Silvia Federici (Parma, Itália, 1942) encerrou outubro de 2023 com uma conferência on-line na quarta edição da Escola Feminista da Assembleia Moza d’Astúrias, na Espanha. Autora de Calibã e a bruxa, O ponto zero da revolução, Reencantando o mundo e Além da pele, Federici é uma das teóricas mais importantes e reconhecidas do feminismo anticapitalista mundial, com uma longa trajetória de ativismo e reflexão. Viveu o feminismo dos anos 1970 na Itália, as campanhas pelo salário para o trabalho doméstico em Nova York, a luta contra os planos de ajuste estrutural na África, a crítica ao processo de globalização neoliberal e seus efeitos em todo o planeta, o movimento pela recuperação dos bens comuns e, mais recentemente, o ciclo de lutas que se abriu em 2011 e que tem continuado na última onda feminista. Em outras palavras, Federici passou décadas conciliando o ativismo com a reflexão e, assim, tem nos fornecido chaves para pensar e entender nosso presente. Hoje, quando o movimento feminista internacional está passando por intensos debates internos, voltamos a conversar com ela sobre este momento político.
Começamos pelo passado mais recente do movimento feminista, que foi um período massivo e expansivo de protestos, mobilização e reivindicação social. Como você interpreta e como acha que devemos interpretar esse “crescimento político” em um presente menos ativo? E como podemos pensar no movimento feminista de hoje em dia?
Em primeiro lugar, não estou surpresa com o grande crescimento do movimento feminista internacional. Na verdade, teorizo há muito tempo — junto com outras companheiras, como Verónica Gago — que o movimento feminista, em potencial, é o movimento mais importante. E é assim porque luta no território mais importante da transformação social, que é o da reprodução social. O feminismo, desde o início, concentrou-se na análise da reprodução social como o conjunto de atividades fundamentais para a reprodução da vida no sistema capitalista. Nesse contexto, a perpetuação da sociedade capitalista é mais importante do que a procriação, os cuidados, a saúde, a educação e toda a formação cultural. Como Verónica Gago já disse muitas vezes, ao lado das companheiras do movimento Ni Una Menos, a reprodução não é equivalente à produção. Pelo contrário, a reprodução é algo muito mais abrangente: é o conjunto de atividades que constituem a condição de possibilidade da perpetuação do mercado de trabalho. Portanto, a luta não é outra coisa senão o território onde se torna possível unir diferentes movimentos, reunir várias disputas. Esse território é a luta feminista. É exatamente isso que a luta feminista demonstrou a nível internacional: o feminismo, entendido como protesto contra a opressão e discriminação das mulheres, amadureceu muito em suas análises e, na prática, possibilitou o surgimento de muitas mais reivindicações. Nas últimas décadas, entendemos que não é possível mudar a situação das mulheres no mundo sem mudar o próprio mundo. O feminismo atual agora tem essa consciência e sabe que, como mulheres e dissidentes sexuais, não podemos melhorar nossa condição sem mudar o sistema social capitalista, que se baseia em uma lógica de guerra, violência, exploração do trabalho e da natureza. Em última análise, não podemos mudar nossa condição sem lutar contra o sistema capitalista em todas as suas formas.
Como se explica o crescimento político feminista dos últimos anos?
Eu acredito que o crescimento político dos últimos anos se deve, principalmente, às crescentes evidências da crise do sistema capitalista. Poderíamos discutir o porquê dessa crise, mas é evidente que a crise do capitalismo está se aprofundando. Temos um capitalismo cada vez mais violento, que promove a militarização da vida, a intensificação da exploração do trabalho e da natureza, e a desapropriação de terras. Estamos vivendo um presente aterrador no qual milhares de pessoas são forçadas a deixar seus locais ancestrais para que se tornem terras úteis e produtivas para o capital. A resposta a essa guerra e a esse ataque sistemático internacional à vida e à sua reprodução tem vindo das mulheres. São as mulheres que lutam na linha de frente contra a destruição da Amazônia e da África, são as mulheres que lutam contra o desmatamento e contra as empresas de mineração e petrolíferas. Elas percebem que a chegada de uma empresa de mineração significa que há mercúrio na água e que isso significa o fim de sua comunidade. Acredito que, por serem o sujeito principal da reprodução social, as mulheres se envolvem mais na luta contra as políticas que destroem a vida e impedem sua reprodução. Hoje, este é o tema fundamental da política internacional.
Você tem falado há muito tempo sobre os altos custos da reprodução social do sistema capitalista para as mulheres. Como essa imposição nos afetou e nos afeta?
Muitas mulheres, desde o início do movimento feminista, denunciaram, de diversas maneiras e com muitas palavras, o significado dessa imposição às mulheres na sociedade capitalista, o que implica cuidar da reprodução da vida. Explicamos que essa imposição gerou um trabalho desvalorizado, não remunerado, sem horário e aposentadoria. No entanto, acredito que também é importante dizer que essa imposição nos deu muito conhecimento: não é por acaso que as mulheres hoje têm maior consciência da fragilidade e do valor da vida, da teia de relações que sustenta a vida e nos permite superar o individualismo. Em resumo, a importância de construir uma comunidade. Para mim, esses são os dois temas centrais do feminismo: a luta contra a devastação capitalista, colonial e racista e a capacidade de pensar em uma alternativa e praticá-la a partir do presente, de nossa vida cotidiana. Pensar nisso, no contexto da perigosa situação política internacional atual, na qual muitas pessoas enfrentam constantemente a morte, me enche de esperança. Nesse contexto, o crescimento do movimento feminista e de sua capacidade organizativa internacional não é algo insignificante. Especialmente nos últimos anos, o movimento feminista tem demonstrado sua grande capacidade de criar alianças para a internacionalização da greve, indo da Argentina à Europa e gritando para o estado: ‘O estuprador é você’. A tecnologia nos ajudou a nos comunicar entre nós, mas essa grande capacidade vem, acredito eu, da consciência de que as mulheres estão enfrentando, de maneiras muito diferentes, os problemas fundamentais da política internacional atual. Nossas vidas dependem de como esses problemas serão resolvidos.
Você fala muito sobre experimentação. O que isso significa? Você acha que nosso presente é ou poderia ser um momento de experimentação?
