Lute para vencer

Uma análise de “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, por Rory Elliot*

Imagem: reprodução

Com “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, o ativista trans e professor de direito Dean Spade desafia o leitor e o movimento de esquerda como um todo a perceber o poder do apoio mútuo nas lutas coletivas pela libertação. Spade ajuda a definir a longa e muitas vezes não contada história do apoio mútuo como um ato de “construir redes subversivas de cuidado que são de extrema importância para envolver, radicalizar e fornecer diretamente para nossas comunidades”. Citando a história revolucionária e a luta contemporânea do Partido dos Panteras Negras, os esforços do Apoio Mútuo em Desastres, ao movimento de protesto antigovernamental de Hong Kong, Spade deixou cair em nosso colo coletivo um roteiro fácil de ler para semear, cultivar e fortalecendo nossos movimentos, exatamente quando mais precisávamos.

Profundamente influenciado pela visão abolicionista e pela acessibilidade do texto de Angela Davis entitulado “Estarão as prisões obsoletas?”, o livro “Apoio Mútuo” tem menos de 200 páginas, impecavelmente pesquisado e crítico para sustentar e florescer nossa imaginação radical agora e nas lutas futuras. Spade expõe que desastres e crises planejadas ou inesperadas há muito são oportunidades para manobras políticas, repressão violenta, ocupação militar, floreios de novas tecnologias de vigilância e, mais insidiosamente, reformas. Com demonstrações históricas de solidariedade inflexível e poder popular, o autor mostra como e quando esses mesmos desastres se tornam oportunidades para ativistas e militantes se envolverem em mudanças radicais por meio da hibridização de ação local e redes massivas de assistência comunitária.

2020 revelou a muitos, e garantiu a alguns poucos, que a manutenção do status quo é a crise; o Estado e seus mecanismos e políticas, suas raízes, suas reformas e o firme desejo oportunista. COVID-19, mudança climática, imigração, assassinato policial, vigilantismo branco, número de mortos na prisão e a ascensão do fascismo direto e revelado em todo o mundo não são fenômenos inseparáveis. Muitos perceberam que diante de tanto caos, a única coisa que temos é uns aos outros; O apoio mútuo é a nossa salvação.

Embora profundamente ancorado no pensamento e análise revolucionários, este não é um livro de teoria política, nem uma exploração do que aconteceu. É um olhar ansioso para o que é possível e necessário.

O apoio mútuo, feito de forma radical, permite que as pessoas determinem e atualizem os caminhos para sua própria libertação por meio do crescimento coletivo, participação na liderança e ação. Também pode atuar e ser usado como rampa de acesso à luta política; uma resistência praticada aos modelos de organizações sem fins lucrativos dos supremacistas brancos.

“Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” fornece uma estrutura crítica para desafiar os movimentos dos quais fazemos parte, além de fornecer um roteiro para desafiar organizações, desafiar a nós mesmos como ativistas e militantes e desafiar uns aos outros para estarmos prontos para a luta que está à frente. Dá-nos o contexto de negligência governamental e resistência antigovernamental, os padrões de concessões, cooptações e exemplos de movimentos radicais que conseguem criar mundos melhores que sabemos serem possíveis.

À medida que o verão se transforma em outono, e porque tudo está em jogo e estamos lutando para vencer, precisamos de Apoio Mútuo.

*Rory Elliott é estudante de Portland, membro da organização abolicionista Critical Resistance, membro do coletivo editorial do The Abolitionist Newspaper e organizador da campanha Antipolicial Care Not Cops PDX. Atualmente, co-dirige a campanha de arrecadação de fundos do ACT UP Oral History Project. Colabora com Between Certain Death and a Possible Future: Queer Writing on Growing up with the AIDS Crisis.

O texto acima foi publicado originalmente no Fifth Estate – Radical publishing since 1965 e traduzido e republicado no Blog da Criação Humana.

A POTÊNCIA DOS FEMINISMOS NA LUTA CONTRA
A RAZÃO NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA:
uma entrevista com Verónica Gago

Por Mônica Vilaça e Bárbara Freitas.

Esta entrevista com Verónica Gago, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de San Martin (UNSAM), busca dialogar com as recentes movimentações construídas no bojo das lutas e interpretações que têm marcado os últimos anos na América Latina. Este tem sido um período atravessado por uma pujante produção e tradução para o português de livros de mulheres intelectuais e feministas de várias tradições, e por intensas mobilizações pelos direitos das mulheres, como as lutas pelo direito ao aborto e de enfrentamento ao feminicídio, que criaram ressonância em diversos países e continentes, e que vêm provocando uma inflexão por novas perguntas e métodos de ler, interpretar e incidir na realidade social. No conjunto destas articulações, tem-se ampliado ações que buscam melhor conhecer a produção latino-americana e é neste movimento que se inserem os diálogos com Verónica Gago. Em nosso encontro, durante o Seminário Internacional “As perspectivas feministas sobre a geopolítica global patriarcal e racista”, realizado em Salvador (BA), em 2019 – momento de articulação dos movimentos e intelectuais feministas da América Latina, que coincidia com a visita realizada pela italiana Silvia Federici para o lançamento do livro “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” –, propusemos a realização desta entrevista. Com a impossibilidade de realizá-la durante o seminário, contamos com a generosidade de Verónica de responder às perguntas que formulamos por escrito. Esta forma de realização da entrevista permitiu uma elaboração densa e rica, e que compartilha também novos debates produzidos pós-seminário, que coincidem com novas publicações suas, mencionadas ao longo da entrevista. Nossa tradução buscou preservar com o máximo cuidado as complexas elaborações apresentadas, mantendo aspectos da formatação do texto da entrevista – grifos e itálicos – enviado por Verónica, que buscavam destacar e salientar algumas ideias nas análises. Esperamos que o diálogo consolidado nesta entrevista contribua com a partilha, mas também o reconhecimento, das elaborações que se têm construído na íntima relação entre academia e militância, expressas na experiência da Verónica Gago e que refletem uma estratégia de produção de conhecimento mobilizada por muitas mulheres nas universidades da América Latina.

Você poderia se apresentar, falar um pouco sobre você?
Verónica Gago – Me chamo Verónica Gago. Vivo em Buenos Aires (ainda que não tenha nascido aqui, e sim em um povoado a 200 quilômetros da capital). Estudei Ciência Política na Universidade de Buenos Aires e depois de vários anos, nos quais só me dediquei à militância e ao trabalho, iniciei o Doutorado em Ciências Sociais. Sou professora nesta mesma Universidade de ensino na graduação e pós-graduação sobre economia internacional e teoria política. Também trabalho na Universidade Nacional de San Martin, onde sou responsável pelos cursos de teoria crítica, economias populares e economia feminista. Sou investigadora no Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Técnicas (CONICET). Comecei minha militância na Universidade como estudante e continuei vinculada a um grupo de investigação e ação militante que se chama Coletivo Situações. Como parte dessa iniciativa também se formou a Editora independente Tinta Limón, da qual sigo sendo editora. Desde 2016, sou parte do coletivo NiUnaMenos.

Como foi o teu encontro com o feminismo, enquanto teoria e movimento social?
Verónica Gago – Na militância na universidade, o feminismo estava presente entre as companheiras que conformavam o Coletivo Situações, porém de uma forma que não buscava, acredito, impactar de modo direto as lógicas mistas da organização do próprio coletivo. Sem dúvida, a discussão sobre o papel das mulheres na política – ainda sem nomear especificamente como feminismo – era muito forte nos debates que circulavam então nos anos 1970, também sobre as trajetórias de várias militantes que se fizeram feministas durante seus exílios, e também sobre como essas dinâmicas e biografias se expressaram na década de 1980, momento que aqui se chamou “transição à democracia”. Tem um ponto fundamental que marca a sensibilidade de várias gerações, o papel das Mães e Avós da Praça de Maio, como um fio vermelho de longa duração. Neste contexto, a militância vinculada aos direitos humanos dessa geração foi fundamental para nós que tínhamos em torno dos 20 anos nos anos de 1990, já que foi um primeiro momento
de ação direta, em que o “escracho” aos genocidas, que estavam impunes em suas casas, foi um modo de pôr em prática outra ideia de justiça. Nesse momento, se tenho que me referir a uma experiência de feminismo que me/nos marcou, a nós que militávamos juntas naquele momento, foi conhecer a prática de Mulheres Criando, da Bolívia. Tanto seus grafitis, como seu periódico, que difundíamos em Buenos Aires. Logo, uma das experiências de formação mais intensas para mim foi vivenciar a crise de 2001, na qual movimentos sociais muito importantes, especialmente de trabalhadorxs desempregadxs, abriram um horizonte político popular muito radical. Nestas experiências, com as quais me vinculei a partir do coletivo do qual era parte, elaborou-se um desafio à legitimidade política do neoliberalismo e para todxs nós, que nos comprometemos com as assembleias, os piquetes e as redes de intercâmbio e organização, foi como atravessar um limiar de como habitar as ruas e vivenciar uma nova política. A partir do trabalho editorial, alguns anos depois, também estabelecemos uma relação com companheiras cuja trajetória de luta e pensamento são chaves para uma sensibilidade e um arquivo feminista que, para mim, seria muito importante. Refiro-me a pessoas como Silvia Federici, Raquel Gutiérrez Aguilar,
Silvia Rivera Cusicanqui e Suely Rolnik. Logo, com minha militância no coletivo NiUnaMenos, sou parte de uma experiência que nos permite viver e militar de forma plena o feminismo, no preciso momento em que ele se torna um movimento social, massivo e radical, algo que é uma novidade em nosso país e, ao mesmo tempo, que existe dessa forma na medida em que expressa uma conexão e uma força transnacional muito potente.


