Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui

Verónica Gago, sobre a luta feminista

Tradução da matéria de Emiliana Pariente para La Tercera.

Foto de Verónica Gago por María José Duran, UDP.

Quando a pesquisadora e docente da Universidade de Buenos Aires, Verónica Gago, fala da reprodução social como um território de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua analise é pontual e concreta; a reprodução social se refere a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o nome do conceito, para a reprodução de tal. Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não acontece automaticamente e que o trabalho – porque é trabalho – requer esforços e condições favoráveis ​​para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos concientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros momentos parecia óbvio e fortuito, não é minimamente garantido e não acontece de forma alguma automaticamente.

Para que se realize, pelo contrário, se requer certas garantias e direitos básicos que na atualidade tem sido privatizados e transformados em terreno férteis para negócio. “O conceito de reprodução social nos serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de as atividades de reprodução social não serem óbvias nem asseguradas, mas são um campo de valorização e concentração empresarial do capital, nos dá uma característica histórica desse momento”, reflete.

É esse o debate que tem sido aberto nesses últimos tempos nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para demonstrar o desempenho econômico (que durante muito tempo mostraram ser exitosos) contrastam com a realidade que vivem os setores de média e baixa renda, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que tem superado a linha da pobreza, mas que vive endividada – alcança 43% da população, da qual 44% são mulheres chefes do lar. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isso que está em questão hoje: como se reproduz a vida se não estão garantidos os elementos básicos que permitem a realização harmoniosa e digna de nossas necessidades vitais? “Durante muito tempo se pensou que o salário bastava para reproduzir a vida, mas em momentos de crise vemos que isso não é suficiente para realizar nossas atividades diárias ou ter os recursos essenciais para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, como ela aprofunda, que convergem feminismo e reprodução social, porque são as lutas feministas que têm tematizado esse conjunto de atividades. “O que os feminismos fazem é colocar a reprodução social como campo de luta e, portanto, também mostrar quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente; Por um lado, questionam os mandatos de gênero que fazem das mulheres as responsáveis ​​por garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales, sustenta que são os movimentos feministas os que deram dignidade política às lutas da reprodução social, que durante muito tempo se delinearam como causas subsidiárias à grande luta salarial. “O neoliberalismo quer se vender como uma espécie de pacificação das energias sociais, em que é antes a energia empresarial que organiza o social. E acredito que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes atualmente, vem dizendo que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal também é neoliberal.”

Você fala que os movimentos feministas transferiram a noção de violência a outra dimensão, reformulando até mesmo os valores de vítima e poder.

São os movimentos feministas que estão fazendo uma caracterização da violência que não fica só dentro de casa e que não é lida em termos de violência intrapessoal, mas sim relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e de lugares lares como um dos terminais privilegiados dessa violência. Mas não o confina apenas entre as quatro paredes. Isso dá um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e na vizinhança e expõe a violência como forma de exploração de corpos e territórios.

Esse é outro dos poderes dos feminismos atuais; sua capacidade de articular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, por serviços sociais, por educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que faz com que todas essas lutas se conectem e ao mesmo tempo se mostrem como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa de vítima e mulher empoderada. Por um lado, a história da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, porque nem todas são. E, por sua vez, como não cair no discurso contrário, empoderado, da empresária de si mesma. Aí está a armadilha.

Por isso é tão importante pensar como se desarma concretamente essa dinâmica, que inclui duas posições muito cômodas ao neoliberalismo. São as únicas duas posições que nos são oferecidas. Acredito que, pelo mesmo motivo, o movimento feminista está mostrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e ao mesmo tempo gerando possibilidades de enfrentamento e também de acompanhamento, luto e contenção. Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal. Porque justamente quando aceitamos ser vítimas parece que abrimos mão de nossa capacidade de desejar e lutar, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É uma dupla que tem que ser desmontada porque funcionam juntas. 

Além disso, são duas posições que partem de uma ideia de indivíduo fechado em si mesmo e a partir do feminismo estão sendo feitas experimentações pessoais e coletivas para ver que outras posições subjetivas existem, posições capazes de combinar luta e dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica sem que este seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que tem problematizado essas dinámicas da reprodução social e que propõem dinâmicas organizadas e colaborativas surgem como uma forma de resistência ao modelo atual?

