{"id":4226,"date":"2024-04-08T14:25:12","date_gmt":"2024-04-08T17:25:12","guid":{"rendered":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/?p=4226"},"modified":"2024-04-08T14:31:25","modified_gmt":"2024-04-08T17:31:25","slug":"direito-e-psicanalise-por-christian-dunker","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/2024\/04\/08\/direito-e-psicanalise-por-christian-dunker\/","title":{"rendered":"Direito e Psican\u00e1lise, por Christian Dunker"},"content":{"rendered":"\n

Essa entrevista foi produzida em parceria com a Livraria Cabeceira<\/em>. Originalmente publicada em: https:\/\/inb.org.br\/direito-e-psicanalise-com-christian-dunker\/<\/p>\n\n\n\n

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O \u201cDireito e o mundo\u201d \u00e9 um espa\u00e7o dedicado a explorar as conex\u00f5es existentes entre o campo jur\u00eddico e outras \u00e1reas do conhecimento. O professor Christian Dunker nos contou em entrevista sobre alguns aspectos da \u00e1rea do direito e psican\u00e1lise. <\/p>\n\n\n\n

A objetividade pr\u00f3pria do sistema jur\u00eddico normativo pode nos fazer esquecer que os sujeitos de direito tamb\u00e9m s\u00e3o sujeitos de desejo. Os longos processos judiciais, por vezes, escondem uma importante camada de sentido: as pessoas sentadas em um tribunal s\u00e3o pessoas, antes mesmo de r\u00e9us, advogados, promotores ou ju\u00edzes. Isso significa que dentro delas existe um universo de significados espec\u00edficos e particulares. <\/p>\n\n\n\n

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A psican\u00e1lise \u00e9 uma forma eficiente de compreender e desconstruir uma s\u00e9rie de formas e dogmas impostos pelo Direito a partir das categorias da subjetividade. Em 9 de janeiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio<\/a>, J\u00falia Albergaria, se reuniu com o professor Christian Dunker para debater as poss\u00edveis rela\u00e7\u00f5es entre os dois campos do conhecimento.<\/p>\n\n\n\n

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Direito e Psican\u00e1lise: a concep\u00e7\u00e3o do justo<\/h2>\n\n\n\n

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INB:<\/strong> No direito impera o pressuposto da Justi\u00e7a. O que o senhor, utilizando o referencial te\u00f3rico da psican\u00e1lise, compreende como Justi\u00e7a? Como a psican\u00e1lise observa a pr\u00f3pria no\u00e7\u00e3o do justo?<\/p>\n\n\n\n

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Christian Dunker: <\/strong>A primeira informa\u00e7\u00e3o importante para come\u00e7ar essa reflex\u00e3o, \u00e9 que Sigmund Freud<\/a> e Hans Kelsen<\/a> foram colegas de escola. Inclusive, Kelsen foi leitor de um trabalho de 1929 escrito por Freud que virou refer\u00eancia, chamado Mal-estar na Civiliza\u00e7\u00e3o<\/a><\/em>. Kelsen leu o texto e fez algumas proposi\u00e7\u00f5es que Freud aceitou. Nesse momento, tamb\u00e9m publicou um pequeno artigo sobre a rela\u00e7\u00e3o entre psicologia social e psican\u00e1lise.<\/p>\n\n\n\n

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Inicialmente, podemos dizer que o conceito de Justi\u00e7a \u00e9 um tanto distribu\u00eddo na psican\u00e1lise. N\u00e3o encontramos uma exposi\u00e7\u00e3o muito sistem\u00e1tica e nem muito detalhada dessa no\u00e7\u00e3o. Mas podemos dividir o tratamento da quest\u00e3o da Justi\u00e7a de tr\u00eas maneiras. <\/p>\n\n\n\n

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A primeira \u00e9 o que podemos chamar de um sentimento de Justi\u00e7a, que pode ser compreendido como uma tradu\u00e7\u00e3o subjetiva da distribui\u00e7\u00e3o dos atos de conhecimento, dos predicados, das trocas que organizam nossa sociedade como um universo simb\u00f3lico. Isto \u00e9, como um universo dependente da circula\u00e7\u00e3o daquilo que a gente sup\u00f5e do desejo do outro. \u00c9 nesse estado de coisas que Freud introduziu uma novidade: a Justi\u00e7a n\u00e3o tem uma matriz natural \u2013 este \u00e9 um ponto importante, pois Freud n\u00e3o era um jusnaturalista. <\/p>\n\n\n\n

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Assim, ela n\u00e3o procede de nenhum sentimento ou disposi\u00e7\u00e3o primitiva, uma vez que \u00e9 uma constru\u00e7\u00e3o elaborada na medida em que n\u00f3s, enquanto sociedade, temos de encarar o pre\u00e7o civilizat\u00f3rio. Na verdade, trata-se aqui do pre\u00e7o para estar com o outro, para poder amar e ser amado, para poder desejar e ser desejado. Mas tamb\u00e9m do pre\u00e7o que pagamos para a destrui\u00e7\u00e3o das s<\/em>atisfa\u00e7\u00f5es e dos prazeres. Aqui entramos na segunda fase da discuss\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

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Esse \u00e9 o tema tratado no Mal-estar na Civiliza\u00e7\u00e3o<\/em>. Interpretar que todos n\u00f3s estamos no estado de sacrif\u00edcio porque fomos privados de algo, significa identificar um solo comum que Freud chamada de Hilflosigkeit \u2013 <\/em>o desamparo. Nesse sentido, a Justi\u00e7a ser\u00e1 determinada pela dist\u00e2ncia que nos encontramos em rela\u00e7\u00e3o a essa falta comum, a esse estado de car\u00eancia, de depend\u00eancia uma vez que, no fundo, precisamos do outro. Essa \u00e9 uma medida para o sentimento de Justi\u00e7a.<\/p>\n\n\n\n

