Como seria uma inclusão financeira feminista?

Crítica teórica e prática às finanças desde uma perspectiva feminista.

Por Luci Cavallero*, Verónica Gago** e Celeste Perosino***

A pandemia levou uma enorme parcela da população a um processo acelerado de precarização. Novas formas de inclusão financeira através da cobrança de subsídios de emergência são, na sua maioria, dirigidas a ela. As chamadas políticas de “inclusão financeira” confirmam assim uma segunda onda de financeirização das populações mais precarizadas após a era do microcrédito. A inclusão financeira é geralmente de sujeitos já endividades. É necessário gerar informação sobre o endividamento privado com perspectiva de gênero e diversidade.

Frente ao disciplinamento financeiro, rebeldia feminista! Vivas, livres e sem dívida nos queremos! Fotos: Ni Una Menos

No meio da crise, ouvimos repetidamente falar da inclusão financeira. Se escuta uma e outra vez, em meio a crise, falar de inclusão financeira. De que se trata? Durante a pandemia, a necessidade de se fazer cumprir o pagamento de subsídios de emergência colocou no centro da cena a inclusão financeira como uma ferramenta para chegar a populações das quais o Estado não tinha registro. Esta situação atualiza uma série de debates seguidos de que, nos últimos anos, o sistema financeiro tem aparecido como parte do problema mais do que da solução.

A proposta baseia-se na crítica teórica e prática das finanças que a perspectiva feminista tem implantado nos últimos anos. Nos situamos como parte desse processo que tem propiciado o encontro de experiências sindicais, organizações populares, acadêmicas, políticas, institucionais. A partir de uma leitura feminista, a paisagem dos números e linhas (de pobreza, de dívida, de inflação) envolve corpos concretos. Queremos problematizar ao menos quatro pontos.

Em primeiro lugar, as ferramentas propostas como parte da chamada “inclusão financeira” no momento atual, que fazem parte de um contexto estruturado por quatro anos de endividamento externo e doméstico (registado e não registado) que, náo há como deixar de dizer, implicam cifras de recordes históricos que se traduzem em extrema capacidade de chantagem de um modelo de valorização financeira. Por isso perguntamos: não deveria qualquer tipo de política financeira levar em conta que essa “inclusão” se faz no interior dos mesmos circuitos de valorização e dívida que produzem a situação de pobreza e expropriação?

Logo, constatamos de várias maneiras que a pandemia levou uma enorme parcela da população a um processo acelerado de precarização. Novas formas de inclusão financeira através da cobrança de subsídios de emergência são, na sua maioria, dirigidas a ela. Uma vez Escrito de modo mais direto: o subsídio é suspenso, mas a conta permanece e pra que servirá? O que significa a produção de uma nova população com registo bancário, mas sem renda garantida?

Um terceiro elemento é, ao mesmo tempo, local e global. A crise tem uma dimensão geopolítica: como esse tipo de propostas, financiadas por organizações multilaterais, se inserem na discussão sobre as causas da crise?

Finalmente, parece ser a chave como o movimento feminista tem demonstrado e politizado a interconexão das violências econômicas com as violências machistas, com uma ênfase especial à violência financeira do endividamento doméstico. Nessa linha, é fundamental pensar no quadro geral das ferramentas financeiras, levando em consideração o aumento exponencial da violência doméstica na atual conjuntura.

Política Global

A chamada “inclusão financeira”, embora tenha uma agenda nacional, deve ser enquadrada num processo global que aponta para a crise de 2008 como um ponto fundamental. Desse modo, ainda que atualmente na Argentina esses termos possam ser usados para nomear processos variados, que vão desde o registo bancário para arrecadação de subsídios sociais até o desenvolvimento de instrumentos financeiros para projetos de autogestão, é importante conhecer a dimensão geopolítica na qual surge esta proposta.

