Que bobagem, Pasternak! Livro erra sobre psicanálise em 9 pontos – Parte 3

Texto originalmente publicado na coluna do psicanalista Christian Dunker no blog da Uol Tilt

O livro de Pasternak e Orsi —do qual falamos nas duas últimas colunas (veja a parte 1 e a parte 2)— traz um tema interessante, ainda que tenha sido tão maltratado. Como avaliar as psicoterapias? Como saber qual funciona para o que e para quem?

Aqui salta aos olhos a dificuldade em transpor diretamente os princípios da Medicina Baseada em Evidências para uma possível Psicologia Baseada em Evidências.

Qual seria exatamente o princípio ativo das psicoterapias?
Como imaginar um placebo psicoterápico?

(A ideia de um ator falando de forma trivial com a pessoa não garante que isso não tenha efeitos terapêuticos).

Ainda assim a apresentação é parcial e contraditória.

Pode e deve-se fazer pesquisa sobre avaliação de psicoterapias, mas desde os anos 1950, os resultados são muito divergentes, com autores dizendo que as psicoterapias em geral não funcionam (Eisenk), que elas funcionam mais do que as medicações (tamanho de efeito = 0.87, contra 0.40 em média para antidepressivos, por exemplo) ou que todas elas possuem efeitos positivos (chamado efeito Dodo) [1], assim como existem efeitos adversos ou iatrogênicos das psicoterapias (como qualquer método de tratamento).

Sim, “pacientes tendem a confirmar a orientação teórica de seus terapeutas” (p. 197), mas onde está a evidência científica de que os pacientes em psicanálise pioram mais ou confirmam mais isso do que outras psicoterapias? Zero. Nenhuma pesquisa é trazida, ao contrário do que se espera de alguém que se compromete com uma posição evidencialista em ciência.

Neste cenário de incerteza, Pasternak e Orsi concluem que as psicoterapias podem ser controladas como as medicações, mas também que “a psicoterapia é uma atividade voltada para o mercado” (p. 183).

Mas então:


Onde estão os biomarcadores para que eu possa medir o nível de neurotransmissores cerebrais de um depressivo e assim controlar seu aumento ou diminuição depois das psicoterapias?
Onde estão os diagnósticos etiológicos que me permitam confiar que uma transtorno de pânico ou um transtorno de déficit de atenção com hiperatividade têm a mesma confiabilidade diagnóstica que temos na medicina?
Onde estão as descrições conclusivas de curso e desenlace das doenças mentais?
Aliás, por que chamamos elas de “transtornos” (disorders) e não de doenças?
Qual o princípio ativo da psicoterapia?
Resultado desta ilusão exagerada de controle são as contradições do texto.

Primeiro afirmam que “evidências clínicas são insuficientes, inconclusivas ou inválidas porque os pacientes insatisfeitos não voltam” (p. 182) para, em seguida, se contradizerem, trazendo para o próprio texto [o caso] “O Homem dos Lobos”, que “voltou” para dizer que a análise o prejudicou, que Freud inventou memórias e que ele nunca foi propriamente curado (p. 190).

Afirmam que só 1% relata efeitos negativos e que 10% dos pacientes pioram (p. 184), mas há dados em contrário que falam em 20% de pacientes que relatam benefícios inesperados trazidos pela psicoterapia.

Primeiro dizem que “não existem evidências convincentes de que qualquer forma de psicoterapia particular, ou ingrediente específicos em geral, seja crucial para produzir os efeitos da psicoterapia” (p. 184), mas quando não se trata de psicanálise “existem resultados de pesquisas, conduzidas por boas práticas que confirmam eficácia do método” (p. 184).

Ou seja, caçam “cerejas” pela floresta das evidências para apresentar o retrato que já têm na cabeça.

Trazemos, portanto, cinco considerações sobre a dificuldade de avaliar psicoterapias:

1.

Existe controvérsia na literatura sobre o que constituem evidências de boa qualidade, quais métodos devem ser empregados para estabelecer a eficácia de uma terapia, quais as melhores formas de medir resultados.

Critérios de evidência produzidos para a pesquisa em medicina são problematicamente aplicados para avaliar práticas da psicologia clínica [2].

2.

Há apenas algumas áreas da medicina em que os estudos mostraram uma boa qualidade de pesquisas [3].


Entre elas estão as pesquisas sobre alfabetização em saúde, triagem de câncer [4] e diretrizes de prática clínica para o tratamento do transtorno por uso de opioides [5].

