set 25, 2023 | blog
Diante da convocação a refletir sobre o que seria uma clínica da multidão de minorias, parece-me inevitável começar interrogando os termos que compõem tal convocação, pois só entendendo um pouco mais a necessidade da referência à multidão e às minorias, veremos com clareza alguns dos desafios colocados atualmente à nossa clínica. de modo que possamos não apenas interrogar as formas e sentidos das nossas práticas, mas, sobretudo, imaginar outras modalidades possíveis para a escuta das experiências subjetivas contemporâneas em sua singularidade.
Para o termo multidão, recorrerei aqui brevemente Paul B. Preciado, em um texto relativamente conhecido, Multidões queer (Preciado, 2011). O que temos ali é a afirmação do potencial transgressivo de uma anormalidade múltipla que se recusa ao enquadramento, seja normativo ou mesmo identitário. Afirmar a multidão em sua diversidade implica afirmar um comum possível, ao mesmo tempo em que se recusa tanto a unificação referida à adequação a uma norma ou ideal quanto a distribuição em territórios identitários, definidos por uma essência qualquer atribuída aos que os habitam, ainda que seja esta puramente estratégica, e regulados por fronteiras tanto físicas quanto simbólicas ou mesmo puramente imaginárias.
Quanto ao segundo significante, creio haver pelo menos duas maneiras de dar sentido ao que nos referimos como minorias: em primeiro lugar, minorias numéricas, as quais carecem, em função disso, de representação na esfera pública, regulada na maioria das vezes por regras de proporcionalidade; em segundo lugar, grupos e indivíduos menorizados, ou seja, cuja falta de representação política deriva não de um déficit numérico, mas de um déficit de reconhecimento social. É sobretudo neste segundo sentido que a dita questão das minorias aparece como elemento central da política contemporânea, tal como propõe Axel Honneth (2009) em sua descrição de uma luta por reconhecimento, no centro da qual, destaca-se mais uma vez a questão das identidades, que aparecem como elemento fundamental do cálculo político contemporâneo, muitas vezes colocando em segundo plano a questão da injustiça econômica e aquilo que Nancy Fraser (2006) nomeia luta por redistribuição.
Com isso, chegamos finalmente ao primeiro termo da sentença que delimita o problema e o sentido deste ensaio, pois será preciso refletir, ainda que brevemente, sobre o que entendemos por clínica. Com o sintagma multidão de minorias, colocamos em questão, de forma condensada, uma série de problemas políticos que marcam nossa atualidade, com ampla ressonância sobre os processos de subjetivação e modalidades de laço social, mas situamos, ao mesmo tempo, em nosso horizonte ético-político, uma série de valores, ideais e mesmo posicionamentos estratégicos que podem, ou, mesmo, deveriam orientar a nossa prática clínica. Falta agora demarcar os sentidos possíveis para tal clínica e é nesta direção que nos encaminhamos a partir daqui.
Como ponto de partida, acredito ser necessário ressaltar que com os dois termos iniciais – multidão e minorias – procuramos nos referir não apenas a conjuntos difusos e mal definidos de existências, mas, talvez de maneira mais específica, a grupos e indivíduos postos em uma posição subalterna, sendo, assim, silenciados. Desse modo, a primeira questão que, para mim, se coloca quando pensamos em uma clínica da multidão de minorias é muito simplesmente como escutar aqueles que não podem falar (Spivak, 2018).
Afinal, não é função própria do trabalho analítico fazer falar o que não pode ser dito? Fazer falar aquele que, não podendo verbalizar seu desejo, acaba por enunciá-lo por meio de sintomas e outras formações do inconsciente, produzidas na tensão entre o desejo que se quer em movimento e o recalque que barra as representações que lhe possibilitariam mover-se?
As condições de tal “fazer falar”, aparecem, ao menos para Freud, sempre articuladas à colocação em jogo daquilo que definiu como regra fundamental da análise – a associação livre do paciente – e sua contrapartida, por parte do analista: a atenção flutuante (Freud, 2010/1912). De modo que a postura do analista será fundamental para que a associação do paciente e o drible da censura efetivamente ocorram, abrindo espaço para a irrupção do inconsciente e para a manifestação dessa tensão entre desejo e recalque que marca o conflito psíquico.
Tal postura, nós a procuramos entender como a criação necessária de condições de escuta e assim será sempre a partir do estabelecimento dessas condições que aquele e aquilo que são silenciados, poderão dizer e ser dito. Fechando este pequeno círculo inicial, proponho, então, que o estabelecimento de uma clínica da multidão de minorias se faz a partir da criação das condições de escuta daqueles que, postos em posição subalterna, tem sido, historicamente, silenciados.
Procuraremos encaminhar tal formulação, obviamente de maneira preliminar e respeitando os limites deste ensaio, delineando um campo de problemas e inquietações – teóricas, clínicas e políticas – que nos permita vislumbrar os alcances do que seria uma clínica das multidões de minorias e suas condições de possibilidade, mas também os limites dos modos atualmente correntes, ou hegemônicos, de fazer psicanálise. Farei isso por meio da referência a um grupo social marcado pelos dois sentidos que atribuímos inicialmente ao significante minoria: pessoas que vivem dissidências em relação à norma binária de gênero, experiências transidentitárias e que, já há algum tempo, vêm chamando a nossa atenção para os efeitos políticos de práticas e teorias referidas à psicanálise e interrogando, a partir daí, as condições da nossa escuta e os limites das nossas interpretações e elaborações teóricas.
As dissidências de gênero e a psicanálise
O encontro, ou confronto, com as dissidências de gênero – e com os movimentos políticos, sociais e teóricos que as acompanham, marcam hoje não apenas a reflexão clínico-teórica no campo psicanalítico, tanto no cenário francês, quanto anglo-saxão e latino-americano, mas a própria presença dos psicanalistas na cena pública em diferentes partes do globo, inclusive no Brasil.
Os debates em andamento, para além de muitas acusações mútuas, toca em pontos importantes que dizem respeito a uma série de temas que se revelam centrais a qualquer debate sobre a atualidade da psicanálise e sua potência para lidar com os processos contemporâneos de subjetivação e com as formas de sofrimento daí resultantes.
De modo que mesmo um rápido e brevíssimo inventário desses temas nos levaria a encarar questões bastante complexas e, hoje, decisivas, como: o vínculo da psicanálise com os dispositivos médico e jurídico de normalização dos corpos; o estatuto da teoria psicanalítica entre a consideração da experiência singular da clínica e o caráter pretensamente universal – ou, ao menos, generalizante – de suas formulações teóricas; o papel da diferença sexual nos processos de estruturação subjetiva e na sustentação da ordem simbólica que regula o laço social e sua limitação ou não a um modelo estritamente binário que, eventualmente, se desdobraria necessariamente em uma divisão e distribuição de gêneros e papeis sociais; o caráter normativo ou não da teoria e da clínica psicanalítica, em função, especialmente, de suas formulações em torno do Complexo de Édipo; a função e o estatuto da classificação psicodiagnóstica na clínica psicanalítica e nossa relação atual com categorias que foram, em sua maioria, herdadas da medicina do século dezenove; o lugar ocupado pelas questões identitárias no discurso – e demandas – de nossas e nossos pacientes; a posição social concreta dos psicanalistas em nossa sociedade, posição muitas vezes de poder, e nossa inserção em um prática fundamentalmente neoliberal, que dá muitas vezes testemunho de nossa sujeição ao racismo e machismo estruturais e estruturantes do nosso funcionamento social, em particular num Brasil tão fortemente marcado pela herança escravista e pela desigualdade, marginalização, ou simples banimento social, de tantas pessoas.
Dentre todos estes desafios clínicos e teóricos, considerando os limites deste ensaio, procurarei desenvolver minimamente a questão referente ao lugar e estatuto da classificação psicodiagnóstica, apontando, a partir daí, caminhos e desdobramentos possíveis para nossa interrogação inicial sobre as condições necessárias a uma escuta que permita com que as multidões e as minorias falem. É também em torno da psicopatologia e da discussão etiológica na clínica psicanalítica e sua relação com os objetivos do tratamento que nos aproximaremos da reflexão sobre o alcance e limites do que podemos descrever como uma antropogênese de matriz psicanalítica, ou seja, a demarcação das fronteiras do humano e sua vinculação a modos particulares de estruturação psíquica.
Sobre essa base, procurarei seduzi-los com a ideia de que uma clínica da multidão das minorias será aquela pensada, não como espaço de enfrentamento de uma disfunção dos processos de desenvolvimento psíquico ou de correção dos rumos e circunstâncias pelas quais nos tornamos humanos, mas como campo de experimentação ética onde novas formas de existência, singulares e contingentes, sejam produzidas e/ou legitimadas.
Para tanto, retomarei rapidamente alguns aspectos históricos da recepção das experiências dissidentes em relação à norma que regula as identidades de gênero2. História que, de alguma forma, nos dá pistas importantes de como se deu o gradativo silenciamento dessas experiências e de como refletir sobre as condições – ou, inversamente, os impedimentos – para que possamos escutar as pessoas que as vivem, e, portanto, do que será preciso fazer para que possamos escutá-las e, ao fazê-lo, nos interrogar sobre os objetivos da clínica, seus modos de operação e sua eventual possibilidade de fazer surgir a potência subjetiva e política das multidões e das minorias.