Meu conceito de experimentação surge da ideia de que não podemos mais pensar na mudança social como uma tarefa do futuro. Estou pensando agora no conceito de “revolução” da esquerda tradicional, que considera a revolução como algo muito distante de nosso presente, algo que nunca chega. Minha ideia de experimentação, que considero muito importante para a prática feminista, diz exatamente o contrário: a revolução é hoje, a mudança acontece hoje. Não podemos continuar lutando contra tudo sem construir algo de forma positiva, não podemos lutar apenas organizando protestos. Dizer “não” é fundamental, sair às ruas e se opor é fundamental, mas não podemos nos limitar a isso. Precisamos começar a construir e fazê-lo em conjunto. Precisamos mudar nossa vida cotidiana experimentando novas formas de criar uma comunidade, que é a própria condição de nossa luta. Quando falamos em construir bens comuns, não o fazemos apenas pensando em um futuro comunitário, mas sim a partir da convicção da necessidade de fazê-lo agora. Precisamos começar a mudar as condições de reprodução da vida. O capitalismo, para se reproduzir, nos dividiu, nos individualizou e nos atomizou. Leopoldina Fortunati explica isso muito bem: o capitalismo nos unia nas fábricas e nos dividia na vida, com base na individualidade. A ideia da casa separada das outras, da família nuclear que cuida dos assuntos sujos em casa, da privacidade que rompe as relações entre vizinhos, tudo isso precisamos quebrar. Nos últimos anos, temos dito alto e claro: vamos derrubar os muros. Para mim, esse foi um dos maiores contributos do feminismo, ou seja, colocar a necessidade de nos unirmos e compartilhar nossos problemas na mesa.
Como podemos colocar em prática esse aprendizado?
Desde o início, o feminismo entendeu que não podemos lutar sem mudar nossa vida cotidiana e sem socializar nosso sofrimento e nossos medos. Os grupos de autoconsciência foram muito importantes. Quando as mulheres começaram a falar e compartilhar seus medos, suas culpas e sua sensação de não valer nada umas às outras, perceberam que todas compartilhavam os mesmos problemas. Perceberam que não eram problemas individuais, mas sim estruturais. Os grupos de autoconsciência nos permitiram entender que o problema não éramos nós, não eram nossos corpos nem nossas mentes, o problema era a sociedade. Portanto, o que precisávamos naquela época e ainda precisamos agora é mudar a sociedade, não nós mesmas. Nós temos uma grande capacidade de socializar e compartilhar nossos problemas, agora precisamos mudar a organização da reprodução cotidiana, criando momentos compartilhados de cuidado, como hortas urbanas.
A organização feminista deve ser também uma organização da mudança na vida cotidiana, que passa pelo que é comum: nos unir significa fortalecer e ganhar confiança, conhecimento e poder para enfrentar o estado que detém mais poder. Enfrentar o estado não significa se fechar em grupos pequenos, pelo contrário: significa se unir para reivindicar a riqueza social que está sendo roubada de nós e deter as decisões destrutivas que estão sendo tomadas. Portanto, experimentar também significa criar formas de luta capazes de recuperar e reivindicar espaços, tempo, riqueza social e recursos que nos foram roubados e continuam sendo roubados. Isso é muito importante, pois não podemos criar um mundo diferente sem antes nos apropriarmos da riqueza social. Eu acredito que esse é o verdadeiro campo de luta. Tenho dito há algum tempo que os comuns, ou seja, a criação em comum, não é apenas o objetivo da luta, mas sim a condição cotidiana da luta e seu poder de desafiar o estado e aqueles que estão sufocando nossa possibilidade de mudança.
Há alguns meses, durante uma entrevista publicada pela Contexto, você desenvolveu uma pergunta-chave para o movimento feminista internacional: “Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução de nosso poder de luta?”. Além disso, você disse que “isso é a medida de nosso crescimento político”. O que isso significa?
É a capacidade de nos unirmos para criar, superando a atomização de nossa vida. Isso é essencial para uma mudança social radical. Somente assim poderemos reduzir o tempo que investimos em realizar trabalhos que nos disciplinam e que geram pessoas mais facilmente exploráveis, e, dessa forma, poderemos nos dedicar a criar as condições necessárias para nos fortalecer e mudar nossa situação, tanto pessoal quanto coletiva. O tempo e os recursos, como mencionei, são fundamentais. Nossa vida está constantemente em contradição, e a reprodução torna isso evidente. A reprodução sustenta nossa vida, a de nossas famílias e comunidades, e, ao mesmo tempo, ocorre em condições que não escolhemos, que nos são impostas e que não são desejáveis. Essas condições são impostas pelo capitalismo, que precisa explorar para se reproduzir. O tema agora, então, é como mudar e como fazer isso: como nos organizamos para obter o poder de não ter que trabalhar dez horas por dia? Como fazemos para que nossas filhas e filhos não reproduzam nossa miséria e possam ter a liberdade de rejeitar a exploração e o despojo? É sobre isso que estou falando com o conceito de “experimentação”.
Qual é o caminho para nos reapropriarmos do nosso tempo e poder, e assim nos organizarmos?
A força que vamos construir é a de recuperar nossa vida e criatividade. Eu acredito que o que fazemos na vida cotidiana tem consequências nas casas, escolas, escritórios e fábricas, e essa é a medida do nosso crescimento político: influenciar as pessoas que atravessam os espaços que mudamos com nossas ações diárias. Neste contexto, os sindicatos deveriam desempenhar um papel ativo. Acredito que chegou a hora de os sindicatos incluírem a questão da reprodução da vida na luta pela melhoria das condições de trabalho da classe trabalhadora. A luta trabalhista deve se expandir e se interessar pelo que está sendo produzido. Não se trata apenas de fazer com que as horas de trabalho sejam respeitadas e de garantir condições de trabalho dignas, mas também de reivindicar o direito de decidir se queremos produzir mercadorias úteis ou materiais tóxicos e armas que acabarão com a humanidade e a natureza. A reprodução não é apenas uma questão doméstica, pelo contrário, é muito ampla e afeta todas as esferas de nossas vidas. Em última análise, trata-se de decidir se queremos produzir morte e miséria ou algo que reproduza nossa criatividade e bem-estar.