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Uma outra medida, com a qual Freud tenta equilibrar esse primeiro entendimento, diz respeito ao quanto de satisfa\u00e7\u00e3o, de gozo e prazer atribui-se ao outro. Estabelece-se aqui a cr\u00edtica freudiana ao axioma judaico-crist\u00e3o que profere: \u201camar o outro como a si mesmo\u201d.  Ora, isso seria justo, mas impratic\u00e1vel. Isso porque o amor n\u00e3o \u00e9 democr\u00e1tico, ele n\u00e3o pode ser obrigat\u00f3rio ou compuls\u00f3rio. O amor \u00e9 injusto. Eu posso amar o outro, dedicar a ele os meus melhores esfor\u00e7os, meus melhores carinhos e n\u00e3o ser correspondido.<\/p>\n\n\n\n

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Aqui opera um paradoxo: o sentimento de desamor n\u00e3o \u00e9 o que nos falta, mas aquilo que temos e que supomos que o outro pode nos dar. Portanto, o desamor \u00e9 interpretado subjetivamente como justi\u00e7a. Eu me dedico ao outro,  renuncio aos meus prazeres imediatos, me fa\u00e7o amar pelo outro, mas o outro n\u00e3o me retribui. Existe uma esp\u00e9cie de gargalo nessa justi\u00e7a n\u00e3o retributiva entre amar e ser amado,  que \u00e9 pr\u00f3prio de rela\u00e7\u00f5es assim\u00e9tricas, por exemplo, entre a m\u00e3e e a crian\u00e7a, entre o pai e a crian\u00e7a, entre o homem e mulher, entre dois homens, entre duas mulheres, etc. Poder\u00edamos dizer que essa situa\u00e7\u00e3o, em que um ama mais e o outro menos, gera infelicidade, mas essa \u00e9 uma infelicidade que quase sempre acontece. A gente at\u00e9 pode torcer para que haja evolu\u00e7\u00e3o na rela\u00e7\u00e3o: quando eu amo muito mais o outro, talvez seja poss\u00edvel inverter essa l\u00f3gica. Assim, o casal oscila como uma balan\u00e7a ao longo de seu percurso. Mas tamb\u00e9m \u00e9 comum que nada mude e haja sempre algu\u00e9m que se sinta deficit\u00e1rio amorosamente. Esse sentimento de d\u00e9ficit \u00e9 traduzido por uma esp\u00e9cie de sentimento de injusti\u00e7a.<\/p>\n\n\n\n

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A terceira entrada ps\u00edquica desse sentimento de Justi\u00e7a est\u00e1 presente no seguinte racioc\u00ednio:<\/p>\n\n\n\n

Eu n\u00e3o sou reconhecido, eu n\u00e3o sou amado pelo que sou e tamb\u00e9m n\u00e3o sou amado pelo que fa\u00e7o. Eu posso realizar um pacto com o outro por uma esp\u00e9cie de interpreta\u00e7\u00e3o do meu pr\u00f3prio corpo. Essa injusti\u00e7a acontece n\u00e3o pelo que eu fiz, pelo que deixei de fazer ou pela minha condi\u00e7\u00e3o de depend\u00eancia origin\u00e1ria. Logo, s\u00f3 pode ser porque h\u00e1 algo \u201cmal feito\u201d no meu corpo.<\/p><\/blockquote>\n\n\n\n

Nesse sentido, a justificativa sempre se volta para algo que rebaixa o indiv\u00edduo e que ele interpreta e atribui \u00e0 pr\u00f3pria corporeidade como um sinal dessa falta. Tal atribui\u00e7\u00e3o poderia ser negociada e resolvida de diversas maneiras. Por exemplo, ao reconhecermos que estamos todos referidos \u00e0  incompletude corporal, pois n\u00e3o somos seres fechados em uma bolha narc\u00edsica que prescinde do outro. Em regra criamos certos ideais para nos proteger do sentimento de injusti\u00e7a. <\/p>\n\n\n\n

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Castra\u00e7\u00e3o e os paradoxos de racionalidade e Justi\u00e7a<\/h3>\n\n\n\n

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Esses paradoxos de racionalidade e de Justi\u00e7a \u2013 visto, geralmente, como sentimento de injusti\u00e7a \u2013 remetem \u00e0 uma fun\u00e7\u00e3o que Freud chamou de castra\u00e7\u00e3o. Trata-se da ideia de que na economia libidinal h\u00e1 uma distribui\u00e7\u00e3o n\u00e3o equitativa. Da\u00ed surge um problema importante: O que \u00e9 que o Estado e o ordenamento jur\u00eddico v\u00e3o fazer em rela\u00e7\u00e3o a isso? Nesse contexto, \u00e9 interessante refletir aquilo que podemos chamar de teoria social freudiana, cujo exerc\u00edcio \u00e9 a compreens\u00e3o da origem do Estado, do que ele \u00e9 feito, como se constituem as na\u00e7\u00f5es, o que s\u00e3o as identidades, etc. <\/p>\n\n\n\n