Um amplo estudo sobre a qualidade da pesquisa farmacológica e psicoterapêutica com depressão maior [6] examinou confiança geral nos resultados das pesquisas de acordo com AMSTAR2 [7].

O resultado aponta que:

“A qualidade metodológica das pesquisas sobre intervenções farmacológicas e psicológicas para depressão maior em nossa amostra atual e representativa foi decepcionante.”

Apenas quatro revisões foram classificadas como “alta” (três delas Revisões Cochrane), duas como “moderada”, uma como “baixa” e 53 como “criticamente baixa”.

3.

Quanto mais complexa uma intervenção maior heterogeneidade e maior a chance de redução na qualidade do delineamento experimental e da qualidade final da evidência produzida [8].

Um estudo que queira realmente reduzir vieses tão complexos como os que atribuímos às intervenções psicanalíticas teria que modular, além disso, com pelo menos 10 fatores para homogeneizar a amostra [9]:

Sintomas DSM mais comorbidades,
Reação do paciente à psicopatologia,
Massa corporal,
Personalidade,
Nível de inteligência,
Regulação de Emoções,
Adoecimentos,
Passagem por tratamentos médicos (não psicoterápicos),
Desemprego,
Profissão,
Desenvolvimento Social,
Qualidade de Vida.


(a) Intervenções com múltiplos componentes

(b) Intervenções em que ocorre significativa interação entre a intervenção e seu contexto

(c) Intervenções introduzidas em sistemas complexos

4.

Análises análogas feitas com instrumentos semelhantes sobre a produção de pesquisa sobre eficácia e eficiência da psicanálise [10] afirmam, sob a perspectiva da medicina baseada em evidências, que os resultados têm uma força científica apenas moderada e que “não podemos tirar conclusões definitivas sobre a eficácia da psicanálise” [11].


Um estudo que analisou a qualidade de 94 pesquisas sobre Psicoterapia Psicodinâmica, publicados entre 1974 e 2010, com grupo controle randomizado chegou nos seguintes resultados:

a) Das 103 pesquisas:

63 comparavam Psicoterapia Psicodinâmica e Não-Dinâmica


b) Das 39 comparações entre Psicoterapia Psicodinâmica e uma Intervenção Ativa:

6 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior
5 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é inferior
28 mostraram que não há diferença significativa entre ambas


c) Das 24 comparações adequadas com um Fator Inativo:


18 mostraram que a Psicoterapia Psicodinâmica é superior.


d) “Isso é suficiente para tornar a Psicoterapia Psicodinâmica um tratamento “empiricamente validado” (de acordo com os padrões da Divisão 12 da Associação Americana de Psicologia) se outros estudos controlados e randomizados de qualidade e tamanho de amostra adequados replicassem os resultados dos estudos positivos existentes para transtornos específicos.” [12]

5.

A LTPP ((long-term psychodynamic psychotherapy ou psicoterapia psicanalítica de longa duração) pode ser superior a outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, onde a força do efeito representou ganho adicional da LTPP em relação a outras formas de psicoterapia, principalmente de longo prazo.

Reanálise estatística das meta-análises de Leichsenring, Abbass, Luyten, Hilsenroth e Rabung, encaminhadas para o escrutínio no artigo em questão, encontraram evidências da eficácia da LTPP no tratamento de transtornos mentais complexos e a força do efeito terapêutico nas replicações foram, em geral, um pouco menores.

Uma nova meta-análise atualizada de ensaios clínicos randomizados comparando LTPP (com duração de pelo menos 1 ano e 40 sessões) com outras formas de psicoterapia no tratamento de transtornos mentais complexos, usando critérios de pesquisa transparente, de acordo com os padrões de ciência aberta, com procedimentos meta-analíticos e controle de viés incluindo 191 tamanhos de efeito e 14 estudos elegíveis, revelou tamanhos de efeito pequenos e estatisticamente significativos no pós-tratamento para os domínios de resultados de sintomas psiquiátricos, problemas-alvo, funcionamento social e eficácia geral (Hedges’ g variando entre 0,24 e 0,35).


O tamanho do efeito para o domínio funcionamento da personalidade (0,24) não foi significativo (p = 0,08).

Não foram detectados sinais de viés de publicação [13].

Apenas para visualizar uma comparação geral, esta é a média da força de efeito terapêutico:

Imagem: Christian Dunker

A psicanálise é um tratamento psicoterápico psicodinâmico baseado em evidências [14].
Os tamanhos dos efeitos são tão grandes quanto os de outras terapias que são ativamente promovidas como “apoiadas empiricamente” e “baseadas em evidências”, e os pacientes que recebem terapia psicanalítica não apenas mantêm os ganhos terapêuticos, mas continuam melhorando após o término do tratamento.