As crises facilitam certa criatividade política e também a autogestão e reapropriação de funções. Acredito que a reprodução social é um território de experimentação em que os movimentos feministas tem tornado possível evidenciar as carências e por sua vez propor outros modelos de organização. Porque o que está em disputa agora é de que maneira, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse terreno, as lutas feministas estão colocando a pergunta do que significa transformar a vida cotidiana e a partir daí, todo o resto.

Você fala do patriarcado do salário. Como você o explica?

É um conceito de Silvia Federici, que postula que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada; nesse sentido, es trabalhadores que não recebem salário muitas vezes não conseguem reconhecer sua força de trabalho tampouco seu trabalho em si. Isso se aplica aos trabalhadores do campo, que não cobram salario, e também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Ao não receber um salario, ficam automaticamente subjugadas aqueles que sim cobram salario e instaura-se uma hierarquia de ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo disso é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres permanecem fixadas em situações de subordinação e abuso.

Em países latinoamericanos nos quais foram privatizados os direitos fundamentais que são necessários para viver… A dívida se transformou em uma obrigação?

Em países onde as coisas básicas têm que ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em emergências, é uma obrigação. A dívida é hoje aquela que organiza e possibilita a reprodução social, é o que permite uma invasão por parte do sistema financeiro na vida de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, é uma forma de amortecer a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente, mas ao invés de gerar raiva e pensar em como podemos exigir mais renda, o que fazemos é assumir responsabilidade de uma dívida e se sentir culpado. Para sair desse ciclo, nos endividamos porque, no final das contas, é isso que torna a precariedade mais “habitável”. Isso, em determinado momento, é insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente, o corpo se manifesta com dor e doença e depois explode socialmente. É por isso que existem surtos em nossos países.

No Chile explodiu. Inclusive se começou a falar em saúde mental e que esse modelo nos deixou todes mergulhades na depressão. Uma mudança estrutural era realmente desejada?

Acredito que sim. E a mudança acontece, o que acontece é que ela leva tempo e aos poucos se traduz em diferentes temporalidades e dimensões de transformação. Se pensarmos em termos processuais, fica difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, na verdade ele abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Mas não é necessário fechar um processo em relação a um resultado. Hoje temos que pensar que tipo de estratégias as organizações, movimentos, dinâmicas sociais e políticas estão tomando. E não se pode negar que há uma mudança importante nos tipos de discussões públicas sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais. Há também uma pergunta que permanece aberta e é “o que significa hoje enfrentar as formas de re-colonização de nosso continente?”. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento a respeito dessas questões. Não há pacificação na América Latina.

Contraia dívidas e viva para contar sobre isso

Laboratoria: espaço transnacional de investigação feminista

por Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda.

“A dívida é a escravidão moderna”. Imagem: reprodução.

“Dívida ou vida” dizia um grafite de rua na Calle de la Fe, no bairro madrilenho de Lavapiés.  Entendemos dessa demanda: nossa luta pelo direito à moradia digna é, fundamentalmente, uma luta contra a dívida. Nosso movimento, a Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca, leva o nome escolhido em meio ao grande estouro da bolha hipotecária que vivíamos na Espanha a partir do final dos anos 2000. Porém, de uma forma ou de outra a dívida havia pousado em nossas vidas muito antes de sermos hipotecados ou não.

Ao longo de 2020 realizamos uma série de entrevistas, conversas e encontros entre as mulheres da nossa assembleia, das quais nasceu o caderno Até a queda do Patriarcado e não haver mais um despejo. Dívida, habitação e violência patriarcal. Nas histórias, além da hipoteca, apareceram dívidas contraídas para migrar ou estudar; microcréditos para abrir uma empresa, mas também para cobrir emergências de trabalho, como perda de ferramentas de trabalho; dívidas para cobertura privada de saúde; empréstimos ao consumidor e compras parceladas; empréstimos para pagar as contas, para necessidades atuais, como alimentos, produtos de higiene, gasolina, água e eletricidade ou medicamentos. Não houve vidas que não tenham passado por endividamento em um momento ou outro, mas sabemos que, mesmo que o fizesse, a dívida também estaria na vida dessas pessoas por meio da dívida pública e seus mandatos políticos se traduziriam em cortes no sistema de serviços públicos.