Uma das questões que enfrentamos dentro do feminismo é liberar o tempo das mulheres, liberar nosso tempo. Eu acredito que há milhões de mulheres em todo o mundo que estariam dispostas a sair às ruas e se organizar, mas o trabalho de cuidados, que nunca termina, as mantém presas em suas casas. Precisamos pensar no trabalho de cuidados de forma mais ampla do que costumamos fazer. Cuidar não é apenas criar nossos filhos, é cuidar de milhares de coisas que o corpo e a mente precisam. Devemos pensar no cuidado emocional que as pessoas que criamos precisam. Cuidar é o trabalho mais árduo, pois exige todas as nossas energias físicas, mentais e emocionais. É um trabalho desgastante. Portanto, acredito que pensar em formas comunitárias de cuidar é uma tarefa pendente do feminismo. Precisamos de tempo, precisamos liberar o tempo das mulheres que ainda hoje estão aprisionadas em suas casas, equilibrando seu trabalho com o cuidado de idosos, crianças e pessoas com deficiência física. Isso é uma das questões mais urgentes a serem abordadas pelo movimento feminista: se estamos sendo consumidas física e emocionalmente para reproduzir, como poderemos investir nossas energias na luta? A mudança na vida cotidiana, portanto, é fundamental para estarmos na luta. Tenho receio de que o movimento feminista, nesse sentido, não tenha feito o suficiente. Acredito que seja necessário um esforço maior para pensar não apenas em como podemos mudar a forma como as comunidades se relacionam umas com as outras, mas também como planejamos enfrentar o estado. Não podemos esquecer que, quando pedimos serviços sociais ao estado, precisamos ser capazes de controlar que tipo de serviços nos são fornecidos. Acredito que qualquer mulher que tenha lidado com o sistema de saúde sabe muito bem que vivemos em um estado de crise contínua e permanente. O estado pode fornecer serviços, mas, às vezes, a forma como o faz está tão equivocada que a situação acaba piorando. Lamento estar falando tanto sobre esse assunto, mas, por estar vivendo isso em primeira mão, assim como muitas companheiras, sinto que é um assunto que deve ser abordado. Recentemente, percebi que, a partir de certa idade, a questão dos cuidados se torna mais complexa, e hoje não temos uma alternativa ao trabalho realizado pelas mulheres em casa. Acho isso terrível e deve ser um tema central para o movimento feminista atual.
Falando sobre sua trajetória, você viveu em primeira pessoa as lutas dos anos 70 e a última onda feminista da qual falamos no início. O momento atual é marcado por uma forte rejeição ao feminismo e um questionamento dos avanços que alcançamos. Você acha que há alguma conexão entre a rejeição ao feminismo que ocorreu nos anos 70 e a atual?
Sim, claro que há. É uma pergunta complicada porque há muitos fatores em jogo. Em primeiro lugar, não é por acaso que a partir dos anos 70 as Nações Unidas começaram a intervir na política feminista. As Nações Unidas, ou seja, o capital internacional, perceberam muito antes que a esquerda tradicional o quão perigoso o feminismo poderia ser para a sua perpetuação. A partir de 1975, houve inúmeras conferências e intervenções das Nações Unidas (Cidade do México, Copenhague, Nairobi, Pequim, etc.) que tinham como objetivo apropriação do movimento feminista e o uso de parte de nossa ideologia contra nós, usando nosso pensamento para nos controlar e integrar as mulheres no processo de globalização como mão de obra barata. Até hoje, as mulheres realizam dois trabalhos. Portanto, o capital queria apropriar-se do movimento feminista por meio da ideologia da emancipação por meio do trabalho. Ninguém se emancipa através do trabalho em uma sociedade capitalista, isso é uma mentira. Eu acredito que essa cooptação do capital nos causou muito dano. Essa massificação do feminismo nos prejudicou. Muitas pessoas, principalmente muitas mulheres jovens da nova geração, acreditam que uma mulher feminista é aquela que luta pela igualdade entre homens e mulheres e que deseja ocupar um cargo de poder em seu trabalho. Em resumo, uma mulher feminista se torna uma mulher capturada pela instituição. Em parte isso é verdade: muitas feministas estão presas nas instituições porque muitos governos, embora nem todos, perceberam que a emancipação das mulheres poderia ser usada de forma instrumental para seu próprio benefício. As mulheres, então, podem ser exploradas não apenas em casa, mas também nas instituições com salários miseráveis e em outros trabalhos que não geram autonomia alguma. Tudo isso aumenta a miséria das mulheres, não as liberta, e mesmo assim, há quem continue dizendo que esse é o caminho. Bem, tenho minhas dúvidas e acredito que, devido a isso, muitas jovens começaram a falar de pós-feminismo. Estou pensando em um cântico que é muito ouvido por aqui, que diz: “vamos ser pós-feministas em uma sociedade pós-patriarcal”. Isso é mentira: a sociedade atual ainda é muito patriarcal, e vemos isso todos os dias.
Nos últimos anos, vimos o crescimento e disseminação de muitos partidos de extrema direita em todo o mundo, totalmente contrários aos avanços feministas. Como essa onda reacionária global nos afeta? Em seus últimos livros, você fala sobre seu conceito de “fascistização” da sociedade. Você pode explicar?
