Feminismos, reprodução social e violência estrutural. Entrevista com Verónica Gago

Quando Verónica Gago, pesquisadora e professora da Universidade de Buenos Aires, fala da reprodução social como um campo de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua análise é pontual e concreta: a reprodução social refere-se a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o próprio conceito, para a sua reprodução.

A entrevista é de Emiliana Pariente, publicada por La Tercera, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.

Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não se produz de forma automática e que este trabalho – porque é um trabalho – requer esforços e condições favoráveis para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos conscientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros tempos pareceria evidente e fortuito, não está minimamente garantida e de forma alguma é um ato automático.

Pelo contrário, para que se realize requer certas garantias e direitos básicos que, atualmente, foram privatizados e transformados em negócio. “O conceito de reprodução social serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de suas atividades não serem óbvias, nem garantidas, mas também um campo de especulação e concentração de negócios para o capital, oferece-nos uma característica histórica deste momento”, reflete.

Nos últimos tempos, esse é o debate estabelecido nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para mostrar o desempenho econômico (que por muito tempo demonstraram ser bem-sucedidos) contrastam com a realidade vivida pelos setores médios baixos, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que cruzou a linha da pobreza, mas vive endividado – chega a 43% da população. Desse total, 44% são mulheres chefes de família. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isto que hoje está em questão: Como a vida se reproduz, se os elementos básicos que permitem a realização harmônica e digna de nossas necessidades vitais não estão garantidos?

“Por muito tempo, pensou-se que bastava o salário para reproduzir a vida, mas nos momentos de crise vemos que não é o suficiente para realizar nossas atividades diárias, nem para contar ter os recursos indispensáveis para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, conforme aprofunda, que feminismo e reprodução social convergem, pois são as lutas feministas que tematizam esse conjunto de atividades. “Os feminismos apresentam a reprodução social como um campo de luta e, portanto, também mostram quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente. Por um lado, questionam os mandatos de gênero que tornam as mulheres as responsáveis em garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada para a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales [Chile], avalia que são os movimentos feministas que conferem dignidade política às lutas da reprodução social, que por muito tempo foram consideradas causas secundárias à grande luta salarial. “Pretende-se vender o neoliberalismo como uma espécie de pacificação das energias sociais, na qual é muito mais a energia empresarial a que organiza o social. E penso que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes da região, vem para dizer que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal é, por sua vez, neoliberal”.

Você diz que foram os movimentos feministas que deram à noção de violência outra dimensão, inclusive, reformulando a narrativa binária de vítima e empoderada.

Os movimentos feministas estão fazendo uma caracterização da violência que não fica restrita apenas ao interior dos lares e não é lida em termos de violência intrapessoal. Ao contrário, relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e coloca os lares como um dos focos privilegiados dessas violências.

Contudo, não a fecha apenas entre quatro paredes. Isto confere um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e no bairro e expõe a violência como uma forma de exploração de corpos e territórios.

Essa é mais uma potência dos feminismos atuais: sua capacidade de vincular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, serviços sociais, educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que torna possível conectar todas essas lutas e, ao mesmo tempo, mostrar-se como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa vítima/empoderada. Por um lado, a narrativa da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, pois nem todas são aceitas. E, ao mesmo tempo, como não cair, ao contrário, no discurso empoderado da empresária de si mesma [?]. Aí está a armadilha.

Por isso, é muito importante pensar em como desarmar concretamente este binarismo, que inclui duas posições muito cômodas para o neoliberalismo. São as únicas que nos oferece. Pelo mesmo motivo, penso que o movimento feminista está demonstrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e, ao mesmo tempo, gerando instâncias de enfrentamento e acompanhamento, luto e contenção.

Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal, pois justamente quando aceitamos ser vítimas, parece que renunciamos a nossa capacidade de desejo e luta, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É um par que precisa ser desarmado porque funcionam juntos.

Além disso, são duas posições que se apoiam em uma ideia de indivíduo fechado em si e, a partir do feminismo, estão sendo realizadas experimentações pessoais e coletivas para ver quais outras posições subjetivas existem, posições que são capazes de combinar a luta e a dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica, sem que isso seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que problematizam as dinâmicas da reprodução social e que propõem dinâmicas de organização e colaboração surgem como uma resistência ao modelo?

