Despertar feminista: sobre sonhos e política

Na cidade de Porto Alegre (RS), em 08 de março de 2023 (8M), o dia das mulheres foi marcado por manifestações políticas com ações de visibilidade, resistência, luta contra a violência de gênero e pelos direitos dos corpos femininos. Nessa ocasião, como parte de uma pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) – Eixo 3, foram recolhidos sonhos de mulheres. Entre recortes de sonhos noturnos, muitas delas narraram fragmentos de sonhos diurnos, já outras disseram que não têm tempo para sonhar – questão que, à nossa escuta, é de importante relevância. Afinal, quais futuros são possíveis sem o ensejo de sonhos no presente?

Desde a publicação, em 1900, de A Interpretação dos Sonhos (obra fundadora da psicanálise), Freud sustentou que os sonhos se apresentam fundamentalmente a partir de imagens e que são a realização disfarçada de um desejo reprimido. Ao longo do tempo, esse debate sobre os sonhos e sua relação com a vida psíquica foi tomando novas proporções e, através de um conjunto de pesquisas universitárias sobre os sonhos na atualidade, por volta de 2019 se começou a pensá-los articulando inconsciente, cultura e os acontecimentos do mundo social que trazem a marca da história e de ações políticas.

Resulta dessa produção acadêmica o conceito de oniropolítica, termo que orienta a proposta de pensar a função coletiva do sonho a partir dos restos diurnos que neles se manifestam para interrogar as formas políticas e sociais contemporâneas, bem como para resgatar a dimensão do sujeito e do desejo na vida em vigília.

Dentre os trabalhos já publicados sobre o tema, há o livro “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia”, organizado por Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski, publicado em 2021 pela editora Autêntica. Estas são pesquisas que não se servem apenas da psicanálise e por isso contam com outros campos do conhecimento, como, por exemplo, a teoria de Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão que também se interessou pelo tema do sonho e pela sua dimensão de análise social. 

Nessa perspectiva, o que nos parece mais relevante é a problematização acerca do que os sonhos podem dizer sobre a vida diurna e de como eles podem nos inspirar com saídas inventivas para os impasses de nossa época a partir das demandas que durante o sonho se apresentam. Ou seja, podem os sonhos ser uma tentativa de resposta subjetiva também às questões que vivemos em vigília?

Nas manifestações sociopolíticas do 8M, entre as narrativas oníricas relatadas pelas mulheres, elegemos o relato de uma sonhadora que trouxe fragmentos de vários sonhos: (1.º) “Estava em um aniversário e minha avó, já morta, estava dando conselhos”; (2.º) “Estou fugindo de um perseguidor que é sempre um homem ou policial. O sonho é recorrente e eu consigo fugir porque sou ninja”; (3.º) “Sonho bastante com casas”; e (4.º) “Estou ‘trepando’, seja com homem ou mulher. Devo ter esses sonhos porque faz tempo que não transo”.

Se pensarmos esses fragmentos de sonhos como um saber não consciente sobre os fenômenos sociais de uma época e se considerarmos que eles têm a estrutura de um despertar, tal como propõe Walter Benjamin, como podemos aproximar o tema dos sonhos e o feminismo para então pensar uma perspectiva feminista para a oniropolítica? Os fragmentos dos sonhos de mulheres engajadas em movimentos sociais e políticos nos permitem criar uma outra gramática sobre o lugar dos corpos femininos no laço social contemporâneo? 

Jacques Lacan, psicanalista expoente da obra freudiana, formalizou uma teoria na qual evidenciou que o laço social, ou seja, aquilo que produz enlace entre os sujeitos, é designado como discurso. Nesse sentido, os discursos são aparelhos de linguagem que organizam modos de relacionamento interpessoal – operação que estabelece, por exemplo, lugares de fala, visibilidade, poder e hierarquização, tal como podemos observar no discurso patriarcal ou no discurso colonizador. Em vista disso, se entendermos o feminismo como a invenção política de uma contraexperiência ao discurso dominante ou, ainda, a invenção de outra modalidade de laço social possível por meio da desmontagem da engrenagem patriarcal, como propõe a filósofa feminista Márcia Tiburi, não poderiam os sonhos sinalizar os elementos que desalinham tal engrenagem?