Além de tudo o que mencionei, hoje em dia, estamos enfrentando o fascismo em seu estado mais puro. Um fascismo que parece ter perdido qualquer tipo de vergonha. Por um lado, temos Giorgia Meloni na Itália, que é grotesca. Ela, uma mulher, líder de um partido chamado Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), nunca pensou em mudar o nome de sua organização política para que ela fosse incluída. Por outro lado, temos o Sr. Trump e a bem-sucedida luta do Partido Republicano para acabar com o direito ao aborto. Nesse contexto atual, muito complexo, precisamos ser sábias e analisar cuidadosamente, porque há um perigo real em nosso presente. Identificamos como fascismo o de Trump e o de Meloni, que é um fascismo muito óbvio, tão óbvio que é grotesco. No entanto, há outro fascismo mais sutil que permeia a política e a economia atuais. Em nosso presente, em sociedades que se autodenominam democráticas, estamos testemunhando uma “fascistização” da sociedade e da política econômica. Nos Estados Unidos, onde moro, tudo isso é muito evidente. As políticas que destruíram o bem-estar social americano foram implementadas por governos como o de Clinton, que foi capaz de alterar as leis de combate ao terrorismo, de administração de prisões e de militarização de toda a fronteira com o México. O governo Biden, que parece estar aberto ao feminismo e às pessoas trans, na verdade não está fazendo nada concreto. No entanto, envia milhões de dólares em todo o mundo para apoiar guerras imperialistas. Estamos testemunhando uma política imperialista brutal por parte do Partido Democrata nos Estados Unidos. O que está acontecendo na África e na Ucrânia é evidente: a guerra continua porque os Estados Unidos querem que continue e estão se preparando para uma guerra contra a Rússia e a China. Nos últimos dias, o governo Biden aprovou um orçamento militar de um trilhão de dólares. Em resumo, em 2023, o governo atual investirá um trilhão de dólares em guerra. Pense em quantas coisas poderiam ser feitas com um trilhão de dólares, quanto apoio à reprodução social poderia ser fornecido com todo esse dinheiro. A partir do que é investido na militarização da sociedade, cortes contínuos são feitos na já escassa saúde pública. No início deste ano, foram retirados os benefícios de saúde pública de mais de um milhão de pessoas e foi negado todo tipo de apoio aos estudantes universitários, que continuarão endividados pelo resto de suas vidas por terem buscado educação. Estudar nos Estados Unidos é caro e, diante dessa situação esmagadora, decide-se investir um trilhão de dólares em morte e guerra. Essa deve ser uma questão importante para o movimento feminista. Estamos em um momento muito perigoso, preparando-se para guerras internacionais, e o capitalismo se alimenta das guerras e se reproduz com elas. A guerra sempre foi um momento de mudança social profunda, pois serve para transformar a economia e as relações de poder em nível local e internacional. Além disso, a guerra serve para destruir os movimentos sociais. Neste momento de profunda crise do capitalismo internacional, estão sendo criadas as condições para a guerra, dia após dia. Portanto, a luta contra a guerra deve ser incluída na agenda feminista em todos os níveis. Foi uma grande derrota para o feminismo a inclusão de mulheres nas forças armadas no final dos anos 70 e início dos anos 80. Houve pessoas que lutaram pela entrada das mulheres nos exércitos nacionais, enquanto eu me oponho a essa barbaridade há décadas. Igualdade, nesse caso, não significa que homens e mulheres sejam iguais; igualdade significa que ninguém mais deve morrer em uma guerra. Precisamos deter a militarização da vida cotidiana e, para isso, precisamos de um feminismo que lute contra a guerra. Essa deve ser uma questão central para o movimento feminista internacional: lutar contra a guerra, contra a militarização da vida cotidiana, contra o investimento em armas e militares e contra o controle social nas cidades e bairros.
Você descreveu um presente muito complicado através do seu quadro de fascistização, que permite resolver muitos nós da análise social, econômica e política do momento atual. Qual é o papel das mulheres nesse processo de fascistização? E o que o movimento feminista pode fazer para enfrentar essa onda fascista? Em seus escritos mais recentes, você fala sobre a militância alegre e gozosa. Recuperar a alegria é a chave para facilitar a organização?
Ah, eu gosto desse tópico. Estou profundamente convencida de que, a nível internacional, está ocorrendo um grande processo de conscientização. A grande maioria de homens e mulheres, jovens e velhos, sabe que a sociedade capitalista é uma sociedade que produz morte e escassez em nome do progresso. A maioria da sociedade sabe que o progresso capitalista é uma mentira. Portanto, o desafio do feminismo atual é organizar essa maioria social com novas formas de luta comunitária. O propósito é, como mencionamos antes, liberar nosso tempo para criar uma mobilização forte, contundente e verdadeiramente transformadora. Para que isso aconteça, precisamos ter tempo livre. No entanto, há outro tópico igualmente importante a abordar: nossa forma de organização. Eu acredito que, por muito tempo, a forma de organização política foi muito masculina. Sendo um setor muito masculinizado, desenvolveu-se uma ideia do que é a política e como se faz política de forma muito regimentada. Eu acredito que as feministas, por outro lado, entenderam que ao se organizar para lutar, é preciso pensar em atividades que não sejam mais um trabalho. Devemos pensar em formas de organização e luta que não sejam mais um trabalho, que não nos causem mais sofrimento e que não pareçam mais uma carga em nossas vidas. Devemos nos esforçar para criar formas de organização, luta e mobilização que nos nutram, nos fortaleçam emocionalmente e sejam prazerosas e alegres. No entanto, a condição para que isso aconteça é conscientizar-se da importância das relações que criamos entre nós no processo de luta e mobilização. Devemos prestar atenção às relações que criamos e criar redes afetivas que nos façam desejar ir a uma reunião ou encontro porque nossas amigas, as mulheres que amamos, estarão lá. A organização também deve incluir momentos de felicidade: cantar, dançar e fazer atividades alegres juntas. Muitas mulheres já estão colocando tudo isso em prática. Um exemplo fantástico é Rafaela Pimentel de Território Doméstico (que participou da III edição da Escola Feminista de Ama Asturies). Precisamos integrar essa afetividade em nossa luta, especialmente quando temos companheiras que deixaram seus países e vivem longe de suas comunidades. A militância alegre consiste em criar novas famílias no sentido mais positivo da palavra. Eu sempre digo: se o trabalho de mobilização se tornar uma carga adicional, algo está errado. Nesta condição de tristeza e sofrimento adicionado às nossas vidas, é normal que as pessoas prefiram ir assistir ao futebol ou ao cinema. Precisamos criar uma militância alegre capaz de nos reproduzir, não apenas aos outros. Precisamos também reproduzir a luta, o que significa nos reproduzir em um aumento de alegria. Isso é solidariedade. A solidariedade não é apenas teoria, é algo que nos mobiliza, que move nossos corpos.
Para encerrar, quais são as tarefas pendentes do feminismo contemporâneo? Você falou sobre a importância de incluir na agenda feminista o trabalho reprodutivo e a reprodução da vida, a luta contra a guerra e a militarização da sociedade. Você acha que há algum novo campo de reflexão que não estamos conseguindo ver, justamente porque, como você nos ensina, o capitalismo limita nossa capacidade de imaginar?
