Verónica Gago, sobre a luta feminista

Tradução da matéria de Emiliana Pariente para La Tercera.

Foto de Verónica Gago por María José Duran, UDP.

Quando a pesquisadora e docente da Universidade de Buenos Aires, Verónica Gago, fala da reprodução social como um território de politização e luta, que tem o potencial de desmantelar – ou ao menos questionar – as dinâmicas abusivas instauradas na América Latina pelo modelo neoliberal, sua analise é pontual e concreta; a reprodução social se refere a todas aquelas atividades, ações, relações, serviços, instâncias e infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da vida ou, como diz o nome do conceito, para a reprodução de tal. Às vezes, como explica a especialista, esquecemos que a vida não acontece automaticamente e que o trabalho – porque é trabalho – requer esforços e condições favoráveis ​​para que seja realizado. É justamente nos momentos de crise, como o que vivemos hoje, que voltamos a nos concientizar a respeito da ideia de que a reprodução social, algo que em outros momentos parecia óbvio e fortuito, não é minimamente garantido e não acontece de forma alguma automaticamente.

Para que se realize, pelo contrário, se requer certas garantias e direitos básicos que na atualidade tem sido privatizados e transformados em terreno férteis para negócio. “O conceito de reprodução social nos serve para evidenciar a profundidade da crise atual. O fato de as atividades de reprodução social não serem óbvias nem asseguradas, mas são um campo de valorização e concentração empresarial do capital, nos dá uma característica histórica desse momento”, reflete.

É esse o debate que tem sido aberto nesses últimos tempos nos países da região, especialmente naqueles em que os indicadores tradicionais utilizados para demonstrar o desempenho econômico (que durante muito tempo mostraram ser exitosos) contrastam com a realidade que vivem os setores de média e baixa renda, totalmente precarizados.

No Chile, em particular, esse segmento – que tem superado a linha da pobreza, mas que vive endividada – alcança 43% da população, da qual 44% são mulheres chefes do lar. Para esse segmento, a promessa neoliberal não foi cumprida. E é isso que está em questão hoje: como se reproduz a vida se não estão garantidos os elementos básicos que permitem a realização harmoniosa e digna de nossas necessidades vitais? “Durante muito tempo se pensou que o salário bastava para reproduzir a vida, mas em momentos de crise vemos que isso não é suficiente para realizar nossas atividades diárias ou ter os recursos essenciais para o bem-estar”, explica Gago.

É aí, como ela aprofunda, que convergem feminismo e reprodução social, porque são as lutas feministas que têm tematizado esse conjunto de atividades. “O que os feminismos fazem é colocar a reprodução social como campo de luta e, portanto, também mostrar quem hoje está colocando seus corpos para que essa reprodução, em condições críticas, possa ser realizada. É uma relação ambivalente; Por um lado, questionam os mandatos de gênero que fazem das mulheres as responsáveis ​​por garantir a reprodução social, mas, ao mesmo tempo, mostram que esse trabalho é fundamental para garantir a vida coletiva e comunitária”.

Gago, recentemente convidada a Cátedra Norbert Lechner, organizada pela Universidade Diego Portales, sustenta que são os movimentos feministas os que deram dignidade política às lutas da reprodução social, que durante muito tempo se delinearam como causas subsidiárias à grande luta salarial. “O neoliberalismo quer se vender como uma espécie de pacificação das energias sociais, em que é antes a energia empresarial que organiza o social. E acredito que o feminismo, sendo um dos movimentos mais relevantes atualmente, vem dizendo que o neoliberalismo é violento e que a violência patriarcal também é neoliberal.”

Você fala que os movimentos feministas transferiram a noção de violência a outra dimensão, reformulando até mesmo os valores de vítima e poder.

São os movimentos feministas que estão fazendo uma caracterização da violência que não fica só dentro de casa e que não é lida em termos de violência intrapessoal, mas sim relaciona o que acontece nas casas com outras formas de violência estrutural e de lugares lares como um dos terminais privilegiados dessa violência. Mas não o confina apenas entre as quatro paredes. Isso dá um caráter político à violência e à exploração que ocorre dentro de casa e desprivatiza essas dinâmicas. Desprivatiza o trabalho gratuito que se faz em casa e na vizinhança e expõe a violência como forma de exploração de corpos e territórios.