Como tua militância no NiUnaMenos e tua formação como cientista social se encontram na tua atuação como pesquisadora?
Verónica Gago – Minhas problemáticas de investigação estiveram sempre vinculadas ao trabalho, desde o ponto de vista das dinâmicas do que se chama feminização do trabalho, e do trabalho migrante, que se encontram, sem dúvida, com as economias subalternas. Isto imediatamente me levou a indagar a partir das perspectivas feministas. Tanto no que sistematizei para meu trabalho de tese, como nas questões que me interessavam previamente em termos teóricos e de minhas experiências, essas questões se conectavam. Daí também é que comecei a aprofundar minhas formulações sobre o mapa do neoliberalismo na América Latina. O fiz partindo de minha investigação que se localizava na Argentina, mas à medida que envolvia trajetórias feminizadas migrantes e pela própria dinâmica do capital transnacional – especialmente em sua fase de hegemonia financeira –, tornou-se essencial sair de um “nacionalismo metodológico” para pensar outras chaves explicativas. Minha investigação sempre teve, para mim, um caráter
de intervenção política e esteve associada a formas de militância, mesmo quando parte dela era realizada na universidade. Isto tem relação também com uma tradição de compromisso político da universidade pública e gratuita em nosso país. Minha militância no NiUnaMenos e especialmente na dinâmica de organização da greve feminista internacional certamente se articula e impacta de múltiplas maneiras minha própria pesquisa, sobretudo porque a greve produz um mapeamento prático da heterogeneidade das formas de trabalho em uma chave feminista, colocando, em primeiro lugar – como falarei mais à frente – trajetórias de vida e
trabalho historicamente desvalorizadas e superexploradas. Desta maneira, acredito que tenha uma contaminação recíproca das formas de prática política e da investigação militante que faz com que a produção de conceitos não seja um monopólio da academia, nem que a prática política se reivindique como anti-intelectual.

Em teu livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” 2, você discute a greve internacional de mulheres. Neste contexto podemos pensar em uma ressignificação da greve a partir da luta feminista? A greve assumiria um novo sentido? Qual?
Verónica Gago – Sim, acredito que a prática da greve vivenciada a partir do movimento feminista modifica-a por completo porque, para dizê-lo de modo simples, a greve se pratica “fora do lugar”. Devo explicar: em primeiro lugar, a greve torna-se um dispositivo específico para politizar as violências contra as mulheres, lésbicas, travestis, trans e não binários. Em outras palavras, a greve cruza duas questões que historicamente se viam desencontradas. Conectar as violências machistas com a ferramenta da greve realmente amplia nossa compreensão das violências. Com a ferramenta do “paro”3 [greve] começamos a vincular de modo prático as violências que se enlaçam com a violência machista: a violência econômica na diferença salarial e nas horas de trabalho doméstico não reconhecido e não pago, com o disciplinamento que se enlaça com a falta de autonomia econômica; a violência da exploração que se traduz no lar como impotência masculina e explode em situações de violência “doméstica”; a violência do sucateamento dos serviços públicos com a sobrecarga do trabalho comunitário. A greve, neste sentido, é uma ação que nos situa como sujeitxs políticos frente às violências e sua tentativa sistemática de reduzir nossas dores, colocando-nos na posição de vítimas, a serem culpadas e revitimizadas. A greve nos põe em situação de luta. Não esquece a dor, porém nos retira do “estado” de dor. Mas também, fazendo isso, expande-se e é apropriada por aquelxs que supostamente não estavam autorizadas nem legitimadas para fazer greve, uma ferramenta clássica monopolizada pelo movimento trabalhista e sindical (e majoritariamente masculino, heterossexual e branco). Daí coloca-se uma pergunta prática e teórica muito desafiante: Como a greve feminista é protagonizada simultaneamente desde territórios, sujeitxs e experiências que não cabem na tradicional ideia de trabalhadorxs e que, por isso mesmo, têm a capacidade de reinventá-la e transformá-la? Neste sentido, a greve analisada a partir do movimento feminista, como tem acontecido nos últimos quatro anos inclui, reconhece e visibiliza como força de trabalho, como potência produtiva, como criadoras de valor, uma multiplicidade de sujetxs que historicamente foram definidxs como improdutivxs, ao mesmo tempo que eram superexploradxs. Desta maneira, o “paro” conseguiu traduzir novas gramáticas de exploração, nomeá-las e situá-las, estabelecendo novas gramáticas de conflito. Redefine assim o que é um conflito de “trabalho” porque o alarga: localiza-o, não só nas fábricas ou em espaços de trabalhos formais, para levá-lo a outros lugares – do lar às economias populares, das camponesas às migrantes sem documentos, das feiras aos restaurantes comunitários. Essa trama, que implica um processo político de organização, envolvimento e de compartilhamento, produz as condições para entender a conexão entre o trabalho doméstico e a exploração financeira, o trabalho precário e a hierarquia nos sindicatos, evidenciando as áreas de exploração que historicamente foram invisibilizadas e sua relação íntima com áreas de trabalho “visíveis”. O paro, por esta capacidade de mapear a heterogeneidade do trabalho a partir de uma chave feminista, tomou múltiplas formas, distintas modalidades de protesto, de assembleia, de usos da própria noção de parar e bloquear, de ocupar e esvaziar os espaços de trabalho, as casas e os espaços de produção nos bairros. A partir dessa multiplicidade, outra pergunta também encontra espaço: Por que o paro expressa um modo de subjetivação política, um modo de atravessar fronteiras sobre o limite do possível? Em meu livro, proponho o paro feminista como “lente” de leitura para as reconfigurações do capitalismo contemporâneo, de seus modos específicos de exploração e extração de valor, e das dinâmicas que lhe resistem, sabotam e contestam. Porque se o paro é um modo de parar a continuidade da produção do capital, entendido como relação social, é porque põe em marcha uma desobediência à contínua expropriação de nossas energias vitais, espoliadas em rotinas exaustivas. Por essas razões, novas perguntas continuam se abrindo:
que acontece com a prática do paro quando é pensado e praticado com base em sensibilidades que não se reconhecem a priori como de classe e que, sem dúvida, desafiam a própria ideia de classe? Em que sentido esse “deslocamento” do paro, seu “uso” fora do lugar, remapeia as espacialidades e temporalidades da produção e do antagonismo? O paro reinventado pelo feminismo se transformou em seu sentido histórico também ao sair do âmbito estrito dos sindicatos: deixou de ser uma ordem emanada de cima (hierarquia sindical) que se acata ou adere, para converter-se em uma pergunta-investigação concreta e situada: que significa parar para cada realidade existente e de trabalhos diversos? Essa pergunta pode ter um primeiro momento que consiste em explicar por que não se pode fazer paro no lar, ou como vendedora ambulante, ou como encarcerada, ou como trabalhadora freelance (identificando-nos
como as que não podem parar), mas imediatamente depois de verificada essa impossibilidade (completamente massiva em nossos países) assume outra força: essas experiências são levadas a ressignificar e expandir o que se suspende quando a greve deve compreender e acomodar essas realidades, ampliando o campo social em que a greve se inscreve e produz efeitos. No livro, descrevo várias situações concretas nas quais essa simultaneidade entre impossibilidade e desejo de parar abrem caminho para uma imaginação política radical. Por último, gostaria de sublinhar que o paro vai além e integra a questão trabalhista porque torna visível que paramos nosso trabalho e paramos contra as estruturas e a ordem que tornam possível a valorização do capital. Esses ordenamentos (da família heteropatriarcal à maternidade compulsória, do aborto clandestino à educação sexista) não são meramente questões culturais ou ideológicas. Eles respondem ao próprio entrelaçamento do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo e destacam que tipo de violência específica necessita hoje o capital e contra quais corpos e territórios ela incide de maneira diferenciada.

