Como seria uma inclusão financeira feminista?
Crítica teórica e prática às finanças desde uma perspectiva feminista.
Por Luci Cavallero*, Verónica Gago** e Celeste Perosino***
A pandemia levou uma enorme parcela da população a um processo acelerado de precarização. Novas formas de inclusão financeira através da cobrança de subsídios de emergência são, na sua maioria, dirigidas a ela. As chamadas políticas de “inclusão financeira” confirmam assim uma segunda onda de financeirização das populações mais precarizadas após a era do microcrédito. A inclusão financeira é geralmente de sujeitos já endividades. É necessário gerar informação sobre o endividamento privado com perspectiva de gênero e diversidade.
No meio da crise, ouvimos repetidamente falar da inclusão financeira. Se escuta uma e outra vez, em meio a crise, falar de inclusão financeira. De que se trata? Durante a pandemia, a necessidade de se fazer cumprir o pagamento de subsídios de emergência colocou no centro da cena a inclusão financeira como uma ferramenta para chegar a populações das quais o Estado não tinha registro. Esta situação atualiza uma série de debates seguidos de que, nos últimos anos, o sistema financeiro tem aparecido como parte do problema mais do que da solução.
A proposta baseia-se na crítica teórica e prática das finanças que a perspectiva feminista tem implantado nos últimos anos. Nos situamos como parte desse processo que tem propiciado o encontro de experiências sindicais, organizações populares, acadêmicas, políticas, institucionais. A partir de uma leitura feminista, a paisagem dos números e linhas (de pobreza, de dívida, de inflação) envolve corpos concretos. Queremos problematizar ao menos quatro pontos.
Em primeiro lugar, as ferramentas propostas como parte da chamada “inclusão financeira” no momento atual, que fazem parte de um contexto estruturado por quatro anos de endividamento externo e doméstico (registado e não registado) que, náo há como deixar de dizer, implicam cifras de recordes históricos que se traduzem em extrema capacidade de chantagem de um modelo de valorização financeira. Por isso perguntamos: não deveria qualquer tipo de política financeira levar em conta que essa “inclusão” se faz no interior dos mesmos circuitos de valorização e dívida que produzem a situação de pobreza e expropriação?
Logo, constatamos de várias maneiras que a pandemia levou uma enorme parcela da população a um processo acelerado de precarização. Novas formas de inclusão financeira através da cobrança de subsídios de emergência são, na sua maioria, dirigidas a ela. Uma vez Escrito de modo mais direto: o subsídio é suspenso, mas a conta permanece e pra que servirá? O que significa a produção de uma nova população com registo bancário, mas sem renda garantida?
Um terceiro elemento é, ao mesmo tempo, local e global. A crise tem uma dimensão geopolítica: como esse tipo de propostas, financiadas por organizações multilaterais, se inserem na discussão sobre as causas da crise?
Finalmente, parece ser a chave como o movimento feminista tem demonstrado e politizado a interconexão das violências econômicas com as violências machistas, com uma ênfase especial à violência financeira do endividamento doméstico. Nessa linha, é fundamental pensar no quadro geral das ferramentas financeiras, levando em consideração o aumento exponencial da violência doméstica na atual conjuntura.
Política Global
A chamada “inclusão financeira”, embora tenha uma agenda nacional, deve ser enquadrada num processo global que aponta para a crise de 2008 como um ponto fundamental. Desse modo, ainda que atualmente na Argentina esses termos possam ser usados para nomear processos variados, que vão desde o registo bancário para arrecadação de subsídios sociais até o desenvolvimento de instrumentos financeiros para projetos de autogestão, é importante conhecer a dimensão geopolítica na qual surge esta proposta.
