Verónica Gago, sobre a luta feminista

Tradução da matéria de Emiliana Pariente para La Tercera.

Foto de Verónica Gago por María José Duran, UDP.

Quando a pesquisadora e docente da Universidade de Buenos Aires, Verónica Gago, fala da reprodução social como um território de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua analise é pontual e concreta; a reprodução social se refere a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o nome do conceito, para a reprodução de tal. Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não acontece automaticamente e que o trabalho – porque é trabalho – requer esforços e condições favoráveis ​​para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos concientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros momentos parecia óbvio e fortuito, não é minimamente garantido e não acontece de forma alguma automaticamente.

Para que se realize, pelo contrário, se requer certas garantias e direitos básicos que na atualidade tem sido privatizados e transformados em terreno férteis para negócio. “O conceito de reprodução social nos serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de as atividades de reprodução social não serem óbvias nem asseguradas, mas são um campo de valorização e concentração empresarial do capital, nos dá uma característica histórica desse momento”, reflete.

É esse o debate que tem sido aberto nesses últimos tempos nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para demonstrar o desempenho econômico (que durante muito tempo mostraram ser exitosos) contrastam com a realidade que vivem os setores de média e baixa renda, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que tem superado a linha da pobreza, mas que vive endividada – alcança 43% da população, da qual 44% são mulheres chefes do lar. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isso que está em questão hoje: como se reproduz a vida se não estão garantidos os elementos básicos que permitem a realização harmoniosa e digna de nossas necessidades vitais? “Durante muito tempo se pensou que o salário bastava para reproduzir a vida, mas em momentos de crise vemos que isso não é suficiente para realizar nossas atividades diárias ou ter os recursos essenciais para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, como ela aprofunda, que convergem feminismo e reprodução social, porque são as lutas feministas que têm tematizado esse conjunto de atividades. “O que os feminismos fazem é colocar a reprodução social como campo de luta e, portanto, também mostrar quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente; Por um lado, questionam os mandatos de gênero que fazem das mulheres as responsáveis ​​por garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales, sustenta que são os movimentos feministas os que deram dignidade política às lutas da reprodução social, que durante muito tempo se delinearam como causas subsidiárias à grande luta salarial. “O neoliberalismo quer se vender como uma espécie de pacificação das energias sociais, em que é antes a energia empresarial que organiza o social. E acredito que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes atualmente, vem dizendo que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal também é neoliberal.”

Você fala que os movimentos feministas transferiram a noção de violência a outra dimensão, reformulando até mesmo os valores de vítima e poder.

São os movimentos feministas que estão fazendo uma caracterização da violência que não fica só dentro de casa e que não é lida em termos de violência intrapessoal, mas sim relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e de lugares lares como um dos terminais privilegiados dessa violência. Mas não o confina apenas entre as quatro paredes. Isso dá um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e na vizinhança e expõe a violência como forma de exploração de corpos e territórios.

Esse é outro dos poderes dos feminismos atuais; sua capacidade de articular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, por serviços sociais, por educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que faz com que todas essas lutas se conectem e ao mesmo tempo se mostrem como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa de vítima e mulher empoderada. Por um lado, a história da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, porque nem todas são. E, por sua vez, como não cair no discurso contrário, empoderado, da empresária de si mesma. Aí está a armadilha.

Por isso é tão importante pensar como se desarma concretamente essa dinâmica, que inclui duas posições muito cômodas ao neoliberalismo. São as únicas duas posições que nos são oferecidas. Acredito que, pelo mesmo motivo, o movimento feminista está mostrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e ao mesmo tempo gerando possibilidades de enfrentamento e também de acompanhamento, luto e contenção. Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal. Porque justamente quando aceitamos ser vítimas parece que abrimos mão de nossa capacidade de desejar e lutar, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É uma dupla que tem que ser desmontada porque funcionam juntas. 

Além disso, são duas posições que partem de uma ideia de indivíduo fechado em si mesmo e a partir do feminismo estão sendo feitas experimentações pessoais e coletivas para ver que outras posições subjetivas existem, posições capazes de combinar luta e dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica sem que este seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que tem problematizado essas dinámicas da reprodução social e que propõem dinâmicas organizadas e colaborativas surgem como uma forma de resistência ao modelo atual?

As crises facilitam certa criatividade política e também a autogestão e reapropriação de funções. Acredito que a reprodução social é um território de experimentação em que os movimentos feministas tem tornado possível evidenciar as carências e por sua vez propor outros modelos de organização. Porque o que está em disputa agora é de que maneira, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse terreno, as lutas feministas estão colocando a pergunta do que significa transformar a vida cotidiana e a partir daí, todo o resto.

Você fala do patriarcado do salário. Como você o explica?

É um conceito de Silvia Federici, que postula que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada; nesse sentido, es trabalhadores que não recebem salário muitas vezes não conseguem reconhecer sua força de trabalho tampouco seu trabalho em si. Isso se aplica aos trabalhadores do campo, que não cobram salario, e também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Ao não receber um salario, ficam automaticamente subjugadas aqueles que sim cobram salario e instaura-se uma hierarquia de ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo disso é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres permanecem fixadas em situações de subordinação e abuso.

Em países latinoamericanos nos quais foram privatizados os direitos fundamentais que são necessários para viver… A dívida se transformou em uma obrigação?