A economia feminista tem problematizado a invisibilidade dos trabalhos domésticos e de cuidados na Economia. Como as greves ajudaram a ampliar a visibilidade destas fronteiras do trabalho na produção e reprodução da vida?
Verónica Gago – A greve feminista tem colocado o foco no terreno da reprodução para, como dizia antes, relevar e revelar todas essas tarefas como diretamente produtivas e obrigatórias por ordenamentos de gênero. O modo de visibilizar esses trabalhos imprescindíveis foi a base para sua interrupção: deixar de fazê-los para que sua ausência os torne evidentes em toda a sua presença historicamente invisível e desvalorizada. As teorizações feministas popularizaram a noção de tripla jornada: trabalho fora de casa, trabalho dentro de casa e trabalho afetivo de produção de vínculos e redes de cuidado. Parar essa multiplicidade de tempos é uma subtração que parece quase impossível, porque é nesse excesso que a vida e o trabalho se encontram e onde a reprodução visibiliza-se imediatamente como produção. Fazer “paro”, em todos estes tempos de trabalho, põe em relevo o tempo a partir do ponto de vista feminista, em sua condição sobreposta: como se “produz” a hora que mais tarde é contada como trabalho? Como se produzem xs trabalhadorxs para sua reprodução vital e cotidiana? Portanto, “parar”, nesta chave, é repensar tudo. No trabalho político da greve, realizado entre organizações territoriais e sindicatos, em universidades e em grupos de migrantes, tem-se feito tão popular o que Silvia Federici sintetiza sobre o trabalho reprodutivo dizendo: “não é amor, é trabalho não pago”. Isso significa uma historicização de como se tem organizado o trabalho reprodutivo em nossas sociedades capitalistas, patriarcais e coloniais. Destaca sua obrigatoriedade e sua gratuidade – também obrigatória, seu vínculo com a heteronormatividade, seu caráter de subordinação política ao trabalho considerado produtivo e, também, sua sobreposição com os trabalhos no mercado de trabalho, porque são poucas as que hoje fazem apenas trabalho reprodutivo em suas casas (a figura ideal da “dona de casa”). Além disso, o trabalho reprodutivo não é apenas o que acontece nos lares; também reúne uma série de qualidades que caracterizam cada vez mais o trabalho precarizado – e, por isso, fala-se de uma feminização do trabalho – em geral. Colocando em termos concretos: a dimensão gratuita, não reconhecida, subordinada, intermitente, e às vezes permanente, do trabalho reprodutivo serve hoje para ler os componentes que compõem as formas históricas das economias populares; mas também a precarização como um processo transversal atual. Fornece chaves sobre as formas de exploração intensiva das infraestruturas afetivas e, por sua vez, permite compreender o alargamento extensivo da jornada de trabalho no espaço doméstico e a disponibilidade permanente como recurso subjetivo primordial. Neste sentido, ao incluir o trabalho reprodutivo, mas também o trabalho migrante, precário, de rua, feminizado, a greve feminista tem permitido repensar, requalificar e relançar outro sentido para a greve geral. A tese seria assim: a greve geral se torna realmente geral quando se torna feminista. Porque ela primeira vez alcança todos os espaços, tarefas e formas de trabalho. Por isso, consegue enraizar-se e territorializar-se sem deixar nada de fora e a partir daí produz generalidade. Abarca cada rincão de trabalho não pago e não reconhecido. Traz à luz cada tarefa invisibilizada e não contabilizada como trabalho. E, ao mesmo tempo que as afirmam como espaços de produção de valor, as conecta em sua relação subordinada com outras formas de trabalho. Assim torna-se visível a cadeia de esforços que traçam um continuum
entre a casa, o emprego, a rua e a comunidade. Ao contrário do confinamento a que se quer reduzir os feminismos (a um setor, a uma demanda a uma minoria), assumir que a greve é geral só porque é feminista, é uma vitória e é uma vingança histórica. É uma vitória, porque dizemos que se nós paramos, para o mundo. É, por fim, evidenciar que não há produção sem reprodução. E é uma revanche em relação às formas de greve em que o “geral” era sinônimo de uma parcialidade dominante: trabalho assalariado, masculino, sindicalizado, nacional, que sistematicamente excluía o trabalho não reconhecido pelos salários (e sua ordem colonialpatriarcal).


Como podemos pensar as recentes lutas pela legalização e descriminalização do aborto que atravessaram a América Latina e o mundo no último período frente a um contexto de fortalecimento de narrativas fascistas e retomada de uma agenda neoliberal mais ampla?
Verónica Gago – Estou interessada em pensar qual é a relação entre ambas as coisas. Por isso, acredito que podemos entender o momento da fascistização atual em termos de contraofensiva. Quer dizer, constatar uma reação à força demonstrada pelos feminismos na região. É importante observar a sequência: a contraofensiva responde a uma ofensiva, a um movimento anterior. Isso envolve situar a emergência dos feminismos, em seu papel de desestabilização da ordem sexual, de gênero e política e tornando-se um ator-chave na disputa das fragmentações da crise econômica em curso. Acredito que é este movimento que deve localizar-se como anterior em relação à virada fascista subsequente na região, com conexões em nível global. Duas considerações emergem daqui. Em termos metodológicos: localizar a força dos feminismos em primeiro lugar, como força constituinte. Em termos políticos: afirmar
que os feminismos colocam em marcha uma ameaça aos poderes estabelecidos e ativam uma dinâmica de desobediência que esses poderes tentam conter, opondo formas de repressão, disciplinamento e controle em várias escalas em um momento em que as relações de acumulação estão instáveis. A contraofensiva, em boa medida sintetizada pela “cruzada contra a ideologia de gênero”, é um chamado à ordem e é a produção de inimigos internos que concentra seu ataque nxs sujeitxs dxs feminismo. Por esta razão, a feroz contraofensiva desencadeada contra os feminismos nos dá uma leitura inversa, ao contrário, da força de insubordinação que se tem percebido como já acontecendo e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua radicalização. Neste sentido, o papel das lutas pela legalização do aborto na Argentina e em toda a América Latina acredito que é fundamental. Mas lembremos também que o “paro” na Polônia, em outubro de 2016, também protestava contra a restrição do direito ao aborto. E, ao mesmo tempo, vemos hoje um retrocesso a esse respeito em vários estados dos Estados Unidos. Em outras palavras, não é apenas uma questão do terceiro mundo. No direito ao aborto, está em jogo o poder masculino e eclesial sobre o corpo de mulheres e os corpos gestantes. Na Argentina, com
a maré verde de 2018, temos visto a ampliação do debate sobre o aborto em termos de soberania, autonomia e classe, ao mesmo tempo que tem acontecido uma radicalização militante pelas novas gerações. A luta pelo aborto (e toda a reação conservadora que desperta) evidencia que não há forma de governo que não pressuponha intrinsecamente a subordinação das mulheres como o a priori dessa ordem estruturada por, como diz Carole Pateman, um contrato sexual. Por isso, a discussão leva diretamente a pensar a soberania dos corpos e, em particular, um vínculo interessante que concebe os corpos como territórios, segundo o conceito de corpoterritório lançado pelas feministas da América Central. Simultaneamente, a discussão sobre sua clandestinidade remeteu diretamente à importância dos abortos seguros e gratuitos, uma vez que são os custos que o tornam uma prática diferencialmente arriscada, de acordo com as condições sociais e econômicas. Aqui, como um desenvolvimento também presente no livro, tentou-se inverter a força que assumiu esse argumento classista para repudiar a clandestinidade, e a campanha construída a partir da hierarquia da Igreja Católica dizendo que o aborto é algo “estranho” e “externo” às classes populares; em outras palavras: que é uma preocupação exclusiva da classe média. Há mais uma questão: o debate ultrapassou o marco único do argumento da saúde pública, e do aborto como questão preventiva da gravidez não desejada, para abrir justamente as veias de exploração do desejo. A partir da palavra de ordem “a maternidade será desejada ou não será” até a reivindicação por educação sexual integral no currículo educacional, aprofundaram-se os debates sobre sexualidades, corporalidades, vínculos e afetos que deslocaram a questão de modo também radical. Isso permitiu inclusive variações das palavras de ordem sobre o aborto legal: não apenas no hospital, mas reivindicado também nas redes autônomas que o vêm praticando “em qualquer lugar”; não apenas educação sexual para decidir, mas para descobrir; não apenas contraceptivos para não abortar, mas sim para desfrutar; e não apenas aborto para não para morrer, mas para decidir.