As políticas denominadas como sendo de “inclusão financeira” configuram uma segunda onda de financeirização das populações mais precárias após a era dos microcréditos. Um marco desse avanço pode ser lido no documento de 2008 do Banco Mundial intitulado Finance for all (“Finanças para todos”). Nele se postula a necessidade do desenvolvimento de mercados “mais inclusivos” e uma mudança de paradigma com o desenvolvimento de produtos e serviços financeiros que incorporem novas tecnologias, a fim de alcançar setores não bancarizados, mas que possuam algum tipo de conexão digital. 

Em 2011, na  “Aliança para a Inclusão Financeira” se reatualiza a já conhecida retórica da “Aliança para o Progresso” (aquela que falava das populações fracassadas do Terceiro Mundo), agora em versão high tech. A partir disso, alguns autorxs definem “inclusão financeira” como um “novo consenso de Washington” para ilustrar a confluência de atores que vão desde funcionários públicos e formuladores de políticas públicas até os fundos de investimento, com o apoio explícito do G20.

Na América Latina, essas políticas funcionaram em alguns casos como respostas a exigências sociais e populares que demandaram recursos e serviços. Quer dizer, a expansão das políticas de subsídios e de ajuda – que se deu por meio da expansão da bancarização sobre os setores mais precarizados – foi impulsionada por agendas antiausteridade que, no entanto, encontraram a sua chave na mediação financeira. Esta situação exige leituras para colocar em comparação os momentos de crise, as dinâmicas de protesto e as lógicas financeiras.

Laboratório Financeiro

A primeira ideia de inclusão financeira que hoje circula é o cadastramento de novxs usuárixs no sistema. Isso implica incorporar aqueles que estão fora de qualquer regime bancário. Nos interessa problematizar o que acontece com essa situação frente a pandemia. Aqui há uma conjuntura específica: a extensão de subsídios de emergencia a milhões de pessoas nesses últimos meses, muitas das quais precisam se bancarizar para obtê-lo. Para tanto, em um primeiro nível de analise, se constata que o registro no sistema bancário permitiu a arrecadação da Ingreso Familiar de Emergencia (IFE) para uma grande parcela da população que viu sua renda restringida devido às medidas de Isolamento Social Preventivo e Obrigatório (ASPO). Ou seja, o registro bancario (bancarização) desempenhou efetivamente um papel central na capacidade do Estado de intervir na situação de emergência e houve uma clara intenção do governo de favorecer os bancos públicos nessa tarefa. Porém, à luz do papel do sistema financeiro no contexto do endividamento estrutural de que estamos falando, há questões que não podem ser negligenciadas.

A bancarização daqueles que não eram registrados implicou em quase 2 milhões de pessoas que abriram pela primeira vez uma conta bancária para poder acessar o pagamento de IFE. A primeira leitura geral e com certo consenso é de que essas pessoas passaram a estar incluídas financeiramente. Aqui não podemos deixar de apontar o surgimento de novas tecnologias para mediar essa cobrança, onde a disputa entre empresas privadas de fintech e bancos públicos é estratégica.

O Banco Provincia e o Banco Nación lançaram a abertura de contas virtuais sem custo para a população bancarizada. Paralelamente, foram lançadas linhas de crédito como política paralela à renda emergencial (créditos créditos para trabalhadorxs autônomos registradxs e monotaxa, para pagamento de salários).

Aqui é necessário acrescentar a medida tomada pelo governo nacional de suspender o pagamento das dívidas de Anses e dos empréstimos hipotecários, o que ameniza a situação econômica dos 5,6 milhões de aposentadxs e pensionistxs que têm dívidas com o governo ao mesmo tempo que explica a magnitude do endividamento doméstico dos setores mais pobres.

No entanto, apesar destes esforços, a pandemia gerou uma explosão das dívidas domésticas {link} como uma forma de fazer frente à perda de renda nesses meses e ao aumento do custo de vida. Aqui portanto, é importante destacar que a inclusão muitas vezes se faz sobre uma população que se encontra endividada, mesmo de formas não formalmente registradas.

