CHRISTIAN DUNKER: Corrupção de Jair Bolsonaro não afeta sua votação porque não causa ressentimento no eleitor

Christian Dunker explora o perfil psicológico dos bolsonaristas e como os sonhos não cumpridos na era PT são encarados como traições. Entrevista originalmente realizada e publicada pelo jornal The Intercept Brasil, por Nayara Felizardo.

O RESULTADO do primeiro turno das eleições causou grande frustração na esquerda, principalmente por forçar a constatação de que há mais eleitores de Bolsonaro do que a racionalidade seria capaz de prever, considerando toda a destruição – de vidas, do meio ambiente, de políticas públicas e de civilidade – provocada pelo seu governo. Essa entrevista com o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, é uma tentativa de entender e de aprender a lidar com esses eleitores que, apesar de todo o estrago, seguem com Bolsonaro. O bolsonarismo, afinal, “vai continuar” e se prova um movimento popular forte que com ou sem Jair no poder.

Para Dunker, uma parcela significativa dos bolsonaristas se sente traída pelo PT. Embora tenha conseguido ascensão social, devido principalmente ao acesso às universidades, a classe trabalhadora esperava viver em melhores condições. Sem associar os problemas atuais à figura do atual presidente, “que age como se não fosse propriamente um governo”, resta a decepção com quem representa o estado para essas pessoas – Lula e Dilma. “Elas se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa”, disse o psicanalista.

Refletindo sobre o perfil psicológico de Bolsonaro, Dunker não o classificou como um perverso ou sociopata. Suas atitudes se explicam mais pela patologia dos tiranos: “Para ser um tirano eficaz, o sujeito tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado”.

Dunker falou ainda sobre o que a esquerda precisa aprender com a comunicação bolsonarista e alertou para a necessidade de ouvir as demandas daqueles que preferiram Bolsonaro. Afinal, eles são mais de 50 milhões. Confira a conversa na íntegra:

“As pessoas não percebem que houve uma regressão causada por má administração nos últimos anos”, avaliou o psicanalista Christian Dunker. “Todo retrocesso que sentem agora passa a confirmar a teoria da decepção [com o PT]”. Foto: Reprodução

Intercept – Como se explica, do ponto de vista psicológico, a quantidade de votos que Bolsonaro recebeu no primeiro turno, mesmo após um governo tão ineficaz?

Christian Dunker – Uma parte importante dos eleitores de Bolsonaro é composta por pessoas que obtiveram muitos benefícios, principalmente nos dois primeiros mandatos de Lula [de 2003 a 2006 e de 2007 a 2010]. É uma classe trabalhadora que conseguiu galgar alguma ascensão social – se deslocaram da miséria para pobreza ou da pobreza para a classe média. Esse processo não é simples do ponto de vista subjetivo, porque ele facilmente pode se verter em decepção. Houve um aumento expressivo de alunos nas universidades, que puderam ter acesso a profissões mais qualificadas. Com um diploma, imaginaram que os empregos iam sorrir para eles e que teriam uma ascensão maior ainda. Na medida em que a universidade não se traduz em aumento real de renda, essas pessoas se voltam para a parte não realizada dos sonhos prometidos. Isso se transforma em ressentimento e em um sentimento de traição. Eles se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa. Ela não está associada ao governo atual, que age como se não fosse propriamente um governo, mas com aquilo que representa o estado para a maioria das pessoas, ou seja, Dilma e Lula.

Outra parcela dos que estão votando contra Lula é ligada ao conservadorismo e à ideia de buscar uma forma autocrática para administrar a coisa pública. As classes média e alta interpretam que o Brasil tem excesso de regras não cumpridas, com complicações burocráticas, em que o estado tem uma função limitadora e não deixa as coisas acontecerem, porque se cria regras para se aproveitar delas por meio da corrupção. Já os mais pobres acham que está havendo um rapto do seu prazer e que seus ganhos não se realizaram, porque foram desviados pelo PT, pelo Lula. Um lado, portanto, sente o estado como um empecilho e, o outro, como uma instância intrusiva e pouco eficiente na promoção de educação e saúde.

Por que esses eleitores condenam a corrupção nos governos petistas e relevam a do governo Bolsonaro?

O discurso da corrupção capta muito bem esse sentimento de traição em relação aos governos do PT. As pessoas não percebem que houve uma regressão causada por má administração nos últimos anos. Todo retrocesso que sentem agora passa a confirmar a teoria da decepção. A corrupção de Bolsonaro também é conhecida, mas não afeta a performance do candidato, porque ela não cai na chave do ressentimento. Em um ambiente de complexidade de determinações, é compreensível que soluções mais simplificadas ganhem relevo, como a retórica de que Lula roubou e isso quebrou o Brasil.

A gente pune o passado a partir do que transformamos no presente e a partir da redução do nosso futuro. É isso que vem acontecendo com o governo Bolsonaro. Ele não usa a retórica do crescimento, da prosperidade, e sim do combate ao mal, da punição dos culpados. Muitos dos eleitores mais vingativos e rancorosos entendem que o que receberam do PT foi uma promessa corrupta [de melhoria de vida]. Portanto, o voto deles é punitivo.

Como você analisa o perfil psicológico do Bolsonaro? Ele é um perverso?

Há algumas dificuldades para incluir a figura de Bolsonaro nesse diagnóstico, e um dos motivos para isso é que ele age ostensivamente como alguém sádico, às vezes, como alguém que ri do sofrimento do outro. Mas essa ação não reflete uma atitude real perversa. Então, parece mais alguém que está dominado por uma fantasia de perversão. Na prática, o que a gente vê são muitas declarações que depois são revertidas. Ele xinga e depois diz que estava brincando; ameaça indígena, mas era só um modo de dizer; homenageia um torturador, mas aquilo já passou. É como se isso fosse um excesso da sua personalidade, mas que humaniza mais do que desumaniza. Está no campo da patologia narcísica, que é a patologia dos tiranos. Para ser um tirano eficaz, o sujeito não pode ser um verdadeiro perverso ou sociopata. Tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado.