A localização histórica das mulheres na economia reprodutiva e de responsabilidade com a reprodução da vida permitiria explicar as mulheres tornarem-se protagonistas nas lutas recentes, considerando as agendas de cuidados, as novas expressões de violência como o avanço sobre os territórios e a expropriação de bens naturais?
Verónica Gago – Sim, acredito que hoje é evidente como a reprodução social da vida aparece retificando e repondo e, ao mesmo tempo, criticando o desmonte da infraestrutura pública e lutando na linha de frente contra as desapropriações dos territórios. Vemos isso tanto nas lutas antiextrativistas pela defesa da água e dos territórios como na maneira em que as economias populares constroem hoje infraestrutura comum para a prestação dos serviços chamados básicos, mas que não são: da saúde à urbanização, da eletricidade à educação, da segurança até os alimentos. Deste modo, eu me concentro no livro em como as economias populares funcionam simultaneamente como tecido reprodutivo e produtivo e, como tais, põem em debate as formas concretas de precarização das existências em todos os planos. É por isso que eles conseguem denunciar o nível de desapropriação nos territórios urbanos e suburbanos, que é o que possibilita novas formas de exploração. Por sua vez, isto implica a implantação de um conflito concreto sobre os modos de entender o território como uma nova fábrica social. Com a contraofensiva econômica atual (que anda junto com a contraofensiva militar e a contraofensiva dos fundamentalismos religiosos) vemos uma característica fundamental do neoliberalismo: o aprofundamento da crise da reprodução social que é sustentada por um aumento do trabalho feminizado que substitui as infraestruturas públicas e permanece envolvida na dinâmica da superexploração. A privatização dos serviços públicos ou a restrição de seu alcance significa que essas tarefas (saúde, cuidados, alimentação etc.) devem ser supridas pelas mulheres e os corpos feminizados como tarefa não remunerada e obrigatória. Nesta chave, acredito que se compreende uma agenda de uma ética de cuidado que vocês mencionam: ampliando a noção de cuidado para além do marco familiar e, ao mesmo tempo, transformando-a em uma ferramenta de valorização das resistências vitais.


Você propõe em seu livro, A razão neoliberal, compreender a “captura” das tramas vitais da produção do cotidiano por uma racionalidade neoliberal, e a partir dessa “captura”, como a produção da vida passa a trabalhar para uma “financeirização” da vida. Como podemos pensar essa produção de subjetividades e de economias barrocas?
Verónica Gago – Em A razão neoliberal me propus discutir a noção mesma do neoliberalismo, o modo de historicizá-lo em nossa região, de aprofundar debates teóricos e de traçar genealogias a partir das lutas, dando uma ênfase especial ao que significou na Argentina a crise de 2001. Este interesse surgiu junto com a investigação que realizei durante muitos anos sobre economias populares, as estratégias de trabalho, de comercialização e de politização que daí se desdobram. Daqui também começo a refletir como o neoliberalismo não vem só “desde cima” (governos, corporações e organismos internacionais), mas que se faz persistente justamente porque consegue ler e capturar – ou seja, expropriar – tramas vitais que operam produzindo valor, inventando recursos onde não existem, repondo infraestrutura popular ante a expropriação e criando modos de vida que excedem as fronteiras do capital. Como o neoliberalismo vai metamorfoseando-se em nossos países me parece um ponto-chave, que geralmente fica fora de certas caracterizações mais gerais que “aplicam” o termo chave do neoliberalismo a todo o planeta. Eu me propus entendê-lo e contextualizá-lo a partir de seu desembarque e ensamblagens com situações concretas. Na nossa região, essas situações concretas são os territórios nos quais se cozinhou a revolta popular contra a legitimidade política do neoliberalismo nas crises do início dos anos 2000 a que me referia antes. Aí há uma singularidade porque são essas situações nas quais a exigência popular abre uma temporalidade de revolta que logo se mistura com uma tentativa de reconhecimento e estabilização por cima. São estas “economias barrocas”, como as chamo, que obrigam a pluralizar o neoliberalismo além de suas características mais conhecidas (privatizações,
desregulamentação, mercantilização etc.). Aqui situo claramente uma perspectiva que olha para “baixo” para encontrar aquilo que antagoniza, e que arruína, estraga e/ou confronta essa pretensa hegemonia, sem por isso ter um programa “anticapitalista” em termos puros ou precisos, mas que não abandona a luta “contra” os modos de expropriação do capital. Essa zona do “entre”, heterogênea e promíscua, é o que me interessa colocar em foco. Com a questão financeira isto se exaspera, acelera, volta mais intensa. Na América Latina, entender como a dívida extrai valor das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias populares, das economias camponesas, das economias consideradas historicamente não produtivas, permite captar os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de colonização da reprodução social. Entendo que a partir daqui podemos ver como funcionam hoje
novas formas de extração de valor que exploram trabalhos precários e informais e, ao mesmo tempo, como esses dispositivos de dívida funcionam a partir da moralização das existências desprezadas nas ordens de gênero. Quer dizer, na captura de valor que a dívida pratica, podemos ver uma certa articulação entre reprodução e produção que tem a família heterossexual como núcleo e a superexploração como trama contínua. Com Luci Cavallero temos aprofundado esta investigação fazendo “uma leitura feminista da
dívida”, no calor da organização da greve feminista. Temos trabalhado a articulação entre endividamento e trabalho reprodutivo, e também, como a violência machista se faz ainda mais forte com a feminização da pobreza e a falta de autonomia econômica que o endividamento implica. As companheiras da Criação Humana Editora publicaram, esse texto no Brasil, pelo qual esperamos que se
converta em uma possibilidade de intercâmbios aqui também.


Você propõe que o neoliberalismo se enraíza nas lógicas comunitárias e isso produz uma experiência de ambivalência na produção do cotidiano, porque a lógica comunitária se opõe à organização macroeconômica. O que poderíamos chamar de resistência nesses contextos?
Verónica Gago – Entendo que as dinâmicas comunitárias são um compêndio de saberes, tecnologias e temporalidades históricas que entram em um complexo sistema de relações variáveis com os diversos momentos do capitalismo em suas, também diversas, fases coloniais. Mas, sobretudo, são recursos enormes que se põem em jogo nos protestos, nos movimentos sociais, e também nas formas de economia popular e nas trajetórias migrantes, tanto em sua capacidade de disputar formas de vida com o capitalismo colonial e patriarcal como por abrir espaço em realidades de extrema expropriação e violência. Claro, também há um aproveitamento e uma exploração dessas modalidades comunitárias na medida que se busca compatibilizá-las com as ordens de flexibilidade, precariedade e autogestão da reprodução social como maneira de desresponsabilizar os Estados de certas obrigações. Em todo caso, para pensar essas questões eu trabalho principalmente em diálogo com os textos da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e com os da matemática mexicana Raquel Gutiérrez Aguilar, as quais, para mim, são fundamentais para compreender e situar uma riqueza comunitária que está em permanente tensão entre a exploração e as reinvenções de um horizonte comunitário-popular, para uma multiplicidade de lutas. Esses debates se cruzam com as dinâmicas ambivalentes de subjetivação na governamentalidade neoliberal e, portanto, complexificam as experiências de resistência e insubordinação, tanto nos momentos cotidianos como nos momentos de desdobramento massivo e coletivo. Aqui também me parecem importantes as reflexões das feministas J. K. Gibson-Graham7 e seu trabalho por visibilizar “economias diversas”. Elas o fazem também derivando de Marx uma noção de diferença. A partir daí põem a ênfase em economias que teriam capacidade prefigurativa, antecipatória, em seus desenvolvimentos no presente como não capitalistas. Trata-se de uma perspectiva que põe em relevo o caráter experimental das economias comunitárias que conseguem abrir e descolonizar a imaginação econômica sobre como representamos as alternativas anticapitalistas e como desconstruir a hegemonia do capital a partir dos espaços, aqui e agora. A diferença age para iluminar a realidade efetiva de práticas que negam o capital. Mas, também buscam dar à noção de diferença um caráter processual e experimental. Sua aposta nos permite pensar as economias diversas desde o devenir: elas argumentam que se tem que “cultivar” o desejo e as subjetividades que habitam esses espaços não capitalistas. Deste modo, entrelaçam uma subjetividade que está por vir, mas que por sua vez se constrói com a materialidade do desejo de outra vida no presente. Isso me parece que é importantíssimo para não seguir idealizando um programa “anticapitalista” puro e perfeito, pronto para ser aplicado e, portanto, sujetxs igualmente purxs e já completxs. Para voltar ao início: acredito que exercícios coletivos como o processo político da greve feminista permitem-nos praticar esse caráter processual e experimental do desejo de transformação de nossas resistências.