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Esse \u00e9 um aspecto significativo. Vale lembrar que Freud \u00e9 mais ou menos contempor\u00e2neo \u00e0 realiza\u00e7\u00e3o de um mundo que est\u00e1 construindo um conceito de na\u00e7\u00e3o. Ele viveu a dissolu\u00e7\u00e3o da na\u00e7\u00e3o na qual ele mesmo nasceu, o chamado Imp\u00e9rio Austro-H\u00fangaro. Uma ideia muito importante que aparece em seu texto Mois\u00e9s e a Religi\u00e3o Monote\u00edsta<\/a><\/em> \u00e9 a seguinte: um dos motivos para o sentimento de justi\u00e7a \u00e9 a atribui\u00e7\u00e3o de um gozo supervalorizado ao outro. Ou seja, aquilo que me falta \u2013 o prazer que eu interpreto no meu pr\u00f3prio corpo, na minha defici\u00eancia amorosa ou no meu desamparo \u2013 foi tirado de mim e levado para o estrangeiro. Essa teoria vai ser contestada pela ideia freudiana de que os primeiros estados na\u00e7\u00f5es possuem entendimentos teol\u00f3gicos nacionais (aqui ele est\u00e1 pensando na religi\u00e3o isl\u00e2mica, judaica e crist\u00e3). Eles foram inspirados na concep\u00e7\u00e3o de que \u201cn\u00f3s temos primeiro n\u00f3s\u201d. Isto \u00e9, aquele determinado grupo \u00e9 descendente de um mesmo pai. Por isso, esse grupo que possui um mesmo pai compete com outro grupo que descende de outro ser m\u00edtico fundador, seja ele humano, n\u00e3o humano, tot\u00eamico, etc. <\/p>\n\n\n\n

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Isso \u00e9 algo muito interessante. Freud argumenta que essa leitura \u00e9 um encobrimento, uma nega\u00e7\u00e3o do que poderia ter sido historicamente a funda\u00e7\u00e3o do povo judeu a partir do estrangeiro. Ora, Mois\u00e9s era eg\u00edpicio, n\u00e3o judeu. Portanto, a funda\u00e7\u00e3o ocorre a partir de uma estrangeiridade original, de tal modo que ser\u00edamos feitos a partir do outro. \u00c9 em raz\u00e3o desse fato que imaginamos que o outro goza mais do que n\u00f3s. Nesse sentido, estabelece-se uma rela\u00e7\u00e3o paran\u00f3ica e persecut\u00f3ria.<\/p>\n\n\n\n

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\u00c9 tamb\u00e9m da\u00ed que surge o sintoma chamado de narcisismo das pequenas diferen\u00e7as. Para falar desse assunto, Freud utiliza exemplos de figuras que s\u00e3o pr\u00f3ximas, mas ao mesmo tempo est\u00e3o sempre em conflito, como os alem\u00e3es do norte e do sul da Alemanha ou os portugueses e espanh\u00f3is. S\u00e3o povos parecidos e, por isso mesmo, se perseguem historicamente, se criticam e se espezinham.  Ou seja, esta \u00e9 uma teoria sobre como se formam unidades simb\u00f3licas que podem passar pelos estados nacionais, pelas regi\u00f5es nacionais, pelos grupos sociais, pelos grupos tot\u00eamicos e que figuram nessa mesma l\u00f3gica. <\/p>\n\n\n\n

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Essa reflex\u00e3o revela que a nossa identidade vem de fora, ela \u00e9 herdada do outro. Assim, haveria uma esp\u00e9cie de Justi\u00e7a esquecida, de lei formativa esquecida que suprimimos e substitu\u00edmos por guerra e viol\u00eancia. Ao inv\u00e9s de lembrarmos disso \u2013 que nos constitu\u00edmos a partir do estrangeiro \u2013 n\u00f3s negamos. Assim, enquanto se formam grupos de \u00f3dio que atacam o outro, os grupos passam a  ser definidos pela inimizade que t\u00eam pelo estrangeiro. <\/p>\n\n\n\n

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Neste ponto existe uma possibilidade de colocar Freud entre Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. Por um lado Freud se pergunta, assim como Rousseau em seu discurso sobre a origem das l\u00ednguas, se nos esquecemos do solo comum. Ou melhor, do desamparo comum. Dessa maneira, a civiliza\u00e7\u00e3o viria acompanhada da injusti\u00e7a. Por outro lado, o Freud hobbesiano dir\u00e1 que o estado de anarquia promovido pela incerteza \u00e9 substitu\u00eddo pela elei\u00e7\u00e3o de um pai, de uma lei que \u00e9 uma esp\u00e9cie de tributo simb\u00f3lico, de lugar vazio constitu\u00eddo pelos temas de parentesco e pela isonomia. Logo, as pessoas encontram regras que limitam o acesso aos prazeres: voc\u00ea n\u00e3o pode se casar com esse, voc\u00ea n\u00e3o pode se unir com aquele. Tal regra de restri\u00e7\u00e3o, justamente por ser comum, funda um certo cen\u00e1rio de Justi\u00e7a e uma rela\u00e7\u00e3o com a lei. Por\u00e9m, existem problemas nesse processo, tanto na leitura mais rousseauniana, quanto na mais hobbesiana.<\/p>\n\n\n\n