No fundo, Bolsonaro seria movido por um sintoma social que a gente chama de cinismo, no sentido de orquestrar os efeitos do que diz e do que faz, como uma espécie de oscilação calculada entre o registro da fala privada e o registro da fala pública. Ele pode dizer que vai trocar o diretor da Polícia Federal, porque está protegendo seus filhos, e isso não cai como uma corrupção. Cai como alguém que pode passar por cima da lei, que pode fazer a justiça com as próprias mãos. E muitos concordam com isso. Para os amigos e a família, tudo.

É o discurso do bullying, de que você fala? 

Exato. É a ideia de que, se você quiser se conectar comigo, vai ser melhor. De que você se empodera por meio da identificação comigo. É uma regra que traz a crueldade e que tem no seu horizonte a ameaça. Isso é próprio de líderes autoritaristas e até populistas. Mas é um populismo que se difere do Lula, porque é segregatório, não inclusivo. Bolsonaro não é uma pessoa perversa, mas promove a perversão das instituições. Isso vale tanto para as instituições que aderiram a ele, quanto para aquelas que ele está atacando.

Você defende que é preciso sermos mais diplomáticos e menos rancorosos com os bolsonaristas. Mas como conciliar o inconciliável, com Bolsonaro e sua política de destruição?

A tarefa vai ser mais longa do que se pensava. A maior parte dos eleitores de Lula entendeu a eleição de Bolsonaro como uma farsa, como um engasgo democrático, com estratégias ligadas às redes sociais e com o apoio de civis e pastores que funcionaram como cabos eleitorais. Acreditam que as pessoas foram enganadas, mas que basta esclarecê-las para elas voltarem ao seu estado de funcionamento normal. A eleição no Senado e na Câmara, dos governadores e dos deputados estaduais mostraram uma realidade diferente dessa. As pessoas realmente sabem o que estão fazendo. A pujante votação [de bolsonaristas] consagra um outro projeto de Brasil, no qual prevalece a ideia de que se pode deixar morrer pessoas que têm menos recursos. Tomando como exemplo o trato com a saúde pública na pandemia, isso foi sancionado pelas pessoas.

As regras do jogo vão exigir mais firmeza, mais autocrítica, maior capacidade de elaborar um discurso de desconstrução e de enfrentamento. As oposições ainda não se compuseram a ponto de construir um projeto alternativo. O projeto que a gente tinha era diferente, mas ele foi substituído por esse outro da violência. Agora, precisamos de um terceiro. Você pode chamar isso de renovação da esquerda, de resgate da palavra ou de superação da barbárie. Mas, de toda forma, é o que temos pela frente.

O que a prática bolsonarista faz é dizer que o poder pessoal é que vale. O pai manda, o filho obedece. O homem manda, a mulher obedece. Essa forma de poder personalizada é que está em jogo. Eles não querem destruir as instituições por destruir. Eles querem transformar a autoridade simbólica naquela baseada no poder de opressão. Por isso, consideramos essa prática bolsonarista muito mais como um discurso que já existia e que procurou em Bolsonaro o seu catalizador, do que como a força de uma pessoa que parece muito débil e pouco inteligente. Isso pode ser caótico do ponto de vista de como se organiza uma nação. Pode dar muito errado, e é provável que dê.

Por que a comunicação bolsonarista é mais eficaz, tanto para espalhar suas mensagens como para alcançar o que deseja? E o que a esquerda precisaria aprender com isso?

Há uma espécie de menosprezo por parte dos eleitores bolsonaristas. Eles acham que as pessoas de esquerda, os professores, os jornalistas, os intelectuais e artistas se acham superiores e são arrogantes, que não são como as outras pessoas, por isso, merecem um corretivo moral. A esquerda ainda não conseguiu se deslocar desse lugar, ainda que ele seja equivocado. Ela [a esquerda] tenta produzir um antídoto para o bolsonarismo baseado na tomada de consciência, mas não consegue entrar em uma comunicação pessoal e direta, de igual para igual, autêntica.

Tudo aquilo que você pode entender como um vício ou um erro, a exemplo do uso de palavrão, ameaça, exposição familiar e preconceitos, confirma um certo modo de relação que a gente vê prosperar na linguagem digital. A esquerda fica de mãos atadas indevidamente, porque diz: “Eu não vou fazer como eles, isso me rebaixará”. O argumento é correto até a página três. A partir de então, a gente começa a confundir duas coisas, que é a eficácia no discurso e a veracidade do discurso. O discurso bolsonarista é muito eficaz, apesar de pouco verdadeiro. Mas ter um discurso verdadeiro não vai mudar a eficácia dessa relação comunicacional.

De que adianta falar a verdade se ninguém te ouve?

Exatamente. O arrogante fala as verdades, mas elas são inúteis para quem ouve. A gente vai precisar arriscar um pouco mais na natureza dos argumentos, na capacidade de também devolver à altura e saber modalizar o uso do humor, da agressividade, da exclusão, da segregação que, hoje, a esquerda parece praticar mais contra si mesma do que contra o bolsonarismo. Muitos discursos concentram ataques distorcidos contra aqueles que não são os seus inimigos sociais. É muita agressividade contra si e uma espécie de atitude educativa, complacente e, eventualmente, arrogante. Em alguns casos, a atitude inicial é nem falar, porque se considera que algumas pessoas não são dignas da palavra. Enquanto a gente estiver nessa posição equivocada, escolhendo mal os inimigos e agindo de forma pouco eficaz com aqueles que são os nossos verdadeiros adversários, acho difícil que o panorama eleitoral se transforme.

Independentemente de quem vença, já não somos o mesmo país depois do governo Bolsonaro. Como isso vai afetar a saúde mental dos brasileiros no pós-eleição? 