Acerca do relato da sonhadora no 8M e, seguindo a metodologia benjaminiana na qual o sentido do sonho é forjado a partir da construção de uma constelação que aproxima fragmentos oníricos, podemos pensar que, no relato da sonhadora, iluminam-se os seguintes pontos: (1.º) a transmissão geracional de um saber compartilhado entre mulheres; (2.º) o sentimento de insegurança em relação ao corpo masculino ou àquele que representa a instância de lei ou coerção – a mulher ninja que não se deixa capturar; (3.º) a presença do âmbito doméstico como território majoritariamente feminino, historicamente esvaziado de sentido político; e (4.º) a relação sexual para além da heteronormatividade. Não são essas as questões que borbulham no discurso social de nossa época? Não são questões produtoras dos afetos mais ambivalentes na sociedade atual? Afetos que invocam tanto fenômenos totalitários e estruturas de violência quanto convocam a necessidade de novas formas de saber-fazer política, isto é, de fazer valer a alteridade a fim de ser possível a vida com o outro-diferente. 

Neste breve texto que apresentamos aos leitores, buscamos articular a possibilidade de uma política que não apenas aponte para o que não podemos aceitar, mas que possa também nos inspirar com novos caminhos e alternativas. Partindo da psicanálise e da filosofia, optamos por pensar uma oniropolítica feminista, na medida em que ela, ao articular a dimensão do sujeito, do desejo e da política, abre espaço para pensarmos (e, quem sabe, construirmos) outro mundo possível, onde as marcas do patriarcado, do colonialismo e do autoritarismo possam ser transformadas em outras possibilidades de partilha do campo político, mais emancipatórias, de modo que não retornem constantemente na forma de violência.

Cláudia Maria Perrone é professora doutora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS. Coordenadora do NUPPEC/Eixo 3: Psicanálise, Educação, Intervenções Sociopolíticas e Teoria Crítica.
Juliana Martins Costa Rancich é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3.
Flávia Tridapalli Buechler é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC/Eixo 3.
Eduardo Bayon Britz tem bacharelado em Ciências Sociais, é psicólogo e mestrando do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisador do NUPPEC/Eixo 3.
Gabriela Gomes da Silva é psicanalista, psicóloga e mestranda do PPG de Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS e pesquisadora do NUPPEC – Eixo 3. 

*O texto foi originalmente publicado no Jornal da Universidade – UFRGS e republicado no Blog da Criação Humana.

As 4 lições de Psicanálise, por Christian Dunker

O professor Christian Dunker foi convidado pelo Instituto Norberto Bobbio para contar 4 lições de psicanálise. A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.

As “Cinco Lições de Psicanálise” constituem um texto com uma reunião de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 -1939) em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts. Nessa conferência, Freud busca apresentar, para um grupo não especializado, os principais conceitos da teoria que desenvolveu neste período. Inspirada por essa ideia, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou no dia 9 de janeiro de 2023, com o Prof. Christian Dunker (USP)  sobre suas próprias lições de psicanálise.

Lição número 1

O texto ” Cinco Lições de Psicanálise” foi a porta de entrada pela qual eu comecei a ler psicanálise. Inclusive, muita gente que estuda esse assunto começou por esse trabalho muito popular. É interessante como ele possui vários ingredientes que falam sobre uma psicanálise para o nosso tempo, à altura da nossa subjetividade. Isso é importante porque há formas de psicanálise anacrônicas, que operam sobre parâmetros definidos no século XIX ou que confirmam preconceitos e moralidades já obsoletas. Mas vamos lembrar que essa conferência aconteceu nos Estados Unidos, então para que Freud pudesse contar suas lições ele saiu de seu lugar natural, a cidade de Vienna. 

Isso é significativo porque, no fundo, Freud precisou falar com o outro em uma língua que não dominava. De fato, ele se sentia meio estranho quando chegou no porto de Boston e se deparou com uma banda tocando para receber o “grande pensador autríaco”. Reza a lenda que ele comentou com Carl Jung e com Sándor Ferenczi: “os americanos estão pensando que vamos salvar o mundo, mas estão enganados. Estamos aqui para trazer algo que vai desmontar e tornar a coisa mais crítica, mais conflitiva”. 