As crises facilitam certa criatividade política e a autogestão e reapropriação de funções. Penso que a reprodução social é um campo de experimentação no qual os movimentos feministas podem evidenciar as carências e, ao mesmo tempo, propor outros modelos de organização. O que está em disputa agora é como, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse campo, as lutas feministas estão questionando o que significa transformar a vida cotidiana e, a partir daí, tudo mais.

Você fala sobre o patriarcado do salário. Poderia explicá-lo?

É um conceito de Silvia Federici, que indica que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada. Nesse sentido, as e os trabalhadores que não recebem salário não são reconhecidos por sua capacidade de trabalho, nem pelo trabalho que realizam.

Isso vale para os trabalhadores camponeses, que não recebem salário, também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Por não receberem um salário, ficam automaticamente subjugadas por aqueles que, sim, recebem salário e se estabelece uma hierarquia e uma ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres ficam presas a situações de subordinação e abuso.

Nos países latino-americanos, onde os direitos fundamentais para viver foram privatizados, a dívida se tornou uma obrigação?

Nos países onde as coisas básicas precisam ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em casos de emergência; é uma obrigação. É o fato de a dívida ser hoje a que organiza e possibilita a reprodução social que permite uma invasão do sistema financeiro na vida de todos.

Ao mesmo tempo, é uma forma de abrandar a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente. Contudo, em vez de ficarmos furiosos e pensarmos em como reivindicar mais renda, assumimos a responsabilidade e nos sentimos culpados. Para sair desse ciclo, entramos em dívidas, pois, afinal de contas, é o que torna a precariedade mais suportável.

Em determinado momento, isso fica insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente. O corpo se manifesta com dor e doença e, depois, explode socialmente. Por isso, há alvoroços em nossos países.

Foi o que aconteceu no Chile. Inclusive, começou-se a falar sobre saúde mental e que esse modelo nos mergulhou em uma depressão. De fato, almejava-se uma mudança estrutural?

Penso que sim. E a mudança acontece, mas leva tempo e vai se traduzindo aos poucos em diferentes temporalidades e dimensões da transformação. Se pensarmos em termos processuais, é difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, de fato, abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Contudo, não se deve encerrar um processo por causa de um resultado.

Hoje, é necessário pensar quais estratégias as organizações, os movimentos, as dinâmicas sociais e a política vão assumindo. E não é possível negar que há uma mudança importante no tipo de discussão e debate público sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais.

Há também uma questão que permanece aberta, que é: “o que significa enfrentar hoje as formas de recolonização do nosso continente” [?]. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento em relação a essas questões. Não há pacificação na América Latina.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, escrito por Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui

Verónica Gago, sobre a luta feminista

Tradução da matéria de Emiliana Pariente para La Tercera.

Foto de Verónica Gago por María José Duran, UDP.

Quando a pesquisadora e docente da Universidade de Buenos Aires, Verónica Gago, fala da reprodução social como um território de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua analise é pontual e concreta; a reprodução social se refere a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o nome do conceito, para a reprodução de tal. Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não acontece automaticamente e que o trabalho – porque é trabalho – requer esforços e condições favoráveis ​​para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos concientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros momentos parecia óbvio e fortuito, não é minimamente garantido e não acontece de forma alguma automaticamente.

Para que se realize, pelo contrário, se requer certas garantias e direitos básicos que na atualidade tem sido privatizados e transformados em terreno férteis para negócio. “O conceito de reprodução social nos serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de as atividades de reprodução social não serem óbvias nem asseguradas, mas são um campo de valorização e concentração empresarial do capital, nos dá uma característica histórica desse momento”, reflete.

É esse o debate que tem sido aberto nesses últimos tempos nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para demonstrar o desempenho econômico (que durante muito tempo mostraram ser exitosos) contrastam com a realidade que vivem os setores de média e baixa renda, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que tem superado a linha da pobreza, mas que vive endividada – alcança 43% da população, da qual 44% são mulheres chefes do lar. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isso que está em questão hoje: como se reproduz a vida se não estão garantidos os elementos básicos que permitem a realização harmoniosa e digna de nossas necessidades vitais? “Durante muito tempo se pensou que o salário bastava para reproduzir a vida, mas em momentos de crise vemos que isso não é suficiente para realizar nossas atividades diárias ou ter os recursos essenciais para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, como ela aprofunda, que convergem feminismo e reprodução social, porque são as lutas feministas que têm tematizado esse conjunto de atividades. “O que os feminismos fazem é colocar a reprodução social como campo de luta e, portanto, também mostrar quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente; Por um lado, questionam os mandatos de gênero que fazem das mulheres as responsáveis ​​por garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales, sustenta que são os movimentos feministas os que deram dignidade política às lutas da reprodução social, que durante muito tempo se delinearam como causas subsidiárias à grande luta salarial. “O neoliberalismo quer se vender como uma espécie de pacificação das energias sociais, em que é antes a energia empresarial que organiza o social. E acredito que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes atualmente, vem dizendo que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal também é neoliberal.”