A informalidade tem crescido e se transformado na América Latina apresentando contornos a cada dia mais complexos. Que lugar a informalidade ocupa na produção dos territórios?
Verónica Gago – A visão dominante sobre a informalidade aponta que se trata de uma economia realizada por pessoas pobres que desenvolvem atividades desorganizadas por fora dos marcos legais (podemos remontar aos anos 1970, quando se produz a incorporação da categoria “economia informal” impulsionada por parte da OIT a partir do trabalho de Keith Hart sobre
o Quênia). Parece-me que toda uma série de conceitos e premissas se encadeiam e devem ser criticados: a informalidade como sinônimo de ilegalidade e as assim chamadas economias de subsistência como sinônimo de pobreza. O colonialismo dessas caracterizações é histórico. Creio que há perspectivas, por outro lado, que buscam localizar a quem se desenvolve nas
economias populares como parte de uma relação social e laboral específica, na medida em que se trata de uma relação na qual a estrutura dos custos (fiscais, de bens e de capital) é assimétrica com a valorização do trabalho. Funda, neste sentido, um tipo de relação social de exploração que devemos entender com mais profundidade. Por exemplo, como a captação do mais trabalho passa pelo consumo, por uma estrutura fiscal regressiva e por um custo financeiro altíssimo no endividamento do qual falávamos antes. São realidades que emergem frente à desestruturação neoliberal do mundo do trabalho assalariado como modelo capaz de incluir as massas em sua maioria urbanas, e frente ao aprofundamento dos regimes laborais predominantemente flexíveis e desprotegidos no interior desse esquema global. Em termos espaciais, aparecem de modo mais generalizado como uma experiência de bairros marginais ou periféricos das metrópoles latino-americanas e terceiromundistas do chamado Sul Global. São nesses territórios e nessas economias onde se produzem novas imagens da conflitividade trabalhista, mas em uma chave de conflitividade social difusa, ampliando os limites da experiência proletária. Isso quer dizer que essas economias reconceitualizam praticamente o que entendemos por trabalho, enquanto sistematizam formas de trabalho que hoje em nosso continente são majoritárias e que não cabem na categoria de marginais simplesmente por não serem assalariadas de modo estrito. Pensando assim, emergem outras geografias do trabalho que permitem entender os processos de valorização do capital como parte de um processo de colonização em direção a novos territórios que se transformam em espaços de conflito. Claro que um novo tipo e escala de violência está profundamente entrelaçada com as economias populares que todo o tempo trabalham na fronteira (e borrando o limite) entre legalidade e ilegalidade. É justamente a regulação e gestão permanente dessas fronteiras que ficam a cargo das novas “forças” paramilitares, paraestatais etc. Essas violências se moldam em uma dimensão territorial específica. A conflitiva ocupação da terra em áreas urbanas e suburbanas dos últimos anos (que aumenta os conflitos nos territórios camponeses de longa data intensificados pela voracidade do agronegócio) tem assumido uma escala de violência e complexidade que está diretamente vinculada à multiplicação de atores que envolve a especulação imobiliária e que assume modalidades que são ao mesmo tempo formal e informal, legal ou ilegal.

Da época do lançamento de A razão neoliberal até hoje o contexto político e econômico mudou: vemos uma ofensiva ultraconservadora na América Latina e no mundo, um processo articulado e sistêmico. Como localizar as elaborações que você traz no livro para ler este momento?
Verónica Gago – A situação no Brasil com o assassinato de Marielle Franco e o triunfo de Bolsonaro tem levado a pergunta sobre o neoliberalismo mais longe: como se está relançando a acumulação neoliberal em aliança com o fascismo com formas extremas de racismo, sexismo e classismo? O neoliberalismo necessita agora aliar-se com forças conservadoras retrógradas porque a desestabilização das autoridades patriarcais põe em risco a própria acumulação do capital. Diríamos assim: o capital é extremamente consciente de sua acumulação orgânica com o colonialismo e o patriarcado para reproduzir-se como relação de obediência. Uma vez que a fábrica e a família heteropatriarcal (mesmo que imaginários) não consigam sustentar disciplinas e uma vez que o controle de segurança é desafiado por formas feministas de gestar a interdependência em épocas de precariedade existencial, a contraofensiva se redobra. Por isso, tem que introduzir em nossa atualidade outra “cena” que abre novas leituras dinâmicas do neoliberalismo. Refiro-me ao movimento feminista que nos últimos anos tem tomado as ruas de modo massivo e radical e que tem transbordado os limites nacionais impulsionando um movimento verdadeiramente internacionalista e cujas ressonâncias fundamentais se enlaçam na América Latina, o melhor: em Abya Yala, traçando novas temporalidades e geografias. Assim, vemos muito claramente por que neoliberalismo e conservadorismo compartilham objetivos estratégicos de normalização. Claro que isso não é uma novidade na América Latina. Aqui, a origem do neoliberalismo é indiscriminadamente violenta. São as ditaduras que vieram reprimir um ciclo de lutas trabalhistas, estudantis e de bairros que marcam seu início. Como princípio do método e como perspectiva desse continente, portanto, é necessário sublinhar a emergência do neoliberalismo como resposta a certas lutas. Por isso, o neoliberalismo se apresenta como um regime de existência do social e um modo do comando político instalado regionalmente, com o massacre estatal e paraestatal da insurgência popular e armada, e consolidado nas décadas seguintes a partir de grandes reformas estruturais, de acordo com a lógica de ajuste de políticas globais. Com isso, quero dizer que a conjunção do neoliberalismo e do fascismo tem, na América Latina, um arquivo-chave. Creio que esse ponto permite, como mencionava, colocar outra perspectiva à ideia de “novidade” de um neoliberalismo que tem deixado sua roupagem liberal e inclusive progressista para conectar sua atualidade com a experiência originária em certas regiões (sem dúvidas, terceiro-mundistas) do mundo.

Esse seminário internacional se propõe a construir uma leitura a partir de quatro preocupações: o extrativismo ampliado, o sistema financeiro, as economias populares e o futuro do trabalho, e apontar caminhos. Quais estratégias são possíveis para essa articulação feminista dentro do contexto que estamos vivendo?
Verónica Gago – O movimento feminista a partir da sua multiplicidade (feminismos populares, villeros, indígenas, comunitários, negros, queer, trans) tem desbloqueado uma articulação por baixo das conflitividades e das lutas. Mas isso não é fácil: hoje assume uma multiplicidade de violências articuladas e incrementadas que irrompem nos corpos e nos lares, nos territórios urbanos e rurais e nos locais de trabalho, nas camas e nas fronteiras. E o faz produzindo um diagnóstico feminista dessa conflitividade – que inclui desapropriações e feminicídios, exploração e endividamento, racismo e abusos – baseado em lutas concretas, o qual conecta e enlaça a dor de cada uma com um corpo-território mais amplo. Como dizia antes: por que o movimento feminista politiza de maneira nova e radical a crise da reprodução social como crises, ao mesmo tempo, civilizatória e da estrutura patriarcal da sociedade, o impulso fascista que se põe em marcha para enfrentá-lo propõe economias da obediência para canalizar a crise. Seja pelo lado dos fundamentalismos religiosos ou pelo lado da construção paranoica de um novo inimigo interno, o que constatamos é uma tentativa de aterrorizar as forças de desestabilização arraigadas em um feminismo que tem ultrapassado as fronteiras e é capaz de produzir um código comum entre lutas diversas. O movimento feminista, tomando também as finanças como um terreno de luta contra o empobrecimento generalizado, pratica uma contrapedagogia a respeito de sua violência e suas formas abstratas de exploração dos corpos e dos territórios. Tudo isso nos dá, outra vez, uma possibilidade mais ampla e complexa de entender o que diagnosticamos da aliança do neoliberalismo com as forças conservadoras que se expressam como violências que tomam os corpos feminizados como novos territórios de conquista. Por isso, é necessário animar a crítica ao neoliberalismo como um gesto feminista sobre a maquinaria
da dívida – como dispositivo generalizado de exploração financeira -, porque é também apontar contra a maquinaria neoliberal da culpabilização, sustentada pela moral heteropatriarcal e pela exploração de nossas forças vitais. O movimento feminista atual repõe a chave antineoliberal como antagonismo. Por isso mesmo reabre a dinâmica que redefine o neoliberalismo “desde baixo” em termos de seu confronto corpo a corpo. A razão neoliberal se opõe hoje a uma potência feminista (que é a sensibilidade, modo de cálculo, estratégia e produção de sentido): isto é, um modo de pensar, fazer, lutar e desejar que ultrapassa a opção imposta entre ser vítima ou empreendedora (ambas opções de subjetivação do catálogo neoliberal). Por isso mesmo, porque se mete na trincheira cotidiana de disputa com o capital e com os modos renovados de exploração e extração de valor, o movimento feminista atual recebe uma contraofensiva feroz: militar, financeira e religiosa. Estamos precisamente nessa luta agora: não nos deixando expropriar pelo neoliberalismo aliado com o fascismo, com dinâmicas feministas que, juntas, se responsabilizam “desde baixo” por
abrir novas possibilidades vitais para todes.

Mônica Vilaça é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, na linha de Trabalho, Políticas Sociais e Desenvolvimento. E-mail: [email protected]

Bárbara Freitas é mestre em Estudos Interdisciplinares em gênero, mulheres e feminismo, PPGNeim – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

VELAR PELO SENTIDO AUSENTE: PESQUISA E TESTEMUNHO, de Paulo Endo 

O percurso do livro “Vocês ainda estão vivos? Fragmentos sobre trauma, memória e herança”, não se revela apenas como pesquisa. Ele evidencia as ocultações e os impossíveis que a produção testemunhal desvela e mostra. Daniel Kveller, desde o início, trabalhou para compreender as marcas do traumático que o convocam, que se impõem na sucessão de um sentido invisível e redobram os vértices que demarcam o silêncio e o impossível. Sim, há o impossível, e ele se expõe como recusa, distância longínqua e oposição. Em busca dos avós sobreviventes, o autor encontra, na verdade, o ponto preciso onde, de algum modo, os perdeu. Nada a revelar, descobrir, conhecer: apenas a experiência compacta que se encerra num silêncio escuro que ninguém sabe onde termina. Este trabalho tem, portanto, o ritmo das coisas imperfeitas, suspeitas e claudicantes. Esmera-se, igualmente, no sentido da originalidade, composição, estratégia formal e realiza-se como feito acadêmico. Mas é bem mais que isso. Revela lentamente os caminhos que sustentaram a pesquisa como a forma possível e pessoal do autor de se imiscuir e se subtrair à sua própria história e se inscrever em seu próprio sintoma que – ele veio a constatar – herdou.