A minha primeira lição está relacionada com esse contexto. Para estudar psicanálise temos que gostar do estrangeiro, do outro e da sua língua. Ou melhor, é preciso falar a língua do outro, ser capaz de simpatizar com  formas de vida diversas e sair de si mesmo. Aquele que acha que vai aumentar o tamanho do seu eu se restringindo a si está agindo errado. Na verdade, essa pessoa vai criar uma espécie de regime. A psicanálise vai te convidar ao encontro com seus outros.

Lição número 2

A segunda lição demonstra a importância da psicanálise no mundo em que vivemos pois, no fundo, ela é uma experiência metódica, controlada, abrigada, protegida de crise auto induzida. Você pode até pensar que está tão bem, mas o processo psicanalítico vai colocar em cheque os seus amores, seus ídolos, suas identificações, suas fantasias e tudo o que você acha a seu respeito. E se tudo der certo, no que você vai se transformar? Em um viajante que não precisa mais de malas e  sacolas, pois não precisa levar consigo tudo para se garantir e se defender do outro na viagem da vida. É importante reduzir essa bagagem, esse conjunto de coisas que a gente carrega nas costas e que cansam a gente: as decepções, frustrações e  expectativas. Entender que essas coisas fazem parte é o que você vai ganhar entrando em crise. 

Mas, de brinde, vem outra facilidade, que é diminuir o custo subjetivo para viver. Assim, podemos nos perguntar: quanto o outro sofre para fazer aquilo que faz tecnicamente tão bem quanto você? Quando o outro se relaciona com algo com uma espécie de andamento opressivo, quando ele se joga em uma situação se demitindo do seu próprio desejo? Tudo isso implica em um custo subjetivo mais alto do que precisaria. E o custo subjetivo já é alto por excelência porque a vida não é exatamente um passeio de flores. Para aquele que é mais neurótico, viver equivale a uma viagem cheia de malas, como se abelhas picassem o tempo inteiro sua cabeça, dizendo: “você é inadequado, você não fez o que deveria, você não está a altura de si mesmo, etc.”. 

Portanto, nessas condições, para continuar caminhando o custo é muito alto. Para ir em frente, o custo subjetivo das suas escolhas, dos seus fracassos e dos seus desencontros é muito alto. A psicanálise, ao criar uma crise controlada, ensina que a gente pode viver em crise; tanta segurança já não é mais necessária. Em geral, todos nós temos nossos temores, que nos chantageiam mais do que é preciso. Costumamos dizer que o neurótico é um pouco covarde, não covarde no sentido heróico, mas consigo próprio porque a vida implica tomadas de decisões que muitas vezes são incertas mesmo. 

Lição número 3

Nas conferências de Freud, em que leciona suas Lições, em um dado momento ele utiliza uma boa metáfora. Ele está em um auditório cheio de gente falando, quando aparece alguém que começa a bater na porta querendo entrar. Essa pessoa começa a fazer perguntas e interromper a todo instante o orador, tornando-se desagradável. O que você faz? Você expulsa ele, põe ele para fora, e lá ele atrapalha ainda mais. São os sintomas. O palestrante é o Eu, os outros são o auditório e esse alienígena representa nossos desejos, aquilo que a gente nega em nós mesmos. 

Nessa metáfora, Freud diz que o neurótico adora um condomínio, ou seja, os lugares onde só tem gente igual a ele. Mas talvez seja melhor admitir esse estrangeiro dentro, talvez seja melhor baixar o muro e abrir as portas porque a conferência pode ser muito mais interessante com a presença do outro. Pelo menos, essa é uma opção melhor do que ficar brigando com aquilo que quer entrar. 

 Ou seja, não expulse pela janela da frente aquilo que vai entrar pela janela de trás. Não ache que a vida é um método pelo qual você vai encontrar ordem. Não é só obedecer para resolver tudo. A psicanálise vai se opor a essa vida feita de espelhos, que sugere que  todo mundo é como você.

 

Lição número 4

Quando chegou nos Estados Unidos, Freud precisou falar a língua do outro. Isso é interessante porque ele tem uma mente muito empática, capaz de utilizar a linguagem para se comunicar. No mundo de hoje a gente desaprendeu a escutar, a escutar aquele que está batendo na nossa porta querendo entrar. Mais ainda, desaprendemos a escutar nós mesmos. 