Em países onde as coisas básicas têm que ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em emergências, é uma obrigação. A dívida é hoje aquela que organiza e possibilita a reprodução social, é o que permite uma invasão por parte do sistema financeiro na vida de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, é uma forma de amortecer a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente, mas ao invés de gerar raiva e pensar em como podemos exigir mais renda, o que fazemos é assumir responsabilidade de uma dívida e se sentir culpado. Para sair desse ciclo, nos endividamos porque, no final das contas, é isso que torna a precariedade mais “habitável”. Isso, em determinado momento, é insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente, o corpo se manifesta com dor e doença e depois explode socialmente. É por isso que existem surtos em nossos países.

No Chile explodiu. Inclusive se começou a falar em saúde mental e que esse modelo nos deixou todes mergulhades na depressão. Uma mudança estrutural era realmente desejada?

Acredito que sim. E a mudança acontece, o que acontece é que ela leva tempo e aos poucos se traduz em diferentes temporalidades e dimensões de transformação. Se pensarmos em termos processuais, fica difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, na verdade ele abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Mas não é necessário fechar um processo em relação a um resultado. Hoje temos que pensar que tipo de estratégias as organizações, movimentos, dinâmicas sociais e políticas estão tomando. E não se pode negar que há uma mudança importante nos tipos de discussões públicas sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais. Há também uma pergunta que permanece aberta e é “o que significa hoje enfrentar as formas de re-colonização de nosso continente?”. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento a respeito dessas questões. Não há pacificação na América Latina.

“O mundo neoliberal é decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida”. Entrevista com Sandro Chignola.

Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto. Entrevista originalmente publicada pelo IHU On-Line aqui.

Somos livres para termos as mais variadas opções e estilos de consumo. Essa é a liberdade de nosso tempo, que se molda a uma lógica de mercado, algo que clama pela reinvenção dessa liberdade. A reflexão é do filósofo italiano Sandro Chignola na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com o pesquisador, “e-mails, smartphones e computadores fazem com que a nossa vida inteira, mesmo fora do horário de trabalho, seja integralmente subsumida ao capital. Mesmo quando damos uma ‘curtida’ no Facebook no nosso tempo livre, quando fazemos o upload de um vídeo no YouTube, produzimos valor”. Some-se a isso a proliferação dos dispositivos de segurança, “impulsionados pelo cruzamento entre novas tecnologias e retóricas da segurança”. O resultado é nefasto: “O mundo neoliberal é um mundo decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida.”

Chignola acentua que precisamos “repensar as formas da participação; reimplantar projetos radicais de liberdade e de igualdade para todas e para todos, sem pensar que “profissionais da política” possam se encarregar deles. É preciso reinventar a cidadania para além do Estado”. E completa: “A flecha de Foucault, ao que me parece, está aqui, diante de nós, plantada no coração da atualidade. Trata-se de se encarregar de tomá-la e de montar o arco: de assumir o ônus — o peso e a responsabilidade — da coragem da verdade.”

Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Università Degli Studi di Padova, Itália. É autor, entre outras obras, de História de los conceptos y filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010). O artigo Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de sua autoria, foi publicado por Cadernos IHU ideias, no. 214, como também o artigo A vida, o trabalho, a linguagem. Biopolítica e biocapitalismo, Cadernos IHU ideias, no.228. É autor do livro “Foucault além de Foulcault: uma política da filosofia”, disponível aqui.

Ele proferiu a conferência A política dos saberes, no XVII Simpósio Internacional IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação, Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade, em 2015.

Em 27-09-2016 esteve no IHU apresentando a conferência Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros. A íntegra da conferência pode ser vista aqui.

Quais são os aspectos fundamentais que demonstram a atualidade da análise de Michel Foucault [1] acerca do poder pastoral e da governamentalidade?

Sandro Chignola – Eu acho que são diversos os elementos de atualidade da análise foucaultiana. Eles são de tipo fenomenológico e de tipo teórico. No plano fenomenológico — termo que entendo aqui de modo puramente descritivo — a proliferação do léxico da governance para indicar formas de produção da decisão política e do direito de tipo técnico, pós-soberano e, por assim dizer, administrativo; e, no plano teórico, os processos que ligam cada vez mais profundamente o “governo” — aqui eu o entendo em sentido amplo, isto é, em termos foucaultianos, como conduta de condutas à liberdade e à operacionalização de dispositivos que criem as condições para “ser livres de ser livres” — a uma forma determinada, um “tipo” particular de subjetividade.

Em outras palavras: por um lado, Foucault captou com forte antecipação, ao que me parece, os aspectos institucionais da revolução (ou melhor: da contrarrevolução) neoliberal que marca a nossa contemporaneidade (desconstitucionalização e desnacionalização do Estado, esvaziamento da democracia representativa, deslocamento do eixo temporal da legitimidade política do passado, ou seja, procedimentos por meio dos quais a vontade coletiva se forma para o futuro, isto é, para a promessa de eficiência da qual a decisão técnico-administrativa se faz intérprete); e, por outro lado, captou com precisão o modo pelo qual essa nova institucionalidade conseguiria se ligar e se engrenar com formas da subjetividade (o sujeito como consumidor ou como empreendedor de si mesmo), cuja produção devia ser “governada”, e não fixada, orientando a sua liberdade e adaptando-a ao mercado.

Quais seriam os principais paradoxos do cuidado e do governo dos outros em nossos dias?

