A multidão das dissidências de gênero e a clínica psicanalítica, por Eduardo Leal Cunha

Diante da convocação a refletir sobre o que seria uma clínica da multidão de minorias, parece-me inevitável começar interrogando os termos que compõem tal convocação, pois só entendendo um pouco mais a necessidade da referência à multidão e às minorias, veremos com clareza alguns dos desafios colocados atualmente à nossa clínica. de modo que possamos não apenas interrogar as formas e sentidos das nossas práticas, mas, sobretudo, imaginar outras modalidades possíveis para a escuta das experiências subjetivas contemporâneas em sua singularidade.

Para o termo multidão, recorrerei aqui brevemente Paul B. Preciado, em um texto relativamente conhecido, Multidões queer (Preciado, 2011). O que temos ali é a afirmação do potencial transgressivo de uma anormalidade múltipla que se recusa ao enquadramento, seja normativo ou mesmo identitário. Afirmar a multidão em sua diversidade implica afirmar um comum possível, ao mesmo tempo em que se recusa tanto a unificação referida à adequação a uma norma ou ideal quanto a distribuição em territórios identitários, definidos por uma essência qualquer atribuída aos que os habitam, ainda que seja esta puramente estratégica, e regulados por fronteiras tanto físicas quanto simbólicas ou mesmo puramente imaginárias.

Quanto ao segundo significante, creio haver pelo menos duas maneiras de dar sentido ao que nos referimos como minorias: em primeiro lugar, minorias numéricas, as quais carecem, em função disso, de representação na esfera pública, regulada na maioria das vezes por regras de proporcionalidade; em segundo lugar, grupos e indivíduos menorizados, ou seja, cuja falta de representação política deriva não de um déficit numérico, mas de um déficit de reconhecimento social. É sobretudo neste segundo sentido que a dita questão das minorias aparece como elemento central da política contemporânea, tal como propõe Axel Honneth (2009) em sua descrição de uma luta por reconhecimento, no centro da qual, destaca-se mais uma vez a questão das identidades, que aparecem como elemento fundamental do cálculo político contemporâneo, muitas vezes colocando em segundo plano a questão da injustiça econômica e aquilo que Nancy Fraser (2006) nomeia luta por redistribuição.

Com isso, chegamos finalmente ao primeiro termo da sentença que delimita o problema e o sentido deste ensaio, pois será preciso refletir, ainda que brevemente, sobre o que entendemos por clínica. Com o sintagma multidão de minorias, colocamos em questão, de forma condensada, uma série de problemas políticos que marcam nossa atualidade, com ampla ressonância sobre os processos de subjetivação e modalidades de laço social, mas situamos, ao mesmo tempo, em nosso horizonte ético-político, uma série de valores, ideais e mesmo posicionamentos estratégicos que podem, ou, mesmo, deveriam orientar a nossa prática clínica. Falta agora demarcar os sentidos possíveis para tal clínica e é nesta direção que nos encaminhamos a partir daqui.

Como ponto de partida, acredito ser necessário ressaltar que com os dois termos iniciais – multidão e minorias – procuramos nos referir não apenas a conjuntos difusos e mal definidos de existências, mas, talvez de maneira mais específica, a grupos e indivíduos postos em uma posição subalterna, sendo, assim, silenciados. Desse modo, a primeira questão que, para mim, se coloca quando pensamos em uma clínica da multidão de minorias é muito simplesmente como escutar aqueles que não podem falar (Spivak, 2018).

Afinal, não é função própria do trabalho analítico fazer falar o que não pode ser dito? Fazer falar aquele que, não podendo verbalizar seu desejo, acaba por enunciá-lo por meio de sintomas e outras formações do inconsciente, produzidas na tensão entre o desejo que se quer em movimento e o recalque que barra as representações que lhe possibilitariam mover-se?

As condições de tal “fazer falar”, aparecem, ao menos para Freud, sempre articuladas à colocação em jogo daquilo que definiu como regra fundamental da análise – a associação livre do paciente – e sua contrapartida, por parte do analista: a atenção flutuante (Freud, 2010/1912). De modo que a postura do analista será fundamental para que a associação do paciente e o drible da censura efetivamente ocorram, abrindo espaço para a irrupção do inconsciente e para a manifestação dessa tensão entre desejo e recalque que marca o conflito psíquico.

Tal postura, nós a procuramos entender como a criação necessária de condições de escuta e assim será sempre a partir do estabelecimento dessas condições que aquele e aquilo que são silenciados, poderão dizer e ser dito. Fechando este pequeno círculo inicial, proponho, então, que o estabelecimento de uma clínica da multidão de minorias se faz a partir da criação das condições de escuta daqueles que, postos em posição subalterna, tem sido, historicamente, silenciados.

Procuraremos encaminhar tal formulação, obviamente de maneira preliminar e respeitando os limites deste ensaio, delineando um campo de problemas e inquietações – teóricas, clínicas e políticas – que nos permita vislumbrar os alcances do que seria uma clínica das multidões de minorias e suas condições de possibilidade, mas também os limites dos modos atualmente correntes, ou hegemônicos, de fazer psicanálise. Farei isso por meio da referência a um grupo social marcado pelos dois sentidos que atribuímos inicialmente ao significante minoria: pessoas que vivem dissidências em relação à norma binária de gênero, experiências transidentitárias e que, já há algum tempo, vêm chamando a nossa atenção para os efeitos políticos de práticas e teorias referidas à psicanálise e interrogando, a partir daí, as condições da nossa escuta e os limites das nossas interpretações e elaborações teóricas.

As dissidências de gênero e a psicanálise

O encontro, ou confronto, com as dissidências de gênero – e com os movimentos políticos, sociais e teóricos que as acompanham, marcam hoje não apenas a reflexão clínico-teórica no campo psicanalítico, tanto no cenário francês, quanto anglo-saxão e latino-americano, mas a própria presença dos psicanalistas na cena pública em diferentes partes do globo, inclusive no Brasil.

Os debates em andamento, para além de muitas acusações mútuas, toca em pontos importantes que dizem respeito a uma série de temas que se revelam centrais a qualquer debate sobre a atualidade da psicanálise e sua potência para lidar com os processos contemporâneos de subjetivação e com as formas de sofrimento daí resultantes.

De modo que mesmo um rápido e brevíssimo inventário desses temas nos levaria a encarar questões bastante complexas e, hoje, decisivas, como: o vínculo da psicanálise com os dispositivos médico e jurídico de normalização dos corpos; o estatuto da teoria psicanalítica entre a consideração da experiência singular da clínica e o caráter pretensamente universal – ou, ao menos, generalizante – de suas formulações teóricas; o papel da diferença sexual nos processos de estruturação subjetiva e na sustentação da ordem simbólica que regula o laço social e sua limitação ou não a um modelo estritamente binário que, eventualmente, se desdobraria necessariamente em uma divisão e distribuição de gêneros e papeis sociais; o caráter normativo ou não da teoria e da clínica psicanalítica, em função, especialmente, de suas formulações em torno do Complexo de Édipo; a função e o estatuto da classificação psicodiagnóstica na clínica psicanalítica e nossa relação atual com categorias que foram, em sua maioria, herdadas da medicina do século dezenove; o lugar ocupado pelas questões identitárias no discurso – e demandas – de nossas e nossos pacientes; a posição social concreta dos psicanalistas em nossa sociedade, posição muitas vezes de poder, e nossa inserção em um prática fundamentalmente neoliberal, que dá muitas vezes testemunho de nossa sujeição ao racismo e machismo estruturais e estruturantes do nosso funcionamento social, em particular num Brasil tão fortemente marcado pela herança escravista e pela desigualdade, marginalização, ou simples banimento social, de tantas pessoas.

Dentre todos estes desafios clínicos e teóricos, considerando os limites deste ensaio, procurarei desenvolver minimamente a questão referente ao lugar e estatuto da classificação psicodiagnóstica, apontando, a partir daí, caminhos e desdobramentos possíveis para nossa interrogação inicial sobre as condições necessárias a uma escuta que permita com que as multidões e as minorias falem. É também em torno da psicopatologia e da discussão etiológica na clínica psicanalítica e sua relação com os objetivos do tratamento que nos aproximaremos da reflexão sobre o alcance e limites do que podemos descrever como uma antropogênese de matriz psicanalítica, ou seja, a demarcação das fronteiras do humano e sua vinculação a modos particulares de estruturação psíquica.

Sobre essa base, procurarei seduzi-los com a ideia de que uma clínica da multidão das minorias será aquela pensada, não como espaço de enfrentamento de uma disfunção dos processos de desenvolvimento psíquico ou de correção dos rumos e circunstâncias pelas quais nos tornamos humanos, mas como campo de experimentação ética onde novas formas de existência, singulares e contingentes, sejam produzidas e/ou legitimadas.

Para tanto, retomarei rapidamente alguns aspectos históricos da recepção das experiências dissidentes em relação à norma que regula as identidades de gênero2. História que, de alguma forma, nos dá pistas importantes de como se deu o gradativo silenciamento dessas experiências e de como refletir sobre as condições – ou, inversamente, os impedimentos – para que possamos escutar as pessoas que as vivem, e, portanto, do que será preciso fazer para que possamos escutá-las e, ao fazê-lo, nos interrogar sobre os objetivos da clínica, seus modos de operação e sua eventual possibilidade de fazer surgir a potência subjetiva e política das multidões e das minorias.

