas juntos. Essas pessoas também poderiam participar em espaços mais amplos como assembleias de bairros ou uma grande coalizão de pessoas implicadas com a justiça para as pessoas imigrantes, ou as redes feministas da cidade. Ou podem fazer coisas como o movimento Fight for 15, Occupy, as revoltas de 2020, nas quais se vê as pessoas ocuparem os espaços públicos, a praça pública, e fazerem manifestações, tomarem decisões juntas em grandes grupos e cuidarem-se mutuamente nesses grandes grupos. E também temos espaços para imaginar como as pessoas que fazem projetos artísticos ou projetos criativos com o que pensamos sobre como poderia ser o mundo.
Acredito que todas essas expressões são muito importantes, algumas com muita, muita, muita gente e outras com grupos menores em que se trabalha e se diz: “Sim, estamos com raiva. Não temos o que precisamos. Como deveria ser? Vamos tratar de fazer isso essa semana no nosso bairro. Qual seria a maneira justa de fazer acontecer?” Esse tipo de imaginação é muito prática. Também é muito libertador sentir a satisfação de temos feito algo, temos isso para contribuir e as coisas são diferentes do que teria sido se não tivéssemos agido.
Você acha que o fato de focar nossa atenção na produção de grandes ações e a dificuldade de sustentá-las, de garantir sua reprodução, tem a ver com a desvalorização do trabalho reprodutivo em nossas sociedades?
Isso é uma pergunta muito feminista. Nunca sabemos quando vão acontecer esses embates, então isso faz parte do por quê de estarmos organizados o tempo inteiro, e quando essas questões aparecem, se estamos organizados, há um terreno muito mais fértil: quanto mais preparados estamos, quanto mais temos estado trabalhando para criar grupos e projetos fortes, mais preparados estaremos para receber novas pessoas quando estas estiverem entusiasmadas e aparecerem nas reuniões. Não queremos que apareçam em um dia e não voltem nunca mais. Queremos conhecê-las e dizer a elas: por favor, una-se a esse projeto e venha fazer parte disso. E queremos ser atraentes nesse sentido. Assim, quanto mais nos organizamos com antecedência, mais atrairemos as pessoas como parte do trabalho reprodutivo do movimento e não se sentirão, portanto, invisíveis.
Depois de muitos desses momentos – como Ocuppy ou o 15m – vemos que há novos projetos maravilhosos. Quando esse grande momento nas ruas termina, fica claro que foram criadas muitas coisas, novas relações. Há um montão de gente que não estava evolvida e agora está envolvida. Acontece o mesmo com as ideias: faço parte do movimento antipolícia e antiprisão nos EUA há cerca de 20 ou 25 anos. A maioria das pessoas não sabe sobre este movimento. Quase todo mundo acha que não há problema em ter polícia. Eles nunca ouviram falar da ideia de desfazer-se dela por completo. Então, em 2020, quando George Floyd e Breonna Taylor foram assassinados, houve esse estalo e que você nunca sabe quando vai acontecer, porque muitas pessoas foram assassinadas como eles antes. Mas nesta ocasião, a faísca salta quando já tínhamos essas estruturas preparadas — porque é isso que estávamos preparando há muito tempo — para que pudéssemos apresentar essas ideias que eram muito solicitadas sobre o desfinanciamento da polícia, sobre o que poderíamos fazer sem a polícia. Acreditamos que assim foi gerado um terreno fértil, que permitiu então que aquele momento tivesse mais potencial do que teria se não houvesse todo aquele trabalho que estava sendo feito.
Qual a importância de se emocionar junto com outras pessoas para alimentar esses espaços e momentos de organização? Qual é o papel da alegria, de sentir que finalmente está fazendo alguma coisa? Você pode a partir disso atrair as pessoas para o apoio mútuo?