Você fala que os movimentos feministas transferiram a noção de violência a outra dimensão, reformulando até mesmo os valores de vítima e poder.

São os movimentos feministas que estão fazendo uma caracterização da violência que não fica só dentro de casa e que não é lida em termos de violência intrapessoal, mas sim relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e de lugares lares como um dos terminais privilegiados dessa violência. Mas não o confina apenas entre as quatro paredes. Isso dá um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e na vizinhança e expõe a violência como forma de exploração de corpos e territórios.

Esse é outro dos poderes dos feminismos atuais; sua capacidade de articular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, por serviços sociais, por educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que faz com que todas essas lutas se conectem e ao mesmo tempo se mostrem como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa de vítima e mulher empoderada. Por um lado, a história da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, porque nem todas são. E, por sua vez, como não cair no discurso contrário, empoderado, da empresária de si mesma. Aí está a armadilha.

Por isso é tão importante pensar como se desarma concretamente essa dinâmica, que inclui duas posições muito cômodas ao neoliberalismo. São as únicas duas posições que nos são oferecidas. Acredito que, pelo mesmo motivo, o movimento feminista está mostrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e ao mesmo tempo gerando possibilidades de enfrentamento e também de acompanhamento, luto e contenção. Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal. Porque justamente quando aceitamos ser vítimas parece que abrimos mão de nossa capacidade de desejar e lutar, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É uma dupla que tem que ser desmontada porque funcionam juntas. 

Além disso, são duas posições que partem de uma ideia de indivíduo fechado em si mesmo e a partir do feminismo estão sendo feitas experimentações pessoais e coletivas para ver que outras posições subjetivas existem, posições capazes de combinar luta e dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica sem que este seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que tem problematizado essas dinámicas da reprodução social e que propõem dinâmicas organizadas e colaborativas surgem como uma forma de resistência ao modelo atual?

As crises facilitam certa criatividade política e também a autogestão e reapropriação de funções. Acredito que a reprodução social é um território de experimentação em que os movimentos feministas tem tornado possível evidenciar as carências e por sua vez propor outros modelos de organização. Porque o que está em disputa agora é de que maneira, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse terreno, as lutas feministas estão colocando a pergunta do que significa transformar a vida cotidiana e a partir daí, todo o resto.

Você fala do patriarcado do salário. Como você o explica?

É um conceito de Silvia Federici, que postula que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada; nesse sentido, es trabalhadores que não recebem salário muitas vezes não conseguem reconhecer sua força de trabalho tampouco seu trabalho em si. Isso se aplica aos trabalhadores do campo, que não cobram salario, e também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Ao não receber um salario, ficam automaticamente subjugadas aqueles que sim cobram salario e instaura-se uma hierarquia de ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo disso é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres permanecem fixadas em situações de subordinação e abuso.

Em países latinoamericanos nos quais foram privatizados os direitos fundamentais que são necessários para viver… A dívida se transformou em uma obrigação?

Em países onde as coisas básicas têm que ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em emergências, é uma obrigação. A dívida é hoje aquela que organiza e possibilita a reprodução social, é o que permite uma invasão por parte do sistema financeiro na vida de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, é uma forma de amortecer a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente, mas ao invés de gerar raiva e pensar em como podemos exigir mais renda, o que fazemos é assumir responsabilidade de uma dívida e se sentir culpado. Para sair desse ciclo, nos endividamos porque, no final das contas, é isso que torna a precariedade mais “habitável”. Isso, em determinado momento, é insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente, o corpo se manifesta com dor e doença e depois explode socialmente. É por isso que existem surtos em nossos países.

No Chile explodiu. Inclusive se começou a falar em saúde mental e que esse modelo nos deixou todes mergulhades na depressão. Uma mudança estrutural era realmente desejada?