As políticas denominadas como sendo de “inclusão financeira” configuram uma segunda onda de financeirização das populações mais precárias após a era dos microcréditos. Um marco desse avanço pode ser lido no documento de 2008 do Banco Mundial intitulado Finance for all (“Finanças para todos”). Nele se postula a necessidade do desenvolvimento de mercados “mais inclusivos” e uma mudança de paradigma com o desenvolvimento de produtos e serviços financeiros que incorporem novas tecnologias, a fim de alcançar setores não bancarizados, mas que possuam algum tipo de conexão digital.
Em 2011, na “Aliança para a Inclusão Financeira” se reatualiza a já conhecida retórica da “Aliança para o Progresso” (aquela que falava das populações fracassadas do Terceiro Mundo), agora em versão high tech. A partir disso, alguns autorxs definem “inclusão financeira” como um “novo consenso de Washington” para ilustrar a confluência de atores que vão desde funcionários públicos e formuladores de políticas públicas até os fundos de investimento, com o apoio explícito do G20.
Na América Latina, essas políticas funcionaram em alguns casos como respostas a exigências sociais e populares que demandaram recursos e serviços. Quer dizer, a expansão das políticas de subsídios e de ajuda – que se deu por meio da expansão da bancarização sobre os setores mais precarizados – foi impulsionada por agendas antiausteridade que, no entanto, encontraram a sua chave na mediação financeira. Esta situação exige leituras para colocar em comparação os momentos de crise, as dinâmicas de protesto e as lógicas financeiras.
Laboratório Financeiro
A primeira ideia de inclusão financeira que hoje circula é o cadastramento de novxs usuárixs no sistema. Isso implica incorporar aqueles que estão fora de qualquer regime bancário. Nos interessa problematizar o que acontece com essa situação frente a pandemia. Aqui há uma conjuntura específica: a extensão de subsídios de emergencia a milhões de pessoas nesses últimos meses, muitas das quais precisam se bancarizar para obtê-lo. Para tanto, em um primeiro nível de analise, se constata que o registro no sistema bancário permitiu a arrecadação da Ingreso Familiar de Emergencia (IFE) para uma grande parcela da população que viu sua renda restringida devido às medidas de Isolamento Social Preventivo e Obrigatório (ASPO). Ou seja, o registro bancario (bancarização) desempenhou efetivamente um papel central na capacidade do Estado de intervir na situação de emergência e houve uma clara intenção do governo de favorecer os bancos públicos nessa tarefa. Porém, à luz do papel do sistema financeiro no contexto do endividamento estrutural de que estamos falando, há questões que não podem ser negligenciadas.
A bancarização daqueles que não eram registrados implicou em quase 2 milhões de pessoas que abriram pela primeira vez uma conta bancária para poder acessar o pagamento de IFE. A primeira leitura geral e com certo consenso é de que essas pessoas passaram a estar incluídas financeiramente. Aqui não podemos deixar de apontar o surgimento de novas tecnologias para mediar essa cobrança, onde a disputa entre empresas privadas de fintech e bancos públicos é estratégica.
O Banco Provincia e o Banco Nación lançaram a abertura de contas virtuais sem custo para a população bancarizada. Paralelamente, foram lançadas linhas de crédito como política paralela à renda emergencial (créditos créditos para trabalhadorxs autônomos registradxs e monotaxa, para pagamento de salários).
Aqui é necessário acrescentar a medida tomada pelo governo nacional de suspender o pagamento das dívidas de Anses e dos empréstimos hipotecários, o que ameniza a situação econômica dos 5,6 milhões de aposentadxs e pensionistxs que têm dívidas com o governo ao mesmo tempo que explica a magnitude do endividamento doméstico dos setores mais pobres.
No entanto, apesar destes esforços, a pandemia gerou uma explosão das dívidas domésticas {link} como uma forma de fazer frente à perda de renda nesses meses e ao aumento do custo de vida. Aqui portanto, é importante destacar que a inclusão muitas vezes se faz sobre uma população que já se encontra endividada, mesmo de formas não formalmente registradas.