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O fato \u00e9 que Freud n\u00e3o se encaixa perfeitamente em nenhuma dessas perspectivas porque ele aponta como problema, para essa no\u00e7\u00e3o de Justi\u00e7a, uma insufici\u00eancia da categoria de interesse. Ambos os autores \u2013 Rousseau e Hobbes \u2013 realizam suas reflex\u00f5es a partir de um sistema de interesses definidos pelos indiv\u00edduos que transferem sua for\u00e7a, seu poder de viol\u00eancia para o Estado, ou pelos indiv\u00edduos que est\u00e3o exilados, esquecidos da sua rela\u00e7\u00e3o origin\u00e1ria com o outro. Para Freud, esta categoria \u00e9 problem\u00e1tica porque ela sup\u00f5e que o sujeito vai agir sempre em conformidade com o cumprimento de seus interesses, seja de autoconserva\u00e7\u00e3o ou de expans\u00e3o. Al\u00e9m disso, presume-se que tais interesses ser\u00e3o sempre favor\u00e1veis \u00e0 vida e \u00e0 expans\u00e3o do grupo de pertin\u00eancia, de identidade ou filia\u00e7\u00e3o a qual pertencemos. <\/p>\n\n\n\n

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Freud vai dizer que esse entendimento possui uma ambiguidade inerente. De fato, criamos leis para minimizar as diferen\u00e7as, mas na medida em que as leis s\u00e3o imperfeitas, elas nos fazem sentir as diferen\u00e7as com maior profundidade e sofrimento. Quanto mais as leis s\u00e3o aperfei\u00e7oadas, maior o efeito rebote do \u00f3dio \u00e0 lei, do sentimento de promessa n\u00e3o cumprida ou, ainda, de uma imperfei\u00e7\u00e3o que era prometida como ideal de pacifica\u00e7\u00e3o. Isso vai valer para arte, para ci\u00eancia e para as limita\u00e7\u00f5es eventualmente impostas pelo ordenamento jur\u00eddico.<\/p>\n\n\n\n

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A subvers\u00e3o da no\u00e7\u00e3o de interesse proposta pelo autor aponta como os sintomas revelam que n\u00e3o somos justos nem com n\u00f3s mesmos. Os nossos sintomas ultrapassam as regras dessa ila\u00e7\u00e3o teleol\u00f3gica, com respeito a um fim ou interesse na moralidade. Os sintomas s\u00e3o cria\u00e7\u00f5es que jogam contra os interesses \u2013 s\u00e3o hip\u00f3teses da exist\u00eancia dos desejos do inconsciente. Tais desejos emanam de outro momento da vida, ou mesmo da hist\u00f3ria do desejo do desejado. Desejos n\u00e3o s\u00e3o esquecidos. Portanto, poder\u00edamos dizer que os sintomas s\u00e3o uma esp\u00e9cie de demanda por reconhecimento por um desejo que foi negado. <\/p>\n\n\n\n

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Este tamb\u00e9m \u00e9 o modelo de Justi\u00e7a. Na forma como a gente se limita, sente ang\u00fastia, se bloqueia, se silencia e sofre h\u00e1 um apelo por Justi\u00e7a. Esse apelo demonstra que a totalidade do ordenamento jur\u00eddico n\u00e3o se restringe \u00e0 lei, pois ela n\u00e3o \u00e9 apenas uma generaliza\u00e7\u00e3o dos costumes de uma na\u00e7\u00e3o. De fato, a lei tem um futuro poss\u00edvel que n\u00e3o est\u00e1 escrito, uma vez que \u00e9 fruto dos nossos desejos. Seguindo o pensamento de Jacques Derrida, \u00e9 poss\u00edvel entender que o direito n\u00e3o \u00e9 Justi\u00e7a, mas \u00e9 um instrumento da Justi\u00e7a. N\u00e3o podemos perder de vista que h\u00e1 v\u00e1rios elementos que n\u00e3o est\u00e3o presentes no ordenamento jur\u00eddico mas que, ainda assim, fazem parte da Justi\u00e7a. S\u00e3o aqueles que podemos intuir da pr\u00f3pria rela\u00e7\u00e3o com os desejos humanos. <\/p>\n\n\n\n

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Em uma contra-chave hobbesiana, esse racioc\u00ednio tamb\u00e9m vale para a l\u00f3gica de sacrif\u00edcio. Nos restringimos por medo de ser moralmente punidos por n\u00f3s mesmos, algo que Freud vai chamar de Supereu. Pensamos: \u201cn\u00e3o vou praticar algo que \u00e9 contra a lei porque sen\u00e3o vou ferir meu ideal de opini\u00e3o, ideal que incorporei e se feri-lo vou me criticar e me punir\u201d. Se agir contra meu ideal, estarei em desacordo com essa lei interiorizada chamada de Supereu.<\/p>\n\n\n\n

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A partir dessa perspectiva, Freud tamb\u00e9m trava uma discuss\u00e3o com Immanuel Kant. Freud parte da premissa de que o Supereu \u00e9 a voz do imperativo categ\u00f3rico, do puro dever. \u00c9 a voz que, inclusive, inspirou v\u00e1rios modelos jur\u00eddicos e a pr\u00f3pria no\u00e7\u00e3o de cosmopolitismo, quando tratamos do direito internacional.<\/p>\n\n\n\n