Em relação a este percurso histórico, um deslocamento fundamental quanto ao que podemos entender como dissidência de gênero se dá entre meados do século XX e a atual terceira década do século XXI. No primeiro polo dessa transição teríamos experiências estreitamente associadas à ideia de mudança de sexo e articuladas ao desenvolvimento gradativo das técnicas cirúrgicas que permitiriam a redefinição dos genitais e a construção médica de uma suposta identidade entre o sentimento de pertencer a um determinado gênero e a configuração anatômica dos órgãos sexuais. Experiências agrupadas na categoria de transexualidade e das quais o tipo-ideal é representado pela figura do dito transexual verdadeiro, descrito por Robert Stoller (1982), ainda na década de 1960, o qual, não podemos ignorar, será a matriz clínica de referência para grande parte do pensamento psicanalítico em torno da dita questão transexual. Renato Mezan (1988) propõe um modelo de história da psicanálise no qual as suas diferentes elaborações teóricas e práticas clínicas seriam derivadas – seguindo a mesma lógica da sobredeterminação presente no trabalho dos sonhos na qual múltiplas causas se articulam de concomitante – de três fontes: a matriz clínica, o ambiente cultural e uma leitura particular da obra freudiana. A noção de matriz clínica, se refere não apenas a uma suposta semiologia ou quadro sintomático, mas, sobretudo, ao discurso dos pacientes, suas queixas demandas e os conflitos que serão postos em jogo na situação transferencial que caracteriza o trabalho analítico.
No polo contemporâneo, o que temos, com a multiplicação das possibilidades de transgressão das normas que regulam da anatomia aos papéis sociais distribuídos entre as figuras do homem e da mulher, representada sobretudo pela multiplicação de expressões identitárias que não se reconhecem nem no campo do feminino nem do masculino, é a recusa da própria divisão binária dos gêneros e de sua necessária ancoragem em dois sexos, materializados pela oposição anatômica dos genitais: presente em não-bináries, pans, travestis, dentre outras nomeações que compõem hoje a sigla LGBTTQIAP+, sempre em expansão.
Tal recusa traz ainda consigo a implosão da própria ideia de conformidade sexual, aquela que seria eventualmente realizada pela cirurgia de transgenitalização e certamente vai muito além do imaginário social construído em torno da ideia de mudança de sexo, pois já não se trata, ao menos majoritariamente, de mudar de sexo, mas de habitar entre os sexos ou fora deles.
Esse deslocamento e o surgimento de novas matrizes clínicas, novas queixas e demandas, geralmente estruturadas em torno da questão do reconhecimento subjetivo e social não parecem ter sido acompanhados ou sequer percebidos pela grande maioria dos psicanalistas, de modo que a referência maior às suas interpretações das dissidências de gênero continuam referidas ao quadro clínico descrito por Stoller (1982) e explorado por Lacan em associação com a psicose e o mecanismo da foraclusão (Guerovici, 2019). Assim, as explicações psicanalíticas do que hoje recebe, na classificação internacional de doenças da OMS, o nome de incongruência de gênero, não apenas guardaram para si a categoria de transexual, de origem médico-psiquiátrica, mas privilegiaram a associação entre transexualidade e psicose.
Como resume Simone Perelson:
“No contexto da psicanálise lacaniana, o transexualismo é majoritariamente considerado uma psicose. Como sabemos, Lacan, ao comentar o caso Schreber (1958), sustenta que seu delírio de se transformar em mulher seria decorrente da foraclusão do Nome-do- Pai. Schreber, desprovido do significante fálico se vê impossibilitado de se situar na partilha dos sexos como um homem ou uma mulher e, identificando-se imaginariamente ao falo da mãe, é conduzido pelo que Lacan definirá posteriormente (1972) como o empuxo à Mulher, o qual se define justamente em oposição à identificação a uma mulher: trata- se aqui do delírio de se tornar A Mulher, a mulher enquanto essência do feminino, a mulher enquanto totalidade, enfim a Mulher que, sustenta Lacan, não existe. (Perelson, 2011, p. 12).“
As tentativas de enquadramento das experiências transidentitárias não se resumiram, no entanto, à referência à psicose – ou, em sua vizinhança, ao narcisismo e estados limites, como propõe Collete-Chiland (2005). Face ao fato inegável da multiplicação de pessoas que se declaram trans e da impossibilidade de situá-las todas no registro da foraclusão do nome- do-pai, outras hipóteses foram levantadas.
Assim, ao lado da referência à psicose surge com frequência a categoria de perversão, a qual não é sem interesse para este debate, em função da maneira como coloca em primeiro plano a questão moral e, mais do que isso, nos remete ao tema delicado da própria definição do humano e de suas fronteiras. Nesse sentido, Henry Frignet (2002) propôs a distinção entre os transexuais, de estrutura psicótica, e transsexualistas, que dariam testemunho de certo funcionamento social perverso, marcado pela recusa à castração e por uma aspiração onipotente ao impossível.
Mais recentemente, e com interesse especial para nós, porque vinculadas a autores brasileiros, temos duas tentativas diagnósticas
relativas, especificamente, aos homens trans, de um lado, e às mulheres trans, de outro. No primeiro caso, se trataria simplesmente de casos clássicos de histeria, de caráter, aliás, epidêmico, como se passou nos séculos XVIII e XIX (Jorge & Travassos, 2017). No segundo caso, a etiologia da transexualidade se vincularia, em muitos indivíduos, a uma recusa inconsciente da própria homossexualidade e à afirmação reativa da norma heterossexual a partir da transformação anatômica que restabeleceria a heterossexualidade, modificando os genitais (Jorge & Travassos, 2018).
Tais hipóteses diagnósticas, aplicadas àqueles que vivem uma dissidência em relação à norma binária de gênero, aparecem ainda em associação com um diagnóstico aplicado à própria cultura e às modalidades contemporâneas de laço social. As/os trans e não-bináries, seriam assim adeptos de modalidades de gozo tributárias de uma crise de legitimidade, consequência do declínio da função paterna, estando submetidos ao discurso do capitalista e sendo marcados por um individualismo próprio ao mundo neoliberal (Lebrun, 2021; 2008).
Um dado importante é que a referência à psicose e à perversão apontam para a aproximação entre a multiplicação de experiências trans e certa perturbação da ordem simbólica, regulada pela metáfora paterna e pela diferença dos sexos, o que faz destas invariantes antropológicas, que poderíamos associar a uma espécie de antropogêse, do modo de constituição do próprio humano, no que teria de específico, diferenciando-o do animal e indicando as base necessárias da vida em sociedade, e que seria descrita em relação direta com certa passagem adequada pelo Complexo de Édipo, fazendo deste um elemento – universal – decisivo não apenas para os processos de constituição subjetiva, mas para própria produção e demarcação do que seria o propriamente humano. Por isso, muitas vezes a resposta psicanalítica às experiências e discursos dissidentes virá na forma de admoestação contra os riscos postos à ordem simbólica, a genealogia, a diferença de gerações, ao próprio pacto civilizatório que regula a vida em sociedade e, por fim, à própria humanidade (Cunha, 2016, 2011; Lippi & Maniglier, 2021)
Em relação a essa demarcação das fronteiras da humanidade, a qual acaba evidenciando laços entre o modo como a psicanálise procurou dar conta das transgressões da norma binária de gênero e a leitura hegemônica do perverso como alguém que perverte a própria ideia de humano, a problemática é de certo modo levantada por Patricia Porchat (2014) em seu mapeamento do diálogo entre Judith Butler e a psicanálise: “Para incluir os gêneros não-inteligíveis, e entre eles os/as transexuais, na categoria de ‘humanos’, Butler acredita ser necessário questionar o conceito de simbólico de Lacan.” (Porchat, 2014, p. 136)
O interessante aqui é perceber como essa espécie de ameaça à humanidade, que a “epidemia” e a “propaganda” trans representariam, pode ser descrita, sobretudo em certos teóricos que transitam em torno de um campo definido como aquele das utopias queer, a exemplo de Paul B. Preciado (2018, 2015), Jack Halberstan (2020) e Lee Edelman, como estratégia ético-política de interrogação dos limites atualmente estabelecidos para o humano e para nossos modos de individuação e de estabelecimento de laços afetivos e sociais. Não por acaso, o manifesto de Preciado dirigido a nós, psicanalistas, se intitula: eu sou um monstro que vos fala (Preciado, 2020).
Impasses do modelo diagnóstico-etiológico
Retomando, então, a questão psicodiagnóstica, gostaria, a seguir, de apresentar alguns impactos da adoção de uma nosografia herdada da psiquiatria do século XIX como grade de inteligibilidade que pretende dar conta de fenômenos bastante recentes e talvez ainda em gestação e em relação às quais a suposição de uma disfunção ou mesmo de um sofrimento que lhes seria intrínseco talvez não seja nada mais que um perigoso efeito contratransferencial, ou, menos que isso, puro e simples preconceito. Pois, além de questões teóricas, epistemológicas ou mesmo ético-políticas, outra ordem de problemas surge em nosso horizonte quando refletimos sobre os impasses produzidos no encontro entra a psicanálise e as transidentidades que são, na verdade, de uma banalidade chocante. Refiro-me, por exemplo, ao fato de que muitos das/dos psicanalistas que hoje discutem questões de gênero parecem aprisionados não apenas em uma bolha de moralidade pequeno burguesa, mas em um território socioeconômico inacessível a travestis, homens e mulheres trans ou não-bináries.