Sandro Chignola – Aquele ao qual todos, com as suas nuances, podem ser remetidos me parece ser o seguinte: cuidado e governo se ligam a sujeitos como incitamento ao consumo e como uso da própria liberdade na construção de perfis concorrenciais e empresariais do eu. Foucault registra isso muito claramente no curso Naissance de la biopolitique: a razão neoliberal trabalha em uma condução de condutas que devem ser deixadas livres, mas que, justamente como livres, têm um único modelo de liberdade através do qual se reconhecem: o das escolhas de mercado e o do mercado das escolhas no qual acabam pagando os custos da concorrência e da própria produção da liberdade (você é livre dentre muitas opções, mas será integralmente responsável pelas escolhas que fizer…). Daí a desconstrução do Estado social, por exemplo: pague o seu seguro à escolha no mercado. Você é livre para não fazer isso, mas, se não o fizer (ou se, para economizar, escolher mal…), os custos da sua escolha serão pagos por você.

Os dois processos de que eu falava antes aqui se soldam. Por um lado, uma redução do peso do Estado e o “emagrecimento” das suas instituições (thining é como a ciência política o chama) em favor de dispositivos administrativos que trabalham com campanhas de responsabilização do sujeito, delegando diretamente a ele o “cuidado de si” (penso na previdência privada, nas políticas da educação, na saúde…); por outro lado, uma forma da subjetividade que se sente, justamente por isso, “livre” (livre para agir, para escolher, para capturar as ocasiões), mas daquela forma particular de liberdade que isola, põe em concorrência com os outros, se sustenta com a valorização de paixões tristes como o cinismo, o oportunismo, a autovalorização do próprio capital humano…

Em que medida a compreensão de liberdade de Foucault segue instigante aos sujeitos de nosso tempo?

Sandro Chignola – Mais do que a compreensão foucaultiana da liberdade — da liberdade neoliberal de que eu falo acima, ele traça uma genealogia precisa —, parece-me intrigante a aposta filosófica de tentar pensar (e praticar) de outro modo o campo da subjetividade e da subjetivação. Foucault fala da necessidade de “se déprendre de soi même”, ou seja, de se distanciar das formas de individuação ligadas aos dispositivos neoliberais de governo. Isso marca a necessidade da passagem pela Grécia realizada por Foucault nos últimos cursos no Collège de France: se há uma ideia que é intolerável para um grego, ele nos diz, essa ideia é a de que se possa ser governado por toda a vida. Que se possa governar a vida, eu acrescentaria. Esse é o campo de batalha que marca o nosso presente: por um lado, a liberdade, que Foucault lê a partir de uma ontologia particular da criatividade e da produção, por outro, os dispositivos que, impondo-lhe rédeas, governam-na. Não mais disciplinas e corpos a serem endireitados, mas condutas a serem conduzidas, liberdades a serem orientadas, dispositivos de marketing ou da comunicação…

O que podemos fazer de nós mesmos, uma vez que a nossa liberdade nos seja devolvida? Como podemos inventar, praticar, potencializar, “curar” — no sentido da grande saúde nietzschiana — a subjetividade que podemos ser, se nenhum dispositivo é capaz de projetar e controlar até o fim a nossa subjetividade? São essas as perguntas — teóricas e políticas — que Foucault nos deixou, passando-nos o bastão. Deleuze [2] lembra que a filosofia deve ser entendida em sentido nietzschiano como o retomar e o atirar de uma flecha que outros pensadores, outros filósofos lançaram antes de nós. A flecha de Foucault, ao que me parece, está aqui, diante de nós, plantada no coração da atualidade. Trata-se de se encarregar de tomá-la e de montar o arco: de assumir o ônus — o peso e a responsabilidade — da coragem da verdade.

Como podemos reinventar a liberdade e a nós próprios se estamos submetidos, queiramos ou não, a um modelo neoliberal que opera a partir de liberdades de fachada? Qual é o legado de Foucault a essa discussão que também perpassa a produção de subjetividades?

Sandro Chignola – Essa é uma pergunta difícil. Eu não sei bem o que responder, admitindo-se que, no caso das outras perguntas, eu o saiba e tenha conseguido fazê-lo. É claro, eu não consigo imaginar, como outros fazem, ao contrário, mecanismos simples de subtração. Ou seja, como se houvesse um “lugar” — físico e simbólico — em que possamos nos refugiar, porque estaríamos protegidos de, ou fora dos dispositivos de poder; ou como se houvesse um ponto de apoio para desaplicá-los. Penso que os processos de libertação não podem não ser coletivos e operados dentro do campo de circulação das normas e dos poderes. Porque, justamente, não existe um “fora” do poder. Foucault fala da necessidade de se separar das formas de individuação “governadas” pelo poder. Mas ele certamente não imagina a “déprise” como uma recuperação de autenticidade ou como uma linha de fuga que possa nos subtrair do “poder”.

Creio que se trata, com Foucault, de imaginar, experimentar e tentar praticar outras formas de vida; mas sabendo que, para fazer isso, no entanto, é preciso “governar” a produção das subjetividades e dar uma dimensão “institucional” para a liberdade, se a liberdade existe apenas com os outros. A questão da produção do “comum”, que está no centro das pesquisas e das práticas políticas que, com outros e outras, tentamos levar em frente, remete exatamente a esse quadro de problemas. A como se pode determinar uma decisão constituinte para a liberdade à altura dos desafios que nos são postos pelos regimes neoliberais de acumulação capitalista.