Esse é outro dos poderes dos feminismos atuais; sua capacidade de articular e entrelaçar diversas lutas, que são por território, natureza, moradia, por serviços sociais, por educação sexual integral e educação gratuita. Em outras palavras, o movimento construiu uma matriz de compreensão que faz com que todas essas lutas se conectem e ao mesmo tempo se mostrem como lutas contra a violência sistêmica.

Soma-se a isso o fato de que os movimentos feministas revelam as nuances da narrativa de vítima e mulher empoderada. Por um lado, a história da vítima permite ao poder ditar quais são as boas vítimas, as que são credíveis, porque nem todas são. E, por sua vez, como não cair no discurso contrário, empoderado, da empresária de si mesma. Aí está a armadilha.

Por isso é tão importante pensar como se desarma concretamente essa dinâmica, que inclui duas posições muito cômodas ao neoliberalismo. São as únicas duas posições que nos são oferecidas. Acredito que, pelo mesmo motivo, o movimento feminista está mostrando as outras experiências que estamos produzindo para entender a violência e ao mesmo tempo gerando possibilidades de enfrentamento e também de acompanhamento, luto e contenção. Integrar essas duas dimensões, a da luta e a da dor, é intolerável para a oferta neoliberal. Porque justamente quando aceitamos ser vítimas parece que abrimos mão de nossa capacidade de desejar e lutar, e quando aceitamos apenas ser empoderadas, estamos negando a violência sistêmica. É uma dupla que tem que ser desmontada porque funcionam juntas. 

Além disso, são duas posições que partem de uma ideia de indivíduo fechado em si mesmo e a partir do feminismo estão sendo feitas experimentações pessoais e coletivas para ver que outras posições subjetivas existem, posições capazes de combinar luta e dor, que são capazes de combinar a necessidade de autonomia econômica sem que este seja um discurso capturado pelo neoliberal.

Os feminismos populares que tem problematizado essas dinámicas da reprodução social e que propõem dinâmicas organizadas e colaborativas surgem como uma forma de resistência ao modelo atual?

As crises facilitam certa criatividade política e também a autogestão e reapropriação de funções. Acredito que a reprodução social é um território de experimentação em que os movimentos feministas tem tornado possível evidenciar as carências e por sua vez propor outros modelos de organização. Porque o que está em disputa agora é de que maneira, a partir da organização da reprodução social, organizamos a política. Acredito que ao politizar esse terreno, as lutas feministas estão colocando a pergunta do que significa transformar a vida cotidiana e a partir daí, todo o resto.

Você fala do patriarcado do salário. Como você o explica?

É um conceito de Silvia Federici, que postula que o salário não é apenas uma soma de dinheiro, mas uma ferramenta política. É o que permite dividir a classe trabalhadora entre assalariada e não assalariada; nesse sentido, es trabalhadores que não recebem salário muitas vezes não conseguem reconhecer sua força de trabalho tampouco seu trabalho em si. Isso se aplica aos trabalhadores do campo, que não cobram salario, e também para as mulheres, com o trabalho doméstico e de cuidados. Ao não receber um salario, ficam automaticamente subjugadas aqueles que sim cobram salario e instaura-se uma hierarquia de ordem sexual dentro dos lares. O cenário mais extremo disso é quando, por falta de autonomia econômica, as mulheres permanecem fixadas em situações de subordinação e abuso.

Em países latinoamericanos nos quais foram privatizados os direitos fundamentais que são necessários para viver… A dívida se transformou em uma obrigação?

Em países onde as coisas básicas têm que ser compradas, há uma financeirização da reprodução social, e isso significa que para viver precisamos nos endividar. A dívida não é mais uma exceção em emergências, é uma obrigação. A dívida é hoje aquela que organiza e possibilita a reprodução social, é o que permite uma invasão por parte do sistema financeiro na vida de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, é uma forma de amortecer a precariedade, porque quando nos endividamos, assumimos que a renda que temos não é suficiente, mas ao invés de gerar raiva e pensar em como podemos exigir mais renda, o que fazemos é assumir responsabilidade de uma dívida e se sentir culpado. Para sair desse ciclo, nos endividamos porque, no final das contas, é isso que torna a precariedade mais “habitável”. Isso, em determinado momento, é insustentável, insuportável e finalmente explode, emocionalmente, afetivamente, o corpo se manifesta com dor e doença e depois explode socialmente. É por isso que existem surtos em nossos países.

No Chile explodiu. Inclusive se começou a falar em saúde mental e que esse modelo nos deixou todes mergulhades na depressão. Uma mudança estrutural era realmente desejada?