Infelizmente, esse é um diagnóstico que a gente precisa fazer. A saúde mental vai piorar, como a gente já alertou em 2018, porque não é possível que o discurso da violência, das armas e da autoridade pela força não se prolongue em mais sofrimento para quem está mais vulnerável. Vai piorar antes de melhorar. É importante colocar na pauta a saúde mental e ter em vista que o discurso tem consequência na nossa vida psíquica. Aquele que tem poder, que tem autoridade, seja o professor, o médico, o político, ele tem responsabilidade na construção da saúde mental coletiva. Quando um governante fala de forma opressiva, desdenha do sofrimento alheio, isso tem um impacto transversal nas relações, que se tornam mais agressivas. Nossa perspectiva de mundo se torna mais fechada, a nossa perspectiva defensiva diante do conflito se torna mais intensa. Tudo isso complica a nossa saúde mental, já um tanto quanto combalida.

Uma coisa que o governo Bolsonaro alterou foram os limites. De tanto ele esticar a corda e não cumprir regras ou leis, as instituições foram recuando, em uma tentativa ineficaz de amenizar as tensões. Quais as consequências disso?

As consequências podem ser as piores, porque um segundo mandato vai sancionar a lógica da opressão e da violência por meio das urnas. Por outro lado, podem ser as melhores no sentido de que esse discurso só deu certo porque conseguiu insuflar uma insatisfação real das pessoas. Ele só é eficaz porque demanda transformações na maneira como o brasileiro médio se relaciona com o país, com o seu regime fiscal, tributário, com as instituições de saúde, de educação, com tudo aquilo que faz do estado ou uma extensão dos interesses privados das classes mais poderosas ou um instrumento de opressão das classes menos favorecidas. Isso seria um efeito benéfico para impulsionar informações necessárias que precisariam entrar de forma mais rigorosa na nossa pauta de transformações. De toda maneira, o Brasil vai precisar de outra coisa. Não vai passar o que a gente já conhece do modelo de gestão, do modelo democrático, das políticas públicas que já estão postas desde a constituição de 1989 e que tentaram se implantar no Brasil durante o período de Lula e Dilma.

O que a gente pode esperar do bolsonarismo sem Bolsonaro no poder e com Bolsonaro no poder?

O bolsonarismo vai continuar. Precisamos reconhecer que é um movimento popular, que entrou nas camadas menos favorecidas. Ele produz organicidade na ação entre as pessoas e reconhecimento entre os envolvidos. É um movimento que tem a possibilidade de se reproduzir, de se recompor e de enfrentar revezes.

Esse discurso como laço social precisa ser enfrentado de forma metódica, com mais força e com mais potencial de coerção, inclusive, dos órgãos reguladores da imprensa, de órgãos reguladores do uso da máquina digital e das concessões públicas. Precisa ser enfrentado como algo bastante perigoso para a institucionalidade do país. Isso vai demandar que se fale um pouco mais a linguagem do próprio bolsonarismo. Que a gente apreenda que há, sim, uma parcela que só vai se transformar pela força. Pode ser pela força da palavra, pode ser pela força da lei. Mas, durante algum tempo, vai ser necessário para que a gente consiga implantar uma educação política, para responder às insatisfações legítimas por trás do bolsonarismo. Ainda que a forma seja desastrada, não democrática e autoritária, ela tem lá o seu grão de verdade. O Brasil tem quase metade da sua população muito insatisfeita. É preciso reconhecer que há uma demanda para ser tratada.

Qual seria essa essa demanda legítima do bolsonarismo?

São demandas que a esquerda também reconhece, como a simplificação nas relações com o estado. Por exemplo, que o estado deixe de se demitir em certas áreas e em certas geografias do país. Ele se demitiu das prisões, e é fundamental retomar, reinstitucionalizar nossas prisões. O estado se demitiu de muitas comunidades – isso é um erro e tem consequência. O processo de “milicialização” do Brasil é um sintoma, porque o estado se demitiu de cuidar, de urbanizar a vida nesses lugares.

A ideia de que é possível governar com mais transparência pode ser posta em prática. No bolsonarismo, a transparência é a pessoalidade. É como um chefe de família fazendo contas domésticas, e não planejando o orçamento de um país. Isso está errado. Mas o que tem de verdade aí é que as pessoas querem transparência real. Não há nenhum motivo para não conversar mais. Existe um descompasso entre os recursos que temos hoje em termos de alcance de cobertura digital e a possibilidade de ação sobre o estado, de democracia direta.

Christian Dunker é professor, youtuber, psicanalista e autor de diversos livros. Entre eles a obra “Psicanálise e Saúde Mental”, que escreveu junto com Fuad Kyrillos Neto, disponível no nosso site. Clique aqui para saber mais!

Resenha | O que aprender com as transidentidades

por Andréa Máris Campos Guerra

Em O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política[1], Eduardo Leal Cunha, Psicanalista e Professor da Universidade Federal de Sergipe, procura extrair as consequências de uma análise epistêmico-política de sua experiência clínica e de sua leitura contemporânea acerca das dissidências de gênero, como chave de leitura, para nossa contemporaneidade. Agamben[2] define o contemporâneo como o que se desloca em uma época e, por isso, permite lê-la, interpretá-la. Assim, poderíamos caracterizar esta obra: uma chave para alcançar a maquinaria que nos subjetiva, adestra, adoece. Nosso agora, com seus requintes imperialistas e colonizadores sobre os corpos que, subalternizados, resistem.

Em estilo dialógico sistematizado, e desde uma construção posicionada, anunciada e trabalhada a cada passo, o autor tece os tensionamentos e as complexidades das respostas, acerca das sofisticadas questões, com que subverte o pensamento e a práxis, no campo político-clínico, para ele, indissociável. As transidentidades dão testemunho da impossibilidade de um discurso totalizador e normativo, com ensejos de universalidade, ao abarcar a experiência de um corpo, apropriar-se subjetivamente de sua identidade e alienar politicamente sua intimidade. Por isso mesmo, é um livro no qual, a cada argumento, o autor defende radicalmente a assunção de uma resposta singular, em termos de enunciação e decisão sobre o próprio corpo, e de modos de resistência política, em relação aos discursos e práticas jurídico-higienistas homogeneizantes, quanto ao modo de pertencimento de gênero, junto a quem experiencia suas dissidências.

