“O mundo neoliberal é decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida”. Entrevista com Sandro Chignola.

Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto. Entrevista originalmente publicada pelo IHU On-Line aqui.

Somos livres para termos as mais variadas opções e estilos de consumo. Essa é a liberdade de nosso tempo, que se molda a uma lógica de mercado, algo que clama pela reinvenção dessa liberdade. A reflexão é do filósofo italiano Sandro Chignola na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com o pesquisador, “e-mails, smartphones e computadores fazem com que a nossa vida inteira, mesmo fora do horário de trabalho, seja integralmente subsumida ao capital. Mesmo quando damos uma ‘curtida’ no Facebook no nosso tempo livre, quando fazemos o upload de um vídeo no YouTube, produzimos valor”. Some-se a isso a proliferação dos dispositivos de segurança, “impulsionados pelo cruzamento entre novas tecnologias e retóricas da segurança”. O resultado é nefasto: “O mundo neoliberal é um mundo decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida.”

Chignola acentua que precisamos “repensar as formas da participação; reimplantar projetos radicais de liberdade e de igualdade para todas e para todos, sem pensar que “profissionais da política” possam se encarregar deles. É preciso reinventar a cidadania para além do Estado”. E completa: “A flecha de Foucault, ao que me parece, está aqui, diante de nós, plantada no coração da atualidade. Trata-se de se encarregar de tomá-la e de montar o arco: de assumir o ônus — o peso e a responsabilidade — da coragem da verdade.”

Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Università Degli Studi di Padova, Itália. É autor, entre outras obras, de História de los conceptos y filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010). O artigo Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de sua autoria, foi publicado por Cadernos IHU ideias, no. 214, como também o artigo A vida, o trabalho, a linguagem. Biopolítica e biocapitalismo, Cadernos IHU ideias, no.228. É autor do livro “Foucault além de Foulcault: uma política da filosofia”, disponível aqui.

Ele proferiu a conferência A política dos saberes, no XVII Simpósio Internacional IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação, Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade, em 2015.

Em 27-09-2016 esteve no IHU apresentando a conferência Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros. A íntegra da conferência pode ser vista aqui.

Quais são os aspectos fundamentais que demonstram a atualidade da análise de Michel Foucault [1] acerca do poder pastoral e da governamentalidade?

Sandro Chignola – Eu acho que são diversos os elementos de atualidade da análise foucaultiana. Eles são de tipo fenomenológico e de tipo teórico. No plano fenomenológico — termo que entendo aqui de modo puramente descritivo — a proliferação do léxico da governance para indicar formas de produção da decisão política e do direito de tipo técnico, pós-soberano e, por assim dizer, administrativo; e, no plano teórico, os processos que ligam cada vez mais profundamente o “governo” — aqui eu o entendo em sentido amplo, isto é, em termos foucaultianos, como conduta de condutas à liberdade e à operacionalização de dispositivos que criem as condições para “ser livres de ser livres” — a uma forma determinada, um “tipo” particular de subjetividade.

Em outras palavras: por um lado, Foucault captou com forte antecipação, ao que me parece, os aspectos institucionais da revolução (ou melhor: da contrarrevolução) neoliberal que marca a nossa contemporaneidade (desconstitucionalização e desnacionalização do Estado, esvaziamento da democracia representativa, deslocamento do eixo temporal da legitimidade política do passado, ou seja, procedimentos por meio dos quais a vontade coletiva se forma para o futuro, isto é, para a promessa de eficiência da qual a decisão técnico-administrativa se faz intérprete); e, por outro lado, captou com precisão o modo pelo qual essa nova institucionalidade conseguiria se ligar e se engrenar com formas da subjetividade (o sujeito como consumidor ou como empreendedor de si mesmo), cuja produção devia ser “governada”, e não fixada, orientando a sua liberdade e adaptando-a ao mercado.

Quais seriam os principais paradoxos do cuidado e do governo dos outros em nossos dias?