Quais são os limites e possibilidades para os direitos humanos que se descortinam face aos dispositivos de vigilância e controle da cidadania?

Sandro Chignola – Pessoalmente, não tenho nenhuma paixão pela expressão “direitos humanos”, assim como não gosto da expressão “direitos naturais”. Trata-se de expressões que dão por suposto que existe algo de humano ou de natural como existente por si só, subtraído do devir histórico e das batalhas, dos confrontos, das polêmicas, que esse mesmo devir manteve — e continua mantendo — em tensão. Não existe uma natureza humana: existem processos históricos que a definem como tal, e sobre essa definição, de vez em quando, os homens se opuseram, dividiram e combateram.

Mas é sobre a qualificação “direito” que, ao que me parece, surgem ainda mais problemas. Quando a expressão “direito” não está imediatamente ligada a poderes que a usam retoricamente para legitimar a própria intervenção — nos últimos tempos, a intervenção humanitária (a guerra, para chamá-la pelo seu verdadeiro nome) em favor dos “direitos” dos povos contra os seus ditadores (na Líbia, na Síria, por exemplo) combinou autênticos desastres; e foi Carl Schmitt [3] que assinalou, desde os anos 1920, como a guerra travada em nome da humanidade escancara as portas a operações internacionais de polícia tendencialmente infinitas, porque não reconhecem o inimigo como inimigo político e, portanto, a possibilidade de tréguas ou de negociações de paz… — ela remete necessariamente a uma lógica de reconhecimento que amplia os poderes de intervenção dos dispositivos capazes de fixar e de conceder, justamente, aqueles “direitos” que são reivindicados.

Não há possibilidade de fuga do controle, se o controle (no arco muito vasto que vai da invisibilização à censura, da compatibilização à inscrição das posições e dos claims que aceitamos escutar…) se torna a condição para o reconhecimento do “direito” de alguém. Em vez disso, eu acho que se trata, ao mesmo tempo, de desafiar essa lógica de reconhecimento, com a novilíngua liberal dos “direitos” sobre a qual ela se funda e de inventar, experimentar e praticar outras modalidades de subjetivação e de reivindicação para, e sobretudo com os pobres e os excluídos.

Nesse sentido, em que aspectos seria adequado falarmos acerca de uma liberdade vigiada?

Sandro Chignola – Certamente, os dispositivos de vigilância proliferam, impulsionados pelo cruzamento entre novas tecnologias e retóricas da segurança. Mas eu acredito que essa proliferação também depende do fato de que a liberdade (a liberdade de movimento, a liberdade de escolha, a liberdade sexual) está por toda a parte… Mais do que “vigiada”, a nossa liberdade é incentivada e, depois, “governada”; ou seja, dobrada, mas no sentido de “curvada”, dirigida, adaptada para os fins da valorização capitalista. A nossa liberdade é acomodada à racionalidade de mercado: uma liberdade entre mil opções e mil “estilos” de consumo. E é aqui, por isso, que devemos reinventá-la…

Quais são os principais impactos do deslocamento de perspectiva da responsabilidade do Estado para o indivíduo nos mais diferentes campos, sobretudo em relação ao trabalho e à política?

Sandro Chignola – Aqui, está em questão a forma de regulação neoliberal e a particular produção de subjetividade que a marca: Foucault foi um dos primeiros a captar o porte desse projeto. Se, por séculos, aquelas que Foucault chamava de “disciplinas” trabalharam na fabricação de corpos dóceis e úteis para recolocá-los dentro de uma temporalidade homogênea suavizada pelo princípio de utilidade, agora a desconstrução do Estado social, a privatização do Welfare, a adaptação entre liberdade e consumo liberam um sujeito empreendedor de si mesmo, puro “capital humano”, que é o próprio sujeito (mas aqui a referência ao “dever” é ambíguo, já que nada nem ninguém, na realidade, obriga-o…) que deve valorizar. Trabalha-se como livres empreendedores do próprio destino, ciborgues hiperconectados pós-humanos, fora de qualquer medida fixada pelo salário. E-mails, smartphones e computadores fazem com que a nossa vida inteira, mesmo fora do horário de trabalho, seja integralmente subsumida ao capital. Mesmo quando damos uma “curtida” no Facebook no nosso tempo livre, quando fazemos o upload de um vídeo no YouTube, produzimos valor. Os nossos dados são empacotados e vendidos a quem perfila as nossas preferências para fins publicitários, enquanto as ações do Facebook ou do YouTube incrementam o próprio valor. Sermos “deixados livres de ser livres”, assim como os dispositivos de biopoder preveem, significa, no fundo, sermos lançados dentro de trajetórias pelas quais somos considerados integralmente responsáveis. Até mesmo pelo nosso eventual fracasso. E é aqui que a razão neoliberal mostra o seu lado mais feroz: se você é pobre, na realidade, é só culpa sua…

Em outra entrevista à IHU On-Line o senhor mencionou que os presos em nossa sociedade são compreendidos como “lixo tóxico” que deve ser mantido afastado da “cidade empresa”. Tendo isso em vista, em que sentido o neoliberalismo estende sua atuação inclusive nas instituições criadas para segregar os indesejáveis?