Contextualizar

A chamada inclusão financeira na pandemia é, em primeiro lugar, uma forma de registrar aqueles que estavam “fora do radar”. Mas, a abertura de uma conta bancaria é sinônimo de inclusão financeira? O caráter circunstancial dessa medida não garante, por si só, a “continuidade virtuosa” no sistema financeiro. Se não se corresponder com políticas de serviços públicos gratuitos e de qualidade e a políticas de transferência de renda superiores à dinâmica inflacionária, a permanência no sistema financeiro de uma população sem renda ou com renda intermitente e insuficiente pode se tornar um mero veículo para que sejam feitas novas dívidas pessoais.

Nesse sentido, tem que se levar em conta que, na maioria dos casos, o endividamento chega antes mesmo da conta bancaria. Isto é, a inclusão financeira é geralmente de sujeitos já endividados. Por outro lado, a bancarização de mulheres e pessoas trans e travestis se deve principalmente à arrecadação da AUH, IFE e / ou Power Work. Isso reforça o fato já conhecido de que a inclusão financeira de mulheres e pessoas trans acontece em situações de informalidade e precariedade laboral.

Por isso, é necessário sublinhar e contextualizar essa forma de “inclusão”, já que:

  1. Se  dá em um momento de empobrecimento e precarização acelerada.
  2. Conecta uma população com renda insuficiente, ou diretamente sem renda, ao interior dos circuitos bancários que participam do endividamento privado a taxas altíssimas dos últimos anos.
  3. Por sua vez, disponibiliza os dados dessa população recentemente bancarizada, podendo ser comercializados e/ou utilizados para direcionar a essas pessoas novas ofertas de crédito.

Em síntese, queremos problematizar a ideia de inclusão em, pelo menos, três aspectos: o momento em que se inclui; o contexto em que se efetua essa inclusão; e em que condições é garantida a permanência no circuito financeiro de populações fortemente empobrecidas enquanto têm seus dados extraídos. Esses pontos devem ser abertos ao debate público, em contraste com a opacidade e o sigilo que caracterizam o sistema financeiro.

“Gênero”

A incorporação de uma determinada agenda de gênero à inclusão financeira nessa nova etapa é datada em 2013, quando se publicou Oecd/infe policy guidance on addressing women’s and girls’ needs for financial awareness and education, que é a base que o G20 usa para assumir em sua declaração desse mesmo ano, a necessidade de educar financeiramente a mulheres e meninas. Um ano depois se organiza o “Primeiro encontro de discussão sobre inclusão financeira de mulheres” na Global Policy Forum que teve lugar em Trinidade e Tobago. Assim, a Rede para a Inclusao Financeira de OCDE é uma das organizações internacionais que constrói a política de inclusão/educacao financeira para mulheres.

Em 2015, já se cria o W20 que tem a inclusão financeira entre seus eixos fundamentais. O Woman20 é outra das fábricas que constroem as diretrizes internacionais em matéria de inclusão / educação financeira das mulheres que tem maior alcance devido à sua repercussão nos meios de comunicação de massa, o que a amplia para setores não especializados.

Em 2016 foi organizada a Segunda Conferencia sobre a inclusão financeira da mulher na Tanzania e publicou-se um plano de ação entitulado DENARAU, cujas ações incluem o incentivo à coleta de informações de inclusão financeira desagregada por “sexo” e a inclusão de considerações relativas ao gênero nos planos de inclusão financeira. Essa e a terceira organização global de maior alcance na inclusão financeira de mulheres.

Em 2018 foi realizada em nosso país [Argentina] o encontro da cúpula de lideranças do G20 e o W20 tem lugar nesse encontro com a sua agenda de inclusão financeira baseada na abertura de contas para as [mulheres] precarizadas e acesso a crédito para as empreendedoras sob o lema de que as mulheres são melhores pagadoras. Também são lançadas uma série de iniciativas privadas que planejam finanças com as mulheres: surge na Argentina o “Mujer financiera”, com uma lista de cursos e “Mujeres en Carrera” que tem uma plataforma de educação financeira e negócios. Ao mesmo tempo, cria-se “Mujeres en Finanzas Chile” e “Mujeres en Finanzas México”.