Sandro Chignola – Aquele ao qual todos, com as suas nuances, podem ser remetidos me parece ser o seguinte: cuidado e governo se ligam a sujeitos como incitamento ao consumo e como uso da própria liberdade na construção de perfis concorrenciais e empresariais do eu. Foucault registra isso muito claramente no curso Naissance de la biopolitique: a razão neoliberal trabalha em uma condução de condutas que devem ser deixadas livres, mas que, justamente como livres, têm um único modelo de liberdade através do qual se reconhecem: o das escolhas de mercado e o do mercado das escolhas no qual acabam pagando os custos da concorrência e da própria produção da liberdade (você é livre dentre muitas opções, mas será integralmente responsável pelas escolhas que fizer…). Daí a desconstrução do Estado social, por exemplo: pague o seu seguro à escolha no mercado. Você é livre para não fazer isso, mas, se não o fizer (ou se, para economizar, escolher mal…), os custos da sua escolha serão pagos por você.

Os dois processos de que eu falava antes aqui se soldam. Por um lado, uma redução do peso do Estado e o “emagrecimento” das suas instituições (thining é como a ciência política o chama) em favor de dispositivos administrativos que trabalham com campanhas de responsabilização do sujeito, delegando diretamente a ele o “cuidado de si” (penso na previdência privada, nas políticas da educação, na saúde…); por outro lado, uma forma da subjetividade que se sente, justamente por isso, “livre” (livre para agir, para escolher, para capturar as ocasiões), mas daquela forma particular de liberdade que isola, põe em concorrência com os outros, se sustenta com a valorização de paixões tristes como o cinismo, o oportunismo, a autovalorização do próprio capital humano…

Em que medida a compreensão de liberdade de Foucault segue instigante aos sujeitos de nosso tempo?

Sandro Chignola – Mais do que a compreensão foucaultiana da liberdade — da liberdade neoliberal de que eu falo acima, ele traça uma genealogia precisa —, parece-me intrigante a aposta filosófica de tentar pensar (e praticar) de outro modo o campo da subjetividade e da subjetivação. Foucault fala da necessidade de “se déprendre de soi même”, ou seja, de se distanciar das formas de individuação ligadas aos dispositivos neoliberais de governo. Isso marca a necessidade da passagem pela Grécia realizada por Foucault nos últimos cursos no Collège de France: se há uma ideia que é intolerável para um grego, ele nos diz, essa ideia é a de que se possa ser governado por toda a vida. Que se possa governar a vida, eu acrescentaria. Esse é o campo de batalha que marca o nosso presente: por um lado, a liberdade, que Foucault lê a partir de uma ontologia particular da criatividade e da produção, por outro, os dispositivos que, impondo-lhe rédeas, governam-na. Não mais disciplinas e corpos a serem endireitados, mas condutas a serem conduzidas, liberdades a serem orientadas, dispositivos de marketing ou da comunicação…

O que podemos fazer de nós mesmos, uma vez que a nossa liberdade nos seja devolvida? Como podemos inventar, praticar, potencializar, “curar” — no sentido da grande saúde nietzschiana — a subjetividade que podemos ser, se nenhum dispositivo é capaz de projetar e controlar até o fim a nossa subjetividade? São essas as perguntas — teóricas e políticas — que Foucault nos deixou, passando-nos o bastão. Deleuze [2] lembra que a filosofia deve ser entendida em sentido nietzschiano como o retomar e o atirar de uma flecha que outros pensadores, outros filósofos lançaram antes de nós. A flecha de Foucault, ao que me parece, está aqui, diante de nós, plantada no coração da atualidade. Trata-se de se encarregar de tomá-la e de montar o arco: de assumir o ônus — o peso e a responsabilidade — da coragem da verdade.

Como podemos reinventar a liberdade e a nós próprios se estamos submetidos, queiramos ou não, a um modelo neoliberal que opera a partir de liberdades de fachada? Qual é o legado de Foucault a essa discussão que também perpassa a produção de subjetividades?

Sandro Chignola – Essa é uma pergunta difícil. Eu não sei bem o que responder, admitindo-se que, no caso das outras perguntas, eu o saiba e tenha conseguido fazê-lo. É claro, eu não consigo imaginar, como outros fazem, ao contrário, mecanismos simples de subtração. Ou seja, como se houvesse um “lugar” — físico e simbólico — em que possamos nos refugiar, porque estaríamos protegidos de, ou fora dos dispositivos de poder; ou como se houvesse um ponto de apoio para desaplicá-los. Penso que os processos de libertação não podem não ser coletivos e operados dentro do campo de circulação das normas e dos poderes. Porque, justamente, não existe um “fora” do poder. Foucault fala da necessidade de se separar das formas de individuação “governadas” pelo poder. Mas ele certamente não imagina a “déprise” como uma recuperação de autenticidade ou como uma linha de fuga que possa nos subtrair do “poder”.