Acredito que o que o movimento feminista está fazendo atualmente demonstra a amplitude do feminismo: o corpo, a sexualidade, a saúde, a educação e a produção do conhecimento são apenas alguns dos temas que o movimento feminista abordou ao longo das últimas décadas. Também não podemos esquecer da incrível luta pela recuperação da Memória Histórica realizada pelas companheiras na América Latina. Elas nos ensinam a importância de recuperar o senso de comunidade e a solidariedade com aqueles que lutaram antes de nós, não apenas para entender as lutas do passado, mas também para mantê-las presentes em nosso cotidiano. Compreender as lutas do passado e conhecer o rosto das companheiras e companheiros que perderam a vida lutando nos fortalece. Em última análise, entender que nossa luta faz parte de algo muito maior e que vai além de nossa vida individual nos dá coragem, sabedoria e solidariedade.
Além disso, a luta feminista envolve a luta pelos recursos e contra a devastação da natureza em sua totalidade: a terra, a água, os mares, os animais e as árvores. Também é a luta contra a dívida, que é muito forte na Argentina, como Verónica Gago menciona com frequência (ela participou da II edição da Escola Feminista de Ama Asturies). A dívida foi criada pelo capital e é outra forma de aprisionar as mulheres em suas casas. As mulheres são as mais endividadas: temos dívidas para comer, para nos curar e para estudar. Hoje em dia, as pessoas não se endividam para comprar coisas supérfluas, muito pelo contrário: hoje nos endividamos para comer, pagar as contas de luz e consultar um médico, porque os salários estão cada vez mais miseráveis. Portanto, a capacidade do movimento feminista de criar redes internacionais, que vão da América à Europa, passando pela África e Ásia, contra a dívida pessoal e nacional, é de extrema importância. Organizar-se internacionalmente contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional é fundamental, porque onde quer que sejam impostos planos de austeridade, as pessoas não terão escolha senão se endividar para sobreviver.
Em resumo, o movimento feminista tem se mostrado capaz de incluir em sua análise muitos temas, como mencionei antes. Agora precisamos nos concentrar em criar novas formas coletivas de organizar os cuidados, a educação e a produção de conhecimento sem passar pelo mercado. É necessário libertar a reprodução social do mercado, livrá-la da lógica do lucro, recuperá-la e focá-la em nosso bem-estar. Este é o objetivo do feminismo e já estamos a caminho de alcançá-lo. Um caminho que deve ser internacionalista, com passos para fortalecer as redes de mulheres já existentes e criar outras capazes de conectar as mulheres indígenas com as camponesas e com aquelas que lutam contra a repressão sexual. Em resumo, temos que conectar todas as nossas lutas. O feminismo é um território de análise e ação imenso, e eu acredito que ainda estamos entendendo que esta é nossa força. Estamos criando um território comum que serve como ponto de encontro para todas as lutas sociais. Esta é nossa força e, ao mesmo tempo, o presente e o futuro do movimento feminista.
Num desconcertante prefácio ao Manifesto Comunista, socióloga afirma: “faltou à obra enxergar a exploração do trabalho reprodutivo. Surpresa: nas lutas feministas pelo Comum e o Cuidado está hoje parte da resistência mais potente ao capital.”
Milhões de mulheres voltaram às ruas neste 8 de março em cidades de todo o mundo. Na Espanha, as manifestações foram particularmente numerosas em Madri (foto), Barcelona e dezenas de outras cidades,
1. Escrever um manifesto é criar um mundo. Ou melhor: torná-lo público. Dar conta da sua existência. Lançar luz sobre uma realidade subterrânea. Um manifesto tem força não porque seja prescritivo do que deve acontecer, mas porque reúne uma série de elementos que, considerados em conjunto, provam a existência deste mundo prenhe de novidades, mas já existente.
Deste ponto de vista, um manifesto não é utópico. Não é um decálogo de coisas que deveriam acontecer. Não é futurista, no sentido de inventar algo que é puramente imaginário. Pelo contrário, postula um realismo de uma outra vida que já está a acontecer, mesmo que reste saber se se trata de uma vida majoritária. Um manifesto exprime um realismo que é subterrâneo mas suficientemente forte para criar uma perspectiva de mudança do mundo.
O que já estava acontecia, o comunismo para Marx e Engels, tinha então uma consistência fantasmática. Isto implicava, nas palavras dos autores, que podia ser visto a contraluz: no reconhecimento das forças reativas encarnadas pelos poderes da Europa (o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os policiais alemães).
A passagem do fantasma ao manifesto, então, é a decisão de se nomear com as suas próprias palavras. Fazer sair dos sótãos aqueie modo de vida que é detectado e conceitualizado pelo inimigo em termos de fantasma e ameaça. Para que haja um manifesto, tem primeiro de haver uma política noturna. Algo como uma noite dos proletários.
2. Sinto-me tentada a escrever: Um fantasma percorre a América Latina, o fantasma do feminismo. Porque ao pensar num manifesto, remeto-me a um escrito recente: o apelo a uma greve internacional de mulheres em 2017, cujo caráter “manifesto” me coloca numa possibilidade concreta de pensar sobre a atualidade desta forma de intervenção. Poderíamos muito bem enumerar as forças reativas que enxergam o movimento feminista como uma ameaça: a formulação doutrinária do Papa e da Igreja de uma “ideologia de gênero”; as forças conservadoras que desafiaram os acordos de Havana para boicotar a paz na Colômbia, as que promoveram o impeachment dapresidente do Brasil ou as que repudiam a educação sexual no Peru. Todas convergem na condenação em nome da moralidade familiar, da dissolução dos papéis de gênero e da promiscuidade da ordem social. O “epíteto calunioso” de “feminista” funciona como insulto e desqualificação. Já não no mundo partidário (como Marx e Engels apontavam, ao falar sobre a acusação de “comunismo”), mas para mencionar uma força desintegradora que opera sobretudo a nível de sensibilidades e corpos, de gostos e costumes, do confinamento de espaços e papéis na divisão sexual do trabalho.
Passar do fantasma ao manifesto, no caso do feminismo, implica nomear o medo da revolução de um feminismo que se torna popular porque está enredado com o conflito territorial (um corpo extenso, que de fato desafia os limites do corpo como “indivíduo”), que está atado com uma transformação nos modos de vida e que permite, pela sua amplitude e transversalidade, ser lido hoje como “um movimento histórico que se desenrola diante dos nossos olhos”. Por isso, como método, tentarei ler aqui algumas das questões levantadas pelo Manifesto Comunista – e em particular o seu apelo final: “Proletários de todos os países, uni-vos!