A dívida é, ao mesmo tempo, um sistema de formação social que produz obediência; um mecanismo de extração de nossa força vital e de trabalho; e uma máquina geradora de vulnerabilidade, que não só nos expõe à violência financeira que se pratica na relação credor-devedor, mas também a outras violências racistas, sexistas e heteropatriarcais ou trabalhistas. Essas três funções – obediência, extração, vulnerabilidade – são muito úteis no nível estrutural do funcionamento do capitalismo global. Primeiro você cria uma mentalidade, uma predisposição e até uma aceitação; serve para que a nossa criatividade, a nossa energia e o nosso corpo sejam produtivos em contextos utilizáveis ​​para a produção de lucro para os outros, que se acumula nas suas mãos em vez das nossas; e no final essa distribuição de funções se soma a outras violações de nossos direitos que nos deixam sem opção, nem mesmo a possibilidade de fugir.

Uma vez que reconhecemos o que já expomos, começamos a ver outras nuances. Não basta dizer “dívida ou vida”, porque as características de cada dívida definem qual vida e em que condições ela é permitida. Define o ponto de partida da luta, porque olhar atentamente para essas características permite inventar formas de alargar as condições que se dão, de lutar por mais espaço para a vida. Por isso, embora entendamos o endividamento como um mecanismo opressor, embora nos oponhamos à centralidade que ganhou na organização social, embora resistamos à obrigatoriedade do endividamento… as nossas realidades e a nossa luta obrigaram-nos a perguntar também: como viver com dívidas, uma vez que as temos?

Temos dívidas… e ainda assim vivemos. Acreditamos que existe uma conexão entre os efeitos que a dívida tem em nossas vidas e os fatores que diferenciam cada um dos nossos endividamentos. Em nossas conversas, as questões que interessaram foram o valor total da dívida; o valor mensal a ser pago – definido pelos juros e pelo prazo de amortização, além do total –; as garantias entregues e/ou os fiadores a considerar; as condições de retorno e a possibilidade de alterações, tais como a carência, etc; o envolvimento ou não de relações pessoais no esquema de dívidas e reembolsos; também a natureza da parte credora e que tipo de conduta se pode esperar dessa parte. Então nos perguntamos: como se endividar, se for preciso, em menos quantidade e com melhores condições?

Não estamos pensando em esquemas de pirâmide ou ONGs de microcrédito navegando nas bandeiras do feminismo pseudo-espiritual, liberal, caritativo ou tecnocrático. Pensamos em um futuro compartilhado de redes globais de resistência diante da realidade atual do endividamento obrigatório, capaz de mesclar estratégias de default organizadas com a construção de economias comunitárias justas, dignas e sustentáveis. Todas nós contraímos dívidas e queremos viver para contar a respeito. Qual é o seu histórico de dívidas?

Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda são integrantes de PAH Vallekas e seu grupo de mulheres.

Este texto é resultado de uma parceria entre a Revista Cult e a La Laboratoria: espacio transnacional de investigación feminista.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, de Verónica Gago e Luci Cavallero está disponível no nosso site. As autoras são pesquisadoras argentinas e integrantes dos coletivos Ni Una Menos e La Laboratoria: espacio transnacional de investigación feminista. Clique aqui para saber mais.

Uma mensagem de disciplinamento para todas as militâncias populares e para todas as mulheres

Por Luci Cavallero.

Manifestações em apoio à Cristina Kirchner em Buenos Aires.

Este é o fato mais grave desde a recuperação da democracia. Um evento de gravidade institucional inusitada, mas que vemos particularmente como uma mensagem e uma tentativa de disciplinamento para toda a militância. Sobretudo, para as mulheres que ousam fazer política, alcançar posições de liderança e enfrentar poderes econômicos.

É uma pedagogia em grande escala: se você entrar na política, se representar os interesses populares e for mulher, pode acabar com uma arma na cabeça. Aquele revólver na cabeça de Cristina é um revólver na cabeça de todas as mulheres, lésbicas, travestis e trans que se animam a disputar e dar debater em seus espaços políticos.