Creio que se trata, com Foucault, de imaginar, experimentar e tentar praticar outras formas de vida; mas sabendo que, para fazer isso, no entanto, é preciso “governar” a produção das subjetividades e dar uma dimensão “institucional” para a liberdade, se a liberdade existe apenas com os outros. A questão da produção do “comum”, que está no centro das pesquisas e das práticas políticas que, com outros e outras, tentamos levar em frente, remete exatamente a esse quadro de problemas. A como se pode determinar uma decisão constituinte para a liberdade à altura dos desafios que nos são postos pelos regimes neoliberais de acumulação capitalista.

Quais são os limites e possibilidades para os direitos humanos que se descortinam face aos dispositivos de vigilância e controle da cidadania?

Sandro Chignola – Pessoalmente, não tenho nenhuma paixão pela expressão “direitos humanos”, assim como não gosto da expressão “direitos naturais”. Trata-se de expressões que dão por suposto que existe algo de humano ou de natural como existente por si só, subtraído do devir histórico e das batalhas, dos confrontos, das polêmicas, que esse mesmo devir manteve — e continua mantendo — em tensão. Não existe uma natureza humana: existem processos históricos que a definem como tal, e sobre essa definição, de vez em quando, os homens se opuseram, dividiram e combateram.

Mas é sobre a qualificação “direito” que, ao que me parece, surgem ainda mais problemas. Quando a expressão “direito” não está imediatamente ligada a poderes que a usam retoricamente para legitimar a própria intervenção — nos últimos tempos, a intervenção humanitária (a guerra, para chamá-la pelo seu verdadeiro nome) em favor dos “direitos” dos povos contra os seus ditadores (na Líbia, na Síria, por exemplo) combinou autênticos desastres; e foi Carl Schmitt [3] que assinalou, desde os anos 1920, como a guerra travada em nome da humanidade escancara as portas a operações internacionais de polícia tendencialmente infinitas, porque não reconhecem o inimigo como inimigo político e, portanto, a possibilidade de tréguas ou de negociações de paz… — ela remete necessariamente a uma lógica de reconhecimento que amplia os poderes de intervenção dos dispositivos capazes de fixar e de conceder, justamente, aqueles “direitos” que são reivindicados.

Não há possibilidade de fuga do controle, se o controle (no arco muito vasto que vai da invisibilização à censura, da compatibilização à inscrição das posições e dos claims que aceitamos escutar…) se torna a condição para o reconhecimento do “direito” de alguém. Em vez disso, eu acho que se trata, ao mesmo tempo, de desafiar essa lógica de reconhecimento, com a novilíngua liberal dos “direitos” sobre a qual ela se funda e de inventar, experimentar e praticar outras modalidades de subjetivação e de reivindicação para, e sobretudo com os pobres e os excluídos.

Nesse sentido, em que aspectos seria adequado falarmos acerca de uma liberdade vigiada?

Sandro Chignola – Certamente, os dispositivos de vigilância proliferam, impulsionados pelo cruzamento entre novas tecnologias e retóricas da segurança. Mas eu acredito que essa proliferação também depende do fato de que a liberdade (a liberdade de movimento, a liberdade de escolha, a liberdade sexual) está por toda a parte… Mais do que “vigiada”, a nossa liberdade é incentivada e, depois, “governada”; ou seja, dobrada, mas no sentido de “curvada”, dirigida, adaptada para os fins da valorização capitalista. A nossa liberdade é acomodada à racionalidade de mercado: uma liberdade entre mil opções e mil “estilos” de consumo. E é aqui, por isso, que devemos reinventá-la…

Quais são os principais impactos do deslocamento de perspectiva da responsabilidade do Estado para o indivíduo nos mais diferentes campos, sobretudo em relação ao trabalho e à política?