É um duplo exercício de tradução. Traduzir é trabalhar com uma língua estrangeira “mas também com o estado da língua para a qual se traduz” (assim diz o escritor argentino Ricardo Piglia para explicar por que, de vez em quando, se sente a necessidade de fazer novas traduções dos mesmos textos). Ampliando esta hipótese, eu diria que a língua comunista como língua revolucionária hoje – e com isso me refiro a certos problemas-chave de formas de exploração e dominação, de organização política e transformação radical, das classes e das subjetividades que as encarnam, do internacionalismo e da política de coligações — cruza-se necessariamente, para ser atualizada, com a língua feminista. Esta que é hoje talvez a mais múltipla das línguas em movimento.
3. No caso do Manifesto Comunista, é um texto cujo precedente é uma realidade proletária (a política noturna de que falamos anteriormente) e que em seguida parece referir-se – ou antecipar e convocar – a sua aparição nas ruas: a Revolução de Fevereiro de 1848, que abalou Paris com uma experiência de comuna. Assim, parece também que um manifesto funciona misteriosamente ligado aos acontecimentos, como se secretamente os tivesse prefigurado. Ou que faz parte de um fluxo de coisas e palavras que têm relações íntimas mas clandestinas. O manifesto, portanto, não funciona sob modo de causalidade (um manifesto não “provoca” ou “desencadeia” eventos pelo poder da sua palavra), mas faz parte (intui, colabora, prolonga) de um processo que faz das palavras vivas matéria e da conjuntura uma realidade aberta.
Isto supõe que a palavra (o que nela se manifesta) sintetiza de modo expressivo um devir, mas não define o processo. E isto porque um manifesto não deixa de ser um jogo – de leitura, de orientação, de antecipação e de projeção – sempre posto à prova.
Arrastada pelo movimento real, parte desta aposta pode então ser refutada, questionada, reorganizada. No caso de Marx e Engels, a Comuna de Paris obrigou-os a rever uma das suas principais teses para dizer que “a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina estatal existente e pô-la em marcha para os seus próprios fins” (prefácio da edição alemã de 1872), como especulavam com os pontos programáticos que tinham incluído na seção II. Assim, a orientação que impulsiona um manifesto (a sua síntese expressiva) não é dogmática, mas tem algo de plasticidade tática: deve ser capaz de ressoar com avaliações coletivas que ocorrem simultaneamente e em várias instâncias diferentes. Nas lutas e nas casas, nos sótãos e nos bares, nas fábricas e nas praças, nas barricadas e nos rumores. Um manifesto desenha então algo como um plano de coexistência, onde palavras, hipóteses e acontecimentos se referem, reforçam e reforçam mutuamente na medida em que conseguem vibrar e ressoar em diferentes realidades. Isto é também o que produz e alimenta as suas múltiplas traduções.
4. O que significa pensar na existência do proletariado do ponto de vista feminista? O Manifesto postula o sujeito da política comunista, lendo-o à contraluz do capital, estabelecendo o antagonismo fundamental (“A condição do capital é o trabalho assalariado”). Poderíamos dizer, em princípio, que os cruzamentos de certas perspectivas feministas, marxistas e anticoloniais fazem um movimento semelhante à afirmação de Marx, mas no interior de um dos pólos do antagonismo. A condição do trabalho assalariado é o trabalho não assalariado, ou a condição do trabalho livre é o trabalho não livre. O que acontece quando um dos pólos é aberto? É o movimento fundamental pelo qual a diferença e a classe se cruzam.
Isto nos permite contradizer a própria leitura de Marx e Engels sobre a diferença em relação ao trabalho feminino. Argumentam que o desenvolvimento da indústria moderna através do trabalho manual tecnificado implica uma espécie de simplificação do trabalho, que permite que os homens sejam substituídos por mulheres e crianças. No entanto, “no que diz respeito à classe trabalhadora, as diferenças de idade e sexo perdem todo o significado social”, salientam eles. Neste sentido, lemos que a incorporação da diferença é feita sob o signo da sua anulação. As mulheres e as crianças são incorporadas na medida em que são homogeneizadas como mão-de-obra (funcionando como apêndices da máquina), o que lhes permite serem indiferenciadas. A diferença, no argumento que Marx e Engels empregam, é reduzida a uma questão de custo. A idade e o sexo são variáveis de barateamento, mas sem significado social. Compreendemos que aqui lidamos com o ponto de vista do capital. Marx dirá também no Capital que a maquinaria alarga o material humano explorado, na medida em que o trabalho infantil e feminino é a primeira consigna da mecanização. Mais uma vez, este alargamento é em termos de uma homogeneização ditada pela máquina, mas a diferença é anulada ou reduzida a uma vantagem homogeneizada também pela noção de custo. Assim, parece haver uma dupla abstração da diferença: do lado das máquinas (do processo técnico de produção), mas também do lado do próprio conceito de força de trabalho.
Quando reescrevemos o manifesto numa chave feminista, fazemos a operação inversa. Fazemos uma leitura inclusiva daquelas que somos produtoras de valor, na chave do pensamento sobre como a diferença reconceitua a própria noção de força de trabalho. Os corpos em jogo são responsáveis pelas diferentes tarefas em termos de um diferencial de intensidade e reconhecimento, impedindo a cristalização de uma figura homogênea do sujeito trabalhador. O trabalho, de uma perspectiva feminista, vai além daqueles que recebem um salário, porque é uma condição comum experimentar diversas situações de exploração e opressão, para além e para aquém da medida remuneratória. O trabalho, a partir de uma lente feminista, faz do corpo uma medida que vai além da noção de força de trabalho meramente associada ao custo.
Fazemos também uso da perspectiva feminista, que colocou a ênfase no fato de a crítica a esta homogeneidade da mão-de-obra dever partir do elemento que “opera” a homogeneização, uma vez que não seriam apenas as máquinas (como diz o Manifesto), mas o “patriarcado dos salários” (Federici). Isto implica duas operações: o reconhecimento de apenas uma parte do trabalho (trabalho assalariado) e depois a legitimidade do seu diferencial de acordo com o sexo e a idade apenas como uma desvalorização. Nesta linha, entendemos o trabalho assalariado como uma forma específica de invisibilização do trabalho não assalariado que tem lugar em múltiplas geografias e que recobre o que entendemos como tempo de trabalho.