Contextualizar
A chamada inclusão financeira na pandemia é, em primeiro lugar, uma forma de registrar aqueles que estavam “fora do radar”. Mas, a abertura de uma conta bancaria é sinônimo de inclusão financeira? O caráter circunstancial dessa medida não garante, por si só, a “continuidade virtuosa” no sistema financeiro. Se não se corresponder com políticas de serviços públicos gratuitos e de qualidade e a políticas de transferência de renda superiores à dinâmica inflacionária, a permanência no sistema financeiro de uma população sem renda ou com renda intermitente e insuficiente pode se tornar um mero veículo para que sejam feitas novas dívidas pessoais.
Nesse sentido, tem que se levar em conta que, na maioria dos casos, o endividamento chega antes mesmo da conta bancaria. Isto é, a inclusão financeira é geralmente de sujeitos já endividados. Por outro lado, a bancarização de mulheres e pessoas trans e travestis se deve principalmente à arrecadação da AUH, IFE e / ou Power Work. Isso reforça o fato já conhecido de que a inclusão financeira de mulheres e pessoas trans acontece em situações de informalidade e precariedade laboral.
Por isso, é necessário sublinhar e contextualizar essa forma de “inclusão”, já que:
- Se dá em um momento de empobrecimento e precarização acelerada.
- Conecta uma população com renda insuficiente, ou diretamente sem renda, ao interior dos circuitos bancários que participam do endividamento privado a taxas altíssimas dos últimos anos.
- Por sua vez, disponibiliza os dados dessa população recentemente bancarizada, podendo ser comercializados e/ou utilizados para direcionar a essas pessoas novas ofertas de crédito.
Em síntese, queremos problematizar a ideia de inclusão em, pelo menos, três aspectos: o momento em que se inclui; o contexto em que se efetua essa inclusão; e em que condições é garantida a permanência no circuito financeiro de populações fortemente empobrecidas enquanto têm seus dados extraídos. Esses pontos devem ser abertos ao debate público, em contraste com a opacidade e o sigilo que caracterizam o sistema financeiro.
“Gênero”
A incorporação de uma determinada agenda de gênero à inclusão financeira nessa nova etapa é datada em 2013, quando se publicou Oecd/infe policy guidance on addressing women’s and girls’ needs for financial awareness and education, que é a base que o G20 usa para assumir em sua declaração desse mesmo ano, a necessidade de educar financeiramente a mulheres e meninas. Um ano depois se organiza o “Primeiro encontro de discussão sobre inclusão financeira de mulheres” na Global Policy Forum que teve lugar em Trinidade e Tobago. Assim, a Rede para a Inclusao Financeira de OCDE é uma das organizações internacionais que constrói a política de inclusão/educacao financeira para mulheres.
Em 2015, já se cria o W20 que tem a inclusão financeira entre seus eixos fundamentais. O Woman20 é outra das fábricas que constroem as diretrizes internacionais em matéria de inclusão / educação financeira das mulheres que tem maior alcance devido à sua repercussão nos meios de comunicação de massa, o que a amplia para setores não especializados.
Em 2016 foi organizada a Segunda Conferencia sobre a inclusão financeira da mulher na Tanzania e publicou-se um plano de ação entitulado DENARAU, cujas ações incluem o incentivo à coleta de informações de inclusão financeira desagregada por “sexo” e a inclusão de considerações relativas ao gênero nos planos de inclusão financeira. Essa e a terceira organização global de maior alcance na inclusão financeira de mulheres.
Em 2018 foi realizada em nosso país [Argentina] o encontro da cúpula de lideranças do G20 e o W20 tem lugar nesse encontro com a sua agenda de inclusão financeira baseada na abertura de contas para as [mulheres] precarizadas e acesso a crédito para as empreendedoras sob o lema de que as mulheres são melhores pagadoras. Também são lançadas uma série de iniciativas privadas que planejam finanças com as mulheres: surge na Argentina o “Mujer financiera”, com uma lista de cursos e “Mujeres en Carrera” que tem uma plataforma de educação financeira e negócios. Ao mesmo tempo, cria-se “Mujeres en Finanzas Chile” e “Mujeres en Finanzas México”.