Acredito que sim. E a mudança acontece, o que acontece é que ela leva tempo e aos poucos se traduz em diferentes temporalidades e dimensões de transformação. Se pensarmos em termos processuais, fica difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, na verdade ele abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Mas não é necessário fechar um processo em relação a um resultado. Hoje temos que pensar que tipo de estratégias as organizações, movimentos, dinâmicas sociais e políticas estão tomando. E não se pode negar que há uma mudança importante nos tipos de discussões públicas sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais. Há também uma pergunta que permanece aberta e é “o que significa hoje enfrentar as formas de re-colonização de nosso continente?”. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento a respeito dessas questões. Não há pacificação na América Latina.

Contraia dívidas e viva para contar sobre isso

Laboratoria: espaço transnacional de investigação feminista

por Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda.

“A dívida é a escravidão moderna”. Imagem: reprodução.

“Dívida ou vida” dizia um grafite de rua na Calle de la Fe, no bairro madrilenho de Lavapiés.  Entendemos dessa demanda: nossa luta pelo direito à moradia digna é, fundamentalmente, uma luta contra a dívida. Nosso movimento, a Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca, leva o nome escolhido em meio ao grande estouro da bolha hipotecária que vivíamos na Espanha a partir do final dos anos 2000. Porém, de uma forma ou de outra a dívida havia pousado em nossas vidas muito antes de sermos hipotecados ou não.

Ao longo de 2020 realizamos uma série de entrevistas, conversas e encontros entre as mulheres da nossa assembleia, das quais nasceu o caderno Até a queda do Patriarcado e não haver mais um despejo. Dívida, habitação e violência patriarcal. Nas histórias, além da hipoteca, apareceram dívidas contraídas para migrar ou estudar; microcréditos para abrir uma empresa, mas também para cobrir emergências de trabalho, como perda de ferramentas de trabalho; dívidas para cobertura privada de saúde; empréstimos ao consumidor e compras parceladas; empréstimos para pagar as contas, para necessidades atuais, como alimentos, produtos de higiene, gasolina, água e eletricidade ou medicamentos. Não houve vidas que não tenham passado por endividamento em um momento ou outro, mas sabemos que, mesmo que o fizesse, a dívida também estaria na vida dessas pessoas por meio da dívida pública e seus mandatos políticos se traduziriam em cortes no sistema de serviços públicos.

A dívida é, ao mesmo tempo, um sistema de formação social que produz obediência; um mecanismo de extração de nossa força vital e de trabalho; e uma máquina geradora de vulnerabilidade, que não só nos expõe à violência financeira que se pratica na relação credor-devedor, mas também a outras violências racistas, sexistas e heteropatriarcais ou trabalhistas. Essas três funções – obediência, extração, vulnerabilidade – são muito úteis no nível estrutural do funcionamento do capitalismo global. Primeiro você cria uma mentalidade, uma predisposição e até uma aceitação; serve para que a nossa criatividade, a nossa energia e o nosso corpo sejam produtivos em contextos utilizáveis ​​para a produção de lucro para os outros, que se acumula nas suas mãos em vez das nossas; e no final essa distribuição de funções se soma a outras violações de nossos direitos que nos deixam sem opção, nem mesmo a possibilidade de fugir.

Uma vez que reconhecemos o que já expomos, começamos a ver outras nuances. Não basta dizer “dívida ou vida”, porque as características de cada dívida definem qual vida e em que condições ela é permitida. Define o ponto de partida da luta, porque olhar atentamente para essas características permite inventar formas de alargar as condições que se dão, de lutar por mais espaço para a vida. Por isso, embora entendamos o endividamento como um mecanismo opressor, embora nos oponhamos à centralidade que ganhou na organização social, embora resistamos à obrigatoriedade do endividamento… as nossas realidades e a nossa luta obrigaram-nos a perguntar também: como viver com dívidas, uma vez que as temos?

Temos dívidas… e ainda assim vivemos. Acreditamos que existe uma conexão entre os efeitos que a dívida tem em nossas vidas e os fatores que diferenciam cada um dos nossos endividamentos. Em nossas conversas, as questões que interessaram foram o valor total da dívida; o valor mensal a ser pago – definido pelos juros e pelo prazo de amortização, além do total –; as garantias entregues e/ou os fiadores a considerar; as condições de retorno e a possibilidade de alterações, tais como a carência, etc; o envolvimento ou não de relações pessoais no esquema de dívidas e reembolsos; também a natureza da parte credora e que tipo de conduta se pode esperar dessa parte. Então nos perguntamos: como se endividar, se for preciso, em menos quantidade e com melhores condições?