Destacarei três desses efeitos, considerando, evidentemente, a necessária articulação entre eles: em primeiro lugar a vinculação da psicanálise ao dispositivo médico terapêutico e sua associação a uma apropriação das experiências transidentitárias fundada na pretensão de corrigir uma suposta disfunção e na sustentação de uma conformidade qualquer. Ainda que, enquanto a medicina pareça procurar corrigir o corpo para sustentar a autopercepção subjetiva, a psicanálise, em sentido contrário, recuse a modificação corporal para insistir em um trabalho psíquico que possa transformar a verdade que o sujeito enuncia sobre si mesmo e sobre sua experiência corporal.
Nesse sentido, a inscrição no dispositivo médico-terapêutico se articula à ocupação de um lugar de poder, muito claramente representada pela figura do especialista, capaz de decifrar a experiência vivida pelo sujeito, materializada em seu corpo ou seu discurso, e enunciar, a partir daí uma verdade, diante da qual ao sujeito não cabe outra coisa senão a aceitação ou sujeição. Neste contexto, fica difícil diferenciar o psicanalista do psiquiatra, pois ambos se apresentariam como mestres da verdade, capazes não apenas de estabelecer o que de fato pertence à realidade – e o que, por outro lado, deve ser inscrito no registro do erro e da ilusão – o que, no caso do médico, se faz de modo radical, pois este afirma-se capaz de produzir uma nova realidade, modificando o corpo para adequá-lo à lógica binária da conformidade entre identidade de gênero e genital.
Quanto aos sentidos e objetivos da escuta das pessoas trans, estes ficam ainda submetidos ao modelo diagnóstico/tratamento/prognóstico, inscrevendo, portanto, uma certa expectativa em relação ao trabalho clínico, bem como indicando como horizonte o restabelecimento de um destino esperado para o sujeito e suas escolhas. Difícil imaginar tal horizonte, sem referência a uma suposta norma, ainda que esta não seja explicitada.
[…] Ainda que o digam diferentemente, ligam essas posições com a neurose, que, em termos psicanalíticos, é quase o mesmo que falar em grau de saúde mental, ou, senão, entrar no campo da psicopatologia, no qual incluem, a priori, as existências trans e travestis. Então como se alcançam ou não as masculinidades e as feminilidades como ‘devem ser’, é um dos indicadores de psicopatologia ainda hoje. Ninguém o diria explicitamente, mas as coisas são assim. Há um a priori de psicopatologização fenomenológica em relação à diversidade sexual e à diversidade de identidade que não se traduz em correlato metapsicológico. Fica-se mais próximo da psiquiatria que da psicanálise. Outros núcleos duros da psicanálise, e que ainda que não se o diga explicitamente, consideram a heterossexualidade como a sexualidade ‘maior’ e desejável. Fala-se numa psicossexualidade mais ampla, mas, na realidade, é heteronormativa. (Tajer, 2018, p. 184).
Com isso, nos aproximamos de um segundo efeito da insistência no privilégio dado à classificação diagnóstica e, sobretudo, sua instalação como condição prévia à escuta e à compreensão das vivências trans. Refiro-me, sobretudo, à desqualificação produzida pela associação entre essas vivências e os domínios da patologia, do erro, disfunção e desrazão. Esta é particularmente visível como consequência da assimilação entre as pessoas trans e a psicose ou a perversão, duas categorias difíceis de serem descoladas de uma dimensão moral e dos seus respectivos sentidos ordinários, de loucura e maldade. O diagnóstico pode converter-se rapidamente em uma forma de injúria (Ayouch, 2015) de modo que, ao mesmo tempo em que se instala na posição de mestre, único capaz de perceber o que há de verdade naquilo que escuta, ou vê, o analista silencia o sujeito que se apresenta diante dele, situando-o no registro do erro e tomando-o como incapaz, não apenas de enunciar a verdade sobre si mesmo, mas de reconhecer a verdadeira realidade que se apresenta à sua volta ou em seu próprio corpo.
Assim, como aponta Butler (2009), o diagnóstico que permite ao sujeito ser acolhido na rede pública de saúde, ter acesso a direitos ou mesmo ser percebido como cidadão, funciona simultaneamente como estigma e o coloca numa posição de precariedade, retirando-lhe sua autonomia, que é transferida para o especialista que dele se ocupa.
O impacto mais nocivo, no entanto, da classificação diagnóstica, é o seu desdobramento em uma etiologia: a busca de uma falha, impossibilidade ou perturbação do processo de desenvolvimento psíquico – ou de constituição subjetiva. Tal busca não apenas ratifica uma perspectiva desenvolvimentista ou normativa do desenvolvimento subjetivo, na medida em que aponta para um ideal que supostamente deveria ter sido alcançado ou para um modelo a ser seguido, mas opera uma uniformização de experiências múltiplas e diversas, ao referi-las todas a uma causa ou estrutura comum, apagando assim suas, quase infinitas, diferenças.
Nessa direção, o efeito mais delicado diz respeito precisamente ao objeto específico da nossa discussão: o estabelecimento de condições de escuta que façam com o que trabalho clínico dê espaço à produção de experiências singulares em toda a sua potência.
Refiro-me aqui a dois elementos – e mutuamente implicados – do trabalho propriamente psicanalítico, centrais à elaboração teórica de Freud ao longo de toda a sua obra, e que de alguma forma, ainda que enunciados de maneiras distintas, estão mais ou menos presentes em qualquer descrição dos objetivos de uma análise, independente da perspectiva teórica: a recuperação e ressignificação da história vivida e a realização de um trabalho de memória, entre rememoração e esquecimento, que permita uma nova gestão da economia pulsional e a abertura de novas possibilidades existenciais.
Na escuta de dissidentes de gênero, tal trabalho de memória ocupa lugar central e todo futuro só se faz possível a partir de um trabalho de memória e de reconstrução da história de vida passada. Uma história muitas vezes marcada pela recusa do outro em testemunhar um posicionamento frente ao gênero que, vital para o sujeito, não encontra lugar em seu ambiente nem é reconhecido pelo meio social (Cunha, 2021a). Para pessoas, por exemplo, que viveram grande parte da sua vida alocadas em um gênero determinado, e referidas a papéis sociais específicos – nos quais, aliás, não se reconheciam – e que agora habitam outros territórios existenciais, é fundamental a possibilidade de reinvenção deste passado e a sua construção, por meio de esquecimentos e rememorações muitas vezes estratégias, de modo que o presente ganhe sentido e um futuro seja possível.
Todo esse trabalho de reinvenção subjetiva é inevitavelmente obstacularizado por uma escuta que guarda consigo a suposição prévia de uma etiologia, que necessariamente precisa tomar a forma de histórias individuais semelhantes, e faz supor ou valorizar determinados acontecimentos e experiências que não necessariamente terão o mesmo valor, função, ou mesmo existência, em todos os casos. Ou seja, no lugar da necessária construção de uma história singular, oferecemos aos sujeitos uma memória genérica referida a um acidente, trauma, disfunção ou particularidade potencialmente patogênica.
Mais uma vez, temos o silenciamento de experiências singulares por meio da uniformização e apagamento das diferenças, pois aqui a generalização que, por meio do diagnóstico, supões caracteres estruturais ou constitutivos comuns a experiências diversas, se desdobra na suposição de uma história também comum; enquanto o que testemunhamos ao escutar pessoas trans, é, ao contrário a busca por uma história singular e, mais do que isso, em contínua reconstrução, pois se materializa em uma identidade instável e em um corpo que não faz uma transição, mas que existe em trânsito. Como afirma uma pessoa trans: “eu não estou em transição, eu sou em transição.”
Da psicopatologia à política: A clínica como campo de experimentação ética
A saída para este impasse, acredito, está no abandono estratégico e urgente da matriz diagnóstico-etiológica e penso que a melhor alternativa disponível seria a adoção de uma perspectiva ético-política das experiências transidentitárias, o que não implica necessariamente o abandono de uma visada clínica.
Como procurei demonstrar em outro lugar (Cunha, 2021a), encontramos um modo possível de operar tal deslocamento na retomada da noção de patoanálise, proposta originalmente por Leopold Szondi e recentemente revisitada por Phillpe Van Haute e Thomas Geyskens (2016), em uma discussão sobre o estatuto contemporâneo das formulações em torno do Complexo de Édipo e de sua centralidade nos processos de estruturação subjetiva. Tal noção procura descrever uma perspectiva de entendimento do sofrimento psíquico não como disfunção em relação a um processo de desenvolvimento psíquico passível de ser associado a uma norma ou ideal, mas como exacerbação de elementos psíquicos articulados a pontos críticos dos processos de constituição comuns a todos nós.
Em termos muito breves, Van Haute e Geyskens (2016) partem da metáfora do cristal partido, trazida por Freud, e, considerando as
diversas leituras da neurose, sobretudo da histeria, em Freud e Lacan, nos propõem tomar as formas de sofrimento psíquico não como perturbações do desenvolvimento, o que faria sopor uma norma ou meta a ser alcançada, mas sim como exacerbações de conflitos próprios a processos de estruturação subjetiva comuns e que de alguma forma estariam presentes em cada indivíduo como predisposições, tal como suposto por Freud com a hipótese de uma bissexualidade constitutiva.