Sua tese de fundo é a de que, longe de uma patologização das experiências trans, de sua redução diagnóstica e da dissociação entre clínico e político, estas experiências entreidentitárias são a expressão do esgotamento de nossos modelos de inteligibilidade e de emancipação. Elas desenham uma lógica paradoxal, na qual não há um horizonte estável identitariamente[3], o que desestabiliza também os códigos de pertencimento, ameaçando o status quo dos regimes sexistas de gênero, dos padrões de leitura-intervenção do sujeito e das apropriações alienantes do saber e dos desiguais de distribuição do poder. Dotado de uma vocação utópica[4] e resistente às formas hegemônicas de subjetivação binária, fala de corpos, que assumem sua mutação, e de sujeitos em transição[5]. Suas três subversões seriam a do controle tecnocientífico dos corpos, a da totalização identitária e a das fronteiras entre público e privado.

No fundo, a questão do livro versa sobre as possibilidades de transformação social, simbólica e política em nosso agora, a partir da gramática das transidentidades, tomadas, elas próprias, em extensiva e aprofundada análise, a partir do saber psicanalítico, sempre em interface com outras disciplinas. E o autor aposta que as dissidências de gênero, como singularidades quaisquer, sabotam toda lógica totalizante e segregativa de pertencimento/exclusão dos grupos identitários[6], recusando qualquer invariante antropológica. E, finalmente, dados os estrangeirismos de cada vivência íntima dissidente de gênero, recusa qualquer antecipação diagnóstica ou suposição de sofrimento como lhe sendo intrínseca, tomando-as, antes, como estratégias subversivas, face aos modos hegemônicos e homogeneizantes de codificação linguageira e teórica, de subjetivação e de alienação política em nossa história ocidental.

A partir de uma escrita orientada pelo a posteriori, o livro começa a ser escrito em intervenções e estudos desde 2015. Seu primeiro capítulo, que recenseia as questões do campo de estudos de gênero pela psicanálise, ganha sua versão final apenas no ano de seu lançamento, em 2021. Nas considerações preliminares, Cunha declara o que o livro traz e o que ele não pretende. Ele anuncia que irá analisar a forma como os supostos desvios da norma sexual, nomeados por ele como dissidências de gênero, nasceram no campo psicanalítico, a partir dos estudos dos direitos dos homossexuais à formação de famílias[7], enquanto os estudos sobre transidentidades vieram depois. O termo transidentidades, no plural, adotado por ele e criado pela socióloga Boedeker, ocupa o lugar de outros como transgênero, transexualidade ou transexualismo. Trata-se de um ato epistêmico-clínico que visa romper com uma perspectiva normativa e uma experiência de exceção e de exotização da diferença não binária, evitando, de saída, atributos como patologização, debilidade, subdesenvolvimento ou falha em relação a um modelo cis, suposto normal. O autor, inclusive, destaca a importância de se nomear o trans e sucessivamente o cis, marcando um “não” à excepcionalidade do primeiro.

O autor insiste também na separação entre sexo e gênero, mostrando que o gênero, sem referência ao sexo, coloca em xeque o paradigma na inversão sexual e na norma binária dos gêneros ininteligíveis, dentro dessa codificação. Marcados inicialmente pela psicopatologização e, na sequência, pelo direito à enunciação, o paradigma binário não confere, segundo o autor, unidade à multiplicidade de formas de manifestação de gênero não binária, funcionando antes como elemento de poder. E, mais que isso, as dissidências não binárias de gênero interrogariam os próprios critérios de inteligibilidade, que não as reconhecem, assim como colocariam em xeque os fundamentos teóricos e simbólicos que organizam nossa percepção de mundo[8], dificultado a transformaçãosociossimbólica necessária dessa codificação.

Assim, em três eixos anunciados logo de saída, o autor desenha seu percurso. Aliás, no estilo dialógico, que acompanha todo o texto, anuncia e segue cada questão que formula até constituir sua resposta, sempre, a partir de uma tomada de posição e após uma densa discussão epistêmico-política fundamentada. São esses os aspectos axiais com que abre o livro, nas considerações preliminares: a recusa à patologização das transidentidades; o reconhecimento dos limites das teorias em abarcar a experiência; a formulação de que vivemos a produção de novas formas de existência, ainda não nomeadas e reconhecidas[9]. Por isso, a posição tecida desde um ponto de escuta da atualidade da psicanálise e do psicanalisar.

No primeiro capítulo, Cunha visa mapear as questões teóricas e ético-políticas do campo das transidentidades. Mostra os extremos das construções atuais, que vão do conservadorismo à posição histórico-crítica, na seara psicanalítica. Os equívocos são sintetizados e denunciados: o erro de se tentar proteger as pessoas delas mesmas; a ficção de que seriam pessoas que ultrapassam a barreira da castração, sem limites ao gozo; que não teriam feito uma boa passagem pelo Édipo; que seriam psicóticas ou perversas, interrogando os diagnósticos prêt-à-porter; que estimulariam a propaganda trans promovendo uma certa desordem do mundo; que precisariam se adaptar para serem reconhecidas; e, finalmente, denuncia o risco do identitarismo reducionista. Da episteme à doxa, da posição reacionária à militante, o que estaria em jogo aí seria uma racionalidade neoliberal e suposta científica expropriativa de discursos e alienadora de modos de ocupação do corpo.