Sandro Chignola – Na lógica da valorização do capital humano, o fracasso não pode ser imputado a outros senão a si mesmos. Ser pobre, velho ou doente — mas também simplesmente um estudante preguiçoso, um sujeito “fraco” na competição de todos contra todos — envolve ser deixado de lado. Não há nada a ser recuperado ou reinvestido em relação a fracassos que devem ser imputados apenas à “má vontade” dos sujeitos. E, justamente por isso, as instituições que os tratam podem ser desresponsabilizadas quanto à sua recuperação e, em vez disso, podem ser tratadas como oportunidades de lucro. “Privatizam-se” as prisões, que são geridas tentando maximizar o lucro, poupando custos — em alimentos, em projetos educacionais, em despesas gerais — que são descarregados sobre uma humanidade ainda que “perdida” e aproveitando todas as oportunidades de ganho. Mas também na saúde ou em outras instituições funciona assim, no fundo: eu demito o público — cuja razão de ser se distinguia na responsabilidade social do Estado — e faço negócios privatizando e ampliando a oferta de projetos e de opções diferentes presentes no mercado. Se você não chega a pagar pelo serviço, pior para você; se você pode pagar pouco, pouco terá. Mas, se você é capaz de fazer isso da melhor forma, terá o melhor e a gratificação simbólica que daí deriva. O mundo neoliberal é um mundo decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida.

Desde a última entrevista que concedeu à IHU On-Line, em setembro de 2015, qual é a situação de sua pesquisa sobre “pensar além do Estado”? E o que já descobriu no trabalho que está empreendendo sobre “pensar o sujeito e pensar o comum”?

Sandro Chignola – As duas coisas estão conectadas, obviamente. Eu acredito, e não sou o único a pensar assim, já que trabalho em projetos de pesquisa comuns com amigos, companheiros e colegas, que se trata de ir além da própria ideia de “público”. Esta, pela sua genealogia, separa um “objeto público” (sabe-se lá: a universidade, a saúde, outros tipos de bens…), fazendo com que ele não seja privadamente apropriável; isto é, para que não seja propriedade de ninguém. A nós, ao contrário, interessa o comum como aquilo que não pode ser de ninguém, porque é, e continua sendo, de todos. E são as condições materiais de produção que marcam o presente (a rede, as formas de cooperação em que singularidade e esforço coletivo se potencializam uns com os outros, sem que um possa se determinar sem o outro, o trabalho que é feito como sharing, peer to peer, mas também a preservação dos bens comuns da especulação) que produzem a situação que nos leva naquela direção, não uma simples dedução teórica. Trata-se de ir além do Estado e além da sua simples função de tutela pública da propriedade privada. Nisso está implícita a necessidade de pensar a regulação e as instituições além da forma-de-lei. Estou tentando fazer isso.

Para Foucault, as grandes organizações não soberanas é que governam o mundo. Como esse “império” da impessoalidade e da administração coloca em xeque a democracia na contemporaneidade política?

Sandro Chignola – Também nesse caso, ele nos obriga a pensar para além do Estado e a reinventar a democracia. A produção das decisões vinculantes agora é demandada em grande parte a órgãos técnicos e pós-representativos. Mas não podemos, para combatê-los, creio eu, simplesmente reevocar as formas clássicas da democracia representativa. O conceito de “representatividade” implica uma autorização e uma delegação: vota-se em um representante habilitando-o a fazer por nós aquilo que nós não faremos em primeira pessoa. Aqui está o problema. É preciso repensar as formas da participação; reimplantar projetos radicais de liberdade e de igualdade para todas e para todos, sem pensar que “profissionais da política” possam se encarregar deles. É preciso reinventar a cidadania para além do Estado.

A partir da importância da filosofia de Foucault para Agamben [4], qual é a contribuição deste último pensador para repensar a política, em geral, e a democracia, em específico? Em que medida sua filosofia inspira o surgimento de novas formas-de-vida?

Sandro Chignola – Agamben pensa nesse mesmo horizonte, sem dúvida. Mas ele faz isso com aquele que, a meu ver, é um pressuposto extremamente fraco: uma concepção absolutamente vitimária do sujeito e uma noção muito forte de dominação. Omito aqui os detalhes. Ele também tem o problema da fuga do dispositivo de soberania, mas pensar tal fuga como “desaplicação” do direito e como “inoperosidade” da lei e o comum como “uso” (questão absolutamente importante, aliás), sem definir primeiro uma ontologia do comum, parece-me politicamente pouco produtivo. É claro, o tema das “novas formas-de-vida” é decisivo.

Ainda tomando em consideração a obra de Agamben, como avalia a pertinência de suas reflexões acerca do homo sacer e do campo para pensarmos na política de imigração em países como os EUA e a questão dos refugiados na Europa?