Hoje, graças às lutas e teorizações feministas, podemos argumentar a partir de uma realidade contrária: o alargamento do material humano explorado, de que Marx falou, é feito por meio da exploração da sua diferença. Invisibilizando-o, traduzindo-o como hierarquia, depreciando-o politicamente e/ou metamorfoseando-o numa mais-valia para o mercado. Um manifesto feminista é hoje um mapa da heterogeneidade do trabalho vivo capaz de mostrar, em termos práticos, o diferencial de exploração que, tal como numa geometria fractal, usufrui todas as diferenças que se quis abstrair na hipótese de universalizar o proletariado assalariado. Mas um manifesto é mais do que uma denúncia. É uma proposta de ação. É por isso que um manifesto feminista reconhece nesta diversidade de experiências de exploração e extração de valor a necessidade de uma nova modalidade de organização que não se enquadra na hipótese que o partido universalizava.
5. O instrumento da greve, reapropriado e reinventado pelo movimento feminista, tornou-se um instrumento de organização. Pode-se dizer, retomando o Manifesto, que através da greve feminista se luta por “objetivos e interesses imediatos” e se constrói o “futuro do movimento”. Incluem-se assim duas línguas, duas perspectivas: a da exigência e a que não se reduz a exigências, mas que enuncia precisamente o desejo de querer mudar tudo. Por esta razão, a greve também integra e vai além de exigências específicas. Assim considerada, a greve é poderosa porque assume as múltiplas formas de exploração da vida, do tempo e dos territórios, de uma forma que transborda e integra a questão laboral porque envolve tarefas e trabalho que não são geralmente reconhecidas: dos cuidados à autogestão do bairro, das economias populares ao reconhecimento do trabalho social não remunerado, do desemprego à natureza intermitente do rendimento. Neste sentido, coloca a chave da vida de um ponto de vista que vai além dos limites do trabalho, sem deixar de pensar nas mutações do trabalho vivo. Ao incluir, tornando visíveis e valorizando os diferentes terrenos de exploração e extração de valor pelo capital na sua fase atual de acumulação, a greve feminista internacional torna possível dar conta das condições em que as lutas e resistências atuais começam a reinventar uma política de classes, na medida em que expressam e difundem uma mudança na composição das classes trabalhadoras, transbordando as suas classificações e hierarquias.
Por isso, a greve apropriada pelo movimento feminista transborda literalmente: deve ser responsável por múltiplas realidades laborais que escapam às fronteiras assalariadas e sindicalizadas, que questionam as fronteiras entre produtivo e reprodutivo, formal e informal, remunerado e não remunerado, entre trabalho migrante e nacional, e entre pessoas empregadas e desempregadas. Sob esta dinâmica, aponta diretamente para um dos núcleos do sistema capitalista: a divisão sexual e colonial do trabalho. E ao mesmo tempo abre uma questão de investigação concreta e situada: o que significa parar em cada realidade diversa, levando a sério a singularidade e complexidade de cada experiência de vida laboral diferente? Como é que esta redefinição e alargamento das classes trabalhadoras se interliga com as diferenças que tornam o mapa do trabalho radicalmente heterogêneo e segmentado? Como se consegue um plano de ação comum face à multiplicidade que desafia a própria ideia da acumulação de forças?
As respostas a estas perguntas podem ter uma primeira fase que consiste em explicar por que não é possível fazer greve em casa ou como vendedor ambulante ou como prisioneiro ou como trabalhador agrícola ou como trabalhador independente ou como trabalhador migrante (identificando-nos como aqueles que “não podem” fazer greve). Porém, imediatamente a seguir assume outra potência: obriga essas experiências a ressignificar e expandir o que está suspenso, o que é bloqueado e ignorado quando a greve deve acomodar essas realidades, alargando o campo social em que a greve está inscrita e produz efeitos. Um manifesto feminista é também uma evocação e um incitamento a esta passagem, uma transcrição (uma tradução) noutra chave do que o Manifesto define como o “objetivo imediato dos comunistas”: a “formação do proletariado numa classe”.
6. Assim, a questão da classe pode expandir-se nos movimentos e lutas do nosso presente, mesmo sem ser nomeada como tal. Talvez possamos localizar onde se situa hoje a “guerra civil” entre trabalho e capital. Marx identificou-a na jornada de trabalho, mas estamos assistindo justamente a seu alargamento e expansão em termos territoriais (para além da fábrica) e temporais (para além da jornada de trabalho reconhecida). Que formas violentas assume hoje esta guerra civil, se a considerarmos a partir de uma cooperação social que tem as economias informais, migrantes e populares e o trabalho doméstico-comunitário como a chave para novas zonas proletárias no neoliberalismo?
Há quatro “cenas” que podem produzir, creio, uma explicação do porquê de neste momento podermos ver a violência funcionando diretamente como força produtiva fundamental, uma vez que a mediação salarial deixa de ser a principal operação de contenção da força de trabalho. Por um lado, caracterizamos a implosão da violência no lar como um efeito da crise da figura do macnho provedor e da sua desierarquização derivada, em relação ao seu papel no mundo do trabalho. Por outro lado, a organização de nova violência como princípio de autoridade nos bairros da classe trabalhadora, como resultado da proliferação de economias ilegais que reabastecem, sob outras lógicas, formas de fornecimento de recursos e que competem e coordenam, por vezes, com as economias da classe trabalhadora como redes subalternas de produção da vida. Terceiro: a expropriação e pilhagem de terras e recursos comuns por projetos neoextractivistas transnacionais que atacam diretamente as redes comunitárias. Finalmente, a articulação de formas de exploração e extração de valor que têm a financeirização da vida social – e, em particular, o dispositivo da dívida – como um código comum. Com estas cenas, o objetivo é enquadrar uma leitura da violência do neoliberalismo como um momento de acumulação de capital, que contabiliza, ao mesmo tempo, as medidas de ajustamento estrutural, mas também a forma como a exploração está enraizada na produção de subjetividades compelidas à precariedade e, ao mesmo tempo, luta para prosperar em condições estruturais de despossessão.