Este trabalho não cedeu a se converter em uma narrativa pessoal. Poderia. Mas buscou e quis ser gerador de um efeito de transmissão do próprio autor, que se reconhece então e também como herdeiro do holocausto. Há momentos em que essa busca pessoal intensíssima poderia se converter em viagens à Polônia, mais entrevistas, mais leituras e feituras de diários e relatos de pessoas que certamente seriam importantes de ouvir e conversar. Talvez numa outra vez, num outro tempo. Cada detalhe se recobre do tempo que autoriza a voz ou a inibe nos lugares secretos do coração. Ali onde enigmas desconhecem suas origens e seus destinos. 

As discussões psicanalíticas, algumas vezes muito esclarecedoras e dialogantes com o seu trabalho de perscrutação pessoal e histórica, outras vezes distantes, perturbadoras de um sentido unívoco, permanecem flutuando em busca da passagem que franqueará o ritmo, a pulsação perdida do tempo da voz e do sentido: o possível testemunho.

A inesquecível tela preta, imagem (im)potente que remete ao escuro da perscrutação, do voltar atrás quando pensamos ir adiante, da poeira dos tempos que escorre de nossas mãos, adquire um sentido interpretativo novo diante do qual essa pesquisa extrai uma de suas mais importantes consequências: no que tange ao que remanesce das catástrofes, tudo está por fazer. Não se trata aqui, evidentemente, apenas da história de seus avós, dos seus pais, de seus parentes, mas da tarefa que o autor se impôs de se inscrever numa história que, sendo tão sua, ainda não lhe pertencia de nenhum modo e nunca lhe foi concedida. Persiste no processo de perscrutação do autor a experiência sobre os impasses da transmissão: o lusco-fusco no qual as palavras ficam ilegíveis, as fotografias que revelam telas pretas e o esclarecimento que não se conclui, nem se realiza.

Seria a busca pelo lugar preciso em que se vislumbra o olhar que cegara seus avós para transformar o autor desse livro em estátua de sal. Transmitir o que fora atravessado pela ocultação e pelo impossível esquecimento endurece a pena e esmaece a tinta no papel. 

É assim que nesse trabalho também se dramatiza uma reivindicação, que em certos momentos ganhou contornos dramáticos, sobre o direito de escolher o que transmitir. Já que o que lhe foi transmitido também excedeu as decisões de seus pais e avós, Daniel conhecera sem saber e sobre isso decidiu escrever um livro, uma dissertação, objeto de transmissão inapagável.

Em dado momento, Daniel descreve uma frase de seu avô diante de suas insistentes perguntas: “me lembro como se fosse hoje”. No ontem da guerra, Daniel, o filho de seu filho, não era possível; mas no amanhã feito hoje, tornara-se um efeito possível do que não era possível, de modo algum, no tempo lembrado da dizimação. Ou seja, seu avô sobreviveu, casou-se, teve filhos e netos. Essa progressão temporal é o próprio evento daquilo que o autor representa e impõe: a presença de um vivo, de uma vida que em algum momento se imaginou impossível. O reencontro entre o sobrevivente e o neto reaparece então como efeito do traumático; como evidência cabal da vida que progrediu, vicejou, prosseguiu, retorna aos avós como buscando refazer o tempo de quando nenhuma vida lhes parecia possível. Não ter nada no mundo, ver-se completamente sozinha e depois ter filhos e netos certamente não fazia parte nem das mais ousadas fantasias de uma adolescente perseguida pelos nazistas.

O autor deste livro seria então, por um lado, a prova da superação (a terceira geração), mas carregaria o enigma do que não foi ultrapassado – a coisa, o trauma, a experiência que se aquece nos caldeirões do que não passa. A pergunta, todas as perguntas de Daniel, revelaram então uma impertinência (não pertencem a ninguém), uma ousadia, talvez: Como ousa você – filho do meu filho – em algum momento dado como impossível de existir, retornar agora reivindicando a lembrança de um tempo quando nenhum futuro podia ser imaginado?

Como numa visita a um memorial de qualquer catástrofe, a leitura deste livro revelará impotência. Nada está lá, por isso teremos de imaginar. Mas poderemos fazê-lo? Temos o direito de fazê-lo onde tudo foi limbo psíquico e suspensão espaço-temporal? Caminhar a esmo num lugar que não existe mais e cujo horror não pode e não deve ser imaginado nos revela fantasmas de uma impossível representação. Transmutam-se os passantes em rumores e os escuros em impossíveis deambulando cabisbaixos, impotentes ante a própria história que já não podem contar. Num memorial, os visitantes se convertem em quase afronta, impropriedade e evidência. Os passantes e turistas são o que jamais pôde ser imaginado, ocupando um lugar e um tempo que existe agora revelan- do dois impossíveis: o de imaginarmos o que se passou com os prisioneiros e o que, para os prisioneiros dos campos, era impossível imaginar, um campo repleto de seres viventes, livres e que ocupam aqueles espaços com curiosidade desatenta.

A “insistência desrespeitosa” do autor, portanto, traria a marca de uma impossibilidade de escutar ante alguém que não pode ou não quer dizer e, nesse caso, diferente do desrespeito, se trataria de uma impertinência. Um desejo de escuta que não pode ser reconhecido por aqueles que não desejam falar. 

Quando o autor se detém sobre o conceito de desmentido (verleugnung), revela discussões importantes retomadas nos estudos atuais sobre a perversão. Se na perversão há uma ambição de inventar um sexo, reinventar as regras do gozo, há ainda aí uma impotência que se depara com a impossibilidade de inventar o próprio gozo do qual o sujeito permaneceu refém. São as regras compartilhadas de como, quando e com quem se goza, o que impossibilita que o gozo seja mero efeito de violência e coito, como nos bichos. A perversão, nesse sentido, é a permanente tentativa de um gozar sem regras (ou burlando regras); a despeito de todas as regras que o perverso pode inventar para burlar as regras. O supremo objeto da perversão é gozar alienando-se do consentir de outrem, mas jamais com outrem: passagem só franqueada ao sujeito castrado. A experiência do outro fragmentado encontra aqui sua máxima expressão, isso porque a desmetaforização na posição perversa opera por um efeito metonímico, contudo sem metáfora possível. A parte pelo todo, mas a parte se fragmenta do todo e nela não se forja qualquer representação. 

“Matar judeus, mas preservar meus amigos judeus”, apresentada como prova de que não se é antissemita, é uma armadilha que se processa por duas operações. A primeira: amigos judeus não são parte dos judeus, e judeus não são meus amigos. A frase “tenho amigos judeus”, como contraprova do antissemitismo, significa apenas: não mato meus amigos. O amigo aqui anula os judeus. Como gozar com uma peça de roupa de alguém anula outrem como sujeito de desejo no fetichismo. É uma sinédoque sem metáfora. 

Daniel Kveller se apresenta como efeito de muitas clivagens. Entre alguém que sabe tudo, mas não pode dizer nada e como alguém que diz tudo, ou muito, sem saber de nada (o Pesquisador). Perdura aí o ostracismo que obscurece, esconde e protege.

Noemi Jaffe, escritora brasileira que fez seu percurso a Auschwitz com a filha para reencontrar a mãe que perdera, soubera e ignorara, diz: “quem nunca esteve no horror só pode fazer dramas”. Só podemos emular o que é, sobretudo, inimaginável empurrando o Real com as mãos. Real que força a passagem entre a experiência que encontrou morada no sintoma, assumindo, desse modo, um caráter sempiterno e para sempre, de algum modo, silencioso sob o peso das pedras. 

Pensamos: o Real é a mãe-impossível de fato, mas não apenas terrorífica – é também condição da palavra, do simbólico, do psíquico. Talvez isso nos ajude a pensar no Real do horror como aquilo que deve ser mantido a uma certa distância – como a mãe de fato ou como mãenancial. Por isso falamos que imensidões se criam em torno do trauma – talvez como um mãenancial traumático. Testemunhos, literatura, filmes, peças, músicas, dissertações, teses, memoriais, leis, declarações universais, cortes internacionais, direitos humanos etc. Tudo para poder bordear o impossível de dizer dizendo. 