É um revólver que todas nós temos em nossas cabeças. Para nós, a imagem é muito forte e também é muito forte que ela esteja se repetindo. Pensamos em como será agora para aquelas meninas que cresceram com a imagem de Cristina na televisão nacional, com a  imagem de uma mulher forte, de uma mulher que respondeu aos poderes, e que agora veem que fazer política nessa escala e mexer com esses interesses sendo uma mulher pode fazer com que um revólver seja colocado em sua cabeça.

É claro que acreditamos que o repúdio tem que ser absoluto. Um repúdio que não tem a ver apenas com Cristina, mas com a vida de toda a militância, com a possibilidade de viver em um Estado de Direito, em uma democracia onde a mobilização popular, a organização e a militância feminista são possíveis.

E, além disso, acreditamos que isso deve gerar um debate profundo. Uma das primeiras leituras feitas pela oposição, com o objetivo de diminuir a gravidade do fato, foi falar a partir dos argumentos mais grotescos, dizendo que poderia ser algo orquestrado inclusive pelo próprio kirchnerismo.

Mas, o que se instalou – e que para nós é o mais nocivo -, é a ideia do “louco à solta”, de alguém isolado que tenta cometer o assassinato. E isso nos lembra muito as explicações que existem quando dizemos claramente que os feminicídios e que a violência contra a mulher, a violência contra mulheres travestis e trans, contra lésbicas, contra pessoas não-bináries, são originadas de  problemas estruturais que depois se consumam na ação, no momento em que vemos o feminicídio ou travesticídio. Assim, a teoria do “louco à solta” parece-nos muito problemática. O que precisa ser gerado é uma discussão profunda sobre o papel da mídia em tudo isso, que estigmatiza militâncias populares e lideranças populares.

A maneira como os limites do que pode ser dito foram empurrados em nossa democracia e são  sistematicamente estigmatizados, produz discurso de ódio. É uma engrenagem midiática articulada com figuras da oposição, mas também tem outro poder por trás, como o Judiciário, que também faz parte desse processo de estigmatização.

Devemos gerar um debate profundo, por exemplo, sobre o papel da mídia. É inaceitável que continuem a ser dadas pautas oficiais aos meios de comunicação que promovem e incentivam o discurso de ódio. Isso tem que mudar. Tem que haver um debate profundo sobre a democratização da mídia. Temos que sair e dizer “não”, dizer “basta”, estabelecer um limite. Eles atravessaram o limite, e tudo o que parecia estar no plano discursivo ou midiático, passou agora ao plano material. Para nós, é preciso que seja construído um limite muito grande, porque por trás dessa imagem há uma mensagem de disciplinamento muito específica para todas as militâncias populares e para todas as mulheres. Particularmente, para aquelas que ousam representar interesses populares e tentar intervir em espaços dessas esferas políticas.

Houve também um despertar da mobilização popular. Pelo menos, da base mais identificada com a figura da vice-presidenta. Havia uma militância que estava desmobilizada e buscava voltar às ruas e recuperar uma mística. Essas expressões de amor na porta da vice-presidenta incomodaram muito o Judiciário e os poderes concentrados. Qualquer coisa que foge aos seus controles incomoda. Parece-me que o que aconteceu deve ser colocado em relação direta aos discursos de ódio, ao avanço repressivo da Prefeitura na semana passada em Buenos Aires, a essa escalada da reação repressiva que eles tiveram a certas expressões de amor, e que culminou ontem com essa tentativa de assassinato.

Há um desafio de somar a essa defesa da figura de Cristina um programa político que possa conquistar setores populares mais amplos. Esse é o desafio. Além de expressar esse amor e essa retomada da mobilização popular em torno da figura de Cristina, também associá-la a uma série de medidas que vão a favor dos interesses populares.

Luci Cavallero é professora, pesquisadora e militante feminista. É integrante do coletivo Ni Una Menos e do espaço de investigação feminista La Laboratoria. Escreveu o livro “Uma leitura feminista da dívida” com Verónica Gago.

Texto publicado originalmente no Tiempo Argentino.

Colocar a dívida no centro

Por Luci Cavallero.