Se pensarmos, seguindo essa trilha, que tantos os processos de estruturação subjetiva – diretamente associados a processos de socialização, como nos mostra a própria hipótese do Complexo de Édipo – quanto os conflitos que os marcam, são social e historicamente situados, vinculando-se, portanto, ao ambiente cultural habitado pelo sujeito, podemos considerar que o há de singular nas experiências transidentitárias contemporâneas, fazendo-as ocupar lugar destaque não apenas nos debates psicanalíticos, mas na cena política global e nos mais diversos âmbitos da sociedade e da cultura, é que elas tornam visíveis e audíveis, em seus corpos e discursos, elementos decisivos dos processos contemporâneos de subjetivação, tais como nossa inscrição no registro da biopolítica, a submissão à racionalidade identitária e a subversão dos limites entre o público e o privado, hoje marcada pela sobreposição da esfera da vida íntima e pela sua promoção a elemento central da cena cultural e do debate político (Cunha, 2021a; 2021b).
Uma leitura clínico-política das transidentidades implicaria, então, tomar o espaço analítico não como oportunidade para correção de eventuais acidentes no percurso individual de desenvolvimento psíquico – ou estruturação subjetiva –, mas sim como espaço de enfrentamento desses aspectos centrais dos processos de subjetivação próprios a nosso tempo e lugar.
Por outro lado, ao tomarmos em consideração as formulações de autores do pensamento queer, como Paul B. Preciado, quando afirma estar em jogo, com o abandono da epistemologia da diferença sexual, a abertura para a produção de novas formas de ser e para a transformação dos modos como entendemos e definimos o que constitui o humano, podemos pensar então nesta clínica fundada em uma leitura patoanalítica como campo de experimentação ética para a produção e legitimação de novos modos de existência, os quais dariam ainda lugar a novas maneiras de vivermos juntos, ou seja, novas modalidades de laço social, referidas talvez à potência da multidão e das minorias.
Para concluir, gostaria de apresentar-lhes algumas ferramentas extremamente úteis ao desenvolvimento desta tarefa, as quais podem ser encontradas no pensamento de Michel Foucault, a partir mesmo da crítica à psicanálise desenvolvida pelo filósofo francês a partir dos anos 1970 (Foucault, 2015a) e também em suas reflexões sobre as relações entre poder, governo, ética e subjetivação que marcaram as suas pesquisas sobre, de um lado, o poder pastoral e sua deriva neoliberal e, do outro, os exercícios ascéticos que marcaram na antiguidade o cuidado de si e constituíram práticas importantes de autoformação e autogoverno (Cunha, 2022).
Pois quando propomos, portanto, a utilização da patoanálise como ferramenta teórica para compreender a posição singular que as experiências transidentitárias ocupam não apenas em nossa clínica, mas na sociedade contemporânea, penso que acabamos recorrendo implicitamente à estratégia metodológica sustentada por Foucault, segundo a qual não devemos tomar em consideração um sujeito universal, a-histórico ou de tons transcendentais (Foucault, 2015b), mas interrogar subjetividades historicamente situadas e investigar os modos pelas quais tais subjetividades se constituem entre dispositivos de sujeição e práticas de liberdade.
Da mesma forma, ao considerar a clínica psicanalítica como campo de experimentação ética, imaginamos que valeria à pena nos aproximarmos da noção foucaultiana de atitude crítica e de uma ontologia do presente, retiradas de sua leitura do famoso texto de Kant sobre o iluminismo (Foucault, 1994a; 1994b). Tal atitude crítica, segundo Foucault, se centraria numa interrogação sobre “quem somos hoje” e ganharia sentido como resistência a tecnologias de governo e estratégias de dominação, estruturando-se em torno da pergunta: como não ser governado ou não ser tão governado ou não ser governado desta ou daquela forma (Foucault, 2015b).
É tal atitude crítica que permitirá, acredito, fazer valer a potência da multidão que, ao mesmo tempo que resiste à uniformização e à segregação promovida pela distribuição em territórios de pertencimento identitário, cria as condições para que algo da ordem do comum se engendre a partir do encontro de existências minoritárias e menorizadas. Tal potência surgirá efetivamente à medida em que possamos criar espaços abertos para a experimentação ética de novas formas de existências, espaços nos quais o subalterno possa, enfim, falar e nós possamos, afinal, escutá-los, mesmo que para isso seja preciso reconhecer que, em muitos momentos, não somos capazes de saber do que falam. Só isso poderá fazer com que a psicanálise se afaste dos dispositivos de poder e sujeição e se afirme como prática de liberdade e como força política de transformação, não apenas de existências individuais, mas, também e sobretudo, dos próprios modos de vivermos juntos.
Concluímos esperando, com este percurso, ter indicado alguns dos desafios teóricos, éticos e políticos postos hoje à psicanálise, a partir da proposta fundamentalmente política de inscrição dos termos multidão e minorias no horizonte ético da psicanálise e da consideração das condições de escuta das transformações subjetivas nos campos do gênero e da sexualidade que têm nos desafiado já há algumas décadas – conte- se, por exemplo, a publicação, ainda na década de 1980, de Gender in trouble, obra fundamental de Judith Butler (2003).
Tais desafios tocam em muitos aspectos, dentre os quais pontos sensíveis como o lugar social do analista e as múltiplas dimensões políticas da psicanálise, suas práticas e posicionamentos na sociedade, daquelas que dizem respeito ao lugar da politica em nossa própria prática clínica aos posicionamentos que assumimos na sociedade e no debate público.
Aqui, privilegiamos a consideração do lugar e estatuto no pensamento e na prática psicanalíticas daquilo que denominamos matriz diagnóstico- etiológica. Procuramos mostrar, ainda que brevemente, como a referência prioritária à classificação psicopatológica e à busca etiológica, limitou a nossa compreensão das experiências de dissidência em relação à norma binária de gênero, nos fazendo supor uma uniformidade em experiências que, além de novas, são múltiplas, diversas e singulares, e acabando por produzir o silenciamento das pessoas que vivem tais experiências e as afastando da psicanálise.
Evidentemente o quadro descrito não é exaustivo, nem pretendemos em nenhum momento esgotar a discussão relativa aos temas levantados. Esperamos, contudo, ter podido enumerar questões teóricas e desafios clínicos importantes, bem como indicar o horizonte ético-político na direção do qual, acredito, devemos nos mover.
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Notas
1. Este artigo retoma os argumentos apresentados no I Congresso Internacional de Transversalidades entre Filosofia, Psicanálise, Clínicas e Práticas Sociais, em articulação com os resultados do projeto de pesquisa O dispositivo psicanalítico e a escuta das transidentidades e com as reflexões produzidas pelo trabalho conduzido na ação de extensão Roda de escuta LGBTQIAP+, ambos desenvolvidos na Universidade Federal de Sergipe.
2. Para uma consideração mais cuidadosa das formulações psicanalíticas a propósito das transidentidades, ver: Cunha, E. L. (2021a). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, disponível aqui no nosso site.
jul 5, 2023 | authors, blog, book clubs, leia mulheres
Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.
A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.
Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.
Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.
No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?
“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.
É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.
Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.
Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.
Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.
Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.
Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.
Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.
Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.
Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.
Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.
Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?
As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.
Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?
É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.
Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.
Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?
Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.
Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.
Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.
Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?
Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.
Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.
Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.
O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui
maio 23, 2023 | blog, book clubs, leia mulheres
Por Mônica Vilaça e Bárbara Freitas.
Esta entrevista com Verónica Gago, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de San Martin (UNSAM), busca dialogar com as recentes movimentações construídas no bojo das lutas e interpretações que têm marcado os últimos anos na América Latina. Este tem sido um período atravessado por uma pujante produção e tradução para o português de livros de mulheres intelectuais e feministas de várias tradições, e por intensas mobilizações pelos direitos das mulheres, como as lutas pelo direito ao aborto e de enfrentamento ao feminicídio, que criaram ressonância em diversos países e continentes, e que vêm provocando uma inflexão por novas perguntas e métodos de ler, interpretar e incidir na realidade social. No conjunto destas articulações, tem-se ampliado ações que buscam melhor conhecer a produção latino-americana e é neste movimento que se inserem os diálogos com Verónica Gago. Em nosso encontro, durante o Seminário Internacional “As perspectivas feministas sobre a geopolítica global patriarcal e racista”, realizado em Salvador (BA), em 2019 – momento de articulação dos movimentos e intelectuais feministas da América Latina, que coincidia com a visita realizada pela italiana Silvia Federici para o lançamento do livro “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” –, propusemos a realização desta entrevista. Com a impossibilidade de realizá-la durante o seminário, contamos com a generosidade de Verónica de responder às perguntas que formulamos por escrito. Esta forma de realização da entrevista permitiu uma elaboração densa e rica, e que compartilha também novos debates produzidos pós-seminário, que coincidem com novas publicações suas, mencionadas ao longo da entrevista. Nossa tradução buscou preservar com o máximo cuidado as complexas elaborações apresentadas, mantendo aspectos da formatação do texto da entrevista – grifos e itálicos – enviado por Verónica, que buscavam destacar e salientar algumas ideias nas análises. Esperamos que o diálogo consolidado nesta entrevista contribua com a partilha, mas também o reconhecimento, das elaborações que se têm construído na íntima relação entre academia e militância, expressas na experiência da Verónica Gago e que refletem uma estratégia de produção de conhecimento mobilizada por muitas mulheres nas universidades da América Latina.
Você poderia se apresentar, falar um pouco sobre você?