Não estamos pensando em esquemas de pirâmide ou ONGs de microcrédito navegando nas bandeiras do feminismo pseudo-espiritual, liberal, caritativo ou tecnocrático. Pensamos em um futuro compartilhado de redes globais de resistência diante da realidade atual do endividamento obrigatório, capaz de mesclar estratégias de default organizadas com a construção de economias comunitárias justas, dignas e sustentáveis. Todas nós contraímos dívidas e queremos viver para contar a respeito. Qual é o seu histórico de dívidas?

Lotta Meri Pirita Tenhunen e Myrian Espinoza Minda são integrantes de PAH Vallekas e seu grupo de mulheres.

Este texto é resultado de uma parceria entre a Revista Cult e a La Laboratoria: espacio transnacional de investigación feminista.

O livro “Uma leitura feminista da dívida”, de Verónica Gago e Luci Cavallero está disponível no nosso site. As autoras são pesquisadoras argentinas e integrantes dos coletivos Ni Una Menos e La Laboratoria: espacio transnacional de investigación feminista. Clique aqui para saber mais.

“São as mulheres que se endividam, porque é delas a função de sustentar as economias na crise”

Feminista, socióloga e pesquisadora, Lucía Cavallero propõe democratizar essa discussão financeira e retirá-las dos lugares masculinizados. Entrevista para La Rioja/12.

“Tirar a dívida do armário” é um dos capítulos do livro “Uma leitura feminista da dívida”, que Lucía Cavallero escreveu junto a Verónica Gago para analisar o impacto do endividamento externo nos lares. Feminista, socióloga e pesquisadora, Cavallero dialogou com La Rioja/12 sobre como o endividamento afeta de forma diferente as mulheres e pessoas LGBTQIA+. Diretora do Programas Especiais para a Igualdade de Gênero do Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual da província de Buenos Aires, ela diz que “é preciso democratizar a discussão financeira.”

Imagem da matéria “Fome no Brasil tem rosto de mulher, negra e de baixa renda” da Revista Marie Claire.

O que significa uma leitura feminista da dívida?

Uma leitura feminista da dívida traz novidades para pensar o problema das finanças em uma conjuntura particular que tem a ver com uma ruptura epistemológica, cognitiva que os feminismos significaram para pensar os problemas econômicos, sociais e políticos, a partir da massificação do movimento feminista nos últimos anos que também tem sido categorias políticas. Acredito que Uma leitura feminista da dívida é parte desse processo e também condensa investigações pessoais minhas e de Verónica Gago e são alguns pontos importante para pensar o mundo das finanças. Acredito que é preciso discutir quem deve falar das finanças, democratizar essa discussão financeira, tirá-las de lugares masculinizados e dos lugares de especialistas e poder falar da vida cotidiana. É também uma maneira de investigar os impactos do endividamento desde os corpos concretos tratando de desarmar essa abstração financeira que sustenta o mundo das finanças. Isso faz parecer que o endividamento se reproduz sozinho e não tem nada a ver conosco, que trabalhamos e colocamos o corpo no dia a dia. Nos propusemos a fazer a investigação contrária. Perguntamos quem são as pessoas que se endividam, por que se endividam e para que se endividam, e quais são as relações entre dívida privada e os lares com os processos de endividamento externo. Vários pontos trazem Uma leitura feminista da dívida. É uma leitura situada e muito concreta do impacto do endividamento.

Há uma relação entre divida privada e o endividamento externo?

É importante pontuar que os processos de endividamento externo associados aos organismos internacionais trazem uma série de condicionalidades para os governos que implicam impactos diferenciados. Situando-nos no último acordo assinado por Mauricio Macri e em 2018, com o empréstimo stand-by firmado com o FMI, trouxeram uma série de impactos no cotidiano de mulheres, lésbicas, travestis, trans. Em primeiro lugar, houve uma queda no nível de renda e salários, e aumento da informalidade do trabalho, do desemprego das mulheres, e houve um processo inflacionário muito importante do qual ainda não conseguimos sair e até aumentou. Esse endividamento, ao mesmo tempo, se traduziu em uma maior necessidade das casas se endividarem. Existem três particularidades desse fenômeno. Tem a ver com a dívida nas casas, mas cresceu como um endividamento para viver, que é algo que não havia acontecido de maneira tão intensa em outros momentos da nossa história, aparece também uma feminização do endividamento, porque são as mulheres que se endividam, porque é delas a função de sustentar as economias na crise e há um endividamento com taxas muito altas.