O uso de uma linguagem baseada no gênero no âmbito internacional é construído entre a Red internacional de educación financiera de OCDE, la Alianza para la Inclusión Financiera e o Women 20.

Uma pedagogia financeira feminista

Queremos propor alguns eixos de discussão do que prefigurativamente chamamos pedagogia financeira feminista, como parte da abertura de um debate.

* A pergunta a ser desenvolvida é como nos desendividarmos e que outros dispositivos seriam úteis e necessários como ferramentas para apoiar iniciativas de produção e reprodução social em contextos de privação generalizada. 

  • Desenhar ferramentas financeiras em relação a outras políticas publicas. Não há forma de desendividamento sem provisão de serviços públicos gratuitos e de qualidade, acesso à moradia e redes defornecimento de alimentos e medicamentos desdolarizados. Esse ponto se revelou de máxima importância durante a pandemia, quando o dinheiro proveniente do IFE e de outros subsídios foi majoritariamente absorvido pelos bancos, supermercados, empresas de telecomunicação, empresas de plataforma e pagamento de dívida de alugueis, evidenciando que esses valores não são apenas insuficientes, como também vão parar nas mãos dos atores econômicos privilegiados?
  • Produzir programas de pedagogia financeira envolvendo xs atorxs dos territórios, revelando os saberes e estratégias existentes e apontando as necessidades de recursos concertos e de desendividamento ao mesmo tempo. Isso implica, na prática, em confrontar o modelo do “iletrado financeiro” (figura que sustenta a ideia de “educação financeira”), enquanto se denunciam os enganos das corporações que realizam empréstimos, taxas de juros.
  • Gerar novos indicadores de inclusão financeira que não se reduzam apenas ao registro bancário, mas que registrem os comportamentos financeiros de LGBTQI+ (todos os relatórios atuais de inclusão financeira registram apenas homens e mulheres de forma binária) e revelar outras ferramentas disponíveis ou futuras (empréstimos mútuos, caixas de poupança solidárias).
  • Gerar informação de endividamento privado com perspectiva de gênero e diversidade. Colocação do crédito ao consumo desagregado por gênero, por faixa etária, por situação de emprego (formal/informal), por tipo de rendimento, por tipo de garantia, por condição de habitação, por local de residência. É preciso registrar de forma mais desagregada o endividamento das mulheres em situação de trabalho informal e passar a registrar o endividamento da população trans e travesti. Sem informações reais e exaustivas sobre o endividamento, não há como avançar nos dispositivos de acordo com a situação real.
  • Reconhecer es trabalhadores bancáries como parte decisiva dos dispositivos de pedagogia financeira. Isso se baseia no fato cotidiano de que geralmente a educação financeira se transmite de maneira individual entre es trabalhadores bancaries e as pessoas usuárias do sistema financeiro quando se aproximam de uma entidade bancária.
  • Construir a pedagogia financeira na lógica de um serviço público e como medida de prevenção das violências. O diagnóstico da violência econômica e financeira como chave das violências machistas exige uma perspectiva que busque gerar autonomia econômica com horizontes temporais a longo prazo.

* Luci Cavallero é Integrante do Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA) e docente UNTREF.

** Verónica Gago é Integrante do Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA), pesquisadora Conicet e docente UNSAM.

*** Celeste Perosino é militante bancaria. Trabalha na Gerencia de Promoción de Políticas de Género, Resguardo del Respeto y Convivencia Laboral – BCRA.

Artigo publicado originalmente no periódico Página/12 e traduzido e revisado por Laura Alagia e Gabriela Vieira.

Para conhecer um pouco mais sobre o Grupo de Investigación e Intervención Feminista (GIIF-UBA), clica aqui!

Luci Cavallero e Verónica Gago são autoras do livro Uma leitura feminista da dívida, publicado pela Editora Criação Humana em 2019. Clica aqui pra comprar!

A batalha feminista pela propriedade

A batalha pela propriedade que está ocorrendo em plena pandemia busca fabricar o que será o novo mundo pós-covid. Analisamos a nova aposta do capital sob a perspectiva feminista.