Tradução do artigo “Poner la deuda en el centro“, publicado na Revista Bordes.

Uma mulher e uma criança na fila para pegar comida, frutas e água na praça da Estação em 5 de junho de 2020 em Belo Horizonte, Brasil. Foto: Pedro Vilela.

A pandemia elevou o espaço doméstico como refúgio frente a possibilidade de contágio. “Fique em casa” tornou-se a palavra de ordem para cuidar de si mesmo. E, ao mesmo tempo, a dívida entrou em todas as casas. O que aconteceu quando a vida se limitou aos espaços que os feminismos já haviam apontado como lugares onde se combinam formas de opressão, exploração e “dívidas são produzidas”? A socióloga Lucía Cavallero analisa a repercussão das políticas de ajuste das famílias como dívida doméstica, o paradoxo de que o lugar “seguro” se tornou ao mesmo tempo um território de conquista para o capital financeiro e as implicações do mandato de ter que tomar empréstimos para viver.

Notas para a análise do endividamento do ponto de vista feminista

O debate sobre o endividamento externo deslizou pela janela da campanha eleitoral, tornando inevitável a discussão pública sobre seu impacto, sua origem e sua legitimidade. Mas o que essa obrigação de falar sobre dívida expressa? Que experiência do social a torna inevitável? Por que o tempo de endividamento marca o cotidiano das grandes maiorias das populações? Qual é a ligação entre dívida externa e dívidas privadas? A dívida entra nas casas, não apenas como uma discussão midiática, mas também como uma experiência concreta de estar endividadxs para viver.  Neste artigo, proponho dar um relato das chaves metodológicas e políticas a partir da reflexão feminista, para entender a espacialidade e o impacto do endividamento em nossas vidas, postulando que essas reflexões são fundamentais na democratização da discussão sobre o mundo financeiro.

Começar pela casa

Os feminismos têm desordenado os binarismos clássicos que estruturam o imaginário econômico. Assim, tem sido questionada a oposição entre o produtivo e o doméstico e a divisão entre o que conta como “público” e o que conta como “privado”. Isso implica uma ruptura epistemológica na forma de abordar problemas econômicos, ao localizar a vida cotidiana, o espaço doméstico e o trabalho comunitário como lugares estratégicos onde há exploração, mas também resistência. Nesse processo de redefinição das categorias econômicas e, portanto, políticas, a análise do processo de financeirização da vida cotidiana não tem ficado isenta.

Nesse sentido, a perspectiva feminista contribuiu para a pedagogia contra a dívida externa que, em geral, estava associada ao ensino sobre seus efeitos macroeconômicos, de forma desgenerizada, desracializada e sem referências concretas à vida cotidiana. Isso está relacionado ao que a historiadora e filósofa feminista Silvia Federici conceituou como a desvalorização histórica do espaço doméstico como um lugar onde o trabalho das mulheres e corpos feminizados é implantado e com a produção desse espaço como espaço privado, fora da visibilidade pública. Ao mesmo tempo, o espaço doméstico tem sido abordado, inclusive a partir de perspectivas da economia feminista, enfatizando seu caráter desmercantilizado, ou seja, longe do mundo financeiro. Minha perspectiva problematiza essa dupla invisibilização, que nos permite ir na direção oposta à lógica financeira, que finge que a dívida permanece abstrata, que se inviabilize os trabalhos daqueles que a nutrem, que apaga sua gênese violenta também nas casas para produzir um efeito de afastamento com qualquer vida cotidiana. Nesse sentido, minha proposta é aprofundar a caracterização desse espaço doméstico tanto como uma espacialidade concreta do impacto da dívida externa como também como um espaço onde “se produzem as dívidas”[1].