Então a psicanálise ensina a capacidade de escutar, o que costuma ser um grande negócio para advogados. Todos os advogados precisam escutar seus clientes antes e durante sua estadia na justiça reparatória, na medição ou na arbitragem. É notável como o direito se aproxima de uma prática de escuta de conflito. E se você acha que será possível ter acesso aos conflitos do outro sem jamais interferir nos seus, é melhor que o advogado troque de profissão. Portanto, o trabalho de formação para a escuta é algo que está presente em Freud e, na minha opinião, é  absolutamente faltante e desejável na nossa situação contemporânea.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade, O palhaço e o Psicanalista e Psicanálise e Saúde Mental, disponível aqui.

Não pensem que é preciso ser triste para ser um militante: cartas para uma vida não fascista

foto do livro Modulações militantes por uma vida não fascista no Rio de Janeiro.

Em 1977, Michel Foucault escreveu o prefácio para a edição estadunidense de O Anti-Édipo – livro de Gilles Deleuze e Felix Guattari cuja primeira publicação se deu em 1972 na França. Neste texto, Foucault indica que a obra que prefaciava realizara algo muito importante: a montagem de uma nova maneira de pensar e de viver contrária a todas as formas de fascismo. Não é por outro motivo que o título que dá a seu pequeno texto – em uma estranha homenagem a São Francisco de Sales e sua Introdução à vida devota – é justamente Introdução à vida não fascista.

Ao longo de quatro páginas, acompanhamos a genealogia de um duplo movimento de demarcação de uma certa ética sob a qual se poderia enunciar a verdade sobre si mesmo e sua época. Demarcação de algumas balizas políticas e intelectuais que, na Europa do período entre os anos de 1945 e 1965, pregavam que era preciso ser unha e carne com Karl Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Sigmund Freud e assujeitar a linguagem aos sistemas de signos e significantes; dilatação de um campo experiencial onde já não se podia vislumbrar uma separação entre desejo, subjetividade e política: movimentos que, a partir de 1965, liberaram as lutas políticas do modelo prescrito pela tradição marxista e as tecnologias do desejo das interpretações freudianas. O combate se deslocara e ganhara novas zonas: outras questões, outras políticas, outras modulações militantes.

E é justamente no front desterritorializado desse inédito combate – dessas outras modulações militantes – que o livro de Deleuze e Guattari se viu belamente convocado a existir. Em uma espécie de continuação literária, filosófica e analítica de Maio de 68, O Anti-Édipo enfrentou adversários simultaneamente tão distintos e tão semelhantes entre si, e localizados tão longe e tão perto do ponto de emergência das questões evocadas: os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, os burocratas da revolução, os funcionários da verdade e os lastimáveis técnicos do desejo. Enfrentava, portanto, uma trama menor alastrada pelo campo social em suas mais diversas instâncias.

Mas Foucault não se furta, nessa miscelânea de pequenos adversários, a encontrar o inimigo maior – ou o adversário estratégico – do livro escrito por Deleuze e Guattari: o fascismo. E é preciso dizer – é preciso dizer? – que não se tratava somente do fascismo enorme e localizável como aquele conduzido por Benito Mussolini e Adolf Hitler na Itália e na Alemanha dos anos 1920 e 1930, mas do fascismo molecular: o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora. E é também preciso dizer
– é preciso dizer! – que, se assim é, tal enfrentamento não se dirige tão somente à dita direita, mas também – e talvez especialmente
– aos companheiros e camaradas localizados à esquerda do espectro político. E se desejo, subjetividade e política encontram-se em tensa trama, é no tecido da própria vida que o combate se faz.

Questões muito singulares e cortantes dirigidas mais à esquerda do que à direita aparecem no prefácio escrito por Michel Foucault: “como fazer para não se tornar fascista mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?” É, pois, a partir desta série inusitada e estranha de interrogações – interrogações nada óbvias, interrogações nada
triviais – levantadas à esquerda que algumas insinuações – insinuações nada óbvias, insinuações nada triviais – se montam. E é assim que diz Foucault – ainda e sempre à esquerda: “não imagine que seja preciso ser triste para ser um militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável”.