Sandro Chignola – Pois bem, o exemplo me parece apropriado para esclarecer o ponto crítico da resposta precedente. Por acaso, a vida do migrante clandestino pode ser entendida como “vida nua” bloqueada no banimento de soberania? Penso que não. Não só a vida dos migrantes está integralmente saturada pelo direito (management das migrações e expertises que o atravessam, fórmulas de acolhimento ou de repulsão, dispositivos de filtragem da mobilidade de tipo técnico-administrativo e sanitário, controle dos fluxos, construção e profiling dos tipos: o clandestino, o refugiado [de guerra ou “econômico”], o refugiado, com todas as implicações jurídicas que essas figuras deixam como resíduo, por exemplo), em vez de despojada dele, mas também o migrante, longe de ser apenas uma “vítima”, é muitas vezes levado por um desejo subjetivo de fuga e de liberdade, que ele reivindica com a sua vida como um “direito”. Isso me parece decisivo para compreender aqueles que me parecem ser os limites objetivos da posição de Agamben. Não se trata de “estados de exceção”, mas da cotidianidade da batalha entre a liberdade e os dispositivos que a afrontam; não se trata de “vida nua” nas malhas da dominação, mas de trajetórias de liberdade e da sua captura, de práticas de subjetivação e dispositivos de assujeitamento…

Quais são os principais desafios da Filosofia e da Universidade em nossos dias para um pensar que ultrapasse os limites do poder pastoral e da governamentalidade?

Sandro Chignola – Penso que a principal diz respeito ao modo como vivemos a responsabilidade intelectual do nosso trabalho. Podem nos impor poderosos processos de reestruturação da universidade e dos saberes, mas isso nunca vai tocar o sentido do nosso trabalho, se, para nós, o nosso trabalho tiver um e se estivermos dispostos a nos encarregar disso a sério. Do meu ponto de vista, isso significa fundamentalmente duas coisas: por um lado, forçar as liturgias e as routines do trabalho na universidade e, em particular, aquelas que nos levam a assumir aproblematicamente os campos de pesquisa e de didática; por outro, viver de forma diferente o papel do professor.

Eu me faço a pergunta sobre o que é justo ensinar hoje; sobre quais são os implícitos de determinadas escolhas que fazemos ou não fazemos (mesmo sem nos darmos conta, às vezes) quando propomos um programa para um curso ou um determinado trabalho de tese. Nós determinamos aquilo que a filosofia política é de maneira consciente ou inconsciente, também dentro dessa microfísica das escolhas, dentro da cotidianidade em que transmitimos ou modificamos a autoridade de um cânone ou a normatividade de um arquivo. Esse nível mínimo daquela que eu chamo de uma “política da filosofia” me parece ser bastante importante para repensar a universidade; especialmente se lembrarmos, para depois “ativar” concretamente essa memória, que uma universidade não é feita de indivíduos solitários, não é dominada por paixões tristes, mas de práticas e de projetos comuns, da alegria das relações e dos intercâmbios, de trajetórias conjugativas da liberdade. Cumprir bem o próprio Beruf, como Max Weber [5] o chamava, já me parece ser uma laica via de salvação: mas só pode sê-lo tendo bem em mente que é apenas com as outras e com os outros que ela pode ser aberta.

Notas: 

[1] Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004; edição 203, de 06-11-2006; edição 364, de 06-06-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)

[2] Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e singularidades. (Nota da IHU On-Line)

[3] Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional da Alemanha do século XX. A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o regime nacional-socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na teologia católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)

[4] Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moderna, o Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault e Agamben. Implicações Ético Políticas do Cristianismo. De 16-03-2016 a 22-06-2016 Ruiz ministrou a disciplina de Pós-Graduação em Filosofia e também validada como curso de extensão através do IHU intitulada Implicações ético-políticas do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Agamben. Governamentalidade, economia política, messianismo e democracia de massas, que resultou na publicação da edição 241ª dos Cadernos IHU ideias, intitulado O poder pastoral, as artes de governo e o estado moderno. Para 23 e 24-05-2017 o IHU realizará o VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, com base sobretudo na obra O reino e a glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo (São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução de: Il regno e la gloria. Per una genealogia teológica dell’ecconomia e del governo. Publicado originalmente por Neri Pozza, 2007). (Nota da IHU On-Line)

[5] Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

Assista à conferência Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros:

O livro “Foucault além de Foulcault: uma política da filosofia” de Sandro Chignola está disponível aqui.

A Covid-19 e a frenagem do desejo de fascismo no Brasil

por Claudia Maria Perrone e Rose Gurski.

“Eu estou aqui, porque acredito em vocês. Vocês estão aqui, porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil”.

Essas palavras foram pronunciadas por Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, em meio a um ato público pelo fim do isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um modo de conter os impactos nocivos da pandemia da Covid-19. Para os especialistas brasileiros o momento é de preocupação, já que o país caminha justamente para o pico da curva de transmissão com uma taxa de 400 mortes em 24 horas – isso sem que a doença tenha atingido maciçamente as populações em situação de vulnerabilidade social. O evento no qual o líder da nação discursou aconteceu no dia 19 de abril e reuniu uma pequena multidão que pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e o exército nas ruas.

Afinado com o  grupo de apoiadores que o recebeu com gritos de “mito”, o líder da extrema direita brasileira seguiu fazendo uso de bordões nacionalistas, entoando expressões que nos remetem aos líderes fascistas e nazistas da Europa na década de 1930: “Temos um novo Brasil pela frente. Patriotas têm que acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no destaque que ele merece. E acabar com essa patifaria. É o povo no poder”. Para estudiosos brasileiros do campo social e político não há surpresa nesta manifestação, foram falas populistas como essas, carregadas de ódio, autoritarismo e de ameaça aos laços democráticos que levaram o capitão à presidência da República. Já na eleição de 2018, os analistas se perguntavam o que fez com que 55% da população brasileira elegesse como presidente um político cuja trajetória pública, ao longo de 30 anos no Congresso Nacional, foi pautada por morte e não por vida. Suas lutas não foram ao encontro de temas como educação, saúde e ação social, mas, sim na defesa da violência, sobretudo a letal e especialmente contra as minorias. Suas propostas como homem público o levaram a disseminar, em seus discursos e ações, a perigosa combinação de violência e delinquência intelectual, banalizando a barbárie nos laços sociais através de um claro incentivo ao gozo com a tortura e o apagamento do outro. Estariam os brasileiros anunciando simbolicamente o desejo por lideranças maníacas por morte? De que, afinal, se constitui o atual desejo pelo fascismo?

O texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, escrito em 1921, foi primoroso na dose de antecipação do que estava por vir na Europa na década de 1930. Nele, Freudpropôs uma matriz de análise para os governos totalitários a partir do horizonte histórico da Primeira Guerra Mundial. Freud mostrou, em seu estudo, que o funcionamento das massas tentava suprimir a esfera política e, portanto, plural da vida a fim de instalar a dimensão da totalidade – traduzido em termos lacanianos, diríamos que o líder totalitário busca fazer “Um do Outro”, ou seja, produzir o apagamento da diferença e da pluralidade de sentidos na construção de posições e ideias. Seguindo ainda na esteira das construções freudianas, evocamos a noção de que o líder tem uma função central na arquitetura da psicologia das massas em sistemas totalitários, representando o ideal do eu; o líder enlaça sua figura aos membros do grupo e estabelece a premissa de que a identidade da massa se forja na operação de exclusão, questão que implica, obviamente, a segregação e os discursos de ódio a todo aquele que não se perfila à massa e/ou ao seu ideário.

A professora de teoria política da Universidade de Bogaçizi, Zeynep Gambetti, propôs a ideia de que estamos diante de novos fascismos evidenciados através do empobrecimento da linguagem, da erosão de valores progressistas, assim como do fortalecimento de práticas racistas, sexistas, xenófobas e incitadoras do ódio e da violência, afrouxando naturalmente os vínculos de solidariedade e compartilhamento entre os sujeitos. Gambetti agrega a esse cenário atual, do qual o Brasil não é o único signatário, o impacto da financeirização do mundo pela via de práticas neoliberais selvagens, o que não se reduz somente aos efeitos econômicos, mas que também aparece no individualismo de sujeitos que mercantilizam diferentes âmbitos da vida social, como laços e emoções.

Nesta direção, Walter Benjamin dizia que a teoria do fascismo deveria ser examinada não como uma regressão inexplicável do mundo pós-iluminista, tampouco como um eventual parêntese na história da humanidade, mas enquanto fenômeno que surge na história social de um mundo baseado na aceleração constante em direção a um progresso linear. Benjamin entendeu a modernidade do fascismo, bem como sua relação íntima com o futuro, através da associação da barbárie política com a idealização ilusória do progresso científico, industrial e tecnológico. Em sua visão, a futurização do desenvolvimento nas sociedades, cada vez mais financeirizadas, fazia do fascismo uma questão não apenas do passado, mas uma preocupação para o futuro.

Em artigo recente, no qual analisa os efeitos da pandemia no Brasil, Vladimir Safatle recolhe a expressão estado suicidário, utilizada por Paul Virílio, a fim de nomear um modo de funcionamento do estado brasileiro que, impregnado pelas premissas neoliberais, estaria não só operando a gestão das mortes e desaparecimentos dos corpos através da necropolítica, mas gestando, também, sua própria catástrofe com novas formas de violência de Estado. No caso do Brasil, o filósofo sugere que o Estado pode ser o próprio fiador da catástrofe, na medida em que repete compulsivamente a histórica desigualdade social e o genocídio de partes da população no cenário da Covid-19.

É justamente nesta direção que gostaríamos de analisar a situação ímpar de negacionismos relativos aos fatos vividos no Brasil de 2020 em meio à propagação da Covid-19. Em que medida o vírus, em nosso país, poderia estar funcionando como um desestabilizador da aceleração na direção de uma autodestruição? Poderiam os efeitos sociais e políticos que advêm das reações do presidente ao vírus produzir uma espécie de freio de emergência na direção do estado suicidário?

O Brasil de Bolsonaro é o único país, entre os 190 do planeta, a registrar carreatas frequentes que negam a potencialidade mortífera da doença e protestam contra o isolamento social como medida de emergência provocada em resposta à pandemia. Além do enfrentamento frontal das recomendações da OMS passeando pelas ruas de Brasília, cumprimentando os eleitores e promovendo manifestações públicas, o presidente reduz a pandemia a “uma gripizinha” e diz que “ficar em casa é covardia” já que “todos vão morrer um dia”.

No avanço das narrativas do absurdo, o domingo 19 de abril de 2020 foi o ápice de um tom maior da destruição gerada a partir da dicotomia artificiosa entre saúde versuseconomia. Com a participação no evento, Bolsonaro mostrou total indiferença com a saúde da população e suas condições sanitárias, especialmente considerando o número de pessoas que vive abaixo da linha de pobreza no país. A presença de Bolsonaro incitou seus eleitores a uma manifestação contra o estado democrático na qual a multidão pedia o fechamento das instituições e a intervenção militar.