Juntes pelo endividamento

Em nossa “Leitura Feminista da Dívida“[2] investigamos como o endividamento com o Fundo Monetário Internacional feito durante o governo de Mauricio Macri, foi traduzido em políticas de ajuste que se derramaram nos lares como dívida doméstica. Assim, em decorrência da inflação e da consequente perda do poder aquisitivo de subsídios e salários e da dolarização de alimentos e medicamentos, fora produzida uma realidade em que o endividamento se tornou necessário para acessar os bens mais básicos. Isso é o que chamamos de “colonização financeira da reprodução social”[3]. A particularidade desse fenômeno é que o endividamento já não aparece mais associado ao consumo pontual de um bem ou serviço, mas tornou-se uma forma permanente de completar a renda. Aqui, então, uma descoberta importante: há uma mudança qualitativa no que significa dívida nas casas quando aparece como um mandato de envididar-se para viver. Isso constitui uma contribuição feita a partir de uma leitura feminista da dívida partindo da investigação de seus efeitos no cotidiano e centralizando a analise em quem sustenta as economias domésticas nos momentos de crise. Endividar-se para viver, entãoo, tem impactos subjetivos que reorganizam o cotidiano e o espaço doméstico e intensificam os mandatos de género agora associados ao pagamento das dívidas. A presença cotidiana do endividamento põe a dívida no centro, dirigindo todas as energias e esforços para evitar o atraso, inclusive recorrendo a empréstimos familiares e ajudas que também podem significar por em risco vínculos próximos e barriais.

Portanto, é necessário pensar como o endividamento externo, nos últimos anos também foi vivenciado como uma experiência concreta de endividamento na vida cotidiana. Assim, como mencionei, a monumental dívida externa negociada durante o governo de Mauricio Macri deu um salto qualitativo: foi traduzida com velocidade sem precedentes na experiência diária de estar endividada para viver, enquanto a moeda estava desvalorizada e os investimentos internacionais iam embora.

Essa realidade afetou especialmente as mulheres que tomaram empréstimos principalmente através de subsídios como a “Asignación Universal por Hije.” Esse fenômeno se confirmou de forma muito eloquente nos dados do “Centro de Economía Política Argentina (CEPA) [4] sobre o endividamento dos lares pobres: a quantidade de créditos otorgados as beneficiárias de AUH atingiu 92% das alocações existentes entre 2016 e 2019. Em relação aos subsídios sociais, um estudo do Observatório de Direito Social do CTA-Autónoma [5] mostra como o valor da “Asignación Universal por Hijx (AUH)” foi se desvalorizando ao longo do período, tornando-se uma mera garantia para endividar-se.

Outra particularidade que vale a pena assinalar são as principais formas de endividamento. Nos setores populares, há uma diversidade de prestadores de dívidas (com quadro jurídico diferente cada um) que, nas economias domésticas, se sobrepõem e se encadeiam. Portanto, em uma mesma unidade doméstica, convergem diferentes formas de endividamento. Uma parcela significativa do endividamento ocorre por meio de “novas entidades ou marcas” chamadas de “licitantes não bancários”, algo que já havia sido apontado por estudos anteriores [6]. Segundo relatório do Banco Central da República Argentina [7] (6), a partir de outubro de 2020 o número de devedores atendidos pelo OPNFC (Outros Provedores de Crédito Não Financeiro) ultrapassa 6,1 milhões, 45% do universo total de devedores em todas as entidades. Essas instituições financeiras não bancárias e instituições não financeiras oferecem empréstimos a taxas substancialmente superiores ao sistema de crédito formal, aumentando as desigualdades entre os setores sociais.

As casas tornaram-se, assim, um espaço de superendividamento que faz com que a espacialidade doméstica se volte estrategicamente para a politização da dívida: como um lugar concreto de impacto do endividamento externo e como espaço de conexão entre endividamento externo e endividamento privado.

A pandemia: mais trabalho de cuidado e mais endividamento

Como fenômeno geral durante a pandemia de Covid-19 tem havido uma diversificação e incremento do endividamento, onde as dívidas “nao bancárias” por atrasos de impostos, serviços de luz, agua, gás, cresceram a ritmo acelerado. Em nossa pesquisa [8], que contou com um trabalho qualitativo na Villa 31 y 31 Bis durante o mês de abril e maio de 2020 detectamos um aumento nas dívidas informais de aluguel que aceleraram os despejos durante a pandemia. Como eu apontei, essas dívidas convivem com outras fontes de endividamento, como empréstimos familiares e empréstimos com financiadores de bairros. Também detectamos e investigamos o surgimento do endividamento por meio de empresas fintech. A fintech é uma nova tecnologia, em um momento de expansão na Argentina e, em particular, diante da crise desencadeada pela conjuntura da pandemia global, que está levando o processo de banco monetário e digitalização a níveis muito mais intensos.