O psicanalista sul-africano Marc Solms fez um bom resumo das evidências de eficácia e eficiência apresentadas pela psicanálise:

“A terapia psicanalítica alcança bons resultados, pelo menos tão bons quanto e, em alguns aspectos, melhores do que outros tratamentos baseados em evidências na psiquiatria atualmente.

  1. A psicoterapia em geral é uma forma de tratamento altamente eficaz. Meta-análises de psicoterapia, estudos de resultados de psicoterapia normalmente revelam tamanhos de efeito entre 0,73 e 0,85. Um tamanho de efeito de 0,8 é considerado grande em pesquisas pesquisa psiquiátrica, 0,5 é considerado moderado e 0,2 é considerado pequeno. Para colocar a eficácia da psicoterapia em perspectiva, medicamentos antidepressivos recentes alcançam tamanhos de efeito entre 0,24 e 0,31 (Kirsch et al., 2008; Turner et al, 2008). As mudanças provocadas pela psicoterapia, não menos do que a terapia medicamentosa, são, obviamente, visualizáveis por meio de imagens cerebrais.
  2. A psicoterapia psicanalítica é igualmente eficaz como outras formas de psicoterapia baseadas em evidências (por exemplo, terapia cognitivo-comportamental (TCC)). Isso agora está inequivocamente estabelecido (Steinert et al, 2017). Além disso, há evidências que sugerem que os efeitos da terapia psicanalítica duram mais tempo – e e até aumentam – após o término do tratamento. A revisão autorizada de Shedler (2010) de todos os estudos controlados e randomizados até o momento relatou tamanhos de efeito entre 0,78 e 1,46, mesmo para formas diluídas e truncadas da terapia psicanalítica. Uma meta-análise, especialmente meta-análise metodologicamente rigorosa (Abbass et al, 2006), produziu um efeito geral de 0,97 para a melhora geral dos sintomas com a terapia psicanalítica. O efeito aumentou para 1,51 quando os pacientes foram avaliados no acompanhamento. Uma meta-análise mais recente –meta-análise de Abbass et al (2014)– produziu um tamanho de efeito geral de 0,71, e a descoberta de efeitos mantidos e aumentados no acompanhamento foi reconfirmado. Isso foi para tratamento psicanalítico de curto prazo. De acordo com a meta-análise de Maat et al (2009), que foi menos metodologicamente rigorosa do que os estudos de Abbass, a psicoterapia psicanalítica de longo prazo produz um tamanho de efeito de 0,78 no término e 0,94 no acompanhamento, e a psicanálise propriamente dita alcança um efeito médio de 0,87 e 1,18 no acompanhamento. Esse é o resultado geral: o tamanho do efeito para a melhora dos sintomas (em oposição à mudança de personalidade) foi de 1,03 para terapia psicanalítica de longo prazo, e para a psicanálise foi de 1,38. Leuzinger-Bohleber et al (2018) informarão em breve tamanhos de efeito ainda maiores para a psicanálise na depressão. A tendência consistente em direção a tamanhos de efeito maiores no acompanhamento sugere que a terapia psicanalítica põe em movimento processos de mudança que continuam após o término da terapia (enquanto os efeitos de outras formas de psicoterapia, como a TCC, tendem a se deteriorar).” [15] [16]

REFERÊNCIAS


[1] Leonardi JL, Meyer SB. Prática Baseada em Evidências em Psicologia e a História da Busca pelas Provas Empíricas da Eficácia das Psicoterapias. Psicol cienc prof [Internet]. 2015Oct;35(4):1139-56.

[2] Reed, Kihlstrom, & Messer, 2006.

[3] In rating overall confidence in the results of the SR according to Shea et al., (2017) only four reviews were rated “high” (three of them Cochrane Reviews), two were “moderate”, one was “low” and 53 were “critically low”. The methodological quality of the SR on pharmacological and psychological interventions for major depression in our current and representative sample was disappointing. On the other hand, there are only few areas in medicine in which studies showed a good quality of SR. They include health literacy and cancer screening (Sharma and Oremus, 2018) ) and SRs referenced in clinical practice guidelines for the treatment of opioid use disorder (Ross et al., 2017).

[4] Sharma e Oremus, 2018.