O uso de uma linguagem baseada no gênero no âmbito internacional é construído entre a Red internacional de educación financiera de OCDE, la Alianza para la Inclusión Financiera e o Women 20.
Uma pedagogia financeira feminista
Queremos propor alguns eixos de discussão do que prefigurativamente chamamos pedagogia financeira feminista, como parte da abertura de um debate.
* A pergunta a ser desenvolvida é como nos desendividarmos e que outros dispositivos seriam úteis e necessários como ferramentas para apoiar iniciativas de produção e reprodução social em contextos de privação generalizada.
- Desenhar ferramentas financeiras em relação a outras políticas publicas. Não há forma de desendividamento sem provisão de serviços públicos gratuitos e de qualidade, acesso à moradia e redes defornecimento de alimentos e medicamentos desdolarizados. Esse ponto se revelou de máxima importância durante a pandemia, quando o dinheiro proveniente do IFE e de outros subsídios foi majoritariamente absorvido pelos bancos, supermercados, empresas de telecomunicação, empresas de plataforma e pagamento de dívida de alugueis, evidenciando que esses valores não são apenas insuficientes, como também vão parar nas mãos dos atores econômicos privilegiados?
- Produzir programas de pedagogia financeira envolvendo xs atorxs dos territórios, revelando os saberes e estratégias existentes e apontando as necessidades de recursos concertos e de desendividamento ao mesmo tempo. Isso implica, na prática, em confrontar o modelo do “iletrado financeiro” (figura que sustenta a ideia de “educação financeira”), enquanto se denunciam os enganos das corporações que realizam empréstimos, taxas de juros.
- Gerar novos indicadores de inclusão financeira que não se reduzam apenas ao registro bancário, mas que registrem os comportamentos financeiros de LGBTQI+ (todos os relatórios atuais de inclusão financeira registram apenas homens e mulheres de forma binária) e revelar outras ferramentas disponíveis ou futuras (empréstimos mútuos, caixas de poupança solidárias).
- Gerar informação de endividamento privado com perspectiva de gênero e diversidade. Colocação do crédito ao consumo desagregado por gênero, por faixa etária, por situação de emprego (formal/informal), por tipo de rendimento, por tipo de garantia, por condição de habitação, por local de residência. É preciso registrar de forma mais desagregada o endividamento das mulheres em situação de trabalho informal e passar a registrar o endividamento da população trans e travesti. Sem informações reais e exaustivas sobre o endividamento, não há como avançar nos dispositivos de acordo com a situação real.
- Reconhecer es trabalhadores bancáries como parte decisiva dos dispositivos de pedagogia financeira. Isso se baseia no fato cotidiano de que geralmente a educação financeira se transmite de maneira individual entre es trabalhadores bancaries e as pessoas usuárias do sistema financeiro quando se aproximam de uma entidade bancária.
- Construir a pedagogia financeira na lógica de um serviço público e como medida de prevenção das violências. O diagnóstico da violência econômica e financeira como chave das violências machistas exige uma perspectiva que busque gerar autonomia econômica com horizontes temporais a longo prazo.
* Luci Cavallero é Integrante do Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA) e docente UNTREF.
** Verónica Gago é Integrante do Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA), pesquisadora Conicet e docente UNSAM.
*** Celeste Perosino é militante bancaria. Trabalha na Gerencia de Promoción de Políticas de Género, Resguardo del Respeto y Convivencia Laboral – BCRA.
Artigo publicado originalmente no periódico Página/12 e traduzido e revisado por Laura Alagia e Gabriela Vieira.
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Luci Cavallero e Verónica Gago são autoras do livro Uma leitura feminista da dívida, publicado pela Editora Criação Humana em 2019. Clica aqui pra comprar!