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Mas seria poss\u00edvel perguntar: como \u00e9 feito o Supereu? Eu te responderia que isso ocorre por meio da interioriza\u00e7\u00e3o n\u00e3o da lei que seus pais passaram para voc\u00ea, mas da lei que voc\u00ea interpreta da rela\u00e7\u00e3o entre seus pais e os ancestrais dos seus pais. Na verdade, o que eles te transmitem \u00e9 a rela\u00e7\u00e3o do que tiveram com a lei que os sucedeu, de maneira que o Supereu n\u00e3o \u00e9 uma verdadeira lei no sentido jur\u00eddico ou no sentido kantiano. Trata-se de uma lei patol\u00f3gica, porque ele \u00e9 particular, pr\u00f3prio daquela pessoa, daquele grupo, daquela fam\u00edlia. Para chegarmos no sentido de Justi\u00e7a como foi estruturado, temos que superar justamente a lei baseada no crime e castigo ou na puni\u00e7\u00e3o. Isto \u00e9, a lei em que n\u00e3o pratico determinado ato por temo ou, como dizia Kant, por motivos patol\u00f3gicos que tem haver com a sensibilidade. N\u00e3o se trata da minha rela\u00e7\u00e3o pura enquanto sujeito com a lei.<\/p>\n\n\n\n

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Deve-se perceber que Freud n\u00e3o \u00e9 kantiano. A ideia de Supereu \u00e9 justamente uma esp\u00e9cie de lei que o sujeito acha universal, mas que no fundo \u00e9 contingente. Essa generaliza\u00e7\u00e3o da lei se funda em cada um e em sua rela\u00e7\u00e3o  com a sua pr\u00f3pria fantasia. Por isso que ela \u00e9 patol\u00f3gica e particular. Ela se d\u00e1 nestes termos de que falei h\u00e1 pouco: sou mais amado, menos amado, estou desamparado porque tem algu\u00e9m gozando mais do que eu. Trata-se do desejo, amor, gozo e ang\u00fastia. Esses s\u00e3o os operadores jur\u00eddicos, os operadores freudianos que podemos utilizar para pensar a no\u00e7\u00e3o de direito do ponto de vista da psican\u00e1lise. <\/p>\n\n\n\n

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Freud reconhece que h\u00e1 um amor \u00e0 lei, como dizia Kant. Mas esse amor \u00e0 lei \u00e9 um amor cuja a lei est\u00e1 representada na figura do pai. O pai \u00e9 sempre o melhor exemplo do que poderia ser a lei para todos. \u00c9 uma lei que juridicamente pode ser reconhecida como privil\u00e9gio. Superar o Supereu implica em uma esp\u00e9cie de emancipa\u00e7\u00e3o do desejo, figura que aparece como algo capaz de criar atos para al\u00e9m da lei mas, ainda assim, injustos. Ainda assim, capazes de inspirar uma generaliza\u00e7\u00e3o maior da parte simb\u00f3lica e das formas de gozo que o direito visa arbitrar.<\/p>\n\n\n\n

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Existem rela\u00e7\u00f5es entre direito e psican\u00e1lise que partem de um caminho da psicopatologia. Quando Freud estuda os perversos \u2013 aqueles que t\u00eam uma altera\u00e7\u00e3o na rela\u00e7\u00e3o com o objeto e que em vez de amor genital, praticam uma outra forma de afei\u00e7\u00e3o do prazer \u2013 ele conclui que todos os sujeitos s\u00e3o em alguma medida perversos. Mas de onde vem a sua pervers\u00e3o? Ela n\u00e3o vem de sua psicopatologia, mas sim da moral, da teologia, da ideia que existia no passado pr\u00e9 direito napole\u00f4nico e em certa forma pr\u00e9 direito romano, que \u00e9 a ideia de que o sujeito pode ter uma zona de uso livre do corpo, de uso livre dos seus prazeres. Assim, h\u00e1 um espa\u00e7o que o Estado n\u00e3o tem que se meter. Essas quatro paredes onde o Estado n\u00e3o deveria por a m\u00e3o, onde ele deveria zelar por esse espa\u00e7o preservado dos indiv\u00edduos, t\u00eam uma rela\u00e7\u00e3o muito forte com o que a psican\u00e1lise vai chamar de fantasia. <\/p>\n\n\n\n

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Ou seja, a fantasia tem o pleno direito de ser exercida desde que seja no espa\u00e7o privado. Desde que ela n\u00e3o se pretenda generalizar e impor-se como um modo de satisfa\u00e7\u00e3o, como um modo de uso do corpo e dos seus objetivos concretos. Toda essa discuss\u00e3o contempor\u00e2nea emerge de uma categoria que a psican\u00e1lise importou. Podemos nos perguntar: importou e fez a cr\u00edtica? Sim e n\u00e3o, depende de qual psican\u00e1lise estamos falando e de como ela se coloca para pensar a vincula\u00e7\u00e3o com a Fantasia e suas implica\u00e7\u00f5es pol\u00edticas, para o que a gente entende pela rela\u00e7\u00e3o entre  direito e moral.<\/p>\n\n\n\n

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Direito e Psican\u00e1lise: imparcialidade e psique humana<\/h2>\n\n\n\n

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INB:<\/strong>  Ao pensarmos nas fun\u00e7\u00f5es do magistrado, vigora a m\u00e1xima de que o \u201cjuiz deve ser sempre imparcial ao julgar\u201d. Por\u00e9m, as contribui\u00e7\u00f5es da psican\u00e1lise revelam que muitas vezes n\u00f3s n\u00e3o somos nem um pouco imparciais. Como o senhor compreende a possibilidade da imparcialidade tendo em vista o pr\u00f3prio funcionamento da psique humana ? <\/p>\n\n\n\n

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Christian Dunker: <\/strong>Essa \u00e9 uma boa pergunta. Eu orientei duas pesquisas sobre esse assunto. Uma delas com um grupo que faz a avalia\u00e7\u00e3o psicol\u00f3gica dos magistrados para vital\u00edcia-los ap\u00f3s a aprova\u00e7\u00e3o no concurso p\u00fablico. Foi interessante porque havia um material amplo de como os magistrados julgam.<\/p>\n\n\n\n