Maio de 68, França, O Anti-Édipo, 1972, Gilles Deleuze, Felix Guattari, “Introdução à vida não fascista”, Michel Foucault, Estados Unidos da América, 1977: são essas as marcas das passagens das obras mencionadas acima. São marcas que necessariamente impelem à questão da localização política do tempo e do espaço, de uma Europa e dos Estados Unidos de aproximadamente cinquenta anos atrás. E se podemos entender – ou, no mínimo, supor – por que e para quem esse recado era dado naquele espaço-tempo, talvez precisemos nos indagar: as indicações e interrogações supracitadas fariam sentido no Brasil de 2018?

No livro Modulações militantes por uma vida não fascista, escrito pela professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alice De Marchi Pereira de Souza, e publicado pela editora Criação Humana em agosto de 2018, a resposta parece ser afirmativa. Nele, surgem as condições de possibilidade para uma estranha série – como a enciclopédia chinesa de Borges citada por Foucault em As palavras e as coisas – que faz aparecer uma sequência à primeira vista inusitada em suas marcações de espaço e de tempo: maio de 68, França, O Anti-Édipo, 1972,Gilles Deleuze, Felix Guattari, “Introdução à vida não fascista”, Michel Foucault, Estados Unidos da América, 1977, Alice de Marchi Pereira de Souza, Brasil, 2018, Modulações militantes por uma vida não fascista.

Em seu ensaio Por que ler os clássicos?, Italo Calvino defende a tese de que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Diríamos, de outro modo, que um clássico é um livro que ainda não terminou de dizer aquilo que tinha a dizer – o que no Brasil de 2018, a partir do que indica o livro que ora resenhamos, talvez faça tanto de O Anti-Édipo quanto de “Introdução à vida não fascista”, textos ainda clássicos: as forças que os instigaram a existir, no cenário militante francês dos anos 1970, talvez persistam, estranha e tristemente, no jogo do contemporâneo. É assim que, fazendo jus ao nome, as páginas de Modulações militantes para uma vida não fascista montam um campo de problematização que, a partir do Brasil do século XXI, indagam o êthos da militância de esquerda num extenso arco espaço-temporal; nelas ecoa tanto o inacabamento das lutas do passado, tão caras aos autores já mencionados, quanto a candência da problemática militante em nível global, em questões muito próximas às colocadas recentemente pelo coletivo Comitê Invisível, por exemplo. Desse mosaico, o leitor extrai não só pistas preciosas à cartografia das linhas de força do presente, mas também armas para os combates vindouros.

Não é à toa que Alice De Marchi, a partir de sua larga e consistente trajetória de trabalho no campo da esquerda e dos direitos humanos, faz do eco de uma da frases de Michel Foucault no prefácio supracitado uma espécie de charneira para o livro que escreveu. Não à toa, é junto com Deleuze, Guattari, Foucault e Alice que devemos, seguir interrogando a entonação da esquerda que às vezes se esquece de que não é preciso ser triste para ser um militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. Se nossa atenção se dirigir menos às causas que produzem uma interrogação e mais aos efeitos que uma interrogação pode produzir, como essa pergunta simples e afiada como um bisturi, que pode lenta e precisamente convocar a desfazer o vínculo histórico entre tristeza e militância?

Foi, portanto, a partir da experiência de quase uma década de militância no campo da esquerda e dos direitos humanos – em organizações não-governamentais, autarquias, articulações políticas, no trabalho profissionalizado, na informalidade e em movimentos sociais – que algumas posturas e práticas se tornaram uma questão para Alice De Marchi Pereira de Souza. Porque se era nítido que suas práticas se conduziam pela tentativa de resistir à força hegemônica do capitalismo e todas as formas variantes de exploração, opressão e desigualdade social, doravante será um outro exercício de resistência que se acrescentará como exigência para persistir na árdua tarefa de criação do mundo. Porque foi deste lugar, tantas vezes idealizado e imaculado, – e por não poucas vezes – que ela detectou que há também – e muito – a reprodução daquilo mesmo que se quer combater. E é justamente a partir desse diagnóstico experiencial que as perguntas fundamentais do livro se fazem e se refazem: como resistir aos microfascismos e paixões tristes que se alojam em nossos corpos militantes e se manifestam em nossos discursos e práticas? Como intensificar e criar práticas de resistência e invenção atravessadas pela alegria da potência de agir?