[5] Ross et al., 2017.

[6] Shea et al. (2017).


[7] The methodological quality of systematic reviews on the treatment of adult major depression needs improvement according to AMSTAR 2: A cross-sectional study In Helyon VOL 6, Issue 9, E04776, September 2020.

[8] Novo Manual da Fundação Cochrane.

[9] Leuzinger, Bohleber, Benecke, Hau (2015) Psychoanalitische Forschung – methonden und Kontroversen in Zeiten wissenschaftlicher Pluraliät. Stutgard: Kohhammer, p. 197.

[10] Maat, (2008) Costs and benefits of Long-Term Psychoanalytic Therapy: changes in health care. Use and work impairment. Harvard Review of Psychiatry, 15(6), 289-300

[11] “Entspechend kommen Maat. (2013) zu der Schlussfolkgerung, dass die Ergebnisse unter der perspective der evidence-based medicine eine only moderade scientific strengh” aufweise das “we cannot drae firm conclusions regarding the effectiveness of psychoanalysis”.

[12] Gerber, A.J., Kocsis, J. H., Milrod, B. L., et al. (2011). A quality-based review of randomized controlled trials of psychodynamic psychotherapy. The American Journal of Psychiatry 168: 19-28.


[13] Christian Franz Josef Woll, Felix D. Schönbrodt. Efficacy of Long-Term Psychoanalytic Psychotherapy (2019) A Meta-Analysis European Psychologist, December 2019, Hogrefe Publishing Group.

[14] Woll, Christian Franz Josef, Schönbrodt, Felix D. (2021) A series of meta-analytic tests of the efficacy of long-term psychoanalytic psychotherapy. European Psychologist, Vol 25(1), 2020, 51-72.

[15] Solms Mark (2018) The scientific standing of psychoanalysis. BJPsych International volume 15 number 1 february 2018

[16] Abbass A. A., Hancock J. T., Henderson J., et al (2006) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders. Cochrane Database Syst Rev, 4,

Abbass A. A., Kisely S. R., Town J. M., et al (2014) Short-term psychodynamic psychotherapies for common mental disorders (update). Cochrane Database Syst Rev, 7,

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Steinert C., Munder T., Rabung S., Hoyer J. & Leichsenring F. (2017 Psychodynamic Therapy: As Efficacious as Other Empirically

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As 4 lições de Psicanálise, por Christian Dunker

O professor Christian Dunker foi convidado pelo Instituto Norberto Bobbio para contar 4 lições de psicanálise. A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.

As “Cinco Lições de Psicanálise” constituem um texto com uma reunião de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 -1939) em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts. Nessa conferência, Freud busca apresentar, para um grupo não especializado, os principais conceitos da teoria que desenvolveu neste período. Inspirada por essa ideia, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou no dia 9 de janeiro de 2023, com o Prof. Christian Dunker (USP)  sobre suas próprias lições de psicanálise.

Lição número 1

O texto ” Cinco Lições de Psicanálise” foi a porta de entrada pela qual eu comecei a ler psicanálise. Inclusive, muita gente que estuda esse assunto começou por esse trabalho muito popular. É interessante como ele possui vários ingredientes que falam sobre uma psicanálise para o nosso tempo, à altura da nossa subjetividade. Isso é importante porque há formas de psicanálise anacrônicas, que operam sobre parâmetros definidos no século XIX ou que confirmam preconceitos e moralidades já obsoletas. Mas vamos lembrar que essa conferência aconteceu nos Estados Unidos, então para que Freud pudesse contar suas lições ele saiu de seu lugar natural, a cidade de Vienna. 

Isso é significativo porque, no fundo, Freud precisou falar com o outro em uma língua que não dominava. De fato, ele se sentia meio estranho quando chegou no porto de Boston e se deparou com uma banda tocando para receber o “grande pensador autríaco”. Reza a lenda que ele comentou com Carl Jung e com Sándor Ferenczi: “os americanos estão pensando que vamos salvar o mundo, mas estão enganados. Estamos aqui para trazer algo que vai desmontar e tornar a coisa mais crítica, mais conflitiva”. 

A minha primeira lição está relacionada com esse contexto. Para estudar psicanálise temos que gostar do estrangeiro, do outro e da sua língua. Ou melhor, é preciso falar a língua do outro, ser capaz de simpatizar com  formas de vida diversas e sair de si mesmo. Aquele que acha que vai aumentar o tamanho do seu eu se restringindo a si está agindo errado. Na verdade, essa pessoa vai criar uma espécie de regime. A psicanálise vai te convidar ao encontro com seus outros.