O autor passa, então, em detalhes, por aspectos históricos e legislativos que ganham a cena midiática e intelectual francesa e brasileira. Demarca duas chaves de leitura centradas no par diagnóstico-etiologia[10], com uma capacidade de síntese que revela sua maturidade em relação ao tema. Na primeira, é a referência à psicose e à foraclusão, seja pela via do narcisismo, seja pela via do edipianismo, que desenha o horizonte dessa espoliação do sujeito. Na segunda, a via da perversão traz a glamourização e a espetacularização, entre a cultura e a psicopatologia influentes dos equívocos do campo. Num outro eixo, político, a crítica ao Édipo e à normatividade dele decorrente aparece referida aos estudos queer, trazendo, ainda, um ranço acerca da noção de performatividade. Sem unanimidade, Cunha mostra a divisão do campo, situando-se no eixo que destaca certa continuidade entre as leituras do homoerotismo e das transidentidades, com duas questões vitais: o lugar estratégico da dimensão moral, no debate, e, no registro da ética, a aproximação do homo e do trans às fronteiras da monstruosidade, trazendo a discussão dos limites do humano, assim como demarcando a possível colaboração da psicanálise no debate tenso entre as distintas narrativas.

Na sequência, o autor se alonga numa rica e meticulosa revisão da posição agrupada de psicanalistas contemporâneas/os, especialmente brasileiras/os, numa sutileza fina e crítica de posicionamentos e debates pouco explicitados e tão claramente nomeados, como ele consegue fazer. A leitura do original, aqui, é formadora. Posiciona-se ao final pela necessária autocrítica do campo psicanalítico sobre o tema, por deixar de lado as categorias transexualidade/transexualismo; por recusar qualquer posição soberana da psicanálise sobre a discussão; e pela escolha por apostar na psicanálise, como arma no processo de produção e legitimação de novas formas existenciais, malgrada a crítica contrária a esta possibilidade. Apesar de não incluir a tradição milleriana no debate, com autores como Clotilde Leguil[11] e Fabian Fajnwaks[12], ou ainda o longo debate do ambiente psicanalítico norteamericano, promovido por Patrícia Gherovici[13], este capítulo funciona como um verdadeiro guia para posicionar aqueles que desejam se situar, em relação ao debate contemporâneo da psicanálise, sobre os estudos transidentitários. Um primor.

No capítulo dois, Cunha se detém no debate acerca do homossexualismo com Didier Eribon, a partir de um diálogo com os argumentos foucaultianos. A inteligibilidade heterossexual confunde subjetivação e sujeição, conformando a leitura da psicanálise ao lado dos procedimentos de confissão, vinculada à ciência sexual como dispositivo de normalização e silenciamento, dentro da tradição europeia cristã e burguesa, ainda que ela possa estar, também, fora deste argumento filosófico e ao lado das lutas de resistência; ser mobilizada como dispositivo de escuta capaz de produzir abertura ético-política a outras formas de existência[14].

Nessa seara, as relações entre sexo, norma e verdade guiam o capítulo, a partir das discussões dos anos 1970 do ambiente francês, num franco tensionamento de Barthes e Foucault com o Édipo, o modelo patriarcal e heteronormativo e a pretensa enunciação da verdade pela psicanálise. Seja pela via da crítica teórica de conteúdo, seja pela via da crítica da forma pela literatura, a psicanálise é acusada de discurso de poder, que se deseja hegemônico, por Eribon.

Cunha propõe pensar então como a psicanálise pode escapar dessa posição normativa, totalizante e universalista, ao invés de se buscar escapar da psicanálise. Contra o estabelecimento de estratégias de dominação e aberta à produção e reconhecimento de novos significantes e inteligibilidades, é a interrogação do caráter ficcional da teoria; a convivência literária, com múltiplas teorias concorrentes, e o lugar subjetivo, na enunciação, ao lado da denúncia da verve ideológica e normalizadora, que o autor mobiliza a ideia de contingência e instabilidade da obra. Aqui, nos parece, reside o caráter mais delicado do argumento do livro. Entre a vivência contingente de um corpo, a ideologia política de manutenção das relações hegemônicas e a teorização da experiência, sua defesa é a de que, contra a crença numa autoenunciação soberana, como a que defende Eribon para os homossexuais, a psicanálise instala a condição clínica da produção de discursos concorrentes e de instabilidade dos saberes sobre sexo e gênero, abrindo a condição da convivência com uma multiplicidade de formas de ocupação do corpo e do gênero[15]. Essa seria uma vocação da psicanálise que pode ser deturpada por seu uso, acrescentaríamos.

Sua escuta deve sempre permitir no nível dos processos de subjetivação, a irrupção do divergente, do dissidente, do ininteligível, do que se pode constituir como contraponto, anárquico e rebelde, de toda pretensão identitária. No registro teórico, o inimigo a combater são os propósitos totalizantes e toda e qualquer formulação universal[16].

A delicadeza consiste em não localizar o que, de um corpo, insiste pulsionalmente em se repetir e o que, da teoria, resiste à docilização ideologizante e normativa como baliza indispensável aos fundamentos teóricos da clínica. Tomar a experiência da escuta e da teoria como singulares ao acontecimento dissidente de corpo, já é uma direção geral, mesmo que aplicada, caso a caso, na singularidade da vivência clínica. O fato de haver um movimento opressor e normativo, hegemônico e discursivo, a ser combatido, não retira da teoria sua potência articuladora da noção de sujeito e da direção clínica.

A própria ideia de que o sujeito é o único apto a enunciar sua verdade, não toda submetida à teoria, o que faz de cada corpo, em sua decisão pelo gênero, único, já seria uma direção clínica teorizável sem ensejos totalizantes – ao contrário. Podemos, então, supor que a defesa do autor recai nessa direção de se evitar um sentido unívoco e normatizador, no uso da teoria psicanalítica. Daí, suas duas conclusões: evitar um saber antecipado sobre o sujeito trans e exercer uma escuta que supere o regime de inteligibilidade invisibilizante, deixando-se despertar pelas interpelações dos grupos dissidentes, tarefa que o psicanalista reenvia à psicanálise, renovando, desde seus fundamentos, por um lado, e, por outro, direção que a teoria psicanalítica oferece ao psicanalista, para exercício não tirânico nem violento de sua práxis.