Sandro Chignola – Aqui, está em questão a forma de regulação neoliberal e a particular produção de subjetividade que a marca: Foucault foi um dos primeiros a captar o porte desse projeto. Se, por séculos, aquelas que Foucault chamava de “disciplinas” trabalharam na fabricação de corpos dóceis e úteis para recolocá-los dentro de uma temporalidade homogênea suavizada pelo princípio de utilidade, agora a desconstrução do Estado social, a privatização do Welfare, a adaptação entre liberdade e consumo liberam um sujeito empreendedor de si mesmo, puro “capital humano”, que é o próprio sujeito (mas aqui a referência ao “dever” é ambíguo, já que nada nem ninguém, na realidade, obriga-o…) que deve valorizar. Trabalha-se como livres empreendedores do próprio destino, ciborgues hiperconectados pós-humanos, fora de qualquer medida fixada pelo salário. E-mails, smartphones e computadores fazem com que a nossa vida inteira, mesmo fora do horário de trabalho, seja integralmente subsumida ao capital. Mesmo quando damos uma “curtida” no Facebook no nosso tempo livre, quando fazemos o upload de um vídeo no YouTube, produzimos valor. Os nossos dados são empacotados e vendidos a quem perfila as nossas preferências para fins publicitários, enquanto as ações do Facebook ou do YouTube incrementam o próprio valor. Sermos “deixados livres de ser livres”, assim como os dispositivos de biopoder preveem, significa, no fundo, sermos lançados dentro de trajetórias pelas quais somos considerados integralmente responsáveis. Até mesmo pelo nosso eventual fracasso. E é aqui que a razão neoliberal mostra o seu lado mais feroz: se você é pobre, na realidade, é só culpa sua…

Em outra entrevista à IHU On-Line o senhor mencionou que os presos em nossa sociedade são compreendidos como “lixo tóxico” que deve ser mantido afastado da “cidade empresa”. Tendo isso em vista, em que sentido o neoliberalismo estende sua atuação inclusive nas instituições criadas para segregar os indesejáveis?

Sandro Chignola – Na lógica da valorização do capital humano, o fracasso não pode ser imputado a outros senão a si mesmos. Ser pobre, velho ou doente — mas também simplesmente um estudante preguiçoso, um sujeito “fraco” na competição de todos contra todos — envolve ser deixado de lado. Não há nada a ser recuperado ou reinvestido em relação a fracassos que devem ser imputados apenas à “má vontade” dos sujeitos. E, justamente por isso, as instituições que os tratam podem ser desresponsabilizadas quanto à sua recuperação e, em vez disso, podem ser tratadas como oportunidades de lucro. “Privatizam-se” as prisões, que são geridas tentando maximizar o lucro, poupando custos — em alimentos, em projetos educacionais, em despesas gerais — que são descarregados sobre uma humanidade ainda que “perdida” e aproveitando todas as oportunidades de ganho. Mas também na saúde ou em outras instituições funciona assim, no fundo: eu demito o público — cuja razão de ser se distinguia na responsabilidade social do Estado — e faço negócios privatizando e ampliando a oferta de projetos e de opções diferentes presentes no mercado. Se você não chega a pagar pelo serviço, pior para você; se você pode pagar pouco, pouco terá. Mas, se você é capaz de fazer isso da melhor forma, terá o melhor e a gratificação simbólica que daí deriva. O mundo neoliberal é um mundo decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida.

Desde a última entrevista que concedeu à IHU On-Line, em setembro de 2015, qual é a situação de sua pesquisa sobre “pensar além do Estado”? E o que já descobriu no trabalho que está empreendendo sobre “pensar o sujeito e pensar o comum”?

Sandro Chignola – As duas coisas estão conectadas, obviamente. Eu acredito, e não sou o único a pensar assim, já que trabalho em projetos de pesquisa comuns com amigos, companheiros e colegas, que se trata de ir além da própria ideia de “público”. Esta, pela sua genealogia, separa um “objeto público” (sabe-se lá: a universidade, a saúde, outros tipos de bens…), fazendo com que ele não seja privadamente apropriável; isto é, para que não seja propriedade de ninguém. A nós, ao contrário, interessa o comum como aquilo que não pode ser de ninguém, porque é, e continua sendo, de todos. E são as condições materiais de produção que marcam o presente (a rede, as formas de cooperação em que singularidade e esforço coletivo se potencializam uns com os outros, sem que um possa se determinar sem o outro, o trabalho que é feito como sharing, peer to peer, mas também a preservação dos bens comuns da especulação) que produzem a situação que nos leva naquela direção, não uma simples dedução teórica. Trata-se de ir além do Estado e além da sua simples função de tutela pública da propriedade privada. Nisso está implícita a necessidade de pensar a regulação e as instituições além da forma-de-lei. Estou tentando fazer isso.