Verónica Gago – Me chamo Verónica Gago. Vivo em Buenos Aires (ainda que não tenha nascido aqui, e sim em um povoado a 200 quilômetros da capital). Estudei Ciência Política na Universidade de Buenos Aires e depois de vários anos, nos quais só me dediquei à militância e ao trabalho, iniciei o Doutorado em Ciências Sociais. Sou professora nesta mesma Universidade de ensino na graduação e pós-graduação sobre economia internacional e teoria política. Também trabalho na Universidade Nacional de San Martin, onde sou responsável pelos cursos de teoria crítica, economias populares e economia feminista. Sou investigadora no Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Técnicas (CONICET). Comecei minha militância na Universidade como estudante e continuei vinculada a um grupo de investigação e ação militante que se chama Coletivo Situações. Como parte dessa iniciativa também se formou a Editora independente Tinta Limón, da qual sigo sendo editora. Desde 2016, sou parte do coletivo NiUnaMenos.
Como foi o teu encontro com o feminismo, enquanto teoria e movimento social?
Verónica Gago – Na militância na universidade, o feminismo estava presente entre as companheiras que conformavam o Coletivo Situações, porém de uma forma que não buscava, acredito, impactar de modo direto as lógicas mistas da organização do próprio coletivo. Sem dúvida, a discussão sobre o papel das mulheres na política – ainda sem nomear especificamente como feminismo – era muito forte nos debates que circulavam então nos anos 1970, também sobre as trajetórias de várias militantes que se fizeram feministas durante seus exílios, e também sobre como essas dinâmicas e biografias se expressaram na década de 1980, momento que aqui se chamou “transição à democracia”. Tem um ponto fundamental que marca a sensibilidade de várias gerações, o papel das Mães e Avós da Praça de Maio, como um fio vermelho de longa duração. Neste contexto, a militância vinculada aos direitos humanos dessa geração foi fundamental para nós que tínhamos em torno dos 20 anos nos anos de 1990, já que foi um primeiro momento
de ação direta, em que o “escracho” aos genocidas, que estavam impunes em suas casas, foi um modo de pôr em prática outra ideia de justiça. Nesse momento, se tenho que me referir a uma experiência de feminismo que me/nos marcou, a nós que militávamos juntas naquele momento, foi conhecer a prática de Mulheres Criando, da Bolívia. Tanto seus grafitis, como seu periódico, que difundíamos em Buenos Aires. Logo, uma das experiências de formação mais intensas para mim foi vivenciar a crise de 2001, na qual movimentos sociais muito importantes, especialmente de trabalhadorxs desempregadxs, abriram um horizonte político popular muito radical. Nestas experiências, com as quais me vinculei a partir do coletivo do qual era parte, elaborou-se um desafio à legitimidade política do neoliberalismo e para todxs nós, que nos comprometemos com as assembleias, os piquetes e as redes de intercâmbio e organização, foi como atravessar um limiar de como habitar as ruas e vivenciar uma nova política. A partir do trabalho editorial, alguns anos depois, também estabelecemos uma relação com companheiras cuja trajetória de luta e pensamento são chaves para uma sensibilidade e um arquivo feminista que, para mim, seria muito importante. Refiro-me a pessoas como Silvia Federici, Raquel Gutiérrez Aguilar,
Silvia Rivera Cusicanqui e Suely Rolnik. Logo, com minha militância no coletivo NiUnaMenos, sou parte de uma experiência que nos permite viver e militar de forma plena o feminismo, no preciso momento em que ele se torna um movimento social, massivo e radical, algo que é uma novidade em nosso país e, ao mesmo tempo, que existe dessa forma na medida em que expressa uma conexão e uma força transnacional muito potente.
Como tua militância no NiUnaMenos e tua formação como cientista social se encontram na tua atuação como pesquisadora?
Verónica Gago – Minhas problemáticas de investigação estiveram sempre vinculadas ao trabalho, desde o ponto de vista das dinâmicas do que se chama feminização do trabalho, e do trabalho migrante, que se encontram, sem dúvida, com as economias subalternas. Isto imediatamente me levou a indagar a partir das perspectivas feministas. Tanto no que sistematizei para meu trabalho de tese, como nas questões que me interessavam previamente em termos teóricos e de minhas experiências, essas questões se conectavam. Daí também é que comecei a aprofundar minhas formulações sobre o mapa do neoliberalismo na América Latina. O fiz partindo de minha investigação que se localizava na Argentina, mas à medida que envolvia trajetórias feminizadas migrantes e pela própria dinâmica do capital transnacional – especialmente em sua fase de hegemonia financeira –, tornou-se essencial sair de um “nacionalismo metodológico” para pensar outras chaves explicativas. Minha investigação sempre teve, para mim, um caráter
de intervenção política e esteve associada a formas de militância, mesmo quando parte dela era realizada na universidade. Isto tem relação também com uma tradição de compromisso político da universidade pública e gratuita em nosso país. Minha militância no NiUnaMenos e especialmente na dinâmica de organização da greve feminista internacional certamente se articula e impacta de múltiplas maneiras minha própria pesquisa, sobretudo porque a greve produz um mapeamento prático da heterogeneidade das formas de trabalho em uma chave feminista, colocando, em primeiro lugar – como falarei mais à frente – trajetórias de vida e
trabalho historicamente desvalorizadas e superexploradas. Desta maneira, acredito que tenha uma contaminação recíproca das formas de prática política e da investigação militante que faz com que a produção de conceitos não seja um monopólio da academia, nem que a prática política se reivindique como anti-intelectual.
Em teu livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” 2, você discute a greve internacional de mulheres. Neste contexto podemos pensar em uma ressignificação da greve a partir da luta feminista? A greve assumiria um novo sentido? Qual?
Verónica Gago – Sim, acredito que a prática da greve vivenciada a partir do movimento feminista modifica-a por completo porque, para dizê-lo de modo simples, a greve se pratica “fora do lugar”. Devo explicar: em primeiro lugar, a greve torna-se um dispositivo específico para politizar as violências contra as mulheres, lésbicas, travestis, trans e não binários. Em outras palavras, a greve cruza duas questões que historicamente se viam desencontradas. Conectar as violências machistas com a ferramenta da greve realmente amplia nossa compreensão das violências. Com a ferramenta do “paro”3 [greve] começamos a vincular de modo prático as violências que se enlaçam com a violência machista: a violência econômica na diferença salarial e nas horas de trabalho doméstico não reconhecido e não pago, com o disciplinamento que se enlaça com a falta de autonomia econômica; a violência da exploração que se traduz no lar como impotência masculina e explode em situações de violência “doméstica”; a violência do sucateamento dos serviços públicos com a sobrecarga do trabalho comunitário. A greve, neste sentido, é uma ação que nos situa como sujeitxs políticos frente às violências e sua tentativa sistemática de reduzir nossas dores, colocando-nos na posição de vítimas, a serem culpadas e revitimizadas. A greve nos põe em situação de luta. Não esquece a dor, porém nos retira do “estado” de dor. Mas também, fazendo isso, expande-se e é apropriada por aquelxs que supostamente não estavam autorizadas nem legitimadas para fazer greve, uma ferramenta clássica monopolizada pelo movimento trabalhista e sindical (e majoritariamente masculino, heterossexual e branco). Daí coloca-se uma pergunta prática e teórica muito desafiante: Como a greve feminista é protagonizada simultaneamente desde territórios, sujeitxs e experiências que não cabem na tradicional ideia de trabalhadorxs e que, por isso mesmo, têm a capacidade de reinventá-la e transformá-la? Neste sentido, a greve analisada a partir do movimento feminista, como tem acontecido nos últimos quatro anos inclui, reconhece e visibiliza como força de trabalho, como potência produtiva, como criadoras de valor, uma multiplicidade de sujetxs que historicamente foram definidxs como improdutivxs, ao mesmo tempo que eram superexploradxs. Desta maneira, o “paro” conseguiu traduzir novas gramáticas de exploração, nomeá-las e situá-las, estabelecendo novas gramáticas de conflito. Redefine assim o que é um conflito de “trabalho” porque o alarga: localiza-o, não só nas fábricas ou em espaços de trabalhos formais, para levá-lo a outros lugares – do lar às economias populares, das camponesas às migrantes sem documentos, das feiras aos restaurantes comunitários. Essa trama, que implica um processo político de organização, envolvimento e de compartilhamento, produz as condições para entender a conexão entre o trabalho doméstico e a exploração financeira, o trabalho precário e a hierarquia nos sindicatos, evidenciando as áreas de exploração que historicamente foram invisibilizadas e sua relação íntima com áreas de trabalho “visíveis”. O paro, por esta capacidade de mapear a heterogeneidade do trabalho a partir de uma chave feminista, tomou múltiplas formas, distintas modalidades de protesto, de assembleia, de usos da própria noção de parar e bloquear, de ocupar e esvaziar os espaços de trabalho, as casas e os espaços de produção nos bairros. A partir dessa multiplicidade, outra pergunta também encontra espaço: Por que o paro expressa um modo de subjetivação política, um modo de atravessar fronteiras sobre o limite do possível? Em meu livro, proponho o paro feminista como “lente” de leitura para as reconfigurações do capitalismo contemporâneo, de seus modos específicos de exploração e extração de valor, e das dinâmicas que lhe resistem, sabotam e contestam. Porque se o paro é um modo de parar a continuidade da produção do capital, entendido como relação social, é porque põe em marcha uma desobediência à contínua expropriação de nossas energias vitais, espoliadas em rotinas exaustivas. Por essas razões, novas perguntas continuam se abrindo:
que acontece com a prática do paro quando é pensado e praticado com base em sensibilidades que não se reconhecem a priori como de classe e que, sem dúvida, desafiam a própria ideia de classe? Em que sentido esse “deslocamento” do paro, seu “uso” fora do lugar, remapeia as espacialidades e temporalidades da produção e do antagonismo? O paro reinventado pelo feminismo se transformou em seu sentido histórico também ao sair do âmbito estrito dos sindicatos: deixou de ser uma ordem emanada de cima (hierarquia sindical) que se acata ou adere, para converter-se em uma pergunta-investigação concreta e situada: que significa parar para cada realidade existente e de trabalhos diversos? Essa pergunta pode ter um primeiro momento que consiste em explicar por que não se pode fazer paro no lar, ou como vendedora ambulante, ou como encarcerada, ou como trabalhadora freelance (identificando-nos
como as que não podem parar), mas imediatamente depois de verificada essa impossibilidade (completamente massiva em nossos países) assume outra força: essas experiências são levadas a ressignificar e expandir o que se suspende quando a greve deve compreender e acomodar essas realidades, ampliando o campo social em que a greve se inscreve e produz efeitos. No livro, descrevo várias situações concretas nas quais essa simultaneidade entre impossibilidade e desejo de parar abrem caminho para uma imaginação política radical. Por último, gostaria de sublinhar que o paro vai além e integra a questão trabalhista porque torna visível que paramos nosso trabalho e paramos contra as estruturas e a ordem que tornam possível a valorização do capital. Esses ordenamentos (da família heteropatriarcal à maternidade compulsória, do aborto clandestino à educação sexista) não são meramente questões culturais ou ideológicas. Eles respondem ao próprio entrelaçamento do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo e destacam que tipo de violência específica necessita hoje o capital e contra quais corpos e territórios ela incide de maneira diferenciada.