Por Luci Cavallero e Verónica Gago*

Foto do livro “Uma leitura feminista da dívida”, lançado em outubro de 2019 pela Editora Criação Humana.

O que acontece hoje é uma renovada batalha pela propriedade. No meio da pandemia? Sim. Portanto, sem fazer rápidas definições grandiloquentes do que está por vir, nos interessa​ pensar no que está acontecendo. Nos detenhamos em como o futuro está sendo fabricado. Nossa hipótese é que existem questões feministas fundamentais para intervir na discussão atual sobre a propriedade. Queremos propor três. Por um lado, estamos testemunhando um novo impulso da violência proprietária, justamente porque a propriedade está representada como a fronteira que atravessa cada conflito na pandemia. Nem sempre é tão nítido. Então, essa discussão aparece concentrada nos territórios da reprodução social (espaços visibilizados como fundamentais pelos feminismos) e no comando do futuro trabalho que o endividamento doméstico procura controlar. E, em terceiro, que nesta crise a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs é aprofundada através de lógicas familiaristas, as quais vinham sendo fortemente questionadas em favor da construção de espacialidades feministas. Vejamos uma de cada vez.

Violência proprietária

Na Argentina, na última semana aconteceram dois conflitos fundamentais a esse respeito: por um lado, o sancionamento de uma lei que regula os aluguéis e, por outro, a discussão sobre a expropriação (ou não) por parte do Estado de uma das principais exportadoras de grãos.

A lei para a regulamentação dos preços dos aluguéis foi aprovada em meio a uma discussão parlamentar sobre se esse assunto era ou não parte da emergência sanitária. Quando o slogan #QuedateEnCasa (#FiqueEmCasa) mostrou a sobreposição de crise habitacional e aumento da violência de gênero, por meio do coletivo Ni Una Menos em aliança com o sindicato de Inquilinxs Agrupadxs, impulsionamos o slogan “a casa não pode ser um lugar de violência machista nem de especulação imobiliária”. As violências econômicas que se expressam no acesso à moradia e seu envolvimento com a violência de gênero só se aceleraram com a pandemia, colocando os holofotes no espaço doméstico entendido como “a casa”. Esta violência se concretiza no abuso direto de proprietários e imobiliárias que se aproveitam da situação crítica para ameaçar, aterrorizar, não renovar contratos ou diretamente despejar inquilinxs, descumprindo um decreto que o proíbe. O que aparece hoje como uma pergunta inevitável é quem são os proprietários das habitações e hotéis dos quais são despejadas principalmente mulheres, lésbicas, travestis e pessoas trans (algo que é também indicado na nova lei, com a obrigatoriedade de declarar os contratos de locação perante a agência tributária).

Em vários lugares do mundo, a valorização financeira da habitação tem o ritmo acentuado pela voracidade dos fundos de investimento que se aproveitam da crise para comprar casas. Sabemos disso por exemplo graças ao trabalho da PAH (Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca) no Estado espanhol. É o que estão dizendo as organizações sociais que buscam prorrogar a moratória contra os despejos para um milhão de lares em Nova York, os quais afetam majoritariamente a população afro-americana e latina, a mesma que impulsionou a recente revolta histórica. Em países como a Argentina, é a receita extraordinária do agronegócio que se “derrama”, entre outras coisas, como bolha imobiliária e boom de construção nas cidades (com o consequente aumento nos aluguéis).

As dinâmicas imobiliárias e extrativistas, que cruzam as geografias aqui e ali, revelam que o aumento do preço da moradia é um sintoma do aumento do poder das finanças e que a sua conexão com modelos extrativistas (e em particular o agronegócio) é direta. A casa, esse suposto espaço de refúgio privado denunciado pelos feminismos como epicentro das violências, é o terminal de fluxos que são parte central do cenário econômico e político mundial na crise. Por essa razão, a reivindicação pela soberania alimentar (um vocabulário de luta dos movimentos camponeses do sul) começa em cada casa e em cada panela popular para alcançar questionar todo o circuito da valorização dos commodities de exportação.