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Eu diria que aqueles que confiam demasiadamente na imparcialidade s\u00e3o os mais problem\u00e1ticos. Eles n\u00e3o est\u00e3o advertidos de que n\u00f3s n\u00e3o controlamos todos os atos judicativos. N\u00f3s estamos expostos aos atravessamentos identificat\u00f3rios, \u00e0 nossa  fantasia como algo que nos governa al\u00e9m da consci\u00eancia e de suas ideias sobre neutralidade, suspens\u00e3o e imparcialidade. Ent\u00e3o, bons magistrados s\u00e3o aqueles que utilizam de sua intui\u00e7\u00e3o e que tem certa uma certa prud\u00eancia ou phronesis,<\/em> como dizem os gregos. <\/p>\n\n\n\n

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Em primeiro lugar existem certas patologias do julgamento que se mostram pela rela\u00e7\u00e3o com o tempo. A recente reforma judici\u00e1ria \u2013 que estimula as corregedorias a produzirem mais e mais senten\u00e7as \u2013 afetam muito esse processo. Um dos sinais que o magistrado julga mal, independente do conte\u00fado e da mat\u00e9ria objeto de debate, aparece quando ele se p\u00f5e em pressa, ao concluir r\u00e1pido demais um assunto. Quando ele come\u00e7a a antecipar provas, parece que j\u00e1 tem uma esp\u00e9cie de tese firmada, embora ainda n\u00e3o saiba.<\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

\u00c0s vezes as perguntas e a pr\u00f3pria execu\u00e7\u00e3o do processo \u00e9 atravessada por isso. H\u00e1 julgamentos excessivamente c\u00e9leres ou que s\u00e3o adiados indefinidamente como uma forma de procrastina\u00e7\u00e3o. Portanto existem tanto patologias do instante \u2013 como por exemplo: \u201cbati o olho e j\u00e1 sei\u201d \u2013 quanto patologias pr\u00f3prias de  um tempo demasiadamente longo. Ou seja, quando h\u00e1 impossibilidade de deliberar, pode ocorrer a tentativa de passar para outra inst\u00e2ncia. Mas at\u00e9 mesmo o magistrado pode se demitir e responsabilizar um assessor ou analista jur\u00eddico de decidir sobre o caso. Nesse sentido, o magistrado realiza um tipo de procura\u00e7\u00e3o de sua racionalidade jur\u00eddica. <\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

Os bons ju\u00edzes s\u00e3o aqueles que conseguem sobreviver e cultivar a d\u00favida. Ou melhor, que se colocam em d\u00favida em cada decis\u00e3o. Isto \u00e9, praticam a d\u00favida n\u00e3o apenas como exerc\u00edcio c\u00e9tico da racionalidade, mas sim subjetivamente. Caso contr\u00e1rio,  o magistrado  deve ficar do lado de fora, na ante-sala.  <\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

Mas como o magistrado vai fazer isso? Como faz para se livrar do seu pr\u00f3prio eu? Psicanalistas diriam: fa\u00e7a uma an\u00e1lise! N\u00e3o \u00e9  desconhecendo e colocando uma trava na porta que conseguimos eliminar nosso eu. N\u00e3o se trata de um exerc\u00edcio de for\u00e7a de vontade ou de uma regra disciplinar que determina at\u00e9 onde vai o eu pessoal e o eu institucional. Quem fala assim j\u00e1 est\u00e1 com uma aprecia\u00e7\u00e3o comprometida da situa\u00e7\u00e3o. Esse \u00e9 um par\u00e2metro para identificar que a no\u00e7\u00e3o de neutralidade for\u00e7a subjetivamente o magistrado a ter uma posi\u00e7\u00e3o e idealiza\u00e7\u00e3o de si mesmo. E tal situa\u00e7\u00e3o, por vezes, termina em depress\u00e3o, em onipot\u00eancia e impot\u00eancia. Geralmente isso se d\u00e1 de forma cruzada;  onipot\u00eancia para o outro e impot\u00eancia para si.<\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

Podemos pensar, por exemplo, como condi\u00e7\u00e3o para a patologia do ju\u00edzo o desconhecimento pelas fantasias, o desconhecimento daquilo que promove em voc\u00ea uma resposta por identifica\u00e7\u00e3o ou uma resposta supereg\u00f3ica. N\u00f3s falamos um pouco do Supereu. Embora n\u00e3o seja uma lei, \u00e9 tenta\u00e7\u00e3o do neur\u00f3tico dizer que \u00e9. O neur\u00f3tico pensa que \u00e9 uma lei porque \u00e9 sua, porque acredita nela, porque a ama , porque ela \u00e9 como se fosse da fam\u00edlia. S\u00f3 que ao investir nela um poder de generaliza\u00e7\u00e3o, pouco a pouco produz-se ju\u00edzos mais simples, ensinados pela forma can\u00f4nica do direito que \u00e9 simplesmente aplicar a regra ao caso. Basta aplicar a regra ao caso e o caso \u00e0 Justi\u00e7a.<\/p>\n\n\n\n