Em relação a este percurso histórico, um deslocamento fundamental quanto ao que podemos entender como dissidência de gênero se dá entre meados do século XX e a atual terceira década do século XXI. No primeiro polo dessa transição teríamos experiências estreitamente associadas à ideia de mudança de sexo e articuladas ao desenvolvimento gradativo das técnicas cirúrgicas que permitiriam a redefinição dos genitais e a construção médica de uma suposta identidade entre o sentimento de pertencer a um determinado gênero e a configuração anatômica dos órgãos sexuais. Experiências agrupadas na categoria de transexualidade e das quais o tipo-ideal é representado pela figura do dito transexual verdadeiro, descrito por Robert Stoller (1982), ainda na década de 1960, o qual, não podemos ignorar, será a matriz clínica de referência para grande parte do pensamento psicanalítico em torno da dita questão transexual. Renato Mezan (1988) propõe um modelo de história da psicanálise no qual as suas diferentes elaborações teóricas e práticas clínicas seriam derivadas – seguindo a mesma lógica da sobredeterminação presente no trabalho dos sonhos na qual múltiplas causas se articulam de concomitante – de três fontes: a matriz clínica, o ambiente cultural e uma leitura particular da obra freudiana. A noção de matriz clínica, se refere não apenas a uma suposta semiologia ou quadro sintomático, mas, sobretudo, ao discurso dos pacientes, suas queixas demandas e os conflitos que serão postos em jogo na situação transferencial que caracteriza o trabalho analítico.

No polo contemporâneo, o que temos, com a multiplicação das possibilidades de transgressão das normas que regulam da anatomia aos papéis sociais distribuídos entre as figuras do homem e da mulher, representada sobretudo pela multiplicação de expressões identitárias que não se reconhecem nem no campo do feminino nem do masculino, é a recusa da própria divisão binária dos gêneros e de sua necessária ancoragem em dois sexos, materializados pela oposição anatômica dos genitais: presente em não-bináries, pans, travestis, dentre outras nomeações que compõem hoje a sigla LGBTTQIAP+, sempre em expansão.

Tal recusa traz ainda consigo a implosão da própria ideia de conformidade sexual, aquela que seria eventualmente realizada pela cirurgia de transgenitalização e certamente vai muito além do imaginário social construído em torno da ideia de mudança de sexo, pois já não se trata, ao menos majoritariamente, de mudar de sexo, mas de habitar entre os sexos ou fora deles.

Esse deslocamento e o surgimento de novas matrizes clínicas, novas queixas e demandas, geralmente estruturadas em torno da questão do reconhecimento subjetivo e social não parecem ter sido acompanhados ou sequer percebidos pela grande maioria dos psicanalistas, de modo que a referência maior às suas interpretações das dissidências de gênero continuam referidas ao quadro clínico descrito por Stoller (1982) e explorado por Lacan em associação com a psicose e o mecanismo da foraclusão (Guerovici, 2019). Assim, as explicações psicanalíticas do que hoje recebe, na classificação internacional de doenças da OMS, o nome de incongruência de gênero, não apenas guardaram para si a categoria de transexual, de origem médico-psiquiátrica, mas privilegiaram a associação entre transexualidade e psicose.

Como resume Simone Perelson:

No contexto da psicanálise lacaniana, o transexualismo é majoritariamente considerado uma psicose. Como sabemos, Lacan, ao comentar o caso Schreber (1958), sustenta que seu delírio de se transformar em mulher seria decorrente da foraclusão do Nome-do- Pai. Schreber, desprovido do significante fálico se vê impossibilitado de se situar na partilha dos sexos como um homem ou uma mulher e, identificando-se imaginariamente ao falo da mãe, é conduzido pelo que Lacan definirá posteriormente (1972) como o empuxo à Mulher, o qual se define justamente em oposição à identificação a uma mulher: trata- se aqui do delírio de se tornar A Mulher, a mulher enquanto essência do feminino, a mulher enquanto totalidade, enfim a Mulher que, sustenta Lacan, não existe. (Perelson, 2011, p. 12).

As tentativas de enquadramento das experiências transidentitárias não se resumiram, no entanto, à referência à psicose – ou, em sua vizinhança, ao narcisismo e estados limites, como propõe Collete-Chiland (2005). Face ao fato inegável da multiplicação de pessoas que se declaram trans e da impossibilidade de situá-las todas no registro da foraclusão do nome- do-pai, outras hipóteses foram levantadas.

Assim, ao lado da referência à psicose surge com frequência a categoria de perversão, a qual não é sem interesse para este debate, em função da maneira como coloca em primeiro plano a questão moral e, mais do que isso, nos remete ao tema delicado da própria definição do humano e de suas fronteiras. Nesse sentido, Henry Frignet (2002) propôs a distinção entre os transexuais, de estrutura psicótica, e transsexualistas, que dariam testemunho de certo funcionamento social perverso, marcado pela recusa à castração e por uma aspiração onipotente ao impossível.

Mais recentemente, e com interesse especial para nós, porque vinculadas a autores brasileiros, temos duas tentativas diagnósticas

relativas, especificamente, aos homens trans, de um lado, e às mulheres trans, de outro. No primeiro caso, se trataria simplesmente de casos clássicos de histeria, de caráter, aliás, epidêmico, como se passou nos séculos XVIII e XIX (Jorge & Travassos, 2017). No segundo caso, a etiologia da transexualidade se vincularia, em muitos indivíduos, a uma recusa inconsciente da própria homossexualidade e à afirmação reativa da norma heterossexual a partir da transformação anatômica que restabeleceria a heterossexualidade, modificando os genitais (Jorge & Travassos, 2018).

Tais hipóteses diagnósticas, aplicadas àqueles que vivem uma dissidência em relação à norma binária de gênero, aparecem ainda em associação com um diagnóstico aplicado à própria cultura e às modalidades contemporâneas de laço social. As/os trans e não-bináries, seriam assim adeptos de modalidades de gozo tributárias de uma crise de legitimidade, consequência do declínio da função paterna, estando submetidos ao discurso do capitalista e sendo marcados por um individualismo próprio ao mundo neoliberal (Lebrun, 2021; 2008).

Um dado importante é que a referência à psicose e à perversão apontam para a aproximação entre a multiplicação de experiências trans e certa perturbação da ordem simbólica, regulada pela metáfora paterna e pela diferença dos sexos, o que faz destas invariantes antropológicas, que poderíamos associar a uma espécie de antropogêse, do modo de constituição do próprio humano, no que teria de específico, diferenciando-o do animal e indicando as base necessárias da vida em sociedade, e que seria descrita em relação direta com certa passagem adequada pelo Complexo de Édipo, fazendo deste um elemento – universal – decisivo não apenas para os processos de constituição subjetiva, mas para própria produção e demarcação do que seria o propriamente humano. Por isso, muitas vezes a resposta psicanalítica às experiências e discursos dissidentes virá na forma de admoestação contra os riscos postos à ordem simbólica, a genealogia, a diferença de gerações, ao próprio pacto civilizatório que regula a vida em sociedade e, por fim, à própria humanidade (Cunha, 2016, 2011; Lippi & Maniglier, 2021)

Em relação a essa demarcação das fronteiras da humanidade, a qual acaba evidenciando laços entre o modo como a psicanálise procurou dar conta das transgressões da norma binária de gênero e a leitura hegemônica do perverso como alguém que perverte a própria ideia de humano, a problemática é de certo modo levantada por Patricia Porchat (2014) em seu mapeamento do diálogo entre Judith Butler e a psicanálise: “Para incluir os gêneros não-inteligíveis, e entre eles os/as transexuais, na categoria de ‘humanos’, Butler acredita ser necessário questionar o conceito de simbólico de Lacan.” (Porchat, 2014, p. 136)

O interessante aqui é perceber como essa espécie de ameaça à humanidade, que a “epidemia” e a “propaganda” trans representariam, pode ser descrita, sobretudo em certos teóricos que transitam em torno de um campo definido como aquele das utopias queer, a exemplo de Paul B. Preciado (2018, 2015), Jack Halberstan (2020) e Lee Edelman, como estratégia ético-política de interrogação dos limites atualmente estabelecidos para o humano e para nossos modos de individuação e de estabelecimento de laços afetivos e sociais. Não por acaso, o manifesto de Preciado dirigido a nós, psicanalistas, se intitula: eu sou um monstro que vos fala (Preciado, 2020).

Impasses do modelo diagnóstico-etiológico

Retomando, então, a questão psicodiagnóstica, gostaria, a seguir, de apresentar alguns impactos da adoção de uma nosografia herdada da psiquiatria do século XIX como grade de inteligibilidade que pretende dar conta de fenômenos bastante recentes e talvez ainda em gestação e em relação às quais a suposição de uma disfunção ou mesmo de um sofrimento que lhes seria intrínseco talvez não seja nada mais que um perigoso efeito contratransferencial, ou, menos que isso, puro e simples preconceito. Pois, além de questões teóricas, epistemológicas ou mesmo ético-políticas, outra ordem de problemas surge em nosso horizonte quando refletimos sobre os impasses produzidos no encontro entra a psicanálise e as transidentidades que são, na verdade, de uma banalidade chocante. Refiro-me, por exemplo, ao fato de que muitos das/dos psicanalistas que hoje discutem questões de gênero parecem aprisionados não apenas em uma bolha de moralidade pequeno burguesa, mas em um território socioeconômico inacessível a travestis, homens e mulheres trans ou não-bináries.

Destacarei três desses efeitos, considerando, evidentemente, a necessária articulação entre eles: em primeiro lugar a vinculação da psicanálise ao dispositivo médico terapêutico e sua associação a uma apropriação das experiências transidentitárias fundada na pretensão de corrigir uma suposta disfunção e na sustentação de uma conformidade qualquer. Ainda que, enquanto a medicina pareça procurar corrigir o corpo para sustentar a autopercepção subjetiva, a psicanálise, em sentido contrário, recuse a modificação corporal para insistir em um trabalho psíquico que possa transformar a verdade que o sujeito enuncia sobre si mesmo e sobre sua experiência corporal.