Todo esse fenômeno tem uma velocidade e uma escala impensável diante das restrições presenciais impostas pela pandemia e, por sua vez, torna-se um meio particularmente ágil de acelerar o endividamento devido ao aprofundamento da crise de renda para esses setores que veem suas possibilidades de trabalho reduzidas. Esse avanço das tecnologias financeiras não se baseia apenas no fato de que elas se tornaram a forma preferida de chegada de subsídios emergenciais à população não bancarizada, mas também que trabalham sobre uma população bancária que tem contas de poupança gratuitas em pesos, cujos 62% pertencem a beneficiários de planos sociais e 28% aos benefícios previdenciários,  de acordo com dados do Relatório de Inclusão Financeira do BCRA [9].

Ao mesmo tempo, para levantamento da situação de uma população com maiores níveis de acesso ao trabalho formal e com contratos formais de aluguel, trabalhamos juntos em uma pesquisa com a organização Inquilinos Agrupados para levantamento dos dados de endividamento. Os dados mais recentes, de setembro de 2021, indicam que aproximadamente 50% das famílias que alugam têm dívidas[10], evidenciando que o endividamento para acessar bens básicos se estende a parcelas da classe média.

Uma dimensão importante em relação ao estudo do endividamento doméstico é compreender sua relação com o trabalho não remunerado, em sua maioria feminizado. Essa proposta é uma chave metodológica que acrescenta nossa perspectiva feminista de endividamento e que foi fundamental para entender o impacto da pandemia na espacialidade doméstica.

Assim, a necessidade de endividar-se para viver se faz ainda mais forte nos lares monoparentais, com mulheres encarregado de filhos e filhas, convertendo o endividamento em mais uma das formas de intensificação das desigualdades de gênero.

Nesse sentido, durante a crise de Covid-19 houve um aumento dos trabalhos de cuidado, que afetaram as possibilidades de mulheres, e sobretudo de mulheres chefes de família com filhas/os dependentes, participarem do mercado de trabalho. Uma pesquisa realizada pela Dirección de Economía y Género del Min. de Economía y UNICEF[11] com base no EPH do primeiro semestre de 2020, mostra que a pobreza em domicílios monoparentais atingiu 68,3%. O mesmo estudo mostra que houve uma queda de 14% da taxa de atividade para as mulheres chefes de família com crianças e adolescentes, quase 4 pontos a mais do que a queda na taxa geral de atividade para o mesmo período.

Assim, a maior dificuldade de participação no mercado de trabalho, juntamente com o aumento das tarefas de cuidado, tem causado o surgimento de novas dívidas associadas à gestão do cotidiano. O espaço domestico que as passivas mobilizações feministas haviam apontado como espaço onde se combinam formas de exploração e opressão, foi sinalizado na pandemia como lugar de refugio frente a possibilidade de contagio. O paradoxo é que esse espaço “seguro” tornou-se, ao mesmo tempo, um território de conquista para o capital financeiro (o aumento da dívida de aluguel é eloquente nesse sentido).

Dessa forma, o superendividamento intervém com uma função eminentemente política: opera produzindo uma domesticidade atrelada ao pagamento da dívida. Isso porque as mulheres realizam múltiplas atividades para garantir o cumprimento das obrigações financeiras, o que se traduz em uma superexploração de empregos historicamente desvalorizados. Dessa forma, o doméstico é aquele espaço onde os mandatos de gênero e as obrigações financeiras são mais obviamente combinados. Porque a dívida aproveita o mandato que recai sobre as mulheres para sustentar as economias domésticas em situações de crise e, por sua vez, ativa o aumento dos empregos reprodutivos e desvalorizados.