Será hoje possível dividir o mundo em categorias tão afiadas como “burgueses e proletários” e “proletários e comunistas”? A possibilidade de “dividir” as existências desta forma torna possível configurar um antagonismo claro e, portanto, uma política de classe. Já comentamos como este antagonismo é reconfigurado pela introdução da diferença dentro de um dos seus pólos. Mas é possível regressar a uma premissa de Marx e Engels: o movimento proletário é uma “grande maioria”. No entanto, é a sua constituição como uma classe que o lança na “conquista da democracia”. Isto significa que a definição de classe não se traduz automaticamente em política de classe: esta é constituída com base na luta contra a opressão sintetizada no domínio da propriedade privada. A definição de classe tem então como base uma despossessão que se traduz em opressão e a partir daí aposta num outro tipo de “unidade”: aquela dada pela despossessão como premissa de uma condição comum.
Verónica Gago é doutora em Ciências Sociais, pesquisadora e militante do coletivo NiUnaMenos. Reflete sobre as chaves para consolidar redes feministas a nivel global. Escreveu diversos livros, entre eles “Uma leitura feminista da dívida”, junto com Luci Cavallero.
MAIS: Este texto é a primeira parte do prefácio de uma nova edição, em castelhano, do Manifesto Comunista . Foi publicada há pouco pela Verso Libros, de Barcelona. Sílvia Federici escreve o posfácio.
No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.
Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.
A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.
A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?
O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015.
A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.
No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?
Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.
Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?
Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas.
O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.
E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?
As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.
E de gênero também?
Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.
Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil?
Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil.
Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.
Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.
Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?
O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil.
Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política.
Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.
Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?
Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.
Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.
Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.
Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas.
Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015?
Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.
As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.
No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero.
Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.
Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.
Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?
A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.
Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?
Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.
Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça.
Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.
Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?
O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região.
Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.
Quando VerónicaGago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reproduçãosocial como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modeloneoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reproduçãosocial refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.
A entrevista é de EmilianaPariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reproduçãosocial, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.
Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reproduçãosocial serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.
Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.
No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?
“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzira vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.
É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutasfeministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reproduçãosocial, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.
Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismoé violento e que a violênciapatriarcal é, por sua vez, neoliberal”.
Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.
Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violênciaestrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.
Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.
Essa é mais uma potência dos feminismosatuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violênciasistêmica.
Soma-se a isso o fato de que os movimentosfeministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.
Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.
Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a ofertaneoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violênciasistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.
Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.
Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?
As crises facilitam certa criatividade política e a autogestãoereapropriaçãodefunções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentosfeministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reproduçãosocial, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutasfeministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.
Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?
É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.
Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.
Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?
Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirizaçãodareproduçãosocial, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reproduçãosocial que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.
Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.
Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.
Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?
Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.
Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.
Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formasde recolonizaçãodonossocontinente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.
Uma análise de “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, por Rory Elliot*
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Com “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, o ativista trans e professor de direito Dean Spade desafia o leitor e o movimento de esquerda como um todo a perceber o poder do apoio mútuo nas lutas coletivas pela libertação. Spade ajuda a definir a longa e muitas vezes não contada história do apoio mútuo como um ato de “construir redes subversivas de cuidado que são de extrema importância para envolver, radicalizar e fornecer diretamente para nossas comunidades”. Citando a história revolucionária e a luta contemporânea do Partido dos Panteras Negras, os esforços do Apoio Mútuo em Desastres, ao movimento de protesto antigovernamental de Hong Kong, Spade deixou cair em nosso colo coletivo um roteiro fácil de ler para semear, cultivar e fortalecendo nossos movimentos, exatamente quando mais precisávamos.
Profundamente influenciado pela visão abolicionista e pela acessibilidade do texto de Angela Davis entitulado “Estarão as prisões obsoletas?”, o livro “Apoio Mútuo” tem menos de 200 páginas, impecavelmente pesquisado e crítico para sustentar e florescer nossa imaginação radical agora e nas lutas futuras. Spade expõe que desastres e crises planejadas ou inesperadas há muito são oportunidades para manobras políticas, repressão violenta, ocupação militar, floreios de novas tecnologias de vigilância e, mais insidiosamente, reformas. Com demonstrações históricas de solidariedade inflexível e poder popular, o autor mostra como e quando esses mesmos desastres se tornam oportunidades para ativistas e militantes se envolverem em mudanças radicais por meio da hibridização de ação local e redes massivas de assistência comunitária.
2020 revelou a muitos, e garantiu a alguns poucos, que a manutenção do status quo é a crise; o Estado e seus mecanismos e políticas, suas raízes, suas reformas e o firme desejo oportunista. COVID-19, mudança climática, imigração, assassinato policial, vigilantismo branco, número de mortos na prisão e a ascensão do fascismo direto e revelado em todo o mundo não são fenômenos inseparáveis. Muitos perceberam que diante de tanto caos, a única coisa que temos é uns aos outros; O apoio mútuo é a nossa salvação.
Embora profundamente ancorado no pensamento e análise revolucionários, este não é um livro de teoria política, nem uma exploração do que aconteceu. É um olhar ansioso para o que é possível e necessário.
O apoio mútuo, feito de forma radical, permite que as pessoas determinem e atualizem os caminhos para sua própria libertação por meio do crescimento coletivo, participação na liderança e ação. Também pode atuar e ser usado como rampa de acesso à luta política; uma resistência praticada aos modelos de organizações sem fins lucrativos dos supremacistas brancos.
“Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” fornece uma estrutura crítica para desafiar os movimentos dos quais fazemos parte, além de fornecer um roteiro para desafiar organizações, desafiar a nós mesmos como ativistas e militantes e desafiar uns aos outros para estarmos prontos para a luta que está à frente. Dá-nos o contexto de negligência governamental e resistência antigovernamental, os padrões de concessões, cooptações e exemplos de movimentos radicais que conseguem criar mundos melhores que sabemos serem possíveis.
À medida que o verão se transforma em outono, e porque tudo está em jogo e estamos lutando para vencer, precisamos de Apoio Mútuo.
*Rory Elliott é estudante de Portland, membro da organização abolicionista Critical Resistance, membro do coletivo editorial do The Abolitionist Newspaper e organizador da campanha Antipolicial Care Not Cops PDX. Atualmente, co-dirige a campanha de arrecadação de fundos do ACT UP Oral History Project. Colabora com Between Certain Death and a Possible Future: Queer Writing on Growing up with the AIDS Crisis.