A economia feminista tem problematizado a invisibilidade dos trabalhos domésticos e de cuidados na Economia. Como as greves ajudaram a ampliar a visibilidade destas fronteiras do trabalho na produção e reprodução da vida?
Verónica Gago – A greve feminista tem colocado o foco no terreno da reprodução para, como dizia antes, relevar e revelar todas essas tarefas como diretamente produtivas e obrigatórias por ordenamentos de gênero. O modo de visibilizar esses trabalhos imprescindíveis foi a base para sua interrupção: deixar de fazê-los para que sua ausência os torne evidentes em toda a sua presença historicamente invisível e desvalorizada. As teorizações feministas popularizaram a noção de tripla jornada: trabalho fora de casa, trabalho dentro de casa e trabalho afetivo de produção de vínculos e redes de cuidado. Parar essa multiplicidade de tempos é uma subtração que parece quase impossível, porque é nesse excesso que a vida e o trabalho se encontram e onde a reprodução visibiliza-se imediatamente como produção. Fazer “paro”, em todos estes tempos de trabalho, põe em relevo o tempo a partir do ponto de vista feminista, em sua condição sobreposta: como se “produz” a hora que mais tarde é contada como trabalho? Como se produzem xs trabalhadorxs para sua reprodução vital e cotidiana? Portanto, “parar”, nesta chave, é repensar tudo. No trabalho político da greve, realizado entre organizações territoriais e sindicatos, em universidades e em grupos de migrantes, tem-se feito tão popular o que Silvia Federici sintetiza sobre o trabalho reprodutivo dizendo: “não é amor, é trabalho não pago”. Isso significa uma historicização de como se tem organizado o trabalho reprodutivo em nossas sociedades capitalistas, patriarcais e coloniais. Destaca sua obrigatoriedade e sua gratuidade – também obrigatória, seu vínculo com a heteronormatividade, seu caráter de subordinação política ao trabalho considerado produtivo e, também, sua sobreposição com os trabalhos no mercado de trabalho, porque são poucas as que hoje fazem apenas trabalho reprodutivo em suas casas (a figura ideal da “dona de casa”). Além disso, o trabalho reprodutivo não é apenas o que acontece nos lares; também reúne uma série de qualidades que caracterizam cada vez mais o trabalho precarizado – e, por isso, fala-se de uma feminização do trabalho – em geral. Colocando em termos concretos: a dimensão gratuita, não reconhecida, subordinada, intermitente, e às vezes permanente, do trabalho reprodutivo serve hoje para ler os componentes que compõem as formas históricas das economias populares; mas também a precarização como um processo transversal atual. Fornece chaves sobre as formas de exploração intensiva das infraestruturas afetivas e, por sua vez, permite compreender o alargamento extensivo da jornada de trabalho no espaço doméstico e a disponibilidade permanente como recurso subjetivo primordial. Neste sentido, ao incluir o trabalho reprodutivo, mas também o trabalho migrante, precário, de rua, feminizado, a greve feminista tem permitido repensar, requalificar e relançar outro sentido para a greve geral. A tese seria assim: a greve geral se torna realmente geral quando se torna feminista. Porque ela primeira vez alcança todos os espaços, tarefas e formas de trabalho. Por isso, consegue enraizar-se e territorializar-se sem deixar nada de fora e a partir daí produz generalidade. Abarca cada rincão de trabalho não pago e não reconhecido. Traz à luz cada tarefa invisibilizada e não contabilizada como trabalho. E, ao mesmo tempo que as afirmam como espaços de produção de valor, as conecta em sua relação subordinada com outras formas de trabalho. Assim torna-se visível a cadeia de esforços que traçam um continuum
entre a casa, o emprego, a rua e a comunidade. Ao contrário do confinamento a que se quer reduzir os feminismos (a um setor, a uma demanda a uma minoria), assumir que a greve é geral só porque é feminista, é uma vitória e é uma vingança histórica. É uma vitória, porque dizemos que se nós paramos, para o mundo. É, por fim, evidenciar que não há produção sem reprodução. E é uma revanche em relação às formas de greve em que o “geral” era sinônimo de uma parcialidade dominante: trabalho assalariado, masculino, sindicalizado, nacional, que sistematicamente excluía o trabalho não reconhecido pelos salários (e sua ordem colonialpatriarcal).
Como podemos pensar as recentes lutas pela legalização e descriminalização do aborto que atravessaram a América Latina e o mundo no último período frente a um contexto de fortalecimento de narrativas fascistas e retomada de uma agenda neoliberal mais ampla?
Verónica Gago – Estou interessada em pensar qual é a relação entre ambas as coisas. Por isso, acredito que podemos entender o momento da fascistização atual em termos de contraofensiva. Quer dizer, constatar uma reação à força demonstrada pelos feminismos na região. É importante observar a sequência: a contraofensiva responde a uma ofensiva, a um movimento anterior. Isso envolve situar a emergência dos feminismos, em seu papel de desestabilização da ordem sexual, de gênero e política e tornando-se um ator-chave na disputa das fragmentações da crise econômica em curso. Acredito que é este movimento que deve localizar-se como anterior em relação à virada fascista subsequente na região, com conexões em nível global. Duas considerações emergem daqui. Em termos metodológicos: localizar a força dos feminismos em primeiro lugar, como força constituinte. Em termos políticos: afirmar
que os feminismos colocam em marcha uma ameaça aos poderes estabelecidos e ativam uma dinâmica de desobediência que esses poderes tentam conter, opondo formas de repressão, disciplinamento e controle em várias escalas em um momento em que as relações de acumulação estão instáveis. A contraofensiva, em boa medida sintetizada pela “cruzada contra a ideologia de gênero”, é um chamado à ordem e é a produção de inimigos internos que concentra seu ataque nxs sujeitxs dxs feminismo. Por esta razão, a feroz contraofensiva desencadeada contra os feminismos nos dá uma leitura inversa, ao contrário, da força de insubordinação que se tem percebido como já acontecendo e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua radicalização. Neste sentido, o papel das lutas pela legalização do aborto na Argentina e em toda a América Latina acredito que é fundamental. Mas lembremos também que o “paro” na Polônia, em outubro de 2016, também protestava contra a restrição do direito ao aborto. E, ao mesmo tempo, vemos hoje um retrocesso a esse respeito em vários estados dos Estados Unidos. Em outras palavras, não é apenas uma questão do terceiro mundo. No direito ao aborto, está em jogo o poder masculino e eclesial sobre o corpo de mulheres e os corpos gestantes. Na Argentina, com
a maré verde de 2018, temos visto a ampliação do debate sobre o aborto em termos de soberania, autonomia e classe, ao mesmo tempo que tem acontecido uma radicalização militante pelas novas gerações. A luta pelo aborto (e toda a reação conservadora que desperta) evidencia que não há forma de governo que não pressuponha intrinsecamente a subordinação das mulheres como o a priori dessa ordem estruturada por, como diz Carole Pateman, um contrato sexual. Por isso, a discussão leva diretamente a pensar a soberania dos corpos e, em particular, um vínculo interessante que concebe os corpos como territórios, segundo o conceito de corpoterritório lançado pelas feministas da América Central. Simultaneamente, a discussão sobre sua clandestinidade remeteu diretamente à importância dos abortos seguros e gratuitos, uma vez que são os custos que o tornam uma prática diferencialmente arriscada, de acordo com as condições sociais e econômicas. Aqui, como um desenvolvimento também presente no livro, tentou-se inverter a força que assumiu esse argumento classista para repudiar a clandestinidade, e a campanha construída a partir da hierarquia da Igreja Católica dizendo que o aborto é algo “estranho” e “externo” às classes populares; em outras palavras: que é uma preocupação exclusiva da classe média. Há mais uma questão: o debate ultrapassou o marco único do argumento da saúde pública, e do aborto como questão preventiva da gravidez não desejada, para abrir justamente as veias de exploração do desejo. A partir da palavra de ordem “a maternidade será desejada ou não será” até a reivindicação por educação sexual integral no currículo educacional, aprofundaram-se os debates sobre sexualidades, corporalidades, vínculos e afetos que deslocaram a questão de modo também radical. Isso permitiu inclusive variações das palavras de ordem sobre o aborto legal: não apenas no hospital, mas reivindicado também nas redes autônomas que o vêm praticando “em qualquer lugar”; não apenas educação sexual para decidir, mas para descobrir; não apenas contraceptivos para não abortar, mas sim para desfrutar; e não apenas aborto para não para morrer, mas para decidir.