Nesse sentido, a inscrição no dispositivo médico-terapêutico se articula à ocupação de um lugar de poder, muito claramente representada pela figura do especialista, capaz de decifrar a experiência vivida pelo sujeito, materializada em seu corpo ou seu discurso, e enunciar, a partir daí uma verdade, diante da qual ao sujeito não cabe outra coisa senão a aceitação ou sujeição. Neste contexto, fica difícil diferenciar o psicanalista do psiquiatra, pois ambos se apresentariam como mestres da verdade, capazes não apenas de estabelecer o que de fato pertence à realidade – e o que, por outro lado, deve ser inscrito no registro do erro e da ilusão – o que, no caso do médico, se faz de modo radical, pois este afirma-se capaz de produzir uma nova realidade, modificando o corpo para adequá-lo à lógica binária da conformidade entre identidade de gênero e genital.

Quanto aos sentidos e objetivos da escuta das pessoas trans, estes ficam ainda submetidos ao modelo diagnóstico/tratamento/prognóstico, inscrevendo, portanto, uma certa expectativa em relação ao trabalho clínico, bem como indicando como horizonte o restabelecimento de um destino esperado para o sujeito e suas escolhas. Difícil imaginar tal horizonte, sem referência a uma suposta norma, ainda que esta não seja explicitada.

[…] Ainda que o digam diferentemente, ligam essas posições com a neurose, que, em termos psicanalíticos, é quase o mesmo que falar em grau de saúde mental, ou, senão, entrar no campo da psicopatologia, no qual incluem, a priori, as existências trans e travestis. Então como se alcançam ou não as masculinidades e as feminilidades como ‘devem ser’, é um dos indicadores de psicopatologia ainda hoje. Ninguém o diria explicitamente, mas as coisas são assim. Há um a priori de psicopatologização fenomenológica em relação à diversidade sexual e à diversidade de identidade que não se traduz em correlato metapsicológico. Fica-se mais próximo da psiquiatria que da psicanálise. Outros núcleos duros da psicanálise, e que ainda que não se o diga explicitamente, consideram a heterossexualidade como a sexualidade ‘maior’ e desejável. Fala-se numa psicossexualidade mais ampla, mas, na realidade, é heteronormativa. (Tajer, 2018, p. 184).

Com isso, nos aproximamos de um segundo efeito da insistência no privilégio dado à classificação diagnóstica e, sobretudo, sua instalação como condição prévia à escuta e à compreensão das vivências trans. Refiro-me, sobretudo, à desqualificação produzida pela associação entre essas vivências e os domínios da patologia, do erro, disfunção e desrazão. Esta é particularmente visível como consequência da assimilação entre as pessoas trans e a psicose ou a perversão, duas categorias difíceis de serem descoladas de uma dimensão moral e dos seus respectivos sentidos ordinários, de loucura e maldade. O diagnóstico pode converter-se rapidamente em uma forma de injúria (Ayouch, 2015) de modo que, ao mesmo tempo em que se instala na posição de mestre, único capaz de perceber o que há de verdade naquilo que escuta, ou vê, o analista silencia o sujeito que se apresenta diante dele, situando-o no registro do erro e tomando-o como incapaz, não apenas de enunciar a verdade sobre si mesmo, mas de reconhecer a verdadeira realidade que se apresenta à sua volta ou em seu próprio corpo.

Assim, como aponta Butler (2009), o diagnóstico que permite ao sujeito ser acolhido na rede pública de saúde, ter acesso a direitos ou mesmo ser percebido como cidadão, funciona simultaneamente como estigma e o coloca numa posição de precariedade, retirando-lhe sua autonomia, que é transferida para o especialista que dele se ocupa.

O impacto mais nocivo, no entanto, da classificação diagnóstica, é o seu desdobramento em uma etiologia: a busca de uma falha, impossibilidade ou perturbação do processo de desenvolvimento psíquico – ou de constituição subjetiva. Tal busca não apenas ratifica uma perspectiva desenvolvimentista ou normativa do desenvolvimento subjetivo, na medida em que aponta para um ideal que supostamente deveria ter sido alcançado ou para um modelo a ser seguido, mas opera uma uniformização de experiências múltiplas e diversas, ao referi-las todas a uma causa ou estrutura comum, apagando assim suas, quase infinitas, diferenças.

Nessa direção, o efeito mais delicado diz respeito precisamente ao objeto específico da nossa discussão: o estabelecimento de condições de escuta que façam com o que trabalho clínico dê espaço à produção de experiências singulares em toda a sua potência.

Refiro-me aqui a dois elementos – e mutuamente implicados – do trabalho propriamente psicanalítico, centrais à elaboração teórica de Freud ao longo de toda a sua obra, e que de alguma forma, ainda que enunciados de maneiras distintas, estão mais ou menos presentes em qualquer descrição dos objetivos de uma análise, independente da perspectiva teórica: a recuperação e ressignificação da história vivida e a realização de um trabalho de memória, entre rememoração e esquecimento, que permita uma nova gestão da economia pulsional e a abertura de novas possibilidades existenciais.

Na escuta de dissidentes de gênero, tal trabalho de memória ocupa lugar central e todo futuro só se faz possível a partir de um trabalho de memória e de reconstrução da história de vida passada. Uma história muitas vezes marcada pela recusa do outro em testemunhar um posicionamento frente ao gênero que, vital para o sujeito, não encontra lugar em seu ambiente nem é reconhecido pelo meio social (Cunha, 2021a). Para pessoas, por exemplo, que viveram grande parte da sua vida alocadas em um gênero determinado, e referidas a papéis sociais específicos – nos quais, aliás, não se reconheciam – e que agora habitam outros territórios existenciais, é fundamental a possibilidade de reinvenção deste passado e a sua construção, por meio de esquecimentos e rememorações muitas vezes estratégias, de modo que o presente ganhe sentido e um futuro seja possível.

Todo esse trabalho de reinvenção subjetiva é inevitavelmente obstacularizado por uma escuta que guarda consigo a suposição prévia de uma etiologia, que necessariamente precisa tomar a forma de histórias individuais semelhantes, e faz supor ou valorizar determinados acontecimentos e experiências que não necessariamente terão o mesmo valor, função, ou mesmo existência, em todos os casos. Ou seja, no lugar da necessária construção de uma história singular, oferecemos aos sujeitos uma memória genérica referida a um acidente, trauma, disfunção ou particularidade potencialmente patogênica.

Mais uma vez, temos o silenciamento de experiências singulares por meio da uniformização e apagamento das diferenças, pois aqui a generalização que, por meio do diagnóstico, supões caracteres estruturais ou constitutivos comuns a experiências diversas, se desdobra na suposição de uma história também comum; enquanto o que testemunhamos ao escutar pessoas trans, é, ao contrário a busca por uma história singular e, mais do que isso, em contínua reconstrução, pois se materializa em uma identidade instável e em um corpo que não faz uma transição, mas que existe em trânsito. Como afirma uma pessoa trans: “eu não estou em transição, eu sou em transição.”

Da psicopatologia à política: A clínica como campo de experimentação ética

A saída para este impasse, acredito, está no abandono estratégico e urgente da matriz diagnóstico-etiológica e penso que a melhor alternativa disponível seria a adoção de uma perspectiva ético-política das experiências transidentitárias, o que não implica necessariamente o abandono de uma visada clínica.

Como procurei demonstrar em outro lugar (Cunha, 2021a), encontramos um modo possível de operar tal deslocamento na retomada da noção de patoanálise, proposta originalmente por Leopold Szondi e recentemente revisitada por Phillpe Van Haute e Thomas Geyskens (2016), em uma discussão sobre o estatuto contemporâneo das formulações em torno do Complexo de Édipo e de sua centralidade nos processos de estruturação subjetiva. Tal noção procura descrever uma perspectiva de entendimento do sofrimento psíquico não como disfunção em relação a um processo de desenvolvimento psíquico passível de ser associado a uma norma ou ideal, mas como exacerbação de elementos psíquicos articulados a pontos críticos dos processos de constituição comuns a todos nós.

Em termos muito breves, Van Haute e Geyskens (2016) partem da metáfora do cristal partido, trazida por Freud, e, considerando as

diversas leituras da neurose, sobretudo da histeria, em Freud e Lacan, nos propõem tomar as formas de sofrimento psíquico não como perturbações do desenvolvimento, o que faria sopor uma norma ou meta a ser alcançada, mas sim como exacerbações de conflitos próprios a processos de estruturação subjetiva comuns e que de alguma forma estariam presentes em cada indivíduo como predisposições, tal como suposto por Freud com a hipótese de uma bissexualidade constitutiva.

Se pensarmos, seguindo essa trilha, que tantos os processos de estruturação subjetiva – diretamente associados a processos de socialização, como nos mostra a própria hipótese do Complexo de Édipo – quanto os conflitos que os marcam, são social e historicamente situados, vinculando-se, portanto, ao ambiente cultural habitado pelo sujeito, podemos considerar que o há de singular nas experiências transidentitárias contemporâneas, fazendo-as ocupar lugar destaque não apenas nos debates psicanalíticos, mas na cena política global e nos mais diversos âmbitos da sociedade e da cultura, é que elas tornam visíveis e audíveis, em seus corpos e discursos, elementos decisivos dos processos contemporâneos de subjetivação, tais como nossa inscrição no registro da biopolítica, a submissão à racionalidade identitária e a subversão dos limites entre o público e o privado, hoje marcada pela sobreposição da esfera da vida íntima e pela sua promoção a elemento central da cena cultural e do debate político (Cunha, 2021a; 2021b).