Para Foucault, as grandes organizações não soberanas é que governam o mundo. Como esse “império” da impessoalidade e da administração coloca em xeque a democracia na contemporaneidade política?

Sandro Chignola – Também nesse caso, ele nos obriga a pensar para além do Estado e a reinventar a democracia. A produção das decisões vinculantes agora é demandada em grande parte a órgãos técnicos e pós-representativos. Mas não podemos, para combatê-los, creio eu, simplesmente reevocar as formas clássicas da democracia representativa. O conceito de “representatividade” implica uma autorização e uma delegação: vota-se em um representante habilitando-o a fazer por nós aquilo que nós não faremos em primeira pessoa. Aqui está o problema. É preciso repensar as formas da participação; reimplantar projetos radicais de liberdade e de igualdade para todas e para todos, sem pensar que “profissionais da política” possam se encarregar deles. É preciso reinventar a cidadania para além do Estado.

A partir da importância da filosofia de Foucault para Agamben [4], qual é a contribuição deste último pensador para repensar a política, em geral, e a democracia, em específico? Em que medida sua filosofia inspira o surgimento de novas formas-de-vida?

Sandro Chignola – Agamben pensa nesse mesmo horizonte, sem dúvida. Mas ele faz isso com aquele que, a meu ver, é um pressuposto extremamente fraco: uma concepção absolutamente vitimária do sujeito e uma noção muito forte de dominação. Omito aqui os detalhes. Ele também tem o problema da fuga do dispositivo de soberania, mas pensar tal fuga como “desaplicação” do direito e como “inoperosidade” da lei e o comum como “uso” (questão absolutamente importante, aliás), sem definir primeiro uma ontologia do comum, parece-me politicamente pouco produtivo. É claro, o tema das “novas formas-de-vida” é decisivo.

Ainda tomando em consideração a obra de Agamben, como avalia a pertinência de suas reflexões acerca do homo sacer e do campo para pensarmos na política de imigração em países como os EUA e a questão dos refugiados na Europa?

Sandro Chignola – Pois bem, o exemplo me parece apropriado para esclarecer o ponto crítico da resposta precedente. Por acaso, a vida do migrante clandestino pode ser entendida como “vida nua” bloqueada no banimento de soberania? Penso que não. Não só a vida dos migrantes está integralmente saturada pelo direito (management das migrações e expertises que o atravessam, fórmulas de acolhimento ou de repulsão, dispositivos de filtragem da mobilidade de tipo técnico-administrativo e sanitário, controle dos fluxos, construção e profiling dos tipos: o clandestino, o refugiado [de guerra ou “econômico”], o refugiado, com todas as implicações jurídicas que essas figuras deixam como resíduo, por exemplo), em vez de despojada dele, mas também o migrante, longe de ser apenas uma “vítima”, é muitas vezes levado por um desejo subjetivo de fuga e de liberdade, que ele reivindica com a sua vida como um “direito”. Isso me parece decisivo para compreender aqueles que me parecem ser os limites objetivos da posição de Agamben. Não se trata de “estados de exceção”, mas da cotidianidade da batalha entre a liberdade e os dispositivos que a afrontam; não se trata de “vida nua” nas malhas da dominação, mas de trajetórias de liberdade e da sua captura, de práticas de subjetivação e dispositivos de assujeitamento…

Quais são os principais desafios da Filosofia e da Universidade em nossos dias para um pensar que ultrapasse os limites do poder pastoral e da governamentalidade?

Sandro Chignola – Penso que a principal diz respeito ao modo como vivemos a responsabilidade intelectual do nosso trabalho. Podem nos impor poderosos processos de reestruturação da universidade e dos saberes, mas isso nunca vai tocar o sentido do nosso trabalho, se, para nós, o nosso trabalho tiver um e se estivermos dispostos a nos encarregar disso a sério. Do meu ponto de vista, isso significa fundamentalmente duas coisas: por um lado, forçar as liturgias e as routines do trabalho na universidade e, em particular, aquelas que nos levam a assumir aproblematicamente os campos de pesquisa e de didática; por outro, viver de forma diferente o papel do professor.