De todo modo, fazer frente ao Real do horror e da catástrofe é confrontá-lo ou enfrentá-lo juntos. É um caminho a qual tantos se lançaram diante da espoliação, da violência, das catástrofes etc. Podemos fazê-lo, mas teremos de fazê-lo juntos. Sozinhos – como no terrível e belo relato da avó Miriam – nada foi e nem será possível. O juntos é generativo do confabular, do compreender, do considerar. Considerar (comsidere) é olhar juntos o impossível das estrelas, assim como contemplar (comtemplare) é olhar juntos o impossível do céu. 

Confrontar é também um modo de repartir o que na coisa é excesso, repartindo o que deve ser levado, guardado e o que deve ser largado. Aquilo que recusa toda simbolização pode também ser largado ao seu próprio imerecimento e à sua própria indiferença. Os que testemunham, ainda que seja uma única vez, talvez nos ensinem a fazê-lo. 

Bela coragem a que separou e reuniu Daniel, seus pais e seus avós num livro que sobreviverá ao tempo do extermínio de coisas, pessoas e palavras, juntando aqueles que demoraram a se (re)conhecer, apartados por um tempo que a duração saberá aproximar.

Paulo Endo é Psicanalista, professor e pesquisador no Instituto de Psicologia, na Pós-Graduação de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades e no Instituto de Estudos Avançados na Universidade de São Paulo. Coordenador do Grupo de Pesquisas em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados do IEA-USP. Membro da Memory Studies Association (Copenhagen), Unit Research on Dreams, Memory and Imagination Studies (Gdànsk) e dos Territorios Clínicos de la Memoria (Argentina). Vencedor do prêmio Jabuti em 2006 com a obra A Violência no Coração da Cidade: Um Estudo Psicanalítico. Autor de dezenas de artigos, capítulos e livros em publicações dentro e fora do Brasil. 

O livro “Vocês ainda estão vivos? Fragmentos sobre trauma, memória e herança”, do psicanalista Daniel Kveller, está disponível aqui!

“Escrever como escavando um túnel em uma mina. Produzir textos que iluminam a cena, determinam tomadas de posição e, em seguida, como um disparo sinalizador ou como um coquetel molotov, dissolvam-se em seus próprios efeitos sem deixar rastro”, por Sandro Chignola

Escrever sobre Foucault nos expõe a um duplo risco. Por um lado, fazer dele um autor. Por outro, dissolvê-lo, extrapolando muito facilmente seus trabalhos-fórmulas, suas categorias ou seus conceitos para reutilizá-los em outros contextos e para outros fins. Sabemos que Foucault, muito relutante à primeira opção – aquela que lhe teria polido um perfil, reconstruído uma coerência, ignorado os bloqueios ou omitido suas recolocações para consagrá-lo como um capítulo da história da filosofia – esperava para seus textos preferencialmente a segunda. Escrever como escavando um túnel em uma mina. Produzir textos que iluminam a cena, determinam tomadas de posição e, em seguida, como um disparo sinalizador ou como um coquetel molotov, dissolvam-se em seus próprios efeitos sem deixar rastro. Esta segunda opção é, talvez, a que mais se sedimentou desde o ponto de vista das revisões, dos deslocamentos, das intersecções das análises foucautianas com outros saberes – não exclusivamente filosóficos – e com as problematizações radicais do estatuto das disciplinas. Todavia, essa não é a única ou, ao menos para mim, talvez não seja a mais relevante.

Estudar Foucault nos seus textos não significa atribuí-lo novamente à filosofia. Significa mais precisamente repensar a própria filosofia, a consistência e a pretensa autonomia dos seus arquivos, os limites entre os quais ela é circunscrita enquanto saber universitário para tentar forçá-los e pô-los em crise. Fazer isso não significa, por certo, abandonar a filosofia. Ao contrário, o que se libera, deste modo, é um movimento de caminhada e retorno entre o seu interior – suas séries autorais, seu cânone, seus estilos – e o seu exterior; um exterior feito de processos, práticas, conflitos sobre os quais se medem – no caso em que a filosofia saiba aceitar o desafio – seu ritmo e sua capacidade de resistência. Foucault, sob essa perspectiva, pode ser estudado como filósofo e, simultaneamente, como desestabilizador radical do estatuto da filosofia como saber. Oferece-nos um exemplo, um dos mais radicais, de uma autêntica política da filosofia. Uma política da filosofia capaz de romper a inércia de uma tradição, a da filosofia política em particular, e a separação entre a práxis e a teoria sobre a qual ela reproduz seu disciplinamento específico.

Os cursos que Foucault ministrou no Collège de France, cujas edições recentemente se encerraram, representam uma ocasião particularmente oportuna para levar adiante esta operação. Uma operação que Foucault realizou pessoalmente, utilizando os cursos como um laboratório onde colocava à prova seus próprios argumentos, modificando-os, retomando-os ou abandonando-os, tornando possível utilizá-los, em um segundo momento, em seguida, como portões de acesso a uma produção – aquela de Foucault – marcada por uma inquietude constante.

O mesmo se pode dizer das entrevistas, resenhas, intervenções, mesas redondas etc. incluídas nos Dits et Écrits, que, conjuntamente aos cursos no Collège de France, constituem uma parte significativa dos textos sobre os quais me baseei na redação destes seis seminários. Longe de representar momentos pouco relevantes de uma produção contingente e ocasional com relação aos seus grandes livros publicados – uma conclusão que seria possível extrair unicamente aplicando a Foucault um estigma autoral – estas intervenções condensam o significado geral de um empenho intelectual que se desenvolve inteiramente sob o signo da atualidade. Trata-se de tomada de posição que, em muitos casos, indicam a direção na qual o seu trabalho se movimenta e que se oferecem como portas de acesso ou como vias particularmente úteis ao laboratório foucaultiano.

“Portas de acesso”, “vias” ou “entradas”: não uso estes termos por acaso. Estes seminários não oferecem uma interpretação unitária ou definitiva de Foucault. Não o fazem devido aos motivos apontados na abertura. Representam trajetórias, caminhos, entrecruzamentos da produção de Foucault que partem de pontos de vista específicos e unilaterais – jamais casuais, com certeza –, e que buscam, ao menos para quem escreve, problematizar não mais – e não somente – uma obra, mas o estatuto e a discursividade dos saberes aos quais ela está ligada, ampliando seus efeitos.

O título escolhido para este volume pretende trazer à temática exatamente este movimento. Os seis seminários que apresento ao leitor não se concebem como capítulos de um livro cujo desenvolvimento avança progressivamente do primeiro ao último, mas como percursos dotados cada um de sua própria autonomia. As eventuais repetições e insistências que poderiam cansar aqueles que se decidam a percorrê-los em série não aparecerão àqueles que, do contrário, decidam ler, como é evidentemente possível ocorrer, cada um em si mesmo.

Os textos coletados neste volume foram escritos por ocasiões de seminários ou de intervenções pelas quais fui convidado na Itália ou no exterior. Entre eles, quero recordar aqueles particularmente vivazes pelas discussões que se seguiram: na École Normale Supérieure de Lyon, na Universidad Nacional de San Martin (Buenos Aires) e na Universidad de Córdoba na Argentina, na Université de Toulouse-Le Mirail, na Università di Palermo, em Roma-La Sapienza, Bologna e Trento, na Scuola di dottorato in Filosofia e na Scuola Galileiana da Università di Padova. Agradeço novamente a todas e a todos aqueles que os promoveram. Com exceção ao texto até agora inédito sobre Foucault e Marx, publicado aqui como capítulo segundo, “Fábricas do corpo”, os demais já foram publicados com título e em versões diferente. O primeiro, “O impossível do soberano. Governamentalidade e Liberalismo”, aqui quase inteiramente reescrito, foi incluído em S. Chignola (editor), Gorvernare la vita. Un seminario sui Corsi di Michel Foucault al Collège de France (1977-1979), Ombre corte, Verona 2006; o terceiro, “A política dos governados. Governamentalidade, forma de vida, subjetivação”, amplamente reelaborado para esta ocasião, saiu originalmente, em espanhol, na revista argentina Deus Mortalis, 2010; o quarto, “Koinonikon zoon. Os estoicos e a outra modernidade”, o único não diretamente sobre Foucault, mas escrito a partir dos problemas abertos pela leitura de “A Hermenêutica do Sujeito”, encontra-se incluído na compilação Concordia discors. Studi in onore di Giuseppe Duso, Padova University Press, Padova 2012; o quinto, “Phantasiebildern/Histoire fiction: Weber, Foucault”, foi publicado em P. Cesaroni e S. Chignola (editores), La forza del vero. Un seminario sui corsi di Michel Foucault al Collège de France (1981-1984), Ombre Corte, Verona 2013; o sexto, “A Coragem da verdade: parrhésia e crítica saiu quase simultaneamente a este livro, em Politica e Religione. Annuario di teologia política.