Acredito que sim. E a mudança acontece, o que acontece é que ela leva tempo e aos poucos se traduz em diferentes temporalidades e dimensões de transformação. Se pensarmos em termos processuais, fica difícil condensar que todo esse processo político foi anulado por um resultado. Não estou dizendo que o resultado do Plebiscito não seja extremamente importante, na verdade ele abre muitas questões e debates que devem ser enfrentados. Mas não é necessário fechar um processo em relação a um resultado. Hoje temos que pensar que tipo de estratégias as organizações, movimentos, dinâmicas sociais e políticas estão tomando. E não se pode negar que há uma mudança importante nos tipos de discussões públicas sobre o que é o neoliberalismo, a necessidade de recursos, infraestrutura e direitos sociais. Há também uma pergunta que permanece aberta e é “o que significa hoje enfrentar as formas de re-colonização de nosso continente?”. O interessante é que nossa região está permanentemente em movimento a respeito dessas questões. Não há pacificação na América Latina.

A batalha feminista pela propriedade

A batalha pela propriedade que está ocorrendo em plena pandemia busca fabricar o que será o novo mundo pós-covid. Analisamos a nova aposta do capital sob a perspectiva feminista.

Por Luci Cavallero e Verónica Gago*

Foto do livro “Uma leitura feminista da dívida”, lançado em outubro de 2019 pela Editora Criação Humana.

O que acontece hoje é uma renovada batalha pela propriedade. No meio da pandemia? Sim. Portanto, sem fazer rápidas definições grandiloquentes do que está por vir, nos interessa​ pensar no que está acontecendo. Nos detenhamos em como o futuro está sendo fabricado. Nossa hipótese é que existem questões feministas fundamentais para intervir na discussão atual sobre a propriedade. Queremos propor três. Por um lado, estamos testemunhando um novo impulso da violência proprietária, justamente porque a propriedade está representada como a fronteira que atravessa cada conflito na pandemia. Nem sempre é tão nítido. Então, essa discussão aparece concentrada nos territórios da reprodução social (espaços visibilizados como fundamentais pelos feminismos) e no comando do futuro trabalho que o endividamento doméstico procura controlar. E, em terceiro, que nesta crise a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs é aprofundada através de lógicas familiaristas, as quais vinham sendo fortemente questionadas em favor da construção de espacialidades feministas. Vejamos uma de cada vez.

Violência proprietária

Na Argentina, na última semana aconteceram dois conflitos fundamentais a esse respeito: por um lado, o sancionamento de uma lei que regula os aluguéis e, por outro, a discussão sobre a expropriação (ou não) por parte do Estado de uma das principais exportadoras de grãos.

A lei para a regulamentação dos preços dos aluguéis foi aprovada em meio a uma discussão parlamentar sobre se esse assunto era ou não parte da emergência sanitária. Quando o slogan #QuedateEnCasa (#FiqueEmCasa) mostrou a sobreposição de crise habitacional e aumento da violência de gênero, por meio do coletivo Ni Una Menos em aliança com o sindicato de Inquilinxs Agrupadxs, impulsionamos o slogan “a casa não pode ser um lugar de violência machista nem de especulação imobiliária”. As violências econômicas que se expressam no acesso à moradia e seu envolvimento com a violência de gênero só se aceleraram com a pandemia, colocando os holofotes no espaço doméstico entendido como “a casa”. Esta violência se concretiza no abuso direto de proprietários e imobiliárias que se aproveitam da situação crítica para ameaçar, aterrorizar, não renovar contratos ou diretamente despejar inquilinxs, descumprindo um decreto que o proíbe. O que aparece hoje como uma pergunta inevitável é quem são os proprietários das habitações e hotéis dos quais são despejadas principalmente mulheres, lésbicas, travestis e pessoas trans (algo que é também indicado na nova lei, com a obrigatoriedade de declarar os contratos de locação perante a agência tributária).

Em vários lugares do mundo, a valorização financeira da habitação tem o ritmo acentuado pela voracidade dos fundos de investimento que se aproveitam da crise para comprar casas. Sabemos disso por exemplo graças ao trabalho da PAH (Plataforma de Afetadxs pela Hipoteca) no Estado espanhol. É o que estão dizendo as organizações sociais que buscam prorrogar a moratória contra os despejos para um milhão de lares em Nova York, os quais afetam majoritariamente a população afro-americana e latina, a mesma que impulsionou a recente revolta histórica. Em países como a Argentina, é a receita extraordinária do agronegócio que se “derrama”, entre outras coisas, como bolha imobiliária e boom de construção nas cidades (com o consequente aumento nos aluguéis).