Equipada com a leitura de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, mas também montando sua caixa de ferramentas com outros ainda clássicos como Baruch de Espinosa e Friedrich Nietzsche, o livro de Alice lança o olhar sobre os atravessamentos tristes nos processos de subjetivação militantes. Tal visada, todavia, não se presta a derrotismos ou estagnações, a análise se dá como força motriz de diferenciação, sempre na direção da aposta em uma ultrapassagem possível daquilo que nos tornamos. Sem embargo, Alice defende que nessa ontologia histórica de nós mesmos – se podemos de fato dizer que nós mesmos somos, neste caso, a corporificação das forças que atravessam os gestos da militância de esquerda – reside uma pergunta e um trabalho éticos: como lidar com essas linhas que compõem o que temos inventado para nossas existências? Se não queremos tão somente reproduzir as modulações do poder sobre a vida, como dobrá-las na relação consigo e com o mundo? E, portanto e mais importante, como se implicam a invenção de si e do mundo no arriscado jogo militante?

É tomando o plano macro e micropolítico da experiência ou, dito de outro modo, a própria vida como território do processo de inquietação e escrita que uma militante, psicóloga e pesquisadora escreve cartas a uma amiga anônima. Não é demais lembrar que a correspondência foi uma das primeiras formas da escrita de si enquanto prática ascética: um exercício de si para si necessário para aprender a arte de viver. A escrita operava uma transformação da verdade em ética, desempenhando a função de converter discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em atitude. Nessa espécie estranha de escrita de si realizada por Alice, autoria e endereçamento se veem diluídos, problematizando, no arrastão interrogativo que já levava consigo desde o início as militâncias e as esquerdas, uma estética da existência. Por outra, neste jogo metodológico e intensivo das missivas, em que a oralidade penetra a institucionalidade da escrita acadêmica clássica, talvez se faça ver que o problema das militâncias e das esquerdas sempre foi um problema de estética da existência. Ou, num sopro alvissareiro, que o problema das militâncias e das esquerdas poderia ser também um problema de estética da existência: escrever para desviar – desviar a si mesma e ao mundo.

E são, de fato, essas as questões que atravessam as vinte e uma cartas – além de uma breve introdução e de um desfecho – que compõem o livro Modulações militantes para uma vida não fascista. Nesse estilo movente e dialógico de work in progress, a primeira carta anuncia a dificuldade de escrita – e é justamente enfrentando a dificuldade de escrever que a escrita se faz, ecoando a célebre formulação deleuziana segundo a qual só escrevemos no limiar entre nosso saber e nossa ignorância, operando passagens incessantes entre um e outro; o que talvez também signifique dizer que é enfrentando a dificuldade de se fazer a si mesmo que o si mesmo se faz. Enfrentar a dificuldade de se fazer a si mesma – de se forjar nesse campo histórico e duro das militâncias de esquerda – é, portanto, todo o trabalho instaurado nesse jogo dialógico que se opera nas cartas que montam o fio narrativo e problemático do livro.

Assim, sob a árdua tarefa de escrita e transformação de si, o território da micropolítica foi o que mais interessou à Alice De Marchi, que identifica a esquerda muito mais ao campo dos afetos e das experimentações do que a um quadro macropolítico formal. Doravante, portanto, a posição de esquerda não poderia ser identificada ou limitada como a disputa pelo centro do poder de Estado, mas como um modo de vida. Ser de esquerda é disputar territórios existenciais e subjetividades. Trata-se, portanto, de manter o estranhamento – o que Alice chama de um agonismo micropolítico – que produza desprendimentos do que se deve ser e conexões com o que se pode ser: uma ética militante da potência molecular. Se essa é uma arte de viver, resta a pergunta: como sermos artesãos de nós mesmos e do mundo de maneira ativa e não reativa? E se essa pergunta se justifica, ela traz consigo outra interrogação: como não nos assujeitarmos, submissos, tristes e impotentes, ao poder ou desejo de outrem, e subverter isso de forma a urdir uma arte de agir de tal modo a abrir um campo de experimentações sem recair na ingenuidade?