Não é por acaso que, além do lobby imobiliário atual diante da regulamentação do aluguel, desencadeou-se também o lobby de cereais contra a intenção do governo argentino de expropriar um dos maiores exportadores de grãos, no momento em que a emergência alimentar é a maior tragédia nos países do sul. Nos referimos à empresa Vicentín, um grande conglomerado agroindustrial de exportação de produtos primários declarado em falência, que se tornou tema da agenda devido a uma investigação que revelou que a família proprietária triangulou dinheiro no exterior, sonegando impostos e fraudando ao banco público e a centenas de produtores.

Em poucos dias, primeiro foram os agentes imobiliários que levantaram suas vozes, depois uma mobilização que foi batizada de “rebelião dos proprietários” tomou as ruas em todo o país exigindo a não intervenção do Estado no mercado de grãos e, especialmente, em defesa da propriedade privada. Apesar da fraude já ser de conhecimento público, os protestos reivindicam o retorno dos proprietários à administração da empresa em nome do respeito à “propriedade familiar”.

A violência proprietária é uma reação que demonstra precisamente um poder proprietário que, diante das demandas emergenciais reivindicadas de baixo (emergência alimentar e habitacional), se vê ameaçado no que considera seu “direito natural” de posse.

Socialização dos meios de reprodução

A batalha pela propriedade da qual estamos falando se desenrola na demanda concreta por usos comuns e públicos dos bens e serviços que possibilitam (ou não) a reprodução da vida pessoal e coletiva. Considerada a reprodução enquanto esfera estratégica sobre a qual se baseia a expropriação neoliberal e o endividamento doméstico, a socialização de seus meios e recursos emergiu como um dos elementos comuns a nível global.

Na maioria dos países, a financeirização dos direitos sociais (que significa acessá-los por dívida e em benefício de bancos e empresas) tem sido a segunda fase após a privatização das infraestruturas públicas e o sufocamento das economias autogestionadas.

É aí que também se salienta: não está sendo discutido neste momento de quem são os serviços públicos, a quem pertence a produção de alimentos e medicamentos, de quem são as moradias, quais são as ameaças contra o acesso à educação que estão em curso, de quem são as fortunas, que dívidas estão sendo criadas e que reformas tributárias a crise exige? E mais: não vínhamos discutindo qual ordem sexual traz consigo a propriedade privada sobre os corpos e os territórios? Assim, a grande questão sobre quem vai pagar pela crise hoje está envolvida diretamente na discussão da propriedade. E, como dizíamos, isso não é abstrato. Se aterrissa nos terrenos estratégicos da reprodução social (moradia, alimentos, medicamentos, educação), em conexão concreta com as formas de trabalho que os sustentam e os papéis de gênero que exigem.

Hoje nas casas, essas mesmas atulhadas de trabalho doméstico, exaustão psicológica e teletrabalho, novas dívidas estão sendo contraídas, apesar da concessão de renda emergencial. Na Argentina, por exemplo, além dos aluguéis, uma dívida crescente corresponde ao acesso à conectividade. Ou seja, a dívida a pagar pelo consumo dos telefones celulares é uma das que mais cresceu nesses meses. Isso se deve à intensificação do uso dos telefones como meio de conexão obrigatório especialmente para mães com a escolaridade des filhes, quando não há computadores e/ou rede wi-fi em casa. Fazer a lição de casa hoje exige para muitxs um uso enorme de dados que se adquire quase diariamente. Desse modo, a conta do telefone celular atinge cifras recordes em um momento que, como sabemos, é caracterizado por perda de renda. Muitas beneficiárias de subsídios de emergência concedidos pelo governo se veem obrigadas a destinar grande parte dessa renda para o pagamento das tarifas das companhias telefônicas (uma nova mediação privada para o acesso à educação pública).