No terceiro capítulo, o autor discute as condições da prática de escuta das transidentidades. Fala dos efeitos iatrogênicos que erros estratégicos, como o de ajustar antigas práticas para novos fenômenos, pode engendrar. Ele concebe, portanto, as transidentidades como experiências inéditas, efeito de nossa época, não devendo ser a priori patologizadas. Enumera então as condições de escuta: respeito absoluto à autonomia, à responsabilidade e à liberdade do indivíduo – termos a serem ainda explorados por seus densos limites e tensões ético-ontológicos; não focar na transidentidade, mas escutar o sujeito; manter uma posição de exterioridade em relação à racionalidade e ao dispositivo médico-terapêutico; recusar toda posição de poder; respeitar a ética da escuta contra a ética da tutela. Não são prescrições, mas, antes, a transmissão de uma posição advertida.

Após o relato de uma experiência de trabalho em grupo, junto à extensão universitária da universidade federal, pública e gratuita, onde trabalha, a aposta do autor se fortalece numa posição sempre muito explicitada para o leitor. Ele defende a multiplicidade de enunciados, nos espaços de escuta, como forma de abalar as posições fixas, universalizantes e hierárquicas na crítica aos padrões de inteligibilidade normativos, bem como busca evidenciar como se pode realizar a abertura a novas formas de inteligibilidade de gênero. Manifesta-se contra o privilégio epistêmico da perspectiva cis e binária e contra, também, a norma heterossexual como padrão de leitura teórico-clínico silenciador.

Novamente, temos o padrão iterado de forças de oposição com duas pontas em tensão, conservadora e crítica, em meio à complexa e sutil gama mesclada de tons de leitura quanto às transidentidades. Cunha mobiliza Freud para retomar os pressupostos da clínica, nunca contraindicada a nenhum psicanalisante. Isola, enfim, três problemas ou campos temáticos referidos, seja à construção de um modelo de reconhecimento, que parte, pois, de uma perspectiva política e relacional; seja ao caráter contingente e histórico-cultural das teorias; seja quanto à legitimação da psicanálise, no enfrentamento ao sofrimento psíquico, quando em exterioridade ao dispositivo médico-terapêutico[17].

No capítulo 4, o autor se apoia na perspectiva da patoanálise e da antropologia da clínica psicanalítica, defendida como posição de desconstrução da matriz universalizante e edípica, para estudo da histeria, por uma dupla belga: Van Haute e Geyskeins[18]. Num diálogo muito rico com a proposição, incluindo outros interlocutores, Cunha desloca para as transidentidades a ineficácia de uma busca etiológica e psicogênica de experiências de mundo, muitas vezes patologizadas por fugirem ao modelo epistêmico-político dominante. Van Haute e Geinskeins aportam a uma proposição ético-político de leitura que desvaloriza a distinção normal-patológico e se guiam por princípios éticos e heurísticos, que mostram a exacerbação do humano em sua matriz subjetivo-social. Deslocam-se, desta feita, da matriz ideal da norma, contra a falha da patologia, já extensamente evidente desde a tese de Canguilheim[19].

Cunha destaca a data histórica de cada problemática subjetiva, mobilizando a categoria tempo, na defesa de que as vivências patologizadas indicam sintomas de uma época. Ao deslocar o individual para o sociocultural[20], lembra Fanon[21], em sua sociogenia, na busca por modos contingentes de tratar o sofrimento psíquico do colonizado. Isola termos que se tornam obstáculos a esta gramática como essência e natureza, mostrando novamente a dimensão política em jogo na correlação mesma de termos conceituais.

Cunha distingue dois traços de nossa época que recaem codificados nas experiências trans como formas de existência articuladas à cultura. São eles: a centralidade da experiência de corpo manipulável pela tecnociência capitalista neoliberal e a redução da experiência subjetiva à forma do indivíduo proprietário. A questão, então, se desloca da problematização acerca da legitimidade ou não da psicanálise, como ferramenta político-clínica de resistência (ou validação), à lógica universalizante de leitura-intervenção para a questão do que pode a psicanálise oferecer a pessoas que vivem experiências transidentitárias. Aqui, a inversão se radicaliza. Para o autor, a mudança quanto ao modo de apropriação destas experiências trans pode implicar na subversão dos próprios padrões hegemônicos de produção de inteligibilidade, testemunhado o esgotamento dos atuais. Numa espécie de campo de experimentação ético de um espaço heterotópico[22], outras formas possíveis de existência estariam sendo escritas como legítimas. Utopia? O autor pede licença para defender uma posição limite de ontologia crítica de nós mesmos.

O último capítulo, reescrito muitas vezes, segundo Cunha, encontra uma boa forma de firmar o leme, retomar as premissas da tese, que defende, e indicar caminhos. Na verdade, para ele, as transidentidades constituem uma chave de leitura do contemporâneo em sua fixidez binária e seus desejos de universalização. A torção, permitida pelo capítulo 4, inverte os termos e mostra uma sociedade adoecida pelo enrijecimento quanto à experiência binária de gênero como padrão universal de uso do corpo. A exploração desta dimensão política, expandida em suas consequências sobre a teoria e a clínica, implica em reconhecer a articulação necessária entre processos de construção subjetiva e modos de organização societária[23].

Neste capítulo, a descrição de situações jurídicas e cotidianas mobiliza a leitura a uma espécie de nonsenseem que as referências conservadoras se mostram absurdas. A partir de três categorias êxtimas – topologia não euclidiana de um fora que não é um não dentro –, ao campo psicanalítico, arremata a obra. A primeira, corpo, é retomada pela biopolítica de Foucault, atualizada por Agamben e Preciado, deixando a ver a governamentalidade de modos de viver, o dispositivo tecnocientífico biomédico definindo vidas, que merecem ou não viver, e finalmente corpos submetidos ao regime hegemônico de produção e circulação de valores e procedimentos. Contra eles, dois movimentos de resistência são descritos: a recusa em reconhecer, no discurso tecnocientífico, uma verdade absoluta e a reinvindicação pelo direito de decidir o uso das tecnologias correlatas no próprio corpo[24].

