Carta de um psicanalista a outras: o que fazer diante da tragédia

Mercado Público de Porto Alegre durante a enchente do mês de maio.

Querides, como vocês estão?

 

Sei que pergunta hoje é diferente daquela protocolar, de cada vez que nos ligamos pra falar das novidades da editora, conversar sobre trabalhos em andamento, fazer planos para o futuro. Imagino que a resposta tampouco será o habitual “tudo bem”, ainda que seja tudo o que gostaria de ouvir.

 

É preciso, então, estar preparado para escutar o que não está bem. Mas tudo bem, esse é de certa forma o nosso ofício de psicanalistas, ainda que nem sempre estejamos preparados de verdade para ele. Sempre há um limite para o que podemos, conseguimos, escutar. E, no entanto, é preciso fazê-lo.

 

É necessário lidar com os limites do que é possível fazer, ou mesmo do que chegamos a sentir diante de certas experiências vividas pelo outro. Assim, muitas vezes, a empatia implica saber que não podemos, de modo algum, ocupar o lugar do outro, sentir o que ele está sentindo. Significa suportar não apenas o sofrimento, a angústia trazida por aquele que está diante de nós, com suas palavras ou seu silêncio, mas o fato, concreto, encarnado, de que o que é vivido pelo outro simplesmente está fora do nosso alcance. 

Mesmo que o outro espere algo de nós, dificilmente sabemos exatamente do que se trata e que efeito terá. Por isso, o cuidado necessário para não transformar a suposição de saber em pretensão de mestria.

 

Ainda assim, penso no que dizer a vocês ou no que poderia ser dito a milhares de pessoas que viram suas vidas arrastadas pelas águas. 

De nada vale, creio, dizer o óbvio, que é preciso construir redes de solidariedade ou responsabilizar aqueles que, de algum modo, poderiam ter feito algo para evitar a tragédia. As pessoas já sabem, mais do que isso, sentem literalmente na própria pele, tanto o valor da solidariedade quanto a crueldade da negligência e da incompetência. Tampouco, talvez, adiante lembra-las que estão traumatizadas ou que sua tragédia é apenas uma pequena parcela de algo maior, do nosso descuido com o planeta ou com a vida sobre ele. Há sempre algo de singular na catástrofe, para cada um que a viveu, mas nunca seremos capazes de saber de antemão o que foi de fato levado pelas águas. Por isso, é preciso escutar e dar tempo para que as pessoas possam falar, ainda que não saibam o que dizer.

 

Lembro de um velho analista para quem devemos falar pouco para não falar bobagem. Talvez, em momentos como esse, um olhar seja tão ou mais importante que palavras, olhar e presença, contenção. Um amigo dizia que em certos momentos somos como janela, para que nossas e nossos analisantes possam contemplar outras paisagens, novos horizontes. Em outros, precisamos ser parede. Para conter a angústia, barrar afetos, enxugar lágrimas. Meu primeiro sentimento a ver as imagens da sua cidade foi de impotência. Talvez seja em torno dele que as palavras – e outros afetos – possam circular. Por isso, paro por aqui, e apenas me coloco à disposição, caso vocês queiram conversar, caso algo precise ser dito.

 

Carta escrita por Eduardo Leal Cunha, baiano de Salvador. Membro do EBEP/Aracaju, é psicólogo e psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ), é atualmente professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFS e pesquisador associado do Departamento de Estudos Psicanalíticos da Universidade de Paris. É autor de diversos livros, entre eles “O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política”, disponível aqui.

Despertar feminista: sobre sonhos e política

Na cidade de Porto Alegre (RS), em 08 de março de 2023 (8M), o dia das mulheres foi marcado por manifestações políticas com ações de visibilidade, resistência, luta contra a violência de gênero e pelos direitos dos corpos femininos. Nessa ocasião, como parte de uma pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) – Eixo 3, foram recolhidos sonhos de mulheres. Entre recortes de sonhos noturnos, muitas delas narraram fragmentos de sonhos diurnos, já outras disseram que não têm tempo para sonhar – questão que, à nossa escuta, é de importante relevância. Afinal, quais futuros são possíveis sem o ensejo de sonhos no presente?

Desde a publicação, em 1900, de A Interpretação dos Sonhos (obra fundadora da psicanálise), Freud sustentou que os sonhos se apresentam fundamentalmente a partir de imagens e que são a realização disfarçada de um desejo reprimido. Ao longo do tempo, esse debate sobre os sonhos e sua relação com a vida psíquica foi tomando novas proporções e, através de um conjunto de pesquisas universitárias sobre os sonhos na atualidade, por volta de 2019 se começou a pensá-los articulando inconsciente, cultura e os acontecimentos do mundo social que trazem a marca da história e de ações políticas.

Resulta dessa produção acadêmica o conceito de oniropolítica, termo que orienta a proposta de pensar a função coletiva do sonho a partir dos restos diurnos que neles se manifestam para interrogar as formas políticas e sociais contemporâneas, bem como para resgatar a dimensão do sujeito e do desejo na vida em vigília.