Lição número 2

A segunda lição demonstra a importância da psicanálise no mundo em que vivemos pois, no fundo, ela é uma experiência metódica, controlada, abrigada, protegida de crise auto induzida. Você pode até pensar que está tão bem, mas o processo psicanalítico vai colocar em cheque os seus amores, seus ídolos, suas identificações, suas fantasias e tudo o que você acha a seu respeito. E se tudo der certo, no que você vai se transformar? Em um viajante que não precisa mais de malas e  sacolas, pois não precisa levar consigo tudo para se garantir e se defender do outro na viagem da vida. É importante reduzir essa bagagem, esse conjunto de coisas que a gente carrega nas costas e que cansam a gente: as decepções, frustrações e  expectativas. Entender que essas coisas fazem parte é o que você vai ganhar entrando em crise. 

Mas, de brinde, vem outra facilidade, que é diminuir o custo subjetivo para viver. Assim, podemos nos perguntar: quanto o outro sofre para fazer aquilo que faz tecnicamente tão bem quanto você? Quando o outro se relaciona com algo com uma espécie de andamento opressivo, quando ele se joga em uma situação se demitindo do seu próprio desejo? Tudo isso implica em um custo subjetivo mais alto do que precisaria. E o custo subjetivo já é alto por excelência porque a vida não é exatamente um passeio de flores. Para aquele que é mais neurótico, viver equivale a uma viagem cheia de malas, como se abelhas picassem o tempo inteiro sua cabeça, dizendo: “você é inadequado, você não fez o que deveria, você não está a altura de si mesmo, etc.”. 

Portanto, nessas condições, para continuar caminhando o custo é muito alto. Para ir em frente, o custo subjetivo das suas escolhas, dos seus fracassos e dos seus desencontros é muito alto. A psicanálise, ao criar uma crise controlada, ensina que a gente pode viver em crise; tanta segurança já não é mais necessária. Em geral, todos nós temos nossos temores, que nos chantageiam mais do que é preciso. Costumamos dizer que o neurótico é um pouco covarde, não covarde no sentido heróico, mas consigo próprio porque a vida implica tomadas de decisões que muitas vezes são incertas mesmo. 

Lição número 3

Nas conferências de Freud, em que leciona suas Lições, em um dado momento ele utiliza uma boa metáfora. Ele está em um auditório cheio de gente falando, quando aparece alguém que começa a bater na porta querendo entrar. Essa pessoa começa a fazer perguntas e interromper a todo instante o orador, tornando-se desagradável. O que você faz? Você expulsa ele, põe ele para fora, e lá ele atrapalha ainda mais. São os sintomas. O palestrante é o Eu, os outros são o auditório e esse alienígena representa nossos desejos, aquilo que a gente nega em nós mesmos. 

Nessa metáfora, Freud diz que o neurótico adora um condomínio, ou seja, os lugares onde só tem gente igual a ele. Mas talvez seja melhor admitir esse estrangeiro dentro, talvez seja melhor baixar o muro e abrir as portas porque a conferência pode ser muito mais interessante com a presença do outro. Pelo menos, essa é uma opção melhor do que ficar brigando com aquilo que quer entrar. 

 Ou seja, não expulse pela janela da frente aquilo que vai entrar pela janela de trás. Não ache que a vida é um método pelo qual você vai encontrar ordem. Não é só obedecer para resolver tudo. A psicanálise vai se opor a essa vida feita de espelhos, que sugere que  todo mundo é como você.

 

Lição número 4

Quando chegou nos Estados Unidos, Freud precisou falar a língua do outro. Isso é interessante porque ele tem uma mente muito empática, capaz de utilizar a linguagem para se comunicar. No mundo de hoje a gente desaprendeu a escutar, a escutar aquele que está batendo na nossa porta querendo entrar. Mais ainda, desaprendemos a escutar nós mesmos. 

Então a psicanálise ensina a capacidade de escutar, o que costuma ser um grande negócio para advogados. Todos os advogados precisam escutar seus clientes antes e durante sua estadia na justiça reparatória, na medição ou na arbitragem. É notável como o direito se aproxima de uma prática de escuta de conflito. E se você acha que será possível ter acesso aos conflitos do outro sem jamais interferir nos seus, é melhor que o advogado troque de profissão. Portanto, o trabalho de formação para a escuta é algo que está presente em Freud e, na minha opinião, é  absolutamente faltante e desejável na nossa situação contemporânea.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade, O palhaço e o Psicanalista e Psicanálise e Saúde Mental, disponível aqui.