Dessa maneira, são formadas verdadeiras “cestas” de dívida, que se vão refinanciando entre si, combinando diversas taxas de juros, formas de ameaça por inadimplência e diferentes cronogramas de vencimentos. Se algumas análises sociológicas falam dxs trabalhadorxs atuais como “coletorxs de renda”, que já não podem mais garantir sua reprodução com um salário único e estável, podemos falar de umx “coletora de dívidas” que se acentua como figura da crise. As novas dívidas que invadem o terreno da reprodução social encarnam uma disputa pela propriedade do tempo futuro, para impedir qualquer tipo de transição para outra coisa.

É urgente conectar a demanda de rendas, subsídios e salários pelos quais hoje se luta em vários movimentos sociais, com o fornecimento de serviços públicos gratuitos (da conectividade à água, da eletricidade aos serviços de saúde) e políticas de desendividamento para que essas rendas não sejam definitivamente absorvidas pelas corporações de sempre: bancos, supermercados, empresas de telecomunicação e empresas de plataformas. Discutir a dívida, doméstica e externa (inclusive a divisão de espacialidade que ela representa), é discutir a forma violenta com a qual se titulariza a propriedade do nosso trabalho a longo prazo e, portanto, do tempo futuro. Em outras palavras, rejeitar a “obrigação” que a dívida impõe como trabalho gratuito, barato e precário no tempo por vir e como responsabilização individual, onerosa e privada da reprodução cotidiana agora.

Aluguel, família e quarentena: por uma espacialidade feminista

A crise atual intensifica a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs em uma perspectiva familiarista. Por quê? Quando o aluguel não pode ser pago devido à restrição de renda, a moradia herdada ou conjugal é reforçada como a única maneira de garantir a casa, excluindo realidades como as da população LGBTQIA+, geralmente deserdada e com outras formas de convivência além da conjugalidade heterossexual. Assim, quando os subsídios e salários não são suficientes, a propriedade familiar se transforma na moradia disponível, confirmando que esse direito se torna quase impossível de exercer fora da jurisdição da família. A casa, dessa forma, volta a ser o lugar para “reordenar” o que vinha sendo questionado. Além de ser o espaço onde historicamente foram estabelecidos os papéis de gênero associados às tarefas de reprodução, com suas longas horas de trabalho invisibilizado. Questionar o que chamamos de “casa” é também problematizar a assunção privada da responsabilidade pela crise.

O movimento feminista, a força de mobilização nas ruas e de organização política nos territórios domésticos, questionou tanto a romantização do lar quanto a familiarização de seus contornos. De modos diversos e transversais, foi colocado em pauta o acesso à moradia, dissociando-o da família heteronormativa. Ao mesmo tempo em que a casa familiar era denunciada como um espaço inseguro para mulheres, lésbicas, bichas, travestis e trans (hoje ainda mais pela convivência obrigatória com os agressores), outra experiência de ocupação do espaço foi construída, especialmente outros usos da rua e da cidade.

Se todo regime de propriedade traz consigo uma ordem sexual e de divisão do trabalho, também o detectamos na forma de demarcar contornos, movimentos e fixações no espaço. A propriedade hoje está no centro do debate porque mapeia e sinaliza a batalha pelos limites que tenta, uma e outra vez, relançar o capital em suas formas mais brutais. O retiro familiarista da propriedade de que estamos falando implica, também, garantir trabalho doméstico gratuito dxs não-proprietárixs.

Nesse sentido, voltamos à importância da confrontação com os aluguéis imobiliários (como é o caso da lei de aluguéis e o cumprimento do decreto de proibição de despejos), instituições financeiras e do agronegócio ao mesmo tempo em que construímos outros “interiores”, inventando formas de refúgio, cuidado e acompanhamento que declinem aqui e agora a pergunta de como queremos viver.

(*) Luci Cavallero é Socióloga, pesquisadora da Universidade de Buenos Aires e militante feminista. Verónica Gago é Docente e pesquisadora na Universidade de Buenos Aires e militante feminista.

Texto traduzido por Helena Vargas e revisado por Fernanda Martins para Editora Criação Humana que publicou em 2019 a obra “Uma leitura feminista da dívida”, das autoras Luci Cavallero e Verónica Gago. O texto também foi publicado pelo jornal Sul21.

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