Dentre os trabalhos já publicados sobre o tema, há o livro “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia”, organizado por Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski, publicado em 2021 pela editora Autêntica. Estas são pesquisas que não se servem apenas da psicanálise e por isso contam com outros campos do conhecimento, como, por exemplo, a teoria de Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão que também se interessou pelo tema do sonho e pela sua dimensão de análise social. 

Nessa perspectiva, o que nos parece mais relevante é a problematização acerca do que os sonhos podem dizer sobre a vida diurna e de como eles podem nos inspirar com saídas inventivas para os impasses de nossa época a partir das demandas que durante o sonho se apresentam. Ou seja, podem os sonhos ser uma tentativa de resposta subjetiva também às questões que vivemos em vigília?

Nas manifestações sociopolíticas do 8M, entre as narrativas oníricas relatadas pelas mulheres, elegemos o relato de uma sonhadora que trouxe fragmentos de vários sonhos: (1.º) “Estava em um aniversário e minha avó, já morta, estava dando conselhos”; (2.º) “Estou fugindo de um perseguidor que é sempre um homem ou policial. O sonho é recorrente e eu consigo fugir porque sou ninja”; (3.º) “Sonho bastante com casas”; e (4.º) “Estou ‘trepando’, seja com homem ou mulher. Devo ter esses sonhos porque faz tempo que não transo”.

Se pensarmos esses fragmentos de sonhos como um saber não consciente sobre os fenômenos sociais de uma época e se considerarmos que eles têm a estrutura de um despertar, tal como propõe Walter Benjamin, como podemos aproximar o tema dos sonhos e o feminismo para então pensar uma perspectiva feminista para a oniropolítica? Os fragmentos dos sonhos de mulheres engajadas em movimentos sociais e políticos nos permitem criar uma outra gramática sobre o lugar dos corpos femininos no laço social contemporâneo? 

Jacques Lacan, psicanalista expoente da obra freudiana, formalizou uma teoria na qual evidenciou que o laço social, ou seja, aquilo que produz enlace entre os sujeitos, é designado como discurso. Nesse sentido, os discursos são aparelhos de linguagem que organizam modos de relacionamento interpessoal – operação que estabelece, por exemplo, lugares de fala, visibilidade, poder e hierarquização, tal como podemos observar no discurso patriarcal ou no discurso colonizador. Em vista disso, se entendermos o feminismo como a invenção política de uma contraexperiência ao discurso dominante ou, ainda, a invenção de outra modalidade de laço social possível por meio da desmontagem da engrenagem patriarcal, como propõe a filósofa feminista Márcia Tiburi, não poderiam os sonhos sinalizar os elementos que desalinham tal engrenagem?

Acerca do relato da sonhadora no 8M e, seguindo a metodologia benjaminiana na qual o sentido do sonho é forjado a partir da construção de uma constelação que aproxima fragmentos oníricos, podemos pensar que, no relato da sonhadora, iluminam-se os seguintes pontos: (1.º) a transmissão geracional de um saber compartilhado entre mulheres; (2.º) o sentimento de insegurança em relação ao corpo masculino ou àquele que representa a instância de lei ou coerção – a mulher ninja que não se deixa capturar; (3.º) a presença do âmbito doméstico como território majoritariamente feminino, historicamente esvaziado de sentido político; e (4.º) a relação sexual para além da heteronormatividade. Não são essas as questões que borbulham no discurso social de nossa época? Não são questões produtoras dos afetos mais ambivalentes na sociedade atual? Afetos que invocam tanto fenômenos totalitários e estruturas de violência quanto convocam a necessidade de novas formas de saber-fazer política, isto é, de fazer valer a alteridade a fim de ser possível a vida com o outro-diferente. 

Neste breve texto que apresentamos aos leitores, buscamos articular a possibilidade de uma política que não apenas aponte para o que não podemos aceitar, mas que possa também nos inspirar com novos caminhos e alternativas. Partindo da psicanálise e da filosofia, optamos por pensar uma oniropolítica feminista, na medida em que ela, ao articular a dimensão do sujeito, do desejo e da política, abre espaço para pensarmos (e, quem sabe, construirmos) outro mundo possível, onde as marcas do patriarcado, do colonialismo e do autoritarismo possam ser transformadas em outras possibilidades de partilha do campo político, mais emancipatórias, de modo que não retornem constantemente na forma de violência.

Cláudia Maria Perrone é professora doutora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS. Coordenadora do NUPPEC/Eixo 3: Psicanálise, Educação, Intervenções Sociopolíticas e Teoria Crítica.
Juliana Martins Costa Rancich é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3.
Flávia Tridapalli Buechler é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3.
Eduardo Bayon Britz tem bacharelado em Ciências Sociais, é psicólogo e mestrando do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisador do NUPPEC/Eixo 3.
Gabriela Gomes da Silva é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC – Eixo 3. 

*O texto foi originalmente publicado no Jornal da Universidade – UFRGS e republicado no Blog da Criação Humana.