As dinâmicas imobiliárias e extrativistas, que cruzam as geografias aqui e ali, revelam que o aumento do preço da moradia é um sintoma do aumento do poder das finanças e que a sua conexão com modelos extrativistas (e em particular o agronegócio) é direta. A casa, esse suposto espaço de refúgio privado denunciado pelos feminismos como epicentro das violências, é o terminal de fluxos que são parte central do cenário econômico e político mundial na crise. Por essa razão, a reivindicação pela soberania alimentar (um vocabulário de luta dos movimentos camponeses do sul) começa em cada casa e em cada panela popular para alcançar questionar todo o circuito da valorização dos commodities de exportação.

Não é por acaso que, além do lobby imobiliário atual diante da regulamentação do aluguel, desencadeou-se também o lobby de cereais contra a intenção do governo argentino de expropriar um dos maiores exportadores de grãos, no momento em que a emergência alimentar é a maior tragédia nos países do sul. Nos referimos à empresa Vicentín, um grande conglomerado agroindustrial de exportação de produtos primários declarado em falência, que se tornou tema da agenda devido a uma investigação que revelou que a família proprietária triangulou dinheiro no exterior, sonegando impostos e fraudando ao banco público e a centenas de produtores.

Em poucos dias, primeiro foram os agentes imobiliários que levantaram suas vozes, depois uma mobilização que foi batizada de “rebelião dos proprietários” tomou as ruas em todo o país exigindo a não intervenção do Estado no mercado de grãos e, especialmente, em defesa da propriedade privada. Apesar da fraude já ser de conhecimento público, os protestos reivindicam o retorno dos proprietários à administração da empresa em nome do respeito à “propriedade familiar”.

A violência proprietária é uma reação que demonstra precisamente um poder proprietário que, diante das demandas emergenciais reivindicadas de baixo (emergência alimentar e habitacional), se vê ameaçado no que considera seu “direito natural” de posse.

Socialização dos meios de reprodução

A batalha pela propriedade da qual estamos falando se desenrola na demanda concreta por usos comuns e públicos dos bens e serviços que possibilitam (ou não) a reprodução da vida pessoal e coletiva. Considerada a reprodução enquanto esfera estratégica sobre a qual se baseia a expropriação neoliberal e o endividamento doméstico, a socialização de seus meios e recursos emergiu como um dos elementos comuns a nível global.

Na maioria dos países, a financeirização dos direitos sociais (que significa acessá-los por dívida e em benefício de bancos e empresas) tem sido a segunda fase após a privatização das infraestruturas públicas e o sufocamento das economias autogestionadas.

É aí que também se salienta: não está sendo discutido neste momento de quem são os serviços públicos, a quem pertence a produção de alimentos e medicamentos, de quem são as moradias, quais são as ameaças contra o acesso à educação que estão em curso, de quem são as fortunas, que dívidas estão sendo criadas e que reformas tributárias a crise exige? E mais: não vínhamos discutindo qual ordem sexual traz consigo a propriedade privada sobre os corpos e os territórios? Assim, a grande questão sobre quem vai pagar pela crise hoje está envolvida diretamente na discussão da propriedade. E, como dizíamos, isso não é abstrato. Se aterrissa nos terrenos estratégicos da reprodução social (moradia, alimentos, medicamentos, educação), em conexão concreta com as formas de trabalho que os sustentam e os papéis de gênero que exigem.

Hoje nas casas, essas mesmas atulhadas de trabalho doméstico, exaustão psicológica e teletrabalho, novas dívidas estão sendo contraídas, apesar da concessão de renda emergencial. Na Argentina, por exemplo, além dos aluguéis, uma dívida crescente corresponde ao acesso à conectividade. Ou seja, a dívida a pagar pelo consumo dos telefones celulares é uma das que mais cresceu nesses meses. Isso se deve à intensificação do uso dos telefones como meio de conexão obrigatório especialmente para mães com a escolaridade des filhes, quando não há computadores e/ou rede wi-fi em casa. Fazer a lição de casa hoje exige para muitxs um uso enorme de dados que se adquire quase diariamente. Desse modo, a conta do telefone celular atinge cifras recordes em um momento que, como sabemos, é caracterizado por perda de renda. Muitas beneficiárias de subsídios de emergência concedidos pelo governo se veem obrigadas a destinar grande parte dessa renda para o pagamento das tarifas das companhias telefônicas (uma nova mediação privada para o acesso à educação pública).