A localização histórica das mulheres na economia reprodutiva e de responsabilidade com a reprodução da vida permitiria explicar as mulheres tornarem-se protagonistas nas lutas recentes, considerando as agendas de cuidados, as novas expressões de violência como o avanço sobre os territórios e a expropriação de bens naturais?
Verónica Gago – Sim, acredito que hoje é evidente como a reprodução social da vida aparece retificando e repondo e, ao mesmo tempo, criticando o desmonte da infraestrutura pública e lutando na linha de frente contra as desapropriações dos territórios. Vemos isso tanto nas lutas antiextrativistas pela defesa da água e dos territórios como na maneira em que as economias populares constroem hoje infraestrutura comum para a prestação dos serviços chamados básicos, mas que não são: da saúde à urbanização, da eletricidade à educação, da segurança até os alimentos. Deste modo, eu me concentro no livro em como as economias populares funcionam simultaneamente como tecido reprodutivo e produtivo e, como tais, põem em debate as formas concretas de precarização das existências em todos os planos. É por isso que eles conseguem denunciar o nível de desapropriação nos territórios urbanos e suburbanos, que é o que possibilita novas formas de exploração. Por sua vez, isto implica a implantação de um conflito concreto sobre os modos de entender o território como uma nova fábrica social. Com a contraofensiva econômica atual (que anda junto com a contraofensiva militar e a contraofensiva dos fundamentalismos religiosos) vemos uma característica fundamental do neoliberalismo: o aprofundamento da crise da reprodução social que é sustentada por um aumento do trabalho feminizado que substitui as infraestruturas públicas e permanece envolvida na dinâmica da superexploração. A privatização dos serviços públicos ou a restrição de seu alcance significa que essas tarefas (saúde, cuidados, alimentação etc.) devem ser supridas pelas mulheres e os corpos feminizados como tarefa não remunerada e obrigatória. Nesta chave, acredito que se compreende uma agenda de uma ética de cuidado que vocês mencionam: ampliando a noção de cuidado para além do marco familiar e, ao mesmo tempo, transformando-a em uma ferramenta de valorização das resistências vitais.
Você propõe em seu livro, A razão neoliberal, compreender a “captura” das tramas vitais da produção do cotidiano por uma racionalidade neoliberal, e a partir dessa “captura”, como a produção da vida passa a trabalhar para uma “financeirização” da vida. Como podemos pensar essa produção de subjetividades e de economias barrocas?
Verónica Gago – Em A razão neoliberal me propus discutir a noção mesma do neoliberalismo, o modo de historicizá-lo em nossa região, de aprofundar debates teóricos e de traçar genealogias a partir das lutas, dando uma ênfase especial ao que significou na Argentina a crise de 2001. Este interesse surgiu junto com a investigação que realizei durante muitos anos sobre economias populares, as estratégias de trabalho, de comercialização e de politização que daí se desdobram. Daqui também começo a refletir como o neoliberalismo não vem só “desde cima” (governos, corporações e organismos internacionais), mas que se faz persistente justamente porque consegue ler e capturar – ou seja, expropriar – tramas vitais que operam produzindo valor, inventando recursos onde não existem, repondo infraestrutura popular ante a expropriação e criando modos de vida que excedem as fronteiras do capital. Como o neoliberalismo vai metamorfoseando-se em nossos países me parece um ponto-chave, que geralmente fica fora de certas caracterizações mais gerais que “aplicam” o termo chave do neoliberalismo a todo o planeta. Eu me propus entendê-lo e contextualizá-lo a partir de seu desembarque e ensamblagens com situações concretas. Na nossa região, essas situações concretas são os territórios nos quais se cozinhou a revolta popular contra a legitimidade política do neoliberalismo nas crises do início dos anos 2000 a que me referia antes. Aí há uma singularidade porque são essas situações nas quais a exigência popular abre uma temporalidade de revolta que logo se mistura com uma tentativa de reconhecimento e estabilização por cima. São estas “economias barrocas”, como as chamo, que obrigam a pluralizar o neoliberalismo além de suas características mais conhecidas (privatizações,
desregulamentação, mercantilização etc.). Aqui situo claramente uma perspectiva que olha para “baixo” para encontrar aquilo que antagoniza, e que arruína, estraga e/ou confronta essa pretensa hegemonia, sem por isso ter um programa “anticapitalista” em termos puros ou precisos, mas que não abandona a luta “contra” os modos de expropriação do capital. Essa zona do “entre”, heterogênea e promíscua, é o que me interessa colocar em foco. Com a questão financeira isto se exaspera, acelera, volta mais intensa. Na América Latina, entender como a dívida extrai valor das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias populares, das economias camponesas, das economias consideradas historicamente não produtivas, permite captar os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de colonização da reprodução social. Entendo que a partir daqui podemos ver como funcionam hoje
novas formas de extração de valor que exploram trabalhos precários e informais e, ao mesmo tempo, como esses dispositivos de dívida funcionam a partir da moralização das existências desprezadas nas ordens de gênero. Quer dizer, na captura de valor que a dívida pratica, podemos ver uma certa articulação entre reprodução e produção que tem a família heterossexual como núcleo e a superexploração como trama contínua. Com Luci Cavallero temos aprofundado esta investigação fazendo “uma leitura feminista da
dívida”, no calor da organização da greve feminista. Temos trabalhado a articulação entre endividamento e trabalho reprodutivo, e também, como a violência machista se faz ainda mais forte com a feminização da pobreza e a falta de autonomia econômica que o endividamento implica. As companheiras da Criação Humana Editora publicaram, esse texto no Brasil, pelo qual esperamos que se
converta em uma possibilidade de intercâmbios aqui também.
Você propõe que o neoliberalismo se enraíza nas lógicas comunitárias e isso produz uma experiência de ambivalência na produção do cotidiano, porque a lógica comunitária se opõe à organização macroeconômica. O que poderíamos chamar de resistência nesses contextos?
Verónica Gago – Entendo que as dinâmicas comunitárias são um compêndio de saberes, tecnologias e temporalidades históricas que entram em um complexo sistema de relações variáveis com os diversos momentos do capitalismo em suas, também diversas, fases coloniais. Mas, sobretudo, são recursos enormes que se põem em jogo nos protestos, nos movimentos sociais, e também nas formas de economia popular e nas trajetórias migrantes, tanto em sua capacidade de disputar formas de vida com o capitalismo colonial e patriarcal como por abrir espaço em realidades de extrema expropriação e violência. Claro, também há um aproveitamento e uma exploração dessas modalidades comunitárias na medida que se busca compatibilizá-las com as ordens de flexibilidade, precariedade e autogestão da reprodução social como maneira de desresponsabilizar os Estados de certas obrigações. Em todo caso, para pensar essas questões eu trabalho principalmente em diálogo com os textos da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e com os da matemática mexicana Raquel Gutiérrez Aguilar, as quais, para mim, são fundamentais para compreender e situar uma riqueza comunitária que está em permanente tensão entre a exploração e as reinvenções de um horizonte comunitário-popular, para uma multiplicidade de lutas. Esses debates se cruzam com as dinâmicas ambivalentes de subjetivação na governamentalidade neoliberal e, portanto, complexificam as experiências de resistência e insubordinação, tanto nos momentos cotidianos como nos momentos de desdobramento massivo e coletivo. Aqui também me parecem importantes as reflexões das feministas J. K. Gibson-Graham7 e seu trabalho por visibilizar “economias diversas”. Elas o fazem também derivando de Marx uma noção de diferença. A partir daí põem a ênfase em economias que teriam capacidade prefigurativa, antecipatória, em seus desenvolvimentos no presente como não capitalistas. Trata-se de uma perspectiva que põe em relevo o caráter experimental das economias comunitárias que conseguem abrir e descolonizar a imaginação econômica sobre como representamos as alternativas anticapitalistas e como desconstruir a hegemonia do capital a partir dos espaços, aqui e agora. A diferença age para iluminar a realidade efetiva de práticas que negam o capital. Mas, também buscam dar à noção de diferença um caráter processual e experimental. Sua aposta nos permite pensar as economias diversas desde o devenir: elas argumentam que se tem que “cultivar” o desejo e as subjetividades que habitam esses espaços não capitalistas. Deste modo, entrelaçam uma subjetividade que está por vir, mas que por sua vez se constrói com a materialidade do desejo de outra vida no presente. Isso me parece que é importantíssimo para não seguir idealizando um programa “anticapitalista” puro e perfeito, pronto para ser aplicado e, portanto, sujetxs igualmente purxs e já completxs. Para voltar ao início: acredito que exercícios coletivos como o processo político da greve feminista permitem-nos praticar esse caráter processual e experimental do desejo de transformação de nossas resistências.