Muitas e muitos têm contribuído para a formação destes textos, para reescrevê-los, para corrigi-los e para apurar as interpretações que neles se vêm definindo. Entre eles, meu agradecimento particular a Emmanuel Biset, Claudio Cavallari, Pierpaolo Cesaroni, Edgardo Castro, Girolamo De Michele, Jorge Dotti, Bruno Karsenti, Sandro Mezzadra, Toni Negri, Michele Nicoletti, Judith Revel, Michel Senellart, Paolo Slongo, Lorenzo Rustighi, Giulia Valpione, Adelino Zanini.

O livro “Foucault além de Foucault: uma política da filosofia”, de Sandro Chignola, está disponível. Clique aqui para adquirir!

Fim do anonimato digital reduziria danos causados pelo discurso de ódio, por Christian Dunker

Texto originalmente publicado no Tilt Uol e republicado no Blog da Criação Humana.

O ódio é um afeto e como tal tem direito a plena cidadania entre outros afetos, emoções e sentimentos.

Daí que seja vã e, no limite, perniciosa toda tentativa de eliminar afetos, principalmente quando olhamos para nossa história de perseguições a afetos de extração sexual, ou aos afetos intensificados, tais como:

  • A soberba (orgulho excessivo);
  • A avareza (apego excessivo a bens);
  • A inveja (geralmente traduzida pelo desejo de impor tristeza ao outro);
  • A gula (desejo exagerado de comer ou beber);
  • A luxúria (apego demasiado aos prazeres);
  • E finalmente a ira, ou seja, ódio furioso, que ultrapassa certos limites, geralmente traduzidos pela ofensa, desrespeito, agressão ou violência.
  • Vê-se assim que os pecados chamados capitais são apenas uma indicação que dá continuidade à concepção aristotélica de que a virtude está entre dois vícios, ou dois exageros.

Pouco se discute, mas nesta mesma linha se poderia inferir a existência de outros pecados capitais, não do exagero, mas de inibição ou da falta de intensidade.

  • A falta de autorrespeito, ou de amor-próprio, na acepção de Rousseau é o oposto exagerado do orgulho e da vaidade.
  • O desperdício é a falta de cuidado com os bens.
  • A inveja “boa” apareceria quando entendemos que a inveja é apenas um outro nome para o desejo, o desejo de avançar rumo a algo ou alguém em que localizamos nossos exemplos, heróis e ideais.
  • A anedonia, principal sintoma de depressão, nada mais é do que o excesso da falta de luxúria.
  • Assim como a anorexia pode ser um nome para a falta de gula.


Mas como chamar então a pessoa que tem um déficit crônico da capacidade de experimentar ódio?

Sangue de barata, complacente ou leniente não são de fato boas opções porque elas podem indicar apenas a incapacidade de orientar seu ódio para o outro, cujo sinônimo possível seria a covardia.

Mas isso não é verdade, nem na semântica da palavra nem na lógica das relações.

É certo que nossa moralidade contemporânea lida muito melhor com os excessos sexuais do que, por exemplo, a exageração do ódio e da hostilidade. Disso somos levados à existência de uma cultura crescente do que Lacan chamava de amódio (hainamoration), pela qual o amor converte-se em ódio justificado, geralmente combinado com identificações coletivas, mas também com combinações ligadas ao sexo, como no clássico “bom uso erótico da cólera”.

Quero crer que isso acontece por um motivo genérico que chamo de “doping de afetos”, ou seja, o ódio é um afeto que desperta certos efeitos sobre o vivente: ficamos mais presentes, mais atentos, mais dispostos para a ação e mais concentrados quando estamos com ódio.

Pense naquele sujeito “possuído” por um videogame de ação, envolvendo tiros, assaltos e morticínios e como eles nos envolvem, como se estivéssemos vivendo um thriller de ação e combate.

Ora, o componente “motivacional” do ódio como agressividade transformada foi descoberto há muito tempo pelos departamentos de recursos humanos, particularmente sensíveis à noção de “capital humano”.

Ou seja, criar um clima de ódio, inclusive de ódio contra o chefe, contra a concorrência, contra seu colega de baia, ódio contra quem quer tirar seu emprego, se você não performar direito, que pode te avaliar mal na próxima reunião de feedback, que pode te envolver numa falsa aliança no próximo BBB gerencial, tudo isso “é do jogo” e foi naturalizado como receita básica onde mais ódio equivale a mais performance, tal como teria sido imortalizado por Gordon Geeko em “Wall Street” (1987) e sua sequência “Wall Street – O Dinheiro Nunca Dorme” (2010), ambos dirigidos por Oliver Stone.

Lembremos que Michael Douglas era o protagonista obsceno do filme cujo subtítulo é “Money Never Sleeps” (“O Dinheiro Nunca Dorme”), alusão que corrobora a ideia de que indução de ódio e principalmente a autoindução de ódio permite jornadas mais longas de dedicação, sem cansaço, como se fossemos retirando forças que não sabemos direito de onde elas emanam, quando nos consideramos em meio a uma guerra, batalha ou luta. O contraponto aqui é naturalmente “Clube da Luta”, onde Edward Norton torna-se dependente de um curioso jogo onírico de auto-hetero-agressões.

Se o que chamamos mais recentemente de “discurso de ódio” não se reduz a eventos agressivos de externalização crítica, instrumental ou errática de ódio, mas a um tipo específico de dependência, na qual prazer e dopagem concorrem para criar protagonismos, ainda que imaginários, podemos supor a existência de estratégias de redução de danos, análogas ao que as melhores práticas consensuadas para reduzir efeitos nocivos das dependências.

Se a comparação é aceitável, isso sugere que no discurso de ódio ocorre uma espécie de perda de modulação social deste afeto, uma desregulação do seu sistema de mediações.

Isso pode ocorrer em função de um efeito digital muito simples: monetização.

Se o ódio engaja, coletiviza e intensifica, ele obviamente se traduzirá pela elevação do nível de atratividade digital.

Claro que a violência ostensiva e obscena causará repulsa a quem for apresentado a ela, mas isso significa apenas que a dosagem foi elevada demais para o começo do percurso.

Disso se pode ver como os algoritmos fazem sua parte na reposição dos afetos. Neste quesito, o ódio e o sexo se diferenciam dos outros cinco “afetos cardeais”, pois eles escalam de um gradiente incomparável com, digamos, outros hits parade digitais como: causação de inveja exibicionista, sorvete ostentação, orgulho humilhação ou consumo padrão devastação.

Por isso a luta contra o discurso de ódio guarda proximidades com as estratégias públicas para enfrentamento de dependências em geral, não apenas as químicas, mas pensemos nas dependências de jogo (eletrônico ou não), de pornografia (digital ou não) e de reconhecimento do outro (narcísica ou não).

Ora, esta fissura (craving), causada pelo ódio, escala na razão direta em que o outro se “inumaniza”, em uma pessoa-tipo, e na razão inversa pela qual o próprio sujeito se empodera pelo anonimato.

É a figura emergente do “ninguém”, equivalente do “todo-mundo” que age sob perfil falso, nome fantasia ou subterfúgio de responsabilidade ou implicação.

Por isso também em meio ao ataque de ódio aquele que revela aspectos pessoais do ofensor —sua família, suas postagens nada obsequiosas, seu local de trabalho ou sua comunidade de referência— costuma ser vigorosamente protegido pela turba.

Por isso responder ao discurso de ódio, especialmente quando a reação é “uma oitava abaixo” ou “alguns gramas de parcimônia a menos” costuma despertar ainda mais raiva.

É o caso também do pedido de desculpas que será interpretado com tentativa de “passar o pano” e neutralizar a verdadeira intenção do discurso, ou seja, gozar através do ódio.

Como se vê, o discurso de ódio é uma forma de “sair de si” e deixar de responder por suas próprias palavras. Elas se tornam impróprias, impessoais e logo inconsequentes.

Mas o pior é que o anonimato suspende o circuito de regulação de afetos, pelos quais meço minhas palavras, pondero meu tom ou avalio as implicações do que digo. Afinal é isso que define um discurso e o diferencia da simples fala, alocução ou pronunciamento, a saber, o efeito de retorno do que se diz sobre aquele que fala em uma generalização tendente ao esquecimento pelo anonimato.

Ser autor é condição para possuir autoridade, logo poder perdê-la.

Daí que o antídoto que coloco aqui em discussão chame-se autoria ou perda do anonimato.

Aquele que usa o anonimato, tolerado largamente pelas grandes companhias digitais, facultando e estimulando que menores de idade participem sob nomes falsos, premiando perfis falsos para agredir outros, possa perder sua condição de anonimato, lhe sendo facultado participar do debate público, presumido em certas configurações digitais apenas e tão somente com seu nome próprio.

Ninguém está sendo propriamente punido por usar o próprio nome na esfera pública, mas nos acostumamos de tal maneira com as facilidades presumidas do anonimato digital que nos esquecemos de seus efeitos deletérios, psíquicos e sociais.