Dessa maneira, são formadas verdadeiras “cestas” de dívida, que se vão refinanciando entre si, combinando diversas taxas de juros, formas de ameaça por inadimplência e diferentes cronogramas de vencimentos. Se algumas análises sociológicas falam dxs trabalhadorxs atuais como “coletorxs de renda”, que já não podem mais garantir sua reprodução com um salário único e estável, podemos falar de umx “coletora de dívidas” que se acentua como figura da crise. As novas dívidas que invadem o terreno da reprodução social encarnam uma disputa pela propriedade do tempo futuro, para impedir qualquer tipo de transição para outra coisa.

É urgente conectar a demanda de rendas, subsídios e salários pelos quais hoje se luta em vários movimentos sociais, com o fornecimento de serviços públicos gratuitos (da conectividade à água, da eletricidade aos serviços de saúde) e políticas de desendividamento para que essas rendas não sejam definitivamente absorvidas pelas corporações de sempre: bancos, supermercados, empresas de telecomunicação e empresas de plataformas. Discutir a dívida, doméstica e externa (inclusive a divisão de espacialidade que ela representa), é discutir a forma violenta com a qual se titulariza a propriedade do nosso trabalho a longo prazo e, portanto, do tempo futuro. Em outras palavras, rejeitar a “obrigação” que a dívida impõe como trabalho gratuito, barato e precário no tempo por vir e como responsabilização individual, onerosa e privada da reprodução cotidiana agora.

Aluguel, família e quarentena: por uma espacialidade feminista

A crise atual intensifica a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs em uma perspectiva familiarista. Por quê? Quando o aluguel não pode ser pago devido à restrição de renda, a moradia herdada ou conjugal é reforçada como a única maneira de garantir a casa, excluindo realidades como as da população LGBTQIA+, geralmente deserdada e com outras formas de convivência além da conjugalidade heterossexual. Assim, quando os subsídios e salários não são suficientes, a propriedade familiar se transforma na moradia disponível, confirmando que esse direito se torna quase impossível de exercer fora da jurisdição da família. A casa, dessa forma, volta a ser o lugar para “reordenar” o que vinha sendo questionado. Além de ser o espaço onde historicamente foram estabelecidos os papéis de gênero associados às tarefas de reprodução, com suas longas horas de trabalho invisibilizado. Questionar o que chamamos de “casa” é também problematizar a assunção privada da responsabilidade pela crise.

O movimento feminista, a força de mobilização nas ruas e de organização política nos territórios domésticos, questionou tanto a romantização do lar quanto a familiarização de seus contornos. De modos diversos e transversais, foi colocado em pauta o acesso à moradia, dissociando-o da família heteronormativa. Ao mesmo tempo em que a casa familiar era denunciada como um espaço inseguro para mulheres, lésbicas, bichas, travestis e trans (hoje ainda mais pela convivência obrigatória com os agressores), outra experiência de ocupação do espaço foi construída, especialmente outros usos da rua e da cidade.

Se todo regime de propriedade traz consigo uma ordem sexual e de divisão do trabalho, também o detectamos na forma de demarcar contornos, movimentos e fixações no espaço. A propriedade hoje está no centro do debate porque mapeia e sinaliza a batalha pelos limites que tenta, uma e outra vez, relançar o capital em suas formas mais brutais. O retiro familiarista da propriedade de que estamos falando implica, também, garantir trabalho doméstico gratuito dxs não-proprietárixs.

Nesse sentido, voltamos à importância da confrontação com os aluguéis imobiliários (como é o caso da lei de aluguéis e o cumprimento do decreto de proibição de despejos), instituições financeiras e do agronegócio ao mesmo tempo em que construímos outros “interiores”, inventando formas de refúgio, cuidado e acompanhamento que declinem aqui e agora a pergunta de como queremos viver.

(*) Luci Cavallero é Socióloga, pesquisadora da Universidade de Buenos Aires e militante feminista. Verónica Gago é Docente e pesquisadora na Universidade de Buenos Aires e militante feminista.

Texto traduzido por Helena Vargas e revisado por Fernanda Martins para Editora Criação Humana que publicou em 2019 a obra “Uma leitura feminista da dívida”, das autoras Luci Cavallero e Verónica Gago. O texto também foi publicado pelo jornal Sul21.

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