Outro aspecto a destacar é o que a pandemia significou em termos de aceleração das formas de inclusão financeira para a cobrança de subsídios como a Renda Familiar emergencial.Em um relatório anterior, resumimos outro ponto que, em nossa opinião, deveria ser objeto de debate dessa nova onda de inclusão: a bancarização dessa população para recolher subsídios emergenciais mesmo quando se sabe da curta duração dessa transferência monetária (ou seja: a conta bancária permanecerá, o subsídio não vai). Assim, concluímos que “a natureza circunstancial dessa medida não garante, por si só, a continuidade virtuosa do sistema financeiro”. Portanto, se essa permanência não corresponde à prestação de serviços públicos gratuitos e de qualidade, e políticas de transferência de renda maiores que a dinâmica inflacionária, o registro no sistema financeiro de uma população sem renda ou com renda intermitente e insuficiente pode se tornar um mero veículo para assumir novas dívidas pessoais.

Zona de Promessas: endividamento e campanha eleitoral

Como lembra Jason Moore, citando a Grundrisse de Marx, o capital financeiro busca criar um mundo onde a velocidade dos fluxos de capital está constantemente acelerando, resultando no privilégio do tempo sobre o espaço[12].Poderíamos extrapolar esse raciocínio para pensar sobre qual é o espaço que existe para a disputa eleitoral, no tempo das dívidas. Por um lado, a dívida externa aparece como um limite para qualquer promessa do futuro e, ao mesmo tempo, uma população cada vez mais endividada vê o futuro atormentado por obrigações financeiras.  A dívida (externa e doméstica) entrou em cada casa e é um elemento central na gestão da crise e, portanto, na produção de subjetividades. Precisamos avançar no enfrentamento desses poderes opacos, opondo-os a uma discussão pública, coletiva e democrática sobre os efeitos do endividamento que começa na vida cotidiana.

Lucía Cavallero é pesquisadora e doutora en Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires. É licenciada em Sociologia também pela UBA e docente da Universidad Nacional de Tres de Febrero. Integra o coletivo Ni Una Menos e é coautora do livro “Uma leitura feminista da dívida”, publicado na Argentina pela Fundação Rosa Luxemburgo (2019), no Brasil por Criação Humana Editora (2021), na Itália pela editora Ombre Corte e na Inglaterra por Pluto Press. 

Facebook: Luci Cavallero / Instagram: Luci Cavallero / Twitter: lucicavallero8

REFERENCIAS

[1] Cavallero, Lucía.  Tesis Doctoral: “Deuda, violencia y trabajo reproductivo: un análisis del endeudamiento de las economías populares feminizadas en Buenos Aires (2012-2019)”. Facultad de Ciencias Sociales (UBA).

[2] Cavallero, L y Gago, V (2022). Uma leitura feminista da dívida. Vivas, livres e sem dívidas nos queremos. Porto Alegre: Editora Criação Humana.

[3] Ibíd.

[4] Recuperado de https://centrocepa.com.ar/informes/230losimpactosdelajusteeconomicoenlaspoliticasdeninezyadolescencia20162019.html

[5] Recuperado de https://ctanacional.org/dev/fuerte-deterioro-de-la-asignacion-universal-por-hijo-y-la-jubilacion-minima/

[6] Gago, V. (2014): “La razón neoliberal. Economías barrocas y pragmática popular”. Buenos Aires. Edición: Tinta Limón.

[7] Recuperado de: https://www.unicef. org/argentina/media/10751/ file/Desaf%C3%ADos%20de%20 las%20pol%C3%ADticas%20 p%C3%BAblicas%20frente%20 a%20la%20crisi

[8] Cavallero, L y Gago, V. (2020). “Extender la cuarentena a las finanzas”. Recuperado de https://thetricontinental.org/argentina/fp-cavalleroygago/

[9] Recuperado de http://www.bcra.gov.ar/Pdfs/PublicacionesEstadisticas/iif0119.pdf

[10] Recuperado de  ​​https://federacioninquilinosnacional.com.ar/estadisticas/

[11]  Moore Jason (2020). El capitalistmo en la trama de la vida. Ecología y acumulación de capital. Madrid: Traficantes de sueños.

[12] Cavallero, , Gago, V y Perosino, C: “Inclusión financiera. Notas para  una  perspectiva crítica”

http://genero.institutos.filo.uba.ar/sites/genero.institutos.filo.uba.ar/files/Inclusio%CC%81nFinanciera%20%281%29%20PDF.pdf