“Falamos de uma psicanálise que se afasta do dispositivo disciplinar e se aproxima da dimensão trágica da existência.”

Por Christian Dunker e Fuad Kyrillos Neto.

Morador da região atingida pela hidrelétrica de Belo Monte e suas anotações sobre a vida destruída. Foto: André Nader

A trajetória do livro “Psicanálise e Saúde Mental”, lançado em 2015, foi acompanhada e mantida pela ampla acolhida entre pesquisadores e trabalhadores de saúde mental. As dezenas de citações em dissertações, teses e artigos acadêmicos e as reiteradas solicitações de profissionais da saúde pública por uma nova edição deste trabalho demonstram a relevância de seu conteúdo para os interessados no campo da saúde mental em seu diálogo com a teoria psicanalítica. 

Do lançamento da primeira edição até o presente momento, nosso país viveu importantes retrocessos no campo da saúde mental. A Nota Técnica n. 11, de 2019, assinada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas esclarece uma série de mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas assevera a ampliação da RAPS, que passa a contar com mais serviços, entre eles, os hospitais psiquiátricos, cuja busca pelo fechamento configura um dos princípios basilares da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e as comunidades terapêuticas, com seu histórico recente de violação dos direitos humanos fartamente documentado em relatório elaborado pelo Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo. 

A Nota Técnica apresenta um deslocamento significante em sentido contrário aos princípios das Reformistas. Ela anuncia a revogação dos termos “rede substitutiva” ou “serviço substitutivo”, visto não existir mais apoio do governo brasileiro à extinção dos manicômios. Ela incentiva o atendimento ambulatorial em serviços para os quais convergem muitos usuários, minando, desta forma, o caráter territorial dos serviços e possibilita, ainda, o retorno do financiamento pelo Ministério da Saúde do questionável tratamento por eletroconvulsoterapia. 

Em diálogo com este cenário de desmonte do processo político que culminou com a Reforma Psiquiátrica, o capítulo incluído nesta edição nos recorda sobre os efeitos deletérios das práticas manicomiais presentes nos grandes hospícios brasileiros e seus ecos, ainda presentes, nos serviços inspirados nos ideais da Reforma Psiquiátrica, principalmente em uma cidade com longa trajetória hospitalocêntrica. Traçamos um breve percurso histórico e crítico sobre o centenário Hospital Colônia de Barbacena, visitado por Basaglia em 1979 e por ele nomeado de “campo de concentração nazista”. 

A reflexão qual psicanálise para qual saúde mental, que apresentamos na primeira edição deste livro é imprescindível para a resistência a este estado de coisas. A transformação da saúde mental em um condomínio, gerido pela diagnóstica da medicina baseada em evidências impede a circulação da palavra. Reafirmamos que a manutenção do sujeito em seu meio de pertença, possibilitada pela rede substitutiva, oportuniza o imprescindível resgate da clínica. Nos moldes hospitalocêntricos, a clínica enquanto acolhimento da loucura através de um operador de escuta era impraticável, tendo em vista o contexto opressor do hospital psiquiátrico. Nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os usuários circulam pela polis, estão em contato com a alteridade. É na dialética com o outro que a linguagem se constitui como fundamental na mediação. É a linguagem como campo simbólico que compele o sujeito e possibilita o surgimento de sua singularidade. E aqui surge a possibilidade de uma práxis clínica que desvele o sentido do delírio para aquele que sofre, por intermédio de um discernimento da forma singular do sujeito para aquilo que lhe parece alheio. Falamos de uma psicanálise que se afasta do dispositivo disciplinar e se aproxima da dimensão trágica da existência. 

Christian Dunker é psicanalista, professor, youtuber e trabalha em diversas áreas das ciências humanas. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, atualmente coordena, ao lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip).

Fuad Kyrillos Neto é professor, psicanalista e pesquisador. Além de temas relacionados à saúde mental na perspectiva da psicanálise, pesquisa a inserção da teoria psicanalítica no Brasil e suas aplicações em relação às práticas sociais hegemônicas. Interessa-se, ainda, pela temática do poder e política do psicanalista no que concernem às rupturas e às discordâncias no interior da tradição lacaniana da psicanálise.

A segunda edição ampliada do “Psicanálise e Saúde mental” está disponível em pré-venda e será lançado dia 26 de setembro em Porto Alegre. Clique aqui para adquirir.