Na segunda categoria, as identidades compulsórias dos movimentos identitários na luta por reconhecimento[25] são indicadas como signo de um sistema falido de representação e esgotado em termos de modelos de emancipação. O impasse do identitarismo aparece, de um lado, ao reenviar a luta política a processos de segregação entre pares, mostrando o próprio limite da estratégia. Mas, por outro, a dispersão identitária fragiliza a articulação política em nome de um suposto ‘comum’.

O que se critica então é a racionalidade identitária em si mesma, dado que ela engendra padrões de inteligibilidade, legitima padrões de poder e estabelece hierarquias entre os indivíduos, por ela nomeados e esquadrinhados. O autor volta-se contra a forma hegemônica de subjetivação imposta política e discursivamente, a partir daí, como compulsória. Ele se manifesta, assim, contra a própria racionalidade neoliberal instrumental da noção de identidade, como fonte de controle e previsibilidade, como forma imposta hegemonicamente do viver igualmente para todos. As transidentidades, assim como qualquer outra dissidência de gênero, estariam tão submetidas a este regime como qualquer outra experiência adaptada ao binarismo reinante. Todes estariamsubmetides. A mudança do próprio corpo societário entra em cena, com seus códigos tecnocráticos, tecnológicos, teóricos, relacionais, éticos e políticos de pertença e reconhecimento.

Finalmente, com a noção de intimidade, o autor problematiza a redução do político ao íntimo – tema de outra obra do mesmo autor. A afirmação da intimidade, como objeto da ação política por excelência[26], leva Cunha a evidenciar as contradições advindas dessa operação política. Ele defende um outro estatuto da memória, entre o esquecer e o rememorar. Mostra o presente como ruptura com um passado que precisa ser esquecido para que um novo sujeito exista, ao mesmo tempo, em que algo precisa ser preservado, numa espécie de entrelugar, que nos evocou a noção de hibridez, terceiro elemento topológico complexo de Bhabha, não mobilizada pelo autor, mas certamente presente em sua bagagem literária.

O que, enfim, Cunha movimenta é a noção de reescrita de si, sem apoio a qualquer estabilidade, seja do passado, seja do presente, dado que o “eu” se encontra em transformação. Haveria, pois, uma outra relação com a temporalidade[27]. A instabilidade identitária deste espaço entreidentidades aponta para figuras como incompletude, singularidade qualquer, paradoxo, fluidez e sabotagem, que despontam como recursos para análise dos corpos em mutação, desses sujeitos em transição, na potência dos sistemas de representação. Seriam realizadas, por essas vivências, três subversões: do controle tecnocientífico dos corpos, da totalização identitária e das fronteiras entre público-privado, que circunscrevem a esfera do político no íntimo.

Daí, o autor assinalar alguns aspectos finais na direção que oferece ao tema, a partir do aprendizado extraído de sua clínica. Empreendimento que atualiza uma discussão clássica, revirada no contemporâneo da obra como elemento de análise do próprio corpo societário hegemônico. Torna-se, assim, chave de leitura para se pensar a transformação social concreta, repensar a clínica e reinscrever as normas de inteligibilidade dos corpos. Aprendemos com a leitura do livro a diagnosticar nossa época, suspender o modelo binário de pertencimento e clinicar atentos ao que ensina a experiência com as transidentidades. Invertida a lente, o que se torna adoecida é toda uma sociedade violenta e totalizante com desejos de universalizar univocidades e de legislar sobre modos de pertencimento e de satisfação. Esquema imperial que torna colonizado todo corpo que resiste ao adestramento.

O que, enfim, nos parece ressurgir como questão, após a leitura da obra, pode assim ser enunciado: como conceber formas de vida em sociedade que comportem, ao mesmo tempo, as singularidades quaisquer e certa ética do viver em comum? Pensar em formas de alianças entre os corpos que não passem exatamente por uma identidade específica e pré-determinada, mas por uma lógica que permita um tipo de agrupamento não totalitário capaz de abarcar as diferenças, sem formar conjuntos normativos. Nesse sentido, nos parece, a solução sempre comportará um paradoxo, um ponto de abertura e escape, pois apontará incessantemente para regimes de exceção como regra do que escapa e, por isso, se constitui como um não-todo.

Um mesmo indivíduo pode ser o lugar de múltiplos processos de subjetivação, agenciados na contemporaneidade por uma multiplicidade de dispositivos. E essas formas podem ser alçadas por diferentes modos de dominação e submeter o desejo a diferentes formas de gozo. Assim, podemos compreender como os dispositivos normatizantes não são apenas uma armadilha que vem de fora, do exterior. Eles são também forjados pelo vivente e lhe conferem sua condição de existência e permanência, de fixidez[28]. Daí esta questão central: como operar a transformação subjetivo-social e política, desde uma topologia em que dentro e fora se articulam em continuidade e corte -topologia moebiana –como vias de resistência e invenção?

Em outros termos, o livro testemunha nossa herança colonial. O psicanalista e o trabalhador de saúde, o operador do judiciário e o técnico-pesquisador recebem, em nosso século, a tarefa clínico-política de reverter os processos de colonização do poder, do saber, do ser e do gênero[29]. Se o ser vivente é substância, o sujeito afirma-se como presença de uma singularidade qualquer. Como operar o comum a partir dessas diferenças, sem transformá-las em dissidências em relação a um padrão prévio? A ideia de “qualquer”, em Agamben – no sentido da singularidade despida de identidade, indeterminável pelo conceito, inclassificável, nos sistemas, pela propriedade comum – nos auxilia a entender que aí o sujeito encontra seu pertencimento na relação com uma totalidade vazia e indeterminada. Essa totalidade, entretanto, é ocupada por regimes discursivos e hierarquizantes de poder que adestram corpos.