Uma leitura clínico-política das transidentidades implicaria, então, tomar o espaço analítico não como oportunidade para correção de eventuais acidentes no percurso individual de desenvolvimento psíquico – ou estruturação subjetiva –, mas sim como espaço de enfrentamento desses aspectos centrais dos processos de subjetivação próprios a nosso tempo e lugar.

Por outro lado, ao tomarmos em consideração as formulações de autores do pensamento queer, como Paul B. Preciado, quando afirma estar em jogo, com o abandono da epistemologia da diferença sexual, a abertura para a produção de novas formas de ser e para a transformação dos modos como entendemos e definimos o que constitui o humano, podemos pensar então nesta clínica fundada em uma leitura patoanalítica como campo de experimentação ética para a produção e legitimação de novos modos de existência, os quais dariam ainda lugar a novas maneiras de vivermos juntos, ou seja, novas modalidades de laço social, referidas talvez à potência da multidão e das minorias.

Para concluir, gostaria de apresentar-lhes algumas ferramentas extremamente úteis ao desenvolvimento desta tarefa, as quais podem ser encontradas no pensamento de Michel Foucault, a partir mesmo da crítica à psicanálise desenvolvida pelo filósofo francês a partir dos anos 1970 (Foucault, 2015a) e também em suas reflexões sobre as relações entre poder, governo, ética e subjetivação que marcaram as suas pesquisas sobre, de um lado, o poder pastoral e sua deriva neoliberal e, do outro, os exercícios ascéticos que marcaram na antiguidade o cuidado de si e constituíram práticas importantes de autoformação e autogoverno (Cunha, 2022).

Pois quando propomos, portanto, a utilização da patoanálise como ferramenta teórica para compreender a posição singular que as experiências transidentitárias ocupam não apenas em nossa clínica, mas na sociedade contemporânea, penso que acabamos recorrendo implicitamente à estratégia metodológica sustentada por Foucault, segundo a qual não devemos tomar em consideração um sujeito universal, a-histórico ou de tons transcendentais (Foucault, 2015b), mas interrogar subjetividades historicamente situadas e investigar os modos pelas quais tais subjetividades se constituem entre dispositivos de sujeição e práticas de liberdade.

Da mesma forma, ao considerar a clínica psicanalítica como campo de experimentação ética, imaginamos que valeria à pena nos aproximarmos da noção foucaultiana de atitude crítica e de uma ontologia do presente, retiradas de sua leitura do famoso texto de Kant sobre o iluminismo (Foucault, 1994a; 1994b). Tal atitude crítica, segundo Foucault, se centraria numa interrogação sobre “quem somos hoje” e ganharia sentido como resistência a tecnologias de governo e estratégias de dominação, estruturando-se em torno da pergunta: como não ser governado ou não ser tão governado ou não ser governado desta ou daquela forma (Foucault, 2015b).

É tal atitude crítica que permitirá, acredito, fazer valer a potência da multidão que, ao mesmo tempo que resiste à uniformização e à segregação promovida pela distribuição em territórios de pertencimento identitário, cria as condições para que algo da ordem do comum se engendre a partir do encontro de existências minoritárias e menorizadas. Tal potência surgirá efetivamente à medida em que possamos criar espaços abertos para a experimentação ética de novas formas de existências, espaços nos quais o subalterno possa, enfim, falar e nós possamos, afinal, escutá-los, mesmo que para isso seja preciso reconhecer que, em muitos momentos, não somos capazes de saber do que falam. Só isso poderá fazer com que a psicanálise se afaste dos dispositivos de poder e sujeição e se afirme como prática de liberdade e como força política de transformação, não apenas de existências individuais, mas, também e sobretudo, dos próprios modos de vivermos juntos.

Concluímos esperando, com este percurso, ter indicado alguns dos desafios teóricos, éticos e políticos postos hoje à psicanálise, a partir da proposta fundamentalmente política de inscrição dos termos multidão e minorias no horizonte ético da psicanálise e da consideração das condições de escuta das transformações subjetivas nos campos do gênero e da sexualidade que têm nos desafiado já há algumas décadas – conte- se, por exemplo, a publicação, ainda na década de 1980, de Gender in trouble, obra fundamental de Judith Butler (2003).

Tais desafios tocam em muitos aspectos, dentre os quais pontos sensíveis como o lugar social do analista e as múltiplas dimensões políticas da psicanálise, suas práticas e posicionamentos na sociedade, daquelas que dizem respeito ao lugar da politica em nossa própria prática clínica aos posicionamentos que assumimos na sociedade e no debate público.

Aqui, privilegiamos a consideração do lugar e estatuto no pensamento e na prática psicanalíticas daquilo que denominamos matriz diagnóstico- etiológica. Procuramos mostrar, ainda que brevemente, como a referência prioritária à classificação psicopatológica e à busca etiológica, limitou a nossa compreensão das experiências de dissidência em relação à norma binária de gênero, nos fazendo supor uma uniformidade em experiências que, além de novas, são múltiplas, diversas e singulares, e acabando por produzir o silenciamento das pessoas que vivem tais experiências e as afastando da psicanálise.

Evidentemente o quadro descrito não é exaustivo, nem pretendemos em nenhum momento esgotar a discussão relativa aos temas levantados. Esperamos, contudo, ter podido enumerar questões teóricas e desafios clínicos importantes, bem como indicar o horizonte ético-político na direção do qual, acredito, devemos nos mover.

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Notas

1. Este artigo retoma os argumentos apresentados no I Congresso Internacional de Transversalidades entre Filosofia, Psicanálise, Clínicas e Práticas Sociais, em articulação com os resultados do projeto de pesquisa O dispositivo psicanalítico e a escuta das transidentidades e com as reflexões produzidas pelo trabalho conduzido na ação de extensão Roda de escuta LGBTQIAP+, ambos desenvolvidos na Universidade Federal de Sergipe.

2. Para uma consideração mais cuidadosa das formulações psicanalíticas a propósito das transidentidades, ver: Cunha, E. L. (2021a). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, disponível aqui no nosso site.

Colonização, identidade e o que fazer do futuro, por Eduardo Leal Cunha

Em  Modernidade e identidade , de Anthony Giddens, encontramos a expressão “colonização do futuro”, com a qual o sociólogo britânico procura descrever como a construção de uma narrativa reflexiva do eu, que teça laços entre o presente, nosso passado e um projeto de futuro, nos proporciona segurança ontológica e reduz nossa sensação de risco, frente ao que está por vir, na medida em que nos dá a impressão de que acontecimentos futuros podem ser previstos ou mesmo controlados. [1]

Interessa-nos aí a articulação de duas categorias centrais da nossa experiência moderna: o colonialismo e a identidade. 

Evidentemente, podemos tomar tal aproximação entre colonização e identidade como base em uma história de algum modo compartilhada, afinal, o sociólogo britânico apresenta a identidade como principal elemento do que poderíamos descrever como experiência subjetiva moderna. Ou seja: o modo como incidiram, sobre a relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo à sua volta, as grandes transformações da modernidade: a consolidação do modo de produção capitalista, as revoluções burguesa e industrial, a constituição dos estados nacionais, o mercantilismo e, por fim, a expansão colonial.

Mas, a expressão “colonização do futuro” pode nos servir para destacar que o colonizar e a colonização aparecem como forma de relação com o que nos é desconhecido, mais especificamente, como forma de domínio daquilo que, por nos ser ininteligível, parece imprevisível, incontrolável; o que pode se aplicar tanto a algo abstrato, como o “futuro”, ou tão concreto, quanto o território africano, ou, simplesmente humanos, aqueles que foram descritos, inclusive por Freud, como “povos primitivos.” 

Neste sentido, a colonização, ou colonialidade, como nos propõem os autores do giro decolonial latino-americano, [2]  deve ser pensada como elemento central da nossa experiência moderna, ou, mais precisamente, da racionalidade que a sustenta. 

Há certamente outros nomes e outras maneiras de compreender esse modo de pensar que organiza nossa relação com o mundo, a partir das ideias de controle e de domínio, de sujeição, estruturando assim nosso agir. Razão instrumental, ou mesmo esclarecimento, [3]  é um deles, mas o que a referência à colonização nos traz, de modo absolutamente explícito ao longo da sua história, é que essa forma de relação com o outro se funda na violência e na dominação, deixa marcas e, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que pretende transformar o mundo, opera a cristalização de formas já existentes e impede a irrupção do novo.

Mas o que significa tomar a colonialidade como modo de pensar, ou mais precisamente, como regime de inteligibilidade hegemônico em nossa experiência moderna e, mais do que isso, como forma privilegiada de relação com a alteridade? Lembrando que isso significa dizer, em última instância, que ela também nos impõe formas e limites para nosso investimento libidinal , para nosso gozo.

Talvez, a partir daí, possamos entender por que,  há muito, sabemos dos efeitos cruéis da colonização e, no entanto, tantas vezes ainda nos surpreendemos capturados em sua lógica. Compreender, também,  por que podemos, com relativa facilidade, enxergar a colonização como estado de dominação – no qual as relações de poder se encontram cristalizadas e as posições fixadas, à custa de mais ou menos coerção – e, às vezes, não enxergamos a colonialidade, a razão colonial em ação, quando hierarquias são naturalizadas ou quando o discurso dominante se converte em mito, em verdades autoevidentes, com as quais nunca somos confrontados: como a associação entre o masculino, a razão e a violência; ou entre o feminino, o mistério, a emoção e a fragilidade; ou entre o homossexual e o desvio moral ou imaturidade psicológica; como a imagem do soldado negro saudando a bandeira francesa. [4]

Uma dessas formas centrais de naturalização da colonialidade, no mundo contemporâneo, se faz visível como forma de enquadre, não exatamente do mundo à nossa volta, mas do humano que o habita. Podemos chamá-la de  lógica ou  racionalidade identitária . Desse modo, o vínculo entre colonização e identidade, que tomamos como ponto de partida, nos serve para pensar como tal racionalidade colonial ainda incide cotidianamente sobre a nossa relação com o outro e, também, com nosso próprio eu, como, aliás, indica a formulação de Giddens. 