Eu me faço a pergunta sobre o que é justo ensinar hoje; sobre quais são os implícitos de determinadas escolhas que fazemos ou não fazemos (mesmo sem nos darmos conta, às vezes) quando propomos um programa para um curso ou um determinado trabalho de tese. Nós determinamos aquilo que a filosofia política é de maneira consciente ou inconsciente, também dentro dessa microfísica das escolhas, dentro da cotidianidade em que transmitimos ou modificamos a autoridade de um cânone ou a normatividade de um arquivo. Esse nível mínimo daquela que eu chamo de uma “política da filosofia” me parece ser bastante importante para repensar a universidade; especialmente se lembrarmos, para depois “ativar” concretamente essa memória, que uma universidade não é feita de indivíduos solitários, não é dominada por paixões tristes, mas de práticas e de projetos comuns, da alegria das relações e dos intercâmbios, de trajetórias conjugativas da liberdade. Cumprir bem o próprio Beruf, como Max Weber [5] o chamava, já me parece ser uma laica via de salvação: mas só pode sê-lo tendo bem em mente que é apenas com as outras e com os outros que ela pode ser aberta.

Notas: 

[1] Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004; edição 203, de 06-11-2006; edição 364, de 06-06-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)

[2] Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e singularidades. (Nota da IHU On-Line)

[3] Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional da Alemanha do século XX. A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o regime nacional-socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na teologia católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)

[4] Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moderna, o Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault e Agamben. Implicações Ético Políticas do Cristianismo. De 16-03-2016 a 22-06-2016 Ruiz ministrou a disciplina de Pós-Graduação em Filosofia e também validada como curso de extensão através do IHU intitulada Implicações ético-políticas do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Agamben. Governamentalidade, economia política, messianismo e democracia de massas, que resultou na publicação da edição 241ª dos Cadernos IHU ideias, intitulado O poder pastoral, as artes de governo e o estado moderno. Para 23 e 24-05-2017 o IHU realizará o VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, com base sobretudo na obra O reino e a glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo (São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução de: Il regno e la gloria. Per una genealogia teológica dell’ecconomia e del governo. Publicado originalmente por Neri Pozza, 2007). (Nota da IHU On-Line)

[5] Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

Assista à conferência Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros:

O livro “Foucault além de Foulcault: uma política da filosofia” de Sandro Chignola está disponível aqui.

“Arriscar fazer de Michel Foucault um “monumento”, fazer falá-lo como um “autor”, sem incoerências, contradições e desvios, seria traí-lo.”

por Augusto Jobim do Amaral.

Imagem: reprodução.

O leitor da língua portuguesa, finalmente, acaba podendo acessar uma obra rara [Foucault além de Foucault: uma política da filosofia] – não apenas por seu formato artístico, como livro-experiência -, mas pela erudição, rigor e precisão que Sandro Chignola conduz o assunto. Sobretudo, pela tomada de postura do autor, ao gosto daqueles que valorizam o esforço foucaultiano, Sandro não o monumentaliza. Arriscar fazer de Michel Foucault um “monumento”, fazer falá-lo como um “autor”, sem incoerências, contradições e desvios, seria traí-lo. Usar e ativá-lo de modos múltiplos é, de fato, também, ao gosto foucaultiano, perceber a filosofia como lugar de intervenção permanente, contestando seu próprio estatuto e, assim, também, permitir fazer política – “política da filosofia”, portanto.

Em hora melhor não poderia aterrizar, no Brasil, de modo bem apanhado, os estudos de Sandro sobre Foucault. A pena de um dos maiores experts no autor francês torna possível a inadiável obrigação de liberar Foucault da docilização que, não raro, acomete seus comentadores praticamente em todas as áreas. Contra o adestramento – quando não torsão pouco honesta na direção de ideários que jamais passariam pelo engajamento foucaultiano – que, em alguma medida, dispõe Foucault preocupado centralmente com o poder (juridificado, por suposto) e não com a produção de subjetividades como, rigorosamente, era; quando não reduzido à disciplina ou, pior ainda, através da ordenada periodização do seu recurso filosófico, que acaba hoje em dia, com força talvez hegemônica, fazendo com que Foucault seja encampado e reduzido por tanatofilosofias soberanistas e estatalizantes – Sandro, lembra, com o eco do professor de todos nós, Toni Negri, que la vita sfugge senza posa.

Augusto Jobim do Amaral é professor da PUCRS [PPGCCrim e PPGFil], é coordenador do Grupo de Pesquisa “Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica” (@politicrim) e coordenou a tradução e a revisão técnica do livro “Foucault além de Foucault: uma política da filosofia”, do professor Sandro Chignola. O livro foi traduzido diretamente do italiano.

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