A informalidade tem crescido e se transformado na América Latina apresentando contornos a cada dia mais complexos. Que lugar a informalidade ocupa na produção dos territórios?
Verónica Gago – A visão dominante sobre a informalidade aponta que se trata de uma economia realizada por pessoas pobres que desenvolvem atividades desorganizadas por fora dos marcos legais (podemos remontar aos anos 1970, quando se produz a incorporação da categoria “economia informal” impulsionada por parte da OIT a partir do trabalho de Keith Hart sobre
o Quênia). Parece-me que toda uma série de conceitos e premissas se encadeiam e devem ser criticados: a informalidade como sinônimo de ilegalidade e as assim chamadas economias de subsistência como sinônimo de pobreza. O colonialismo dessas caracterizações é histórico. Creio que há perspectivas, por outro lado, que buscam localizar a quem se desenvolve nas
economias populares como parte de uma relação social e laboral específica, na medida em que se trata de uma relação na qual a estrutura dos custos (fiscais, de bens e de capital) é assimétrica com a valorização do trabalho. Funda, neste sentido, um tipo de relação social de exploração que devemos entender com mais profundidade. Por exemplo, como a captação do mais trabalho passa pelo consumo, por uma estrutura fiscal regressiva e por um custo financeiro altíssimo no endividamento do qual falávamos antes. São realidades que emergem frente à desestruturação neoliberal do mundo do trabalho assalariado como modelo capaz de incluir as massas em sua maioria urbanas, e frente ao aprofundamento dos regimes laborais predominantemente flexíveis e desprotegidos no interior desse esquema global. Em termos espaciais, aparecem de modo mais generalizado como uma experiência de bairros marginais ou periféricos das metrópoles latino-americanas e terceiromundistas do chamado Sul Global. São nesses territórios e nessas economias onde se produzem novas imagens da conflitividade trabalhista, mas em uma chave de conflitividade social difusa, ampliando os limites da experiência proletária. Isso quer dizer que essas economias reconceitualizam praticamente o que entendemos por trabalho, enquanto sistematizam formas de trabalho que hoje em nosso continente são majoritárias e que não cabem na categoria de marginais simplesmente por não serem assalariadas de modo estrito. Pensando assim, emergem outras geografias do trabalho que permitem entender os processos de valorização do capital como parte de um processo de colonização em direção a novos territórios que se transformam em espaços de conflito. Claro que um novo tipo e escala de violência está profundamente entrelaçada com as economias populares que todo o tempo trabalham na fronteira (e borrando o limite) entre legalidade e ilegalidade. É justamente a regulação e gestão permanente dessas fronteiras que ficam a cargo das novas “forças” paramilitares, paraestatais etc. Essas violências se moldam em uma dimensão territorial específica. A conflitiva ocupação da terra em áreas urbanas e suburbanas dos últimos anos (que aumenta os conflitos nos territórios camponeses de longa data intensificados pela voracidade do agronegócio) tem assumido uma escala de violência e complexidade que está diretamente vinculada à multiplicação de atores que envolve a especulação imobiliária e que assume modalidades que são ao mesmo tempo formal e informal, legal ou ilegal.
Da época do lançamento de A razão neoliberal até hoje o contexto político e econômico mudou: vemos uma ofensiva ultraconservadora na América Latina e no mundo, um processo articulado e sistêmico. Como localizar as elaborações que você traz no livro para ler este momento?
Verónica Gago – A situação no Brasil com o assassinato de Marielle Franco e o triunfo de Bolsonaro tem levado a pergunta sobre o neoliberalismo mais longe: como se está relançando a acumulação neoliberal em aliança com o fascismo com formas extremas de racismo, sexismo e classismo? O neoliberalismo necessita agora aliar-se com forças conservadoras retrógradas porque a desestabilização das autoridades patriarcais põe em risco a própria acumulação do capital. Diríamos assim: o capital é extremamente consciente de sua acumulação orgânica com o colonialismo e o patriarcado para reproduzir-se como relação de obediência. Uma vez que a fábrica e a família heteropatriarcal (mesmo que imaginários) não consigam sustentar disciplinas e uma vez que o controle de segurança é desafiado por formas feministas de gestar a interdependência em épocas de precariedade existencial, a contraofensiva se redobra. Por isso, tem que introduzir em nossa atualidade outra “cena” que abre novas leituras dinâmicas do neoliberalismo. Refiro-me ao movimento feminista que nos últimos anos tem tomado as ruas de modo massivo e radical e que tem transbordado os limites nacionais impulsionando um movimento verdadeiramente internacionalista e cujas ressonâncias fundamentais se enlaçam na América Latina, o melhor: em Abya Yala, traçando novas temporalidades e geografias. Assim, vemos muito claramente por que neoliberalismo e conservadorismo compartilham objetivos estratégicos de normalização. Claro que isso não é uma novidade na América Latina. Aqui, a origem do neoliberalismo é indiscriminadamente violenta. São as ditaduras que vieram reprimir um ciclo de lutas trabalhistas, estudantis e de bairros que marcam seu início. Como princípio do método e como perspectiva desse continente, portanto, é necessário sublinhar a emergência do neoliberalismo como resposta a certas lutas. Por isso, o neoliberalismo se apresenta como um regime de existência do social e um modo do comando político instalado regionalmente, com o massacre estatal e paraestatal da insurgência popular e armada, e consolidado nas décadas seguintes a partir de grandes reformas estruturais, de acordo com a lógica de ajuste de políticas globais. Com isso, quero dizer que a conjunção do neoliberalismo e do fascismo tem, na América Latina, um arquivo-chave. Creio que esse ponto permite, como mencionava, colocar outra perspectiva à ideia de “novidade” de um neoliberalismo que tem deixado sua roupagem liberal e inclusive progressista para conectar sua atualidade com a experiência originária em certas regiões (sem dúvidas, terceiro-mundistas) do mundo.
Esse seminário internacional se propõe a construir uma leitura a partir de quatro preocupações: o extrativismo ampliado, o sistema financeiro, as economias populares e o futuro do trabalho, e apontar caminhos. Quais estratégias são possíveis para essa articulação feminista dentro do contexto que estamos vivendo?
Verónica Gago – O movimento feminista a partir da sua multiplicidade (feminismos populares, villeros, indígenas, comunitários, negros, queer, trans) tem desbloqueado uma articulação por baixo das conflitividades e das lutas. Mas isso não é fácil: hoje assume uma multiplicidade de violências articuladas e incrementadas que irrompem nos corpos e nos lares, nos territórios urbanos e rurais e nos locais de trabalho, nas camas e nas fronteiras. E o faz produzindo um diagnóstico feminista dessa conflitividade – que inclui desapropriações e feminicídios, exploração e endividamento, racismo e abusos – baseado em lutas concretas, o qual conecta e enlaça a dor de cada uma com um corpo-território mais amplo. Como dizia antes: por que o movimento feminista politiza de maneira nova e radical a crise da reprodução social como crises, ao mesmo tempo, civilizatória e da estrutura patriarcal da sociedade, o impulso fascista que se põe em marcha para enfrentá-lo propõe economias da obediência para canalizar a crise. Seja pelo lado dos fundamentalismos religiosos ou pelo lado da construção paranoica de um novo inimigo interno, o que constatamos é uma tentativa de aterrorizar as forças de desestabilização arraigadas em um feminismo que tem ultrapassado as fronteiras e é capaz de produzir um código comum entre lutas diversas. O movimento feminista, tomando também as finanças como um terreno de luta contra o empobrecimento generalizado, pratica uma contrapedagogia a respeito de sua violência e suas formas abstratas de exploração dos corpos e dos territórios. Tudo isso nos dá, outra vez, uma possibilidade mais ampla e complexa de entender o que diagnosticamos da aliança do neoliberalismo com as forças conservadoras que se expressam como violências que tomam os corpos feminizados como novos territórios de conquista. Por isso, é necessário animar a crítica ao neoliberalismo como um gesto feminista sobre a maquinaria
da dívida – como dispositivo generalizado de exploração financeira -, porque é também apontar contra a maquinaria neoliberal da culpabilização, sustentada pela moral heteropatriarcal e pela exploração de nossas forças vitais. O movimento feminista atual repõe a chave antineoliberal como antagonismo. Por isso mesmo reabre a dinâmica que redefine o neoliberalismo “desde baixo” em termos de seu confronto corpo a corpo. A razão neoliberal se opõe hoje a uma potência feminista (que é a sensibilidade, modo de cálculo, estratégia e produção de sentido): isto é, um modo de pensar, fazer, lutar e desejar que ultrapassa a opção imposta entre ser vítima ou empreendedora (ambas opções de subjetivação do catálogo neoliberal). Por isso mesmo, porque se mete na trincheira cotidiana de disputa com o capital e com os modos renovados de exploração e extração de valor, o movimento feminista atual recebe uma contraofensiva feroz: militar, financeira e religiosa. Estamos precisamente nessa luta agora: não nos deixando expropriar pelo neoliberalismo aliado com o fascismo, com dinâmicas feministas que, juntas, se responsabilizam “desde baixo” por
abrir novas possibilidades vitais para todes.
Mônica Vilaça é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, na linha de Trabalho, Políticas Sociais e Desenvolvimento. E-mail: [email protected]
Bárbara Freitas é mestre em Estudos Interdisciplinares em gênero, mulheres e feminismo, PPGNeim – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]