Marca essa lógica identitária principalmente a atribuição ao outro de traços definidores que não apenas lhe atribuem consistência, integridade e permanência no tempo, [5]  mas o inserem em uma rede de círculos de pertencimento – excluindo-o simultaneamente de outras possibilidades – e o localizam em territórios determinados, nos quais lhe é permitido viver e circular, como as próprias noções de identidade nacional e de etnia mostram com clareza. [6]

Um dos efeitos perversos do que podemos denominar  colonização identitária é  a demarcação de limites identificatórios que não apenas restringem nossas possibilidades de existência, mas colocam o outro, o estrangeiro – tome este a forma do negro, do migrante ou do desviante sexual ou dissidente de gênero – para além desses limites. Dessa maneira, situamos o outro em um território para além das minhas possibilidades de identificação e ele pode, assim, ser percebido como objeto, coisa.

Ao mesmo tempo, o fato de não podermos nos identificar com determinadas experiências ou situações nos faz isolarmo-nos em um campo limitado de experiências. Leva-nos, por exemplo, nós brancos, a desmentir nossa própria racialização, nossa inclusão na divisão racial da sociedade, naquilo que denominamos, hoje, racismo estrutural, para o qual não há fora possível, produzindo o que Robin DiAngelo denomina  fragilidade branca , uma série de desconfortos e de reações defensivas, cada vez que somos colocados frente à nossa radical inclusão na lógica racista que sustenta grande parte da nossa visão de mundo e dos nossos privilégios. [7]

Por tudo isso, um equívoco central a certas críticas aos ditos movimentos identitários, ou ao que se denomina genérica e pejorativamente de  identitarismo , é ignorar completamente a genealogia da identidade e o seu estabelecimento, não apenas como modo principal de posicionamento de indivíduo e de grupos na sociedade, mas como forma hegemônica de relação consigo mesmo, diretamente articulados às transformações políticas da modernidade e a esta racionalidade que aqui procuramos referir à relação colonial.

Estas críticas estão corretas ao apontar o vínculo necessário entre identidade e segregação, entre pertencimento e exclusão, mas omitem o fato de que a identidade é, em grande medida, para voltar à nossa ponderação inicial, uma estratégia fundamentalmente colonial, uma forma de sujeição do outro ao regime de inteligibilidade hegemônico e que está diretamente associado a dispositivos de poder. 

Não foram os grupos minorizados que a instalaram no centro da nossa percepção do mundo ou do outro nem no núcleo da nossa experiência sociopolítica e é por isso que as lutas identitárias precisam ser vistas, sobretudo, como operações de resistência e subversão, ainda que baseadas na apropriação estratégica de atributos, de modo a garantir reconhecimento e lutar contra a injustiça social. Mesmo que tal estratégia mostre cada vez mais seus limites, é essa a forma de luta que se tornou necessária, senão inevitável, a partir do momento em que as identidades se tornaram não apenas “um prisma através do qual os outros aspectos da vida contemporânea são compreendidos e examinados”, [8]  mas um elemento central do cálculo e da luta política.

Por outro lado, se a identidade é a forma hegemônica de subjetivação, desde a modernidade, e sua racionalidade parece estreitamente associada à colonialidade, pensar novas formas de relação consigo mesmo implica a necessidade de outro modo de ocupação do mundo e da natureza, de relação com territórios e populações, que não seja a colonização; implica, portanto, imaginar novas epistemologias, inclusive aquelas que regulam nossa percepção do humano e definem suas fronteiras.

Neste sentido, descolonizar envolve, antes de tudo, des-identificar, pois “não se pode levar a cabo a descolonização sem uma mudança no sujeito”. [9]  Ambos os movimentos implicam, por sua vez, a transformação radical dos nossos regimes de inteligibilidade, pois descolonizar não é desfazer ou apagar o passado colonial, mas subverter a racionalidade que nele se ancora e que, a partir dele, ainda coloniza nosso presente e nosso futuro. Trata-se não de liberação, mas de invenção. 

Ainda que a psicanálise tenha algo a nos ensinar sobre o modo como a rememoração e o enfrentamento de resistências podem criar a possibilidade de que o futuro não se dê como repetição e, assim, em sua imprevisibilidade e alteridade radical, escape à pretendida colonização, ainda será preciso construir novas formas de hospitalidade, para além da domesticação, ou seja, outras maneiras de lidar com o estrangeiro e seu potencial de perturbação, seu caráter de intruso. 

No domínio da experiência subjetiva, tal tarefa significa produzir novas formas de reconhecimento que se articulem a outros regimes de inteligibilidade, para além de qualquer lógica identitária, instrumental ou, por fim, colonial. Para isso, nos termos de Giddens, talvez seja preciso abandonar nosso casulo protetor e enfrentar o perigo – não o risco, sempre calculável e administrável – de viver em mundo não colonizado e não domesticado, um mundo estrangeiro e incômodo, intimidante,  Unheimilich.

Eduardo Leal Cunha é Psicólogo e psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Atualmente é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador Associado da Universidade de Paris. Autor de Indivíduo singular plural: a identidade em questão  (2009),  O político e o íntimo: subjetivação e política do impeachment à pandemia  (2021) e  O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e politica (2021), dentre outros.

*Texto originalmente publicado pela N-1 Edições e republicado pela Criação Humana.


[1]  Anthony Giddens,  Modernidade e identidade.  Rio de Janeiro: Zahar, 2003

[2] Santiago Castro-Gómez & Ramon Grosfoguel (coords.), El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. 

[3]  Theodor W. Adorno & Max Horkheimer,  Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos . Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

[4]  Roland Barthes,  Mitologias . São Paulo: Difel, 1985.

[5]  Eduardo L. Cunha,  Indivíduo singular plural: a identidade em questão . Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 

[6]  Étienne Balibar & Immanuel Wallerstein,  Race, nation, classe – les identités ambiguës . Paris: La Découverte, 1999.

[7]  Robin DiAngelo, “Fragilidade branca”.  Dossiê Racismo – Revista ECO Pós UFRJ  vol 21 n 3, 2018, p. 35-57.

[8]  Zigmunt Bauman, “Identité et mondialisation”. In Yves MIchaud (Org.). L’individu dans la société d’aujourd’hui.  Paris: Odile Jacob, Université de tous les savoirs, vol 8, 2002, p. 55.

[9]  Nelson Maldonado-Torres La descolonisación y el giro des-colonial.  Tabula Rasa . Bogotá – Colômbia, 9. Julio-Diciembre, 2008, p. 67.

O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política.

Por Marco Aurélio Máximo Prado.

As transidentidades questionaram boa parte do conhecimento psi e suas legitimidade. A base de sustentação de muitos estatutos científicos vem sendo interrogada a partir das experiências e identidades trans e travestis. A psicologia, a psicanálise e outras práticas, embora interpeladas pelas posições dissidentes, retardaram muito a agir e iniciar sua autocrítica, dado o mal feito destas teorias-práticas sobre as transexualidades e travestilidades. O século XX e as primeiras décadas do XXI foram o apogeu da patologização, psicologização e clinicalização de todas as experiências dissidentes de gênero, tratando de negar a autonomia e a igualdade do direito ao corpo, ao prazer e ao reconhecimento social e político. Essa dívida histórica agora se encontra no epicentro do debate psi contemporâneo e deve ser enfrentada com honestidade científica.

O que o livro de Eduardo Leal Cunha [O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política] nos propõe é essa honestidade. É abrir as portas para uma posição menos hierárquica da psicologia e da psicanálise e refletir sobre com aprender com o conhecimento produzido pelas experiencias trans e travestis no contemporâneo. O livro traz de forma dialógica, posicionada e densa o debate entre gênero, sexualidade e psicanálise. Embora cercado de armadilhas, o trabalho refinado do autor permite um transpasse entre teorias, sensibilidades e argumentações políticas, capazes de fazer navegar leituras inovadoras sobre a questão histórica da própria psicanálise: como escutar as experiencias dissidentes sem cair nas armadilhas da deslegitimação do outro.

Marco Aurélio Máximo Prado é professor do PPGPSI da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do NUH/UFMG.

Você pode conferir Gab Lamounier e Marco Prado entrevistando Eduardo Leal Cunha no canal do NUH:


Resenha | O que aprender com as transidentidades

por Andréa Máris Campos Guerra

Em O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política[1], Eduardo Leal Cunha, Psicanalista e Professor da Universidade Federal de Sergipe, procura extrair as consequências de uma análise epistêmico-política de sua experiência clínica e de sua leitura contemporânea acerca das dissidências de gênero, como chave de leitura, para nossa contemporaneidade. Agamben[2] define o contemporâneo como o que se desloca em uma época e, por isso, permite lê-la, interpretá-la. Assim, poderíamos caracterizar esta obra: uma chave para alcançar a maquinaria que nos subjetiva, adestra, adoece. Nosso agora, com seus requintes imperialistas e colonizadores sobre os corpos que, subalternizados, resistem.

Em estilo dialógico sistematizado, e desde uma construção posicionada, anunciada e trabalhada a cada passo, o autor tece os tensionamentos e as complexidades das respostas, acerca das sofisticadas questões, com que subverte o pensamento e a práxis, no campo político-clínico, para ele, indissociável. As transidentidades dão testemunho da impossibilidade de um discurso totalizador e normativo, com ensejos de universalidade, ao abarcar a experiência de um corpo, apropriar-se subjetivamente de sua identidade e alienar politicamente sua intimidade. Por isso mesmo, é um livro no qual, a cada argumento, o autor defende radicalmente a assunção de uma resposta singular, em termos de enunciação e decisão sobre o próprio corpo, e de modos de resistência política, em relação aos discursos e práticas jurídico-higienistas homogeneizantes, quanto ao modo de pertencimento de gênero, junto a quem experiencia suas dissidências.

