“Nós observamos que há uma série de pontos que a economia feminista propõe, estudada como um conjunto de postulações metodológicas e epistemológicas, para pensar a dívida, nascidos da pratica política”
Luci Cavallero e Verónica Gago são autoras do livro “Uma leitura feminista da dívida”, que foi produzido no calor das suas práticas feministas e que tem sua edição ampliada publicada no Brasil pela Criação Humana e na Argentina pela editora Tinta Limón. O slogan que está no livro é aquele com que marcharam as três últimas greves internacionais de mulheres, lésbicas, travestis e trans: “Vivas, livres e sem dividas nos queremos!”
Luci Cavallero é sociologa e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires. A entrevista traduzida a seguir foi realizada por Julieta Henrique para a revista Agenda Feminista em março de 2021 (clique aqui para ler a publicação original).
Como surgiu a escrita do livro “Uma leitura feminista da dívida”?
A escrita desse livro é produto de dois processos simultâneos que tem a ver, em primeiro lugar, com o encontro com companheiras com as mesmas inquietações, particularmente com Verónica Gago, no processo de organização das greves internacionais feministas, onde se tem um processo muito virtuoso na relação entre o pensamento e a prática política. Essas assembléias feministas nos permitiram começar a pensar quais são os modos de exploração contemporâneos, que papel ocupam as finanças, enquanto organizamos as greves em meio ao pior processo de endividamento da história argentina. Então, por um lado, é produto da inquietação gerada pela prática política, e por outro lado, ambas vínhamos investigando questões relacionadas com o mundo financeiro, não desde a mesma perspectiva, mas creio que a militância do movimento feminista fez com que desenvolvêssemos uma perspectiva comum sobre esse tema.
Vocês tratam o tema da dívida a partir de uma perspectiva que não circula hoje em dia nos meios de comunicação, uma “leitura feminista”. Em que consiste essa abordagem da dívida e por que ela é feminista?
Nós observamos que há uma série de pontos que a economia feminista propõe, estudada como um conjunto de postulações metodológicas e epistemológicas, para pensar a dívida, nascidos da pratica política. Em primeiro lugar, nos aproximamos do mundo financeiro a partir de um ponto de vista diferente daquele que nos é apresentado pela televisão, como se fosse uma serie de processos que se desenvolvem por si mesmos e que estão completamente desligados da vida cotidiana das pessoas. Isso é justamente uma operação política: fazer com que acreditemos que o mundo financeiro se desdobra por si mesmo, que não tem vínculo, por exemplo, com a quantidade de horas de trabalho das pessoas.
Então decidimos que há de se fazer o movimento contrário: começar a nos perguntar do que se nutrem as finanças. E aí pontuamos, por exemplo, que quando se fala de dívida externa não se fala da conexão entre dívida externa com o aumento do trabalho não remunerado de mulheres, lésbicas, travestis e trans, quando o Estado celebra uma série de convênios com organismos internacionais que o obrigam a retirar ou privatizar serviços públicos que envolvam mais trabalho no cotidiano das mulheres. Há um fenômeno pouco estudado e debatido publicamente, que tem a ver com o fato de que o endividamento externo está vinculado com o empobrecimento generalizado, a inflação e a pulverização das receitas de subsídios e salários em endividamento privado: ter que se endividar viver. Este é um dos fenômenos que começa a aparecer com muita forca a partir da última crise econômica de 2017-2018 e que não desapareceu. O caso do endividamento das mulheres beneficiarias da “Asignación Universal por Hije” é paradigmático. Há um processo de endividamento das mulheres muito claro, que tem a ver com privatizar em cada casa os custos dessa crise econômica. E isso é o que nós queremos viabilizar, que o endividamento externo está relacionado com o endividamento das economias domésticas e que é preciso que pensemos na dívida não unicamente como um problema econômico, como uma transferencia monetária, mas também como um problema político que tem consequências na vida cotidiana e que é uma forma de governar.
Como se dá a relação entre violência financeira e violência machista?
Nos últimos tempos o endividamento das mulheres têm explicado, em muitos casos, porque elas estão fixadas em lares onde há violência machista. Há algo aí para se investigar em relação a como a dívida afeta uma pessoa, embora essa dívida também possa ser usada para fugir ou para financiar um projeto pessoal. Pensar na relação da dívida com a violência é exatamente o processo inverso que nos propõem quando nos falam sobre as finanças, como se não tivesse nada a ver com o que acontece em corpos concretos.
Esse é um livro fruto da greve feminista, no sentido do que pensamos que foi a greve que nos permitiu observar os marcos entre a violência machista e a violência econômica, a partir da ideia de cessação das atividades produtivas. Portanto, temos a proposta de pensar o mundo financeiro como marco e também como condição de possibilidade dessa violência machista que vivemos.
Por isso, trouxemos para o livro entrevistas em que as companheiras contam como, por exemplo, estar endividades produz danos cotidianos, tanto nos vínculos dos lares, como nos vínculos dos bairros, e como isso se traduz em situações de violência. O que buscávamos era explicar esse modo de governar do endividamento em gestos cotidianos e como isso está relacionada ao fundamento, ou não, de uma situação de violência. Portanto, a importância da discussão sobre a violência financeira está em mostrar que os processos econômicos que são declarados abstratos estão, na verdade, completamente entrelaçados com as formas como a violência machista se expressa hoje. “Violência financeira” é um termo político que visa dizer que existe violência financeira que nos sujeita a situações violentas no dia a dia.