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O problema \u00e9 que ficam de lado todo o universo das exce\u00e7\u00f5es, sejam elas institucionais, circunstanciais, etc. Quando a gente acredita que fazer Justi\u00e7a \u00e9 simplesmente aplicar a regra ao caso, em geral aparecem identifica\u00e7\u00f5es com uma das partes, seja com o acusador, com a promotoria, com a defesa ou at\u00e9 com o r\u00e9u. Ou ent\u00e3o aparece aquele tipo de justi\u00e7a cruel, s\u00e1dica e vingativa. Pode ser uma vingan\u00e7a racial, de classe, de g\u00eanero, e por a\u00ed vai. Pesquisas emp\u00edricas mostram que h\u00e1 vieses important\u00edssimos. Por que a gente tende a julgar algo bom pela cor da pele, pela forma que o sujeito fala, pelos advogados que ele tem e que ele pode contratar.  Tudo isso est\u00e1 imerso no nosso universo ideol\u00f3gico. Mas h\u00e1 tamb\u00e9m influ\u00eancia do nosso universo  identificat\u00f3rio e supereg\u00f3ico.  Uma boa pr\u00e1tica de cr\u00edtica e aten\u00e7\u00e3o a isso \u00e9 o que se exige dos psicanalistas e \u00e9 o que se deveria exigir de um bom magistrado. <\/p>\n\n\n\n

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H\u00e1 uma terceira pondera\u00e7\u00e3o sobre a neutralidade ou imparcialidade que busca entender como o psicanalista vai saber, em um tratamento, que o paciente realizou uma interven\u00e7\u00e3o autorizando a si mesmo. Ou se esse mesmo paciente diz algo fruto de seus pontos cegos, daquilo que n\u00e3o analisou e que \u00e9 um peda\u00e7o faltante na subjetiva\u00e7\u00e3o da sua fantasia;  de tudo que  n\u00e3o sabe que o governa.<\/p>\n\n\n\n

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Pergunto como lidar com esse n\u00e3o saber que atravessa os atos interpretativos do caso. Uma resposta \u00e9 prestar aten\u00e7\u00e3o na repeti\u00e7\u00e3o e nos efeitos dos atos judicativos. Muitas vezes pode ter ali um  gozo ignorado, uma alteridade que n\u00e3o vai ser compat\u00edvel com o seguimento do processo. Assim, a neutralidade n\u00e3o \u00e9 um estado que voc\u00ea alcan\u00e7a para algum fim. A neutralidade \u00e9 constru\u00edda quando o lugar da verdade n\u00e3o est\u00e1 nem em voc\u00ea nem no outro, mas na inst\u00e2ncia terceira. \u00c9 justamente desse lugar que queremos nos aproximar. Para isso \u00e9 preciso se despossuir da verdade e da for\u00e7a de verdade no ato judicativo. Vou te transferir isso para o que a gente pode saber, para o que a gente pode supor. Vou transferir isso para essa inst\u00e2ncia terceira.<\/p>\n\n\n\n

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Fake news e psican\u00e1lise<\/h2>\n\n\n\n

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INB: <\/strong>Nos \u00faltimos tempos, os meios de comunica\u00e7\u00e3o divulgam not\u00edcias sobre fake news, de modo que o tema da mentira parece estar em alta, o que tem levado a muitas cr\u00edticas moralistas sobre o assunto. Como \u00e9 poss\u00edvel compreender as fun\u00e7\u00f5es e caracter\u00edsticas da mentira no contexto da psican\u00e1lise?<\/p>\n\n\n\n

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Christian Dunker: <\/strong>Essa \u00e9 uma pergunta complicada, porque a gente teria que falar um pouco da arqueologia da verdade. Isso significa entender que a verdade \u00e9 um conceito mais heterog\u00eaneo do que gostar\u00edamos. Para come\u00e7ar, a verdade oscila entre uma raiz grega que a coloca como aquilo que se revela e que est\u00e1 ali diante de n\u00f3s. Ou seja, a verdade se mostra como uma evid\u00eancia que estaria encoberta. Este conceito est\u00e1 muito ligado ao presente, ao imediato e \u00e0 verdade. Nesse sentido, ela foi demasiadamente absorvida pelo funcionamento positivista do direito. No Brasil esse funcionamento se revela pela triangula\u00e7\u00e3o entre fato, norma e valor. <\/p>\n\n\n\n

Ent\u00e3o, o que seria o fato? Seria a evid\u00eancia posta diante dos nossos olhos. Por\u00e9m, o fato jamais contempla as inten\u00e7\u00f5es. H\u00e1, no positivismo, uma pr\u00e1tica de direito na qual a intencionalidade est\u00e1 completamente posta de lado, pois o que importa s\u00e3o as consequ\u00eancias. Essa maneira de lidar  metodologicamente com um problema, supera os pr\u00f3prios m\u00e9todos. Basta recorrer ao direito romano para entender que a verdade tamb\u00e9m \u00e9 feita de mem\u00f3ria.  <\/p>\n\n\n\n

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Portanto, a verdade n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 presente, ela \u00e9 reconstru\u00edda por testemunhos. Mas os e os testemunhos  podem estar enganados. Mesmo o direto deles perde for\u00e7a. O que est\u00e1 nessa fun\u00e7\u00e3o de verdade como aletheia<\/em> dos gregos \u00e9 o comprometimento de \u201cdizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade em nome de deus\u201d. Essa concep\u00e7\u00e3o grega significa exatid\u00e3o. Trata-se de um conceito que se relaciona com a reprodu\u00e7\u00e3o exata daquilo que foi visto.<\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