Sua tese de fundo é a de que, longe de uma patologização das experiências trans, de sua redução diagnóstica e da dissociação entre clínico e político, estas experiências entreidentitárias são a expressão do esgotamento de nossos modelos de inteligibilidade e de emancipação. Elas desenham uma lógica paradoxal, na qual não há um horizonte estável identitariamente[3], o que desestabiliza também os códigos de pertencimento, ameaçando o status quo dos regimes sexistas de gênero, dos padrões de leitura-intervenção do sujeito e das apropriações alienantes do saber e dos desiguais de distribuição do poder. Dotado de uma vocação utópica[4] e resistente às formas hegemônicas de subjetivação binária, fala de corpos, que assumem sua mutação, e de sujeitos em transição[5]. Suas três subversões seriam a do controle tecnocientífico dos corpos, a da totalização identitária e a das fronteiras entre público e privado.

No fundo, a questão do livro versa sobre as possibilidades de transformação social, simbólica e política em nosso agora, a partir da gramática das transidentidades, tomadas, elas próprias, em extensiva e aprofundada análise, a partir do saber psicanalítico, sempre em interface com outras disciplinas. E o autor aposta que as dissidências de gênero, como singularidades quaisquer, sabotam toda lógica totalizante e segregativa de pertencimento/exclusão dos grupos identitários[6], recusando qualquer invariante antropológica. E, finalmente, dados os estrangeirismos de cada vivência íntima dissidente de gênero, recusa qualquer antecipação diagnóstica ou suposição de sofrimento como lhe sendo intrínseca, tomando-as, antes, como estratégias subversivas, face aos modos hegemônicos e homogeneizantes de codificação linguageira e teórica, de subjetivação e de alienação política em nossa história ocidental.

A partir de uma escrita orientada pelo a posteriori, o livro começa a ser escrito em intervenções e estudos desde 2015. Seu primeiro capítulo, que recenseia as questões do campo de estudos de gênero pela psicanálise, ganha sua versão final apenas no ano de seu lançamento, em 2021. Nas considerações preliminares, Cunha declara o que o livro traz e o que ele não pretende. Ele anuncia que irá analisar a forma como os supostos desvios da norma sexual, nomeados por ele como dissidências de gênero, nasceram no campo psicanalítico, a partir dos estudos dos direitos dos homossexuais à formação de famílias[7], enquanto os estudos sobre transidentidades vieram depois. O termo transidentidades, no plural, adotado por ele e criado pela socióloga Boedeker, ocupa o lugar de outros como transgênero, transexualidade ou transexualismo. Trata-se de um ato epistêmico-clínico que visa romper com uma perspectiva normativa e uma experiência de exceção e de exotização da diferença não binária, evitando, de saída, atributos como patologização, debilidade, subdesenvolvimento ou falha em relação a um modelo cis, suposto normal. O autor, inclusive, destaca a importância de se nomear o trans e sucessivamente o cis, marcando um “não” à excepcionalidade do primeiro.

O autor insiste também na separação entre sexo e gênero, mostrando que o gênero, sem referência ao sexo, coloca em xeque o paradigma na inversão sexual e na norma binária dos gêneros ininteligíveis, dentro dessa codificação. Marcados inicialmente pela psicopatologização e, na sequência, pelo direito à enunciação, o paradigma binário não confere, segundo o autor, unidade à multiplicidade de formas de manifestação de gênero não binária, funcionando antes como elemento de poder. E, mais que isso, as dissidências não binárias de gênero interrogariam os próprios critérios de inteligibilidade, que não as reconhecem, assim como colocariam em xeque os fundamentos teóricos e simbólicos que organizam nossa percepção de mundo[8], dificultado a transformaçãosociossimbólica necessária dessa codificação.

Assim, em três eixos anunciados logo de saída, o autor desenha seu percurso. Aliás, no estilo dialógico, que acompanha todo o texto, anuncia e segue cada questão que formula até constituir sua resposta, sempre, a partir de uma tomada de posição e após uma densa discussão epistêmico-política fundamentada. São esses os aspectos axiais com que abre o livro, nas considerações preliminares: a recusa à patologização das transidentidades; o reconhecimento dos limites das teorias em abarcar a experiência; a formulação de que vivemos a produção de novas formas de existência, ainda não nomeadas e reconhecidas[9]. Por isso, a posição tecida desde um ponto de escuta da atualidade da psicanálise e do psicanalisar.

No primeiro capítulo, Cunha visa mapear as questões teóricas e ético-políticas do campo das transidentidades. Mostra os extremos das construções atuais, que vão do conservadorismo à posição histórico-crítica, na seara psicanalítica. Os equívocos são sintetizados e denunciados: o erro de se tentar proteger as pessoas delas mesmas; a ficção de que seriam pessoas que ultrapassam a barreira da castração, sem limites ao gozo; que não teriam feito uma boa passagem pelo Édipo; que seriam psicóticas ou perversas, interrogando os diagnósticos prêt-à-porter; que estimulariam a propaganda trans promovendo uma certa desordem do mundo; que precisariam se adaptar para serem reconhecidas; e, finalmente, denuncia o risco do identitarismo reducionista. Da episteme à doxa, da posição reacionária à militante, o que estaria em jogo aí seria uma racionalidade neoliberal e suposta científica expropriativa de discursos e alienadora de modos de ocupação do corpo.

O autor passa, então, em detalhes, por aspectos históricos e legislativos que ganham a cena midiática e intelectual francesa e brasileira. Demarca duas chaves de leitura centradas no par diagnóstico-etiologia[10], com uma capacidade de síntese que revela sua maturidade em relação ao tema. Na primeira, é a referência à psicose e à foraclusão, seja pela via do narcisismo, seja pela via do edipianismo, que desenha o horizonte dessa espoliação do sujeito. Na segunda, a via da perversão traz a glamourização e a espetacularização, entre a cultura e a psicopatologia influentes dos equívocos do campo. Num outro eixo, político, a crítica ao Édipo e à normatividade dele decorrente aparece referida aos estudos queer, trazendo, ainda, um ranço acerca da noção de performatividade. Sem unanimidade, Cunha mostra a divisão do campo, situando-se no eixo que destaca certa continuidade entre as leituras do homoerotismo e das transidentidades, com duas questões vitais: o lugar estratégico da dimensão moral, no debate, e, no registro da ética, a aproximação do homo e do trans às fronteiras da monstruosidade, trazendo a discussão dos limites do humano, assim como demarcando a possível colaboração da psicanálise no debate tenso entre as distintas narrativas.

Na sequência, o autor se alonga numa rica e meticulosa revisão da posição agrupada de psicanalistas contemporâneas/os, especialmente brasileiras/os, numa sutileza fina e crítica de posicionamentos e debates pouco explicitados e tão claramente nomeados, como ele consegue fazer. A leitura do original, aqui, é formadora. Posiciona-se ao final pela necessária autocrítica do campo psicanalítico sobre o tema, por deixar de lado as categorias transexualidade/transexualismo; por recusar qualquer posição soberana da psicanálise sobre a discussão; e pela escolha por apostar na psicanálise, como arma no processo de produção e legitimação de novas formas existenciais, malgrada a crítica contrária a esta possibilidade. Apesar de não incluir a tradição milleriana no debate, com autores como Clotilde Leguil[11] e Fabian Fajnwaks[12], ou ainda o longo debate do ambiente psicanalítico norteamericano, promovido por Patrícia Gherovici[13], este capítulo funciona como um verdadeiro guia para posicionar aqueles que desejam se situar, em relação ao debate contemporâneo da psicanálise, sobre os estudos transidentitários. Um primor.

No capítulo dois, Cunha se detém no debate acerca do homossexualismo com Didier Eribon, a partir de um diálogo com os argumentos foucaultianos. A inteligibilidade heterossexual confunde subjetivação e sujeição, conformando a leitura da psicanálise ao lado dos procedimentos de confissão, vinculada à ciência sexual como dispositivo de normalização e silenciamento, dentro da tradição europeia cristã e burguesa, ainda que ela possa estar, também, fora deste argumento filosófico e ao lado das lutas de resistência; ser mobilizada como dispositivo de escuta capaz de produzir abertura ético-política a outras formas de existência[14].

Nessa seara, as relações entre sexo, norma e verdade guiam o capítulo, a partir das discussões dos anos 1970 do ambiente francês, num franco tensionamento de Barthes e Foucault com o Édipo, o modelo patriarcal e heteronormativo e a pretensa enunciação da verdade pela psicanálise. Seja pela via da crítica teórica de conteúdo, seja pela via da crítica da forma pela literatura, a psicanálise é acusada de discurso de poder, que se deseja hegemônico, por Eribon.

Cunha propõe pensar então como a psicanálise pode escapar dessa posição normativa, totalizante e universalista, ao invés de se buscar escapar da psicanálise. Contra o estabelecimento de estratégias de dominação e aberta à produção e reconhecimento de novos significantes e inteligibilidades, é a interrogação do caráter ficcional da teoria; a convivência literária, com múltiplas teorias concorrentes, e o lugar subjetivo, na enunciação, ao lado da denúncia da verve ideológica e normalizadora, que o autor mobiliza a ideia de contingência e instabilidade da obra. Aqui, nos parece, reside o caráter mais delicado do argumento do livro. Entre a vivência contingente de um corpo, a ideologia política de manutenção das relações hegemônicas e a teorização da experiência, sua defesa é a de que, contra a crença numa autoenunciação soberana, como a que defende Eribon para os homossexuais, a psicanálise instala a condição clínica da produção de discursos concorrentes e de instabilidade dos saberes sobre sexo e gênero, abrindo a condição da convivência com uma multiplicidade de formas de ocupação do corpo e do gênero[15]. Essa seria uma vocação da psicanálise que pode ser deturpada por seu uso, acrescentaríamos.