Essas entrevistas que você menciona formam a segunda parte do livro: mulheres que contam experiências relacionadas com a dívida. Parece haver uma intenção forte de pôr imagens em uma violência que permanece oculta.
Sim, o principal objetivo político do livro é demonstrar com imagens, conteúdos, palavras um modo de exploração que parece escondido. Ao contrário do que costumava ser o patrão, embora ele ainda exista, agora não podemos vê-lo. Porém, ele tem ações concretas sobre nossas vidas, ele toma decisões por nós. Por isso, é importante pensar que o endividamento também está relacionado à precarização do emprego, pois o que parece muito claro nas entrevistas é como diante do endividamento, a pessoa endividada se agarra a qualquer emprego, mesmo que seja em péssimas condições. Queremos colocar imagens e corpos concretos sobre o que significa estar endividade, sobretudo neste contexto histórico, porque a dívida nem sempre age assim. Colocar um corpo naquilo que às vezes é também uma intuição política. Conversamos com muitos militantes importantes que falam sobre como há algo nas maneiras como as formas de exploração foram refinadas que ainda não estamos prontos para conceituar.
A quem vocês se referem quando falam da “moral de boas pagadoras”?
O que nós dizemos é que não há um sistema financeiro que atue por fora dos mandatos de gênero. Há uma relação aí, já que o sistema financeiro explora esses mandatos. Por isso se fala que as mulheres têm taxas de pagamento dos empréstimos mais altas. Eles estão certos de que essa mulher endividada vai fazer qualquer coisa para pagar a dívida, mesmo que tenha que trabalhar em jornada tripla de trabalho. É preciso concretizar cada vez mais a ideia de que não há finanças que atuem por fora dos corpos concretos que se endividam. As pesquisas sobre as “mulheres boas pagadoras” são anteriores a esse livro. Tem sito estudado por outras companheiras, mas nós vemos claramente essa relação entre a “Asignación Universal por Hije” e o endividamento. Há algo muito concreto em como essas mulheres que, de alguma forma, são reconhecidas para as tarefas reprodutivas ao mesmo tempo se endividam para poder ter acesso aos bens mais básicos com a convicção de que vão receber algo de volta.
Qual é a relação que vocês encontram entre a falta de implementação da ESI e a discussão sobre uma Educação Financeira nas escolas?
Acredito que esse é um dos pontos que mais me interessa entre tudo que trabalhamos no livro. Foi uma pesquisa na Cidade de Buenos Aires, onde acontecem três coisas: por um lado, a educação sexual começa a ser privatizada (sempre esteve nas mãos de ONGs vinculadas a grupos religiosos); por outro lado, começa-se a falar em mudar os planos de estudos para pôr na grade curricular uma espécie de educação que prepara para os estágios; e em terceiro lugar, começa-se a instalar cada vez mais a ideia da necessidade de uma educação financeira para as crianças. O que vemos é que há um tipo de modulação da subjetividade que aproxima cada vez mais escola e neoliberalismo. Ao mesmo tempo que nos privamos do ESI – bem aplicado, porque também pode ser pensado apenas na sua dimensão preventiva – que é um espaço para pensar o que se quer, os infinitos acontecimentos possíveis, somos ensinados a ser bons financeiros comerciais. Aí vemos uma relação sobre quais são as formas como se modula a capacidade de imaginar um futuro.
Com a frase “as credoras somos nós” o feminismo propõe uma mudança de papéis. São as mulheres na verdade as que devem? O que são as chamadas práticas de desobediência?
Essa é uma das ideias mais fortes do livro. Não só fazer uma conceituação do modo em que funcionam as finanças, que já é uma forma de desobediência, porque implica desarmar este modo opaco de funcionamento, como também imaginar formas em que se podem pensar em outras maneiras de financiamento, de produção, de reprodução. E não apenas isso, outras das apostas do livro é pensar que se as finanças estão relacionadas com tantos aspectos, como a privatizada dos servicos públicos, opor-se a todos esses processos são formas de desobediência financeira. Exigir servicos públicos é desobedecer o mandato das finanças, pois eles apenas nos tem dado garantia de que o Estado não prestará mais serviços, contando com o fato de haver cada vez mais recursos destinados a pagar os dívida. Opor-se a isso é uma forma de enfrentar o financeiro. E, em outro nível, colocamos no livro uma série de exemplos, de formas de pensar o autofinanciamento de projetos produtivos, ou a própria reprodução. Como no caso das acompanhantes do bairro de Lugano, a Assembleia Feminina da FOB (Federação das Organizações de Base), que organizou uma prática ancestral chamada pasanaku para desendividar aquelas que estão mais endividadas. São vários planos em que dizemos que se pode pensar uma desobediência, para que nem tudo fique tão distante e se encerre numa ideia de “não pagar ao FMI”, o que é muito importante, mas é importante ressaltar que, ao mesmo tempo, há lutas em que o mundo financeiro é confrontado no dia a dia.
Para comprar a edição ampliada do livro “Uma leitura feminista da dívida”, clique aqui