Contudo, como pontuei, sabemos que a mem\u00f3ria humana n\u00e3o \u00e9 reprodu\u00e7\u00e3o exata do que algu\u00e9m viu. Ela \u00e9 atravessada pelas fantasias e pelos afetos.  O que voc\u00ea estava sentindo quando voc\u00ea viu? Estes outros elementos interferem no \u00e2ngulo, no ajuizamento e na sua pr\u00f3pria convic\u00e7\u00e3o.  Ou seja, o direito positivista confia na mem\u00f3ria como uma esp\u00e9cie de instrumento, deslocando as pessoas a condi\u00e7\u00e3o de m\u00e1quinas que buscam nos engramas  os acontecimentos  para depois reproduzi-los como um computador.<\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

A verdade possui um outro sentido que vem do hebraico e consiste em trat\u00e1-la pela confian\u00e7a. Nesse sentido, \u00e9 verdade porque o povo escolhido fez um pacto  que envolve terras com Israel e por isso \u00e9 verdade que esse povo tem um futuro ali. Em l\u00f3gica, usamos a ideia da inconting\u00eancia, para falar daquele poss\u00edvel que se realiza. Ent\u00e3o existem  tr\u00eas vers\u00f5es da verdade: i) a  que \u00e9 o oposto da mentira; ii)  a que \u00e9 o oposto do engano; iii) a que \u00e9 o oposto da ilus\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

Quando falamos em Fake News, somos levados a entender que h\u00e1 um cruzamento entre essas coisas. Existem reflex\u00f5es sobre como desmontar as Fake News a partir da apresenta\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o. Se a informa\u00e7\u00e3o est\u00e1 errada, basta apresentar a evid\u00eancia correta para resolver. S\u00f3 que esse m\u00e9todo desconhece as tecnologias contempor\u00e2neas. Em termos de Fake News, atualizam a propaganda do jornal ao contar mentiras s\u00f3 falando verdades. Por exemplo, se eu fa\u00e7o o seguinte retrato: esse \u00e9 um homem que levantou uma na\u00e7\u00e3o, que acabou com a infla\u00e7\u00e3o de seu pa\u00eds, que foi eleito com uma alta porcentagem de pessoas favor\u00e1veis, esse \u00e9 um homem que organizou um pa\u00eds destru\u00eddo. Mas esse mesmo homem levou milh\u00f5es de judeus para o campo de concentra\u00e7\u00e3o. Eu n\u00e3o mencionei esse \u00faltimo aspecto e, inclusive, alguns de que falei s\u00e3o falsos. De tal modo que o meu retrato produz uma ilus\u00e3o. <\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

N\u00f3s precisamos ter uma rela\u00e7\u00e3o mais complexa com a verdade. Isto se choca com a banalidade de reduzir o direito como aplica\u00e7\u00e3o da regra ao caso e com a desatualiza\u00e7\u00e3o de institui\u00e7\u00f5es antigas, muitas delas formadas no s\u00e9culo XVIII e XIX. Inclusive nossa pr\u00f3pria defini\u00e7\u00e3o do que \u00e9 pol\u00edtica n\u00e3o acompanhou as novas tecnologias e produ\u00e7\u00e3o de verdade, que s\u00e3o correlativas a produ\u00e7\u00e3o de mentiras, de engano e ilus\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

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Assim h\u00e1 manipula\u00e7\u00f5es que n\u00e3o se resolvem por mais informa\u00e7\u00e3o, mas sim por mais forma\u00e7\u00e3o. Isso torna o cen\u00e1rio mais dif\u00edcil de ser combatido porque tais considera\u00e7\u00f5es apotam para\u00a0 a nossa complac\u00eancia com a exist\u00eancia de muitas pessoas que s\u00e3o exclu\u00eddas do car\u00e1ter emancipat\u00f3rio da linguagem digital. Podemos dizer que a cidadania tem haver com acesso a bens e servi\u00e7os. Mas e a linguagem? Antonio Candido j\u00e1 falava do direito \u00e0 literatura, mas agora temos o direito \u00e0 linguagem digital. Isso significa alfabetizar, reduzir o n\u00famero de exclu\u00eddos que n\u00e3o conseguem ler criticamente a produ\u00e7\u00e3o de uma imagem, uma mensagem e aquilo que chega pelo celular. De certa forma, a repara\u00e7\u00e3o n\u00e3o era poss\u00edvel h\u00e1 vinte anos ou trinta anos atr\u00e1s, mas agora essa tarefa existe se queremos pensar em cidadania.<\/p>\n\n\n\n

<\/p>\n\n\n\n

Christian Dunker<\/strong> \u00e9 professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Cl\u00ednica. Recebeu dois pr\u00eamios jabutis na categoria Psicologia e Psican\u00e1lise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constitui\u00e7\u00e3o na Cl\u00ednica Psicanal\u00edtica \u2013 Uma Arqueologia das pr\u00e1ticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Al\u00e9m disso, \u00e9 autor de diversas obras e artigos cient\u00edficos como Por qu\u00ea Lacan, A psicose na Crian\u00e7a, Reinven\u00e7\u00e3o da Intimidade e O palha\u00e7o e o Psicanalista.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Essa entrevista foi produzida em parceria com a Livraria Cabeceira. Originalmente publicada em: https:\/\/inb.org.br\/direito-e-psicanalise-com-christian-dunker\/ O \u201cDireito e o mundo\u201d \u00e9 um espa\u00e7o dedicado a explorar as conex\u00f5es existentes entre o campo jur\u00eddico e outras \u00e1reas do conhecimento. O professor Christian […]<\/p>\n","protected":false},"author":3,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[69],"tags":[],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/4226"}],"collection":[{"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/3"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=4226"}],"version-history":[{"count":5,"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/4226\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":4231,"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/4226\/revisions\/4231"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=4226"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=4226"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/criacaohumana.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=4226"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}