O ponto a que o livro nos conduz, em suas indagações e proposições, reside exatamente num questionamento acerca dos modos e meios de resistência numa multiplicidade de planos: epistêmico, ético, ontológico, político. Onde encontrar sua encruzilhada para movimentar sua fixidez? Desde o sujeito, alcançamos a mudança discursiva? Desde a política, mobilizamos a voracidade do supereu inconsciente dos sujeitos? Desde a teoria, alteramos os códigos jurídicos? Desde a Medicina, transformamos os padrões binários de leitura e intervenção sobre os corpos e sobre as relações entre os sujeitos?

Como sujeitos no laço social, estamos marcados por uma precariedade que, ainda que desigualmente distribuída, se constitui como possibilidade de atuação política coletiva. Não se trata de buscar uma união fundamentada em certo ideal de vida, o autor é peremptório nessa crítica, mas em buscar a composição de uma ética decorrente de nosso estatuto de sujeitos em relação política e que nos permita suportar nossas diferenças. O irrepresentável no sistema, aquilo que escapa à nomeação, se mostra, por isso mesmo, sempre ponto de abertura. A questão estratégica se reserva a pensar em como manter essa abertura sem ocupá-la com os regimes sexistas, patriarcais, imperialistas, racistas e financistas de poder. Questões ampliadas, assim, para nossa época e para nosso porvir. Tarefa inapelável e indispensável.

Em movimento descontínuo, nos parece, podemos avançar, mas não sem os marcadores pulsionais que resistem; as inscrições da memória que se desejam apagadas e não sem o outro, que legisla com seu gozo e sua “in-consciência” estrangeira e alienante. Nosso século certamente construirá boas respostas às inquietantes questões a que essa obra nos conduz. Obrigada, Eduardo Leal Cunha, por formulá-las com a clareza de quem não recua ante os impasses de sua geopolítica e de sua época. Seguimos a viagem em boa companhia! ♦ 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio (2006) “O que é o contemporâneo?”. In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius de Castro Honesco. Chapecó: Argos, 2013, pp. 55-76.

CANGUILHEM, Georges O normal e o patológico. 7º ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

COSTA-VAL, Alexandre; GUERRA, Andréa Máris Campos (2019) Corpos trans: um ensaio sobre normas, singularidades e acontecimento político. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 1, pp. 121-134, Jan.-Mar.

CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana.

FAJNWAKS, Fabian; LEGUIL, Clotilde Subversion lacanienne des théories du genre. Paris: Éditions Michèle, 2015.

FANON, Franz (1952). Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GHEROVICI, Patrícia Please select your gender: from the invention of hysteria to the democratizing of transgenderism. Londres: Routledge, 2010

GHEROVICI, Patrícia Transgender Psychoanalysis: A lacanian perspective on sexual difference. Londres: Routledge, 2017.

LEGUIL, Clotilde L’être et le genre: homme/femme après Lacan. Paris: Presses Universitaires de France, 2015 e LEGUIL, Clotilde “Je”: une traversée des identités. Paris: Presses Universitaires de France, 2018.

QUIJANO, Aníbal “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina.” In Colonialidad del Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2000.

VAN HAUTE, Philippe; GEYSKENS, Tomas Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Trad. Mariana Pimentel. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


* Andréa Máris Campos Guerra é Psicanalista e Professora no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena o Núcleo PSILACS. Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ) com Estudos Aprofundados em Rennes 2 (França). Professora visitante na França, Belgica e Colômbia. Membro-fundador da Rede Internacional RICA de investigação em Psicanalise e Criminologia, do GT Psicanalise, Clínica e Política da Associação Nacional de Pesquisa em Psicologia (ANPEPP), da Rede Interamericana de Pesquisa e Psicanálise e Política (REDIPPOL) e do Coletivo Amarrações. Autora de diversos livros e artigos. Email: [email protected]



[1] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana.

[2] AGAMBEN, Giorgio (2006) “O que é o contemporâneo?”. In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius de Castro Honesco. Chapecó: Argos, 2013, pp. 55-76.

[3] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 142.

[4] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 135.

[5] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 146.

[6] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 149.

[7] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 12.

[8] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 19.

[9] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 20.

[10] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 33.

[11] LEGUIL, Clotilde. L’être et le genre: homme/femme après Lacan. Paris: Presses Universitaires de France, 2015 e LEGUIL, Clotilde. “Je”: une traversée des identités. Paris: Presses Universitaires de France, 2018.

[12] FAJNWAKS, Fabian; LEGUIL, Clotilde. Subversion lacanienne des théories du genre. Paris: Éditions Michèle, 2015.

[13] GHEROVICI, Patrícia. Please select your gender: from the invention of hysteria to the democratizing of transgenderism. Londres: Routledge, 2010 e GHEROVICI, Patrícia. Transgender Psychoanalysis: A lacanian perspective on sexual difference. Londres: Routledge, 2017.

[14] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 58.

[15] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 77.

[16] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 78.

[17] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 98.

[18] VAN HAUTE, Philippe; GEYSKENS, Tomas. Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Trad. Mariana Pimentel. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

[19] CANGUILHEM, Georges O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

[20] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 114.

[21] FANON, Franz (1952). Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

[22] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 121.

[23] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 123.

[24] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 133.

[25] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 134.

[26] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 139.

[27] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 139.

[28] COSTA-VAL, Alexandre; GUERRA, Andréa Máris Campos (2019) Corpos trans: um ensaio sobre normas, singularidades e acontecimento político. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 1, pp. 121-134, Jan.-Mar.

[29] QUIJANO, Aníbal “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. In Colonialidad del Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2000.

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA LACUNA | GUERRA, Andréa Máris Campos (2021) Resenha | O que aprender com as transidentidades (Cunha, 2021). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -12, p. 9, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-09/>.