É importante sublinhar que temos pensado que a Covid-19 pode estar funcionando como um movimento na direção de uma certa parada reflexiva sobre o atual cenário político do país. Isso porque, depois de mais de um ano de “desgoverno” bolsonarista no Brasil, no qual argumentos progressistas sustentados em ideários humanitários e sociais não fizeram nenhuma função de frenagem na destruição gradual dos processos democráticos, vemos um movimento acontecer a partir dos líderes das principais instituições democráticas nacionais.

Retomando o tema dos novos fascismos, também importa perceber que a onda de neoconservadorismo articulada com o revisionismo histórico e o negacionismo trazidos pela chegada de Bolsonaro ao poder constitui um dos elementos das novas formas de fascismo descritas por Zeynep Gambetti. A negação, que antes atingia o tema das mudanças climáticas e da ditadura no Brasil, atualmente atinge os pressupostos científicos relativos à pandemia, questão que nos parece ter impactado negativamente a popularidade do “mito”, especialmente se consideramos que as negações atuais resultam  em mortes imediatas e não em efeitos cujas repercussões só se darão nas gerações vindouras.

Através da pergunta sobre o desejo de fascismo, seguimos a ideia freudiana do líder forjado no lugar de ideal e, finalmente, chegamos no tema do gozo em Lacan. O psicanalista, em seu Seminário 17, fala do gozo como empuxo na direção da totalidade, aquilo que busca fazer “Um do Outro” e que, portanto, não cria laço, atacando o cimento social e constituindo-se, conforme dizia o psicanalista francês, em antilaço. Nesse diapasão, temos pensado que o fascínio pelos traços de novos fascismos em líderes como Bolsonaro pode estar relacionado ao gozo com a destruição do outro. O estilo rude, a linguagem empobrecida e o comportamento anticivilizatório parecem autorizar a humilhação, a morte e a destruição do próximo, ficando o sujeito desobrigado de qualquer recato social, como se o nó libidinal sujeito-cultura se desarticulasse, conforme postulou Freud em Mal-estar na cultura.

Ora, toda essa dinâmica de garantia de condições civilizatórias somente para alguns e não para todos não é propriamente uma novidade no tecido social do Brasil. Segundo Safatle, o Estado brasileiro nunca precisou de uma guerra porque sempre tivemos uma espécie de guerra civil instalada e não declarada. Mesmo acostumados à retórica do sacrifício de alguns pelo bem de outros, parece que, com a Covid-19, temos assistido à ausência de índices homicidários, restando a roleta russa de um morticínio em massa, na qual fica como questão “a história de corpos invisíveis e do capital sem limites”.

Em meio ao caos da Covid-19 no Brasil, vemos uma certa erosão na tentativa totalitária da extrema direita brasileira. Neste cenário, não podemos deixar de sonhar, especialmente porque não sabemos o que será possível no futuro. Por ora, devemos festejar a frenagem na aceleração em direção a um estado totalitário a partir do fato de que o vírus tirou a roupa do Rei, portanto, o Rei já está nu!

Cláudia Perrone e Rose Gurski são psicanalistas e professoras do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O texto foi originalmente publicado na Revista Cult.


“Arriscar fazer de Michel Foucault um “monumento”, fazer falá-lo como um “autor”, sem incoerências, contradições e desvios, seria traí-lo.”

por Augusto Jobim do Amaral.

Imagem: reprodução.

O leitor da língua portuguesa, finalmente, acaba podendo acessar uma obra rara [Foucault além de Foucault: uma política da filosofia] – não apenas por seu formato artístico, como livro-experiência -, mas pela erudição, rigor e precisão que Sandro Chignola conduz o assunto. Sobretudo, pela tomada de postura do autor, ao gosto daqueles que valorizam o esforço foucaultiano, Sandro não o monumentaliza. Arriscar fazer de Michel Foucault um “monumento”, fazer falá-lo como um “autor”, sem incoerências, contradições e desvios, seria traí-lo. Usar e ativá-lo de modos múltiplos é, de fato, também, ao gosto foucaultiano, perceber a filosofia como lugar de intervenção permanente, contestando seu próprio estatuto e, assim, também, permitir fazer política – “política da filosofia”, portanto.

Em hora melhor não poderia aterrizar, no Brasil, de modo bem apanhado, os estudos de Sandro sobre Foucault. A pena de um dos maiores experts no autor francês torna possível a inadiável obrigação de liberar Foucault da docilização que, não raro, acomete seus comentadores praticamente em todas as áreas. Contra o adestramento – quando não torsão pouco honesta na direção de ideários que jamais passariam pelo engajamento foucaultiano – que, em alguma medida, dispõe Foucault preocupado centralmente com o poder (juridificado, por suposto) e não com a produção de subjetividades como, rigorosamente, era; quando não reduzido à disciplina ou, pior ainda, através da ordenada periodização do seu recurso filosófico, que acaba hoje em dia, com força talvez hegemônica, fazendo com que Foucault seja encampado e reduzido por tanatofilosofias soberanistas e estatalizantes – Sandro, lembra, com o eco do professor de todos nós, Toni Negri, que la vita sfugge senza posa.

Augusto Jobim do Amaral é professor da PUCRS [PPGCCrim e PPGFil], é coordenador do Grupo de Pesquisa “Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica” (@politicrim) e coordenou a tradução e a revisão técnica do livro “Foucault além de Foucault: uma política da filosofia”, do professor Sandro Chignola. O livro foi traduzido diretamente do italiano.

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