Depois veio a pandemia

Depois veio a pandemia e a renda não havia se recuperado do que aconteceu no período macrista, e também produziu uma série de dinâmicas que intensificaram o endividamento. A primeira foi que muitas mulheres precisaram ficar em suas casas com maiores cargas de tarefas de cuidado sem poder distribuí-las de outra maneira por causa do perigo de contagio. Houve uma queda dos salários e da renda em geral e uma maior vulnerabilidade ao superendividamento na pandemia. Novas fontes de dívida surgiram, como por exemplo, dívida por aluguel. E está diretamente relacionado ao aumento das tarefas de cuidado e participação no mercado de trabalho.

Com o que se endividam as mulheres e pessoas LGBTQIA+ atualmente?

Hoje nos endividamos porque a renda não é suficiente e se você está no setor popular pode se endividar porque não pode comprar comida. A renda não é suficiente para comprar alimentos que durem até o final do mês e é aí que vem a dívida, o que faz com que você já inicie o mês seguinte endividade e que volte a se endividar já que a sua renda não basta. Também pode acontecer para comprar medicamentos, existem pessoas que se endividam com o aluguel porque antes de deixar de pagá-lo preferem fazer um empréstimo para pagar outras coisas. E depois há outros tipos de endividamento que não são tão problemáticos e acontecem para coisas pontuais como eletrodomésticos, viagens. O que é tão difundido é esse endividamento que começa a vir para completar a renda e que é usado para viver.

Deveria compor a agenda do Estado pensar políticas publicas sobre o endividamento?

O endividamento é um fator importante hoje em dia e que significa o mal estar da grande maioria da população. Sabemos que viver endividades tem um impacto também na subjetividade emocional da vida cotidiana e o Estado deve combater esse problema de maneira integral, pensando que não se pode naturalizar estar endividade para viver e, então, deve haver uma política de recuperação de renda e salários; tem que existir uma política de cancelamento de dívidas, porque as pessoas acumularam dívidas desde o macrismo e na pandemia, e não foi solucionado o cancelamento da dívida interna. Deve ser aplicado um grande plano de desendividamento das famílias, permitindo que todos recuperemos esse tempo em que não pudemos ganhar da inflação.

O acesso à terra ainda é uma dívida do Estado?

Sim, acredito que ainda que estejamos conceituando o problema, a lei de terras está travada no Congresso. Faz tempo que foi apresentada por organizações campesinas e não foi pra frente e é preciso garantir o acesso das mulheres à terra, já que são elas que não são, em sua grande maioria, proprietárias entre aqueles que detém as terras, e são elas que não tem meios de produção para produzir e ao mesmo tempo estão propondo métodos alternativos de produzir, de cadeias alimentares que poderiam avançar no combate à inflação.

A tradução do livro “Uma leitura feminista da dívida” está disponível aqui.

Uma leitura feminista da dívida: edição ampliada

Por Luci Cavallero e Verónica Gago. Compartilhamos um pouco do que está disponível na edição ampliada em português do livro “Uma leitura feminista da divida” (já disponível em pré-venda com frete grátis para todo Brasil: clique aqui). Essa investigação impulsiona um movimento de politização e de coletivização do problema financeiro. É uma ferramenta de debate e de formação em sindicatos, universidades, feiras de pequenes produtores, organizações de base e assembléias feministas.

 

Vivas, livres e sem dívidas nos queremos!

 

Paro Feminista. 8M 2021.

Interrupção Voluntária da Dívida

A ascensão do novo governo de Alberto Fernandez (dezembro de 2019, Argentina) está marcado por duas questões: o impacto do feminismo nos debates e na discussão sobre a “renegociação” de uma dívida externa caracterizada socialmente como “impagável”. Propusemos, assim, um enlace das reivindicações feministas da “marea verde” e da dívida: Interrupção Voluntária da Dívida. É uma forma sintetizada de propor que, além do desendividamento, é preciso que hajam políticas de reconhecimento do valor do trabalho doméstico que nos converte diretamente em credoras de uma acumulação de riquezas que proporcionamos gratuitamente. Dizemos que é hora da reapropriação, de uma interrupção legal da dívida.