Sua escuta deve sempre permitir no nível dos processos de subjetivação, a irrupção do divergente, do dissidente, do ininteligível, do que se pode constituir como contraponto, anárquico e rebelde, de toda pretensão identitária. No registro teórico, o inimigo a combater são os propósitos totalizantes e toda e qualquer formulação universal[16].

A delicadeza consiste em não localizar o que, de um corpo, insiste pulsionalmente em se repetir e o que, da teoria, resiste à docilização ideologizante e normativa como baliza indispensável aos fundamentos teóricos da clínica. Tomar a experiência da escuta e da teoria como singulares ao acontecimento dissidente de corpo, já é uma direção geral, mesmo que aplicada, caso a caso, na singularidade da vivência clínica. O fato de haver um movimento opressor e normativo, hegemônico e discursivo, a ser combatido, não retira da teoria sua potência articuladora da noção de sujeito e da direção clínica.

A própria ideia de que o sujeito é o único apto a enunciar sua verdade, não toda submetida à teoria, o que faz de cada corpo, em sua decisão pelo gênero, único, já seria uma direção clínica teorizável sem ensejos totalizantes – ao contrário. Podemos, então, supor que a defesa do autor recai nessa direção de se evitar um sentido unívoco e normatizador, no uso da teoria psicanalítica. Daí, suas duas conclusões: evitar um saber antecipado sobre o sujeito trans e exercer uma escuta que supere o regime de inteligibilidade invisibilizante, deixando-se despertar pelas interpelações dos grupos dissidentes, tarefa que o psicanalista reenvia à psicanálise, renovando, desde seus fundamentos, por um lado, e, por outro, direção que a teoria psicanalítica oferece ao psicanalista, para exercício não tirânico nem violento de sua práxis.

No terceiro capítulo, o autor discute as condições da prática de escuta das transidentidades. Fala dos efeitos iatrogênicos que erros estratégicos, como o de ajustar antigas práticas para novos fenômenos, pode engendrar. Ele concebe, portanto, as transidentidades como experiências inéditas, efeito de nossa época, não devendo ser a priori patologizadas. Enumera então as condições de escuta: respeito absoluto à autonomia, à responsabilidade e à liberdade do indivíduo – termos a serem ainda explorados por seus densos limites e tensões ético-ontológicos; não focar na transidentidade, mas escutar o sujeito; manter uma posição de exterioridade em relação à racionalidade e ao dispositivo médico-terapêutico; recusar toda posição de poder; respeitar a ética da escuta contra a ética da tutela. Não são prescrições, mas, antes, a transmissão de uma posição advertida.

Após o relato de uma experiência de trabalho em grupo, junto à extensão universitária da universidade federal, pública e gratuita, onde trabalha, a aposta do autor se fortalece numa posição sempre muito explicitada para o leitor. Ele defende a multiplicidade de enunciados, nos espaços de escuta, como forma de abalar as posições fixas, universalizantes e hierárquicas na crítica aos padrões de inteligibilidade normativos, bem como busca evidenciar como se pode realizar a abertura a novas formas de inteligibilidade de gênero. Manifesta-se contra o privilégio epistêmico da perspectiva cis e binária e contra, também, a norma heterossexual como padrão de leitura teórico-clínico silenciador.

Novamente, temos o padrão iterado de forças de oposição com duas pontas em tensão, conservadora e crítica, em meio à complexa e sutil gama mesclada de tons de leitura quanto às transidentidades. Cunha mobiliza Freud para retomar os pressupostos da clínica, nunca contraindicada a nenhum psicanalisante. Isola, enfim, três problemas ou campos temáticos referidos, seja à construção de um modelo de reconhecimento, que parte, pois, de uma perspectiva política e relacional; seja ao caráter contingente e histórico-cultural das teorias; seja quanto à legitimação da psicanálise, no enfrentamento ao sofrimento psíquico, quando em exterioridade ao dispositivo médico-terapêutico[17].

No capítulo 4, o autor se apoia na perspectiva da patoanálise e da antropologia da clínica psicanalítica, defendida como posição de desconstrução da matriz universalizante e edípica, para estudo da histeria, por uma dupla belga: Van Haute e Geyskeins[18]. Num diálogo muito rico com a proposição, incluindo outros interlocutores, Cunha desloca para as transidentidades a ineficácia de uma busca etiológica e psicogênica de experiências de mundo, muitas vezes patologizadas por fugirem ao modelo epistêmico-político dominante. Van Haute e Geinskeins aportam a uma proposição ético-político de leitura que desvaloriza a distinção normal-patológico e se guiam por princípios éticos e heurísticos, que mostram a exacerbação do humano em sua matriz subjetivo-social. Deslocam-se, desta feita, da matriz ideal da norma, contra a falha da patologia, já extensamente evidente desde a tese de Canguilheim[19].

Cunha destaca a data histórica de cada problemática subjetiva, mobilizando a categoria tempo, na defesa de que as vivências patologizadas indicam sintomas de uma época. Ao deslocar o individual para o sociocultural[20], lembra Fanon[21], em sua sociogenia, na busca por modos contingentes de tratar o sofrimento psíquico do colonizado. Isola termos que se tornam obstáculos a esta gramática como essência e natureza, mostrando novamente a dimensão política em jogo na correlação mesma de termos conceituais.

Cunha distingue dois traços de nossa época que recaem codificados nas experiências trans como formas de existência articuladas à cultura. São eles: a centralidade da experiência de corpo manipulável pela tecnociência capitalista neoliberal e a redução da experiência subjetiva à forma do indivíduo proprietário. A questão, então, se desloca da problematização acerca da legitimidade ou não da psicanálise, como ferramenta político-clínica de resistência (ou validação), à lógica universalizante de leitura-intervenção para a questão do que pode a psicanálise oferecer a pessoas que vivem experiências transidentitárias. Aqui, a inversão se radicaliza. Para o autor, a mudança quanto ao modo de apropriação destas experiências trans pode implicar na subversão dos próprios padrões hegemônicos de produção de inteligibilidade, testemunhado o esgotamento dos atuais. Numa espécie de campo de experimentação ético de um espaço heterotópico[22], outras formas possíveis de existência estariam sendo escritas como legítimas. Utopia? O autor pede licença para defender uma posição limite de ontologia crítica de nós mesmos.

O último capítulo, reescrito muitas vezes, segundo Cunha, encontra uma boa forma de firmar o leme, retomar as premissas da tese, que defende, e indicar caminhos. Na verdade, para ele, as transidentidades constituem uma chave de leitura do contemporâneo em sua fixidez binária e seus desejos de universalização. A torção, permitida pelo capítulo 4, inverte os termos e mostra uma sociedade adoecida pelo enrijecimento quanto à experiência binária de gênero como padrão universal de uso do corpo. A exploração desta dimensão política, expandida em suas consequências sobre a teoria e a clínica, implica em reconhecer a articulação necessária entre processos de construção subjetiva e modos de organização societária[23].

Neste capítulo, a descrição de situações jurídicas e cotidianas mobiliza a leitura a uma espécie de nonsenseem que as referências conservadoras se mostram absurdas. A partir de três categorias êxtimas – topologia não euclidiana de um fora que não é um não dentro –, ao campo psicanalítico, arremata a obra. A primeira, corpo, é retomada pela biopolítica de Foucault, atualizada por Agamben e Preciado, deixando a ver a governamentalidade de modos de viver, o dispositivo tecnocientífico biomédico definindo vidas, que merecem ou não viver, e finalmente corpos submetidos ao regime hegemônico de produção e circulação de valores e procedimentos. Contra eles, dois movimentos de resistência são descritos: a recusa em reconhecer, no discurso tecnocientífico, uma verdade absoluta e a reinvindicação pelo direito de decidir o uso das tecnologias correlatas no próprio corpo[24].

Na segunda categoria, as identidades compulsórias dos movimentos identitários na luta por reconhecimento[25] são indicadas como signo de um sistema falido de representação e esgotado em termos de modelos de emancipação. O impasse do identitarismo aparece, de um lado, ao reenviar a luta política a processos de segregação entre pares, mostrando o próprio limite da estratégia. Mas, por outro, a dispersão identitária fragiliza a articulação política em nome de um suposto ‘comum’.

O que se critica então é a racionalidade identitária em si mesma, dado que ela engendra padrões de inteligibilidade, legitima padrões de poder e estabelece hierarquias entre os indivíduos, por ela nomeados e esquadrinhados. O autor volta-se contra a forma hegemônica de subjetivação imposta política e discursivamente, a partir daí, como compulsória. Ele se manifesta, assim, contra a própria racionalidade neoliberal instrumental da noção de identidade, como fonte de controle e previsibilidade, como forma imposta hegemonicamente do viver igualmente para todos. As transidentidades, assim como qualquer outra dissidência de gênero, estariam tão submetidas a este regime como qualquer outra experiência adaptada ao binarismo reinante. Todes estariamsubmetides. A mudança do próprio corpo societário entra em cena, com seus códigos tecnocráticos, tecnológicos, teóricos, relacionais, éticos e políticos de pertença e reconhecimento.