O capitalismo nos diz que sentiremos alegria quando tivermos o carro “x”, quando tivermos as férias “y”, aquele corpo bonito e as jóias certas. E não é verdade. Todos nós sabemos que é uma merda: você nunca consegue ou quando consegue, você realmente não se importa, não é tão divertido. E assim vivemos com muita passividade, como se esperasse que pudéssemos ter essas coisas e sentir. Parece-me que as pessoas se sentem muito isoladas e vazias e realmente querem sentir que pertencem e que estão conectadas, que são vistas por quem são e que contribuem para ajudar algo em que acreditam. Isso é realmente agradável, alegre. É quase mais vitalidade do que alegria. Sentir-se vivo ou viva e, em geral, toda uma gama de sentimentos: também ser capaz de sentir plenamente a dor quando coisas terríveis estão acontecendo, coisas que você mesmo já está vendo em seu smartphone.
Acho que as pessoas merecem um sentido de emoções mais desenvolvido, que vem de fazer parte de um grupo e não ter que estar sozinho em todas essas experiências. E isso pode incluir a alegria e o prazer e uma sensação de ser cuidado. A segurança que dá pensar que existem pessoas que te apoiam, no sentido de que pertences a algo, acreditas em algo e estás agindo nesse sentido. Isso é muito mais satisfatório que comprar certo produto em uma loja. Eu acredito que em algum nível sabemos disso. Sabemos que a ideia que o capitalismo nos dá em relação a alegria é muito vazia e que as pessoas tem certa desconexão com o real sentido de se estar vivo, da satisfação em estar vivo. O que ajuda é trabalhar coletivamente por algo que acreditamos, para reduzir o sofrimento.
Não é que não seja difícil, pode ser chato, você pode ter tarefas desinteressantes. Mas dá a sensação de que você está fazendo algo que pelo que te deixa com raiva ou com medo do mundo, e que você faz parte dele. Se você deixa pra tras a passividade: “sim, as mudanças climáticas sao assustadoras, mas eu vou me sentar aqui e comprar pela internet”: esse é um sentimento genuíno. Enquanto isso, se faço parte de uma horta comunitária, estamos distribuindo alguns alimentos a nossos vizinhos idosos, ou pobres, ou estamos lutando ou trabalhando juntos, estamos colhendo cenoura juntos. Nossas mãos estão sujas. Há aí uma espécie de sentido de estar vivo, de vivacidade que muita gente acaba perdendo.
E o que acontece com o medo, o medo de ter que assumir o comando, o medo que acaba frenando a imaginação radical…
Acho que a coragem consiste em fazer as coisas mesmo com medo e isso é muito bonito. É necessário contar histórias concretas sobre as lutas sociais históricas e as lutas sociais que estão acontecendo em todo o mundo. Quando você vê o quão corajosas outras pessoas são e foram onde você mora, sobre coisas que importam para você, e você diz: “Ah, sim, eles lutaram contra a polícia ou se deitaram nos trilhos do trem para bloquear o trem de carvão.” Quando você ouve sobre a ação coletiva de outras pessoas, sua valentia, seu poder, isso pode realmente ajudar. Também vencemos o medo quando não estamos sozinhos. É assustador ir a algum lugar e pensar: “e se algo ruim acontecer? E se a polícia me pegar?”. Mas, se eu souber que vou com um grupo de pessoas que acreditam no que eu acredito, podemos nos arriscar juntos. E, além disso, sei que essas pessoas com quem estou junto irão me ajudar se puderem e eu também os ajudarei se puder. Eu acredito que a maior parte disso se trata de sentir que somos parte de algo: que fazemos parte de uma gerencia de luta, e também de um grupo concreto nesse momento, que não estamos sozinhos.
Claro que teremos medo – isso é muito humano, muito compreensível – mas vamos lutar de qualquer forma.
Dean Spade é professor de Direito da Universidade de Seattle. É ativista trans e propagador de reflexões e práticas abolicionistas penais e de forma de organização social e política baseadas no apoio mútuo.