Hoje, os efeitos do endividamento recaem sobre aqueles que estão mais vulneráveis e em situação política delicada, porque exploram diretamente a capacidade de reprodução social: o endividamento doméstico e os preços dos alimentos, ambos submetidos a inflação galopante dos últimos anos, que segue sem freio.

Como uma das primeiras medidas de urgência, o novo governo lançou um plano entitulado “Argentina contra a fome”. Devemos levar em consideração que a situação atual é que, no país que é o quarto produtor mundial de farinha de soja, 48% das crianças são pobres.

O plano consiste na entrega de “cartão alimentação” que pretendem distribuir para até 2 milhões de pessoas. O ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo, encarregado da medida, ao explicar por que o plano se instrumentalizou por meio de um sistema de “cartão alimentação” – e não entregando diretamente dinheiro em efetivo -, respondeu com empirismo bruto: qualquer dinheiro efetivo que for dado às famílias contempladas, na medida em que elas estejam totalmente endividadas, seria usado para pagar dívida (formal ou informal). A conclusão é óbvia. O modo de garantir acesso a alimentos está hoje determinado pela dívida dos lares, que literalmente tem parasitado todo tipo de rendimentos: desde pensões a subsídios, onde as beneficiáries da Asignación Universal por Hijo (AUH) desempenham um papel protagonista, desde salários a rendimentos provindos de “bicos”.

Esse vínculo entre dívida e alimentos é fundamental, porque leva ao extremo os efeitos destrutivos da precariedade: endividar-se para comer, primeiro; e, na outra ponta da cadeia, se afogar em dívidas para conseguir produzir alimentos nas economias populares; até, finalmente, cair no funil de monopólio dos supermercados. Vemos, assim, como o diagnóstico sobre o que significa a colonização financeira sobre nossos territórios é muito mais amplo que a gerência da dívida externa, ainda que esteja diretamente relacionada com ela. A dívida externa espalha-se, como sistema capilar de endividamento, na dívida interna e é reforçada pela diminuição do poder de compra das receitas e pela restrição dos serviços públicos. A combinação é explosiva. Ou melhor: apenas alimenta mais dívidas.

 

Verdurazo Feminista: 8M 2021.

As lutas de produtores da terra tem transformado e impactado o desenho atual de políticas públicas para combater a fome. Graças a eles, tem se buscado incluir a agricultura familiar e camponesa e seus circuitos de feiras nas formas de fornecimento de alimentos de qualidade. “Isso foi conquistado através dos “verdurazos”, afirma o Sindicato des Trabalhadores da Terra (UTT), referindo-se à ação política de distribuir grandes quantidades de verduras nas praças como ato político, denunciando a insustentabilidade econômica des pequenes produtores frente à inflação.

Aqui o desafio é delineado. Se por um lado os cartões de alimentação são uma tentativa de institucionalizar as feiras populares e caracterizar o problema da fome a partir do diagnóstico dos movimentos sociais, por outro, o endividamento herdado e o sistema bancário produzem situações de equivalência insustentáveis ​​entre os grandes supermercados e as feiras populares.

As condições de produção e de superexploração que hoje estão na base da agricultura familiar revelam dois problemas estruturais: os limites que impõem não ter acesso a terra (e para tanto o pagamento de arrendamentos caros); e também o trabalho não reconhecido das pequenas agricultoras e camponesas. Um nó quádruplo estreita as possibilidades e torna o quadro ainda mais complexo: a questão tributária, a propriedade/posse da terra, a financeirização dos alimentos e a quantidade de trabalho feminilizado que não é reconhecido e é historicamente desvalorizado, funcionando de fato, como variável de barateamento. Ressalta Rosalía Pellegrini, secretária de Gênero da UTT: “Nossa comida é subsidiada pela nossa autoexploração, estamos endividadas para poder competir em um modelo de produção dependente.”

 

Fome e mandatos de gênero

 

Há outra aresta nas declarações públicas que anunciaram a implantação do “cartão alimentação”: o desafio insistente à responsabilidade materna na alimentação des filhes, mesmo que o cartão seja destinado às mães ou pais. A perspectiva feminista contribui e exige que o mandato de gênero nas políticas sociais não seja naturalizado em um contexto de crise extrema. A responsabilização de mães hiperendividadas gera o risco de reintegrar formas de merecimento patriarcal associadas à assistência social.