Finalmente, com a noção de intimidade, o autor problematiza a redução do político ao íntimo – tema de outra obra do mesmo autor. A afirmação da intimidade, como objeto da ação política por excelência[26], leva Cunha a evidenciar as contradições advindas dessa operação política. Ele defende um outro estatuto da memória, entre o esquecer e o rememorar. Mostra o presente como ruptura com um passado que precisa ser esquecido para que um novo sujeito exista, ao mesmo tempo, em que algo precisa ser preservado, numa espécie de entrelugar, que nos evocou a noção de hibridez, terceiro elemento topológico complexo de Bhabha, não mobilizada pelo autor, mas certamente presente em sua bagagem literária.

O que, enfim, Cunha movimenta é a noção de reescrita de si, sem apoio a qualquer estabilidade, seja do passado, seja do presente, dado que o “eu” se encontra em transformação. Haveria, pois, uma outra relação com a temporalidade[27]. A instabilidade identitária deste espaço entreidentidades aponta para figuras como incompletude, singularidade qualquer, paradoxo, fluidez e sabotagem, que despontam como recursos para análise dos corpos em mutação, desses sujeitos em transição, na potência dos sistemas de representação. Seriam realizadas, por essas vivências, três subversões: do controle tecnocientífico dos corpos, da totalização identitária e das fronteiras entre público-privado, que circunscrevem a esfera do político no íntimo.

Daí, o autor assinalar alguns aspectos finais na direção que oferece ao tema, a partir do aprendizado extraído de sua clínica. Empreendimento que atualiza uma discussão clássica, revirada no contemporâneo da obra como elemento de análise do próprio corpo societário hegemônico. Torna-se, assim, chave de leitura para se pensar a transformação social concreta, repensar a clínica e reinscrever as normas de inteligibilidade dos corpos. Aprendemos com a leitura do livro a diagnosticar nossa época, suspender o modelo binário de pertencimento e clinicar atentos ao que ensina a experiência com as transidentidades. Invertida a lente, o que se torna adoecida é toda uma sociedade violenta e totalizante com desejos de universalizar univocidades e de legislar sobre modos de pertencimento e de satisfação. Esquema imperial que torna colonizado todo corpo que resiste ao adestramento.

O que, enfim, nos parece ressurgir como questão, após a leitura da obra, pode assim ser enunciado: como conceber formas de vida em sociedade que comportem, ao mesmo tempo, as singularidades quaisquer e certa ética do viver em comum? Pensar em formas de alianças entre os corpos que não passem exatamente por uma identidade específica e pré-determinada, mas por uma lógica que permita um tipo de agrupamento não totalitário capaz de abarcar as diferenças, sem formar conjuntos normativos. Nesse sentido, nos parece, a solução sempre comportará um paradoxo, um ponto de abertura e escape, pois apontará incessantemente para regimes de exceção como regra do que escapa e, por isso, se constitui como um não-todo.

Um mesmo indivíduo pode ser o lugar de múltiplos processos de subjetivação, agenciados na contemporaneidade por uma multiplicidade de dispositivos. E essas formas podem ser alçadas por diferentes modos de dominação e submeter o desejo a diferentes formas de gozo. Assim, podemos compreender como os dispositivos normatizantes não são apenas uma armadilha que vem de fora, do exterior. Eles são também forjados pelo vivente e lhe conferem sua condição de existência e permanência, de fixidez[28]. Daí esta questão central: como operar a transformação subjetivo-social e política, desde uma topologia em que dentro e fora se articulam em continuidade e corte -topologia moebiana –como vias de resistência e invenção?

Em outros termos, o livro testemunha nossa herança colonial. O psicanalista e o trabalhador de saúde, o operador do judiciário e o técnico-pesquisador recebem, em nosso século, a tarefa clínico-política de reverter os processos de colonização do poder, do saber, do ser e do gênero[29]. Se o ser vivente é substância, o sujeito afirma-se como presença de uma singularidade qualquer. Como operar o comum a partir dessas diferenças, sem transformá-las em dissidências em relação a um padrão prévio? A ideia de “qualquer”, em Agamben – no sentido da singularidade despida de identidade, indeterminável pelo conceito, inclassificável, nos sistemas, pela propriedade comum – nos auxilia a entender que aí o sujeito encontra seu pertencimento na relação com uma totalidade vazia e indeterminada. Essa totalidade, entretanto, é ocupada por regimes discursivos e hierarquizantes de poder que adestram corpos.

O ponto a que o livro nos conduz, em suas indagações e proposições, reside exatamente num questionamento acerca dos modos e meios de resistência numa multiplicidade de planos: epistêmico, ético, ontológico, político. Onde encontrar sua encruzilhada para movimentar sua fixidez? Desde o sujeito, alcançamos a mudança discursiva? Desde a política, mobilizamos a voracidade do supereu inconsciente dos sujeitos? Desde a teoria, alteramos os códigos jurídicos? Desde a Medicina, transformamos os padrões binários de leitura e intervenção sobre os corpos e sobre as relações entre os sujeitos?

Como sujeitos no laço social, estamos marcados por uma precariedade que, ainda que desigualmente distribuída, se constitui como possibilidade de atuação política coletiva. Não se trata de buscar uma união fundamentada em certo ideal de vida, o autor é peremptório nessa crítica, mas em buscar a composição de uma ética decorrente de nosso estatuto de sujeitos em relação política e que nos permita suportar nossas diferenças. O irrepresentável no sistema, aquilo que escapa à nomeação, se mostra, por isso mesmo, sempre ponto de abertura. A questão estratégica se reserva a pensar em como manter essa abertura sem ocupá-la com os regimes sexistas, patriarcais, imperialistas, racistas e financistas de poder. Questões ampliadas, assim, para nossa época e para nosso porvir. Tarefa inapelável e indispensável.

Em movimento descontínuo, nos parece, podemos avançar, mas não sem os marcadores pulsionais que resistem; as inscrições da memória que se desejam apagadas e não sem o outro, que legisla com seu gozo e sua “in-consciência” estrangeira e alienante. Nosso século certamente construirá boas respostas às inquietantes questões a que essa obra nos conduz. Obrigada, Eduardo Leal Cunha, por formulá-las com a clareza de quem não recua ante os impasses de sua geopolítica e de sua época. Seguimos a viagem em boa companhia! ♦ 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio (2006) “O que é o contemporâneo?”. In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius de Castro Honesco. Chapecó: Argos, 2013, pp. 55-76.

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COSTA-VAL, Alexandre; GUERRA, Andréa Máris Campos (2019) Corpos trans: um ensaio sobre normas, singularidades e acontecimento político. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 1, pp. 121-134, Jan.-Mar.

CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana.

FAJNWAKS, Fabian; LEGUIL, Clotilde Subversion lacanienne des théories du genre. Paris: Éditions Michèle, 2015.

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LEGUIL, Clotilde L’être et le genre: homme/femme après Lacan. Paris: Presses Universitaires de France, 2015 e LEGUIL, Clotilde “Je”: une traversée des identités. Paris: Presses Universitaires de France, 2018.

QUIJANO, Aníbal “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina.” In Colonialidad del Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2000.

VAN HAUTE, Philippe; GEYSKENS, Tomas Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Trad. Mariana Pimentel. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


* Andréa Máris Campos Guerra é Psicanalista e Professora no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena o Núcleo PSILACS. Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ) com Estudos Aprofundados em Rennes 2 (França). Professora visitante na França, Belgica e Colômbia. Membro-fundador da Rede Internacional RICA de investigação em Psicanalise e Criminologia, do GT Psicanalise, Clínica e Política da Associação Nacional de Pesquisa em Psicologia (ANPEPP), da Rede Interamericana de Pesquisa e Psicanálise e Política (REDIPPOL) e do Coletivo Amarrações. Autora de diversos livros e artigos. Email: [email protected]



[1] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana.

[2] AGAMBEN, Giorgio (2006) “O que é o contemporâneo?”. In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius de Castro Honesco. Chapecó: Argos, 2013, pp. 55-76.

[3] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 142.

[4] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 135.

[5] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 146.

[6] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 149.

[7] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 12.

[8] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 19.

[9] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 20.

[10] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 33.

[11] LEGUIL, Clotilde. L’être et le genre: homme/femme après Lacan. Paris: Presses Universitaires de France, 2015 e LEGUIL, Clotilde. “Je”: une traversée des identités. Paris: Presses Universitaires de France, 2018.

[12] FAJNWAKS, Fabian; LEGUIL, Clotilde. Subversion lacanienne des théories du genre. Paris: Éditions Michèle, 2015.

[13] GHEROVICI, Patrícia. Please select your gender: from the invention of hysteria to the democratizing of transgenderism. Londres: Routledge, 2010 e GHEROVICI, Patrícia. Transgender Psychoanalysis: A lacanian perspective on sexual difference. Londres: Routledge, 2017.

[14] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 58.

[15] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 77.

[16] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 78.

[17] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 98.

[18] VAN HAUTE, Philippe; GEYSKENS, Tomas. Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Trad. Mariana Pimentel. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

[19] CANGUILHEM, Georges O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

[20] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 114.

[21] FANON, Franz (1952). Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

[22] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 121.

[23] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 123.

[24] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 133.

[25] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 134.

[26] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 139.

[27] CUNHA, Eduardo Leal (2021). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Porto Alegre: Criação Humana, p. 139.

[28] COSTA-VAL, Alexandre; GUERRA, Andréa Máris Campos (2019) Corpos trans: um ensaio sobre normas, singularidades e acontecimento político. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 1, pp. 121-134, Jan.-Mar.

[29] QUIJANO, Aníbal “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. In Colonialidad del Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2000.

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA LACUNA | GUERRA, Andréa Máris Campos (2021) Resenha | O que aprender com as transidentidades (Cunha, 2021). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -12, p. 9, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-09/>.