Se os cortes nos serviços públicos e a dolarização de tarifas e alimentos durante o governo de Mauricio Macri transferiram os “custos” da reprodução social para a responsabilidade familiar, é necessário restabelecer os serviços públicos para desfamiliarizar a obrigação de alimentação e cuidados. Sobretudo porque o movimento feminista tem colocado em debate o que é a família, quando esta é reduzida à sua norma heteropatriarcal, e porque tem valorizado as redes comunitárias em sua capacidade de produzir vínculos sociais e mediação institucional. “O cartão alimentação é uma medida importante frente as necessidades extremas em que se encontram as nossas companheiras, mas não substitui o alimento que é entregue em cada refeitório, onde são feitos os panelaços populares, e é sobre este trabalho comunitário que pedimos reconhecimento ”, afirma a dirigente do sindicato des trabalhadores da economia popular, Jackie Flores (UTEP).

 

Verdurazo Feminista: 8M 2021.

Uma leitura feminista da inflação

A explicação sobre qual é a causa da inflação é uma batalha política. Diferentes autoras tem apontado elementos que nos permitem fazer uma leitura feminista da inflação, esse mecanismo que acelera o endividamento compulsório e obrigatório.

Argumentos, historicamente conservadores, são adicionados às explicações monetaristas (a emissão) da inflação que a caracterizam como uma doença ou mal moral de uma economia. Ou seja, não se trata apenas de explicações técnicas e econômicas, mas diretamente ligada às expectativas de como viver, consumir e trabalhar. Isso foi argumentado pelo famoso sociólogo de Harvard, Daniel Bell, que colocou o colapso da ordem doméstica da família tradicional como a principal causa da inflação nos Estados Unidos na década de 1970. Já Paul Volcker, chefe da Reserva Federal estadunidense entre 1979 e 1987, ficou conhecido por sua proposta de disciplinar a classe trabalhadora como método contra a inflação, instalando a questão como uma “questão moral”.

A análise feita desses argumentos pela pesquisadora Melinda Cooper, que estuda por que tanto neoliberais quanto conservadores se colocaram contra um programa de baixo orçamento dedicado à mães solteiras afroamericanas, abre uma pista fundamental: nesse subsídio concentrou-se a desobediência das expectativas morais das suas beneficiárias. Essas mães solteiras afroamericanas produziram uma imagem que não se encaixava na marca da família fordista. Ou seja, na perspectiva conservadora, quem recebia esse subsídio era “premiada” pela decisão de ter filhes fora da convivência heteronormativa, e a inflação refletia a inflação de suas expectativas sobre o que fazer das suas vida, sem nenhuma contraprestação obrigatória.

Então, ao clássico argumento neoliberal de que a inflação se deve ao “excesso” de gastos públicos e ao aumento dos salários quando há poder sindical, os conservadores acrescentam uma virada: a inflação marca um deslocamento qualitativo do que se deseja. Mais recentemente os dois argumentos se uniram de forma decisiva.

Para o nosso contexto: como discutir a inflação desarmando uma imagem conservadora do gasto social, intimamente ligada ao governo cessante, que moraliza as mulheres, lésbicas, travestis e trans dos setores populares em seus possíveis gastos, ao mesmo tempo que perdoa a elite financeira local e internacional por terem fugido da responsabilidade de 9 em cada 10 dólares de dívida externa?

Se existem vínculos que expressem a rejeição (ou a fuga de fato) ao contrato familiar, tornar-se devedoras é – como argumenta Silvia Federici -, uma mudança na forma de exploração que levanta outra questão: como se fiscaliza e pune o que está além do salário e do casamento? As reformas punitivas dos direitos sociais (como argumentamos em relação à moratória da aposentadoria), tentam inventar esses dispositivos restabelecendo uma ordem meritocrática patriarcal do que está fora do salário e fora do casamento.

 

Luci Cavallero é socióloga e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires. Seus trabalhos abordam vínculo entre dívida, capital ilegal e violências.

Verónica Gago é professora e pesquisadora. Também militante feminista e membro do coletivo Ni Una Menos. Faz parte da editora independente Tinta Limón. É autora do livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” (Editora Elefante, 2020).

 

Clique aqui para comprar o livro “Uma leitura feminista da dívida”, das autoras Luci Cavallero e Verónica Gago, com frete grátis para todo Brasil durante a pré-venda.