É claro que tais interrogações são feitas por alguém que se recusa a sair da esquerda e da defesa dos direitos humanos, mas que, nesta localização, recusa-se também a recair nos endurecimentos e entristecimentos do próprio campo ao qual não se furta a pertencer. Manter-se no campo interrogando-o faz com que o trabalho acompanhe, numa mescla de memórias, trechos de diários de campo, sonhos e acontecimentos que se davam na medida em que o texto era confeccionado, passagens desta curiosa experiência paradoxal de permanência e crítica. Narrar o trajeto, fazendo da escrita gesto cartográfico e movente, é, portanto, aquilo que conecta as cartas de uma amiga a outra. Passagens de reuniões de trabalho, de atos, de grandes manifestações, fricções e lanhados na relação entre o trabalho acadêmico e a militância. Tudo se torna matéria-prima para a afirmação interrogativa do campo da esquerda e dos direitos humanos, num gesto muito próximo ao que, já no final de sua vida, Michel Foucault chamou de cuidado de si.

Se onde há poder há resistência, há de se fazer valer um ponto de resistência política fundamental, situado na relação de si para consigo, a tarefa urgente de construir uma ética de si. Entre política e ética, cuidar de si é ocupar-se consigo, cuidar de si é problematizar a si mesmo. E é nesse gesto entendido por Alice como um convite amoroso à esquerda que reemergem as forças revoltosas e indignadas, os afetos que podem constituir a potência de agir quando ligados a uma alegria potente e política. Assim, uma experiência de esquerda vinculada a tal postura ética estará umedecida pela e na experiência, sem separar o que se pensa do modo como se vive. Atitude jamais estanque, sempre em vias de modificação. Atitude de esquerda, atitude militante para uma vida não fascista – modulações militantes mais libertárias, alegres, ásperas e potentes.

O mesmo Michel Foucault que empresta a provocação que serve de mantra ao livro – “não pense que é preciso ser triste para ser
militante” – declarara, certa feita, que em sua caneta existia uma velha herança do bisturi. Assim, a constelação epistolar montada pela escrita de Alice tem uma estranha coesão: é quando estamos aptos a saber que na verdade a suposta amiga com quem trocava cartas era ela mesma, em um trabalho de inquietação e agonística de si, tornamo-nos aptos também a ver a clareza problemática que tantas vezes só pode ser vislumbrada na confusão. Confusão que coloca na mesma imagem onírica os tantos tempos e locais em que a questão da militância se fez presente, fazendo tocarem-se corpos que nunca se viram, ladearem-se espaços mais distantes do que as bordas do Atlântico, sobreporem-se tempos que a cronologia pulsada da história jamais conseguirá sincronizar, mas que, sob a questão que interroga o fascismo da própria militância, aparecem tocados, ladeados e sobrepostos como num campo de batalha ainda e sempre em disputa. Nesse jogo de corte, montagem e escrita de si, vislumbramos em cada carta o impessoal e o intempestivo de uma militância pouco afeita a modelos e prescrições morais: o bisturi da autora, lenta e precisamente, cinde a história, a época e o próprio si, convocando o leitor a indagar e experimentar, ainda e sempre, a necessária tarefa de inventar a si mesmo, ao mundo e às infindas maneiras de disputar os sentidos da experiência da militância. É assim que Alice termina o livro e é assim que, com ela, com os que tombaram e com os que ainda virão, seguimos na luta: “Estava numa manifestação de rua, mas não fica bem nítido onde. Está com muita gente conhecida: amigos, namorado, algumas pessoas da família. Sua orientadora, de silhueta inconfundível, está bem ao lado, mas não grudada: mantém um espaço ótimo, seu caminhar tranquilo e confiante. Há outras silhuetas junto dela, que por ora não se vê a quem pertencem. (…) Chega-se a uma esquina e avista-se o Champs de Mars, a Torre Eiffel a perfurar o céu cinzento, milhares que dela se aproximam; seria 13 de maio, em 1968? Espere: mas aquilo ali não é uma barricada da Commune de 1871? Dobra-se a esquina e de repente se está em Barcelona, em plena guerra civil na década de 1930. (…) Olhando-se à frente, a paisagem muda completamente: avista-se a Cinelândia, a avenida Rio Branco com carros de som rodeados de bandeiras rubras, outras pretas, alguma confusão; era o Rio de Janeiro em 2013? Avista, no alto de um deles, Mao Tsé Tung. Alain Badiou e Zizek estavam ao lado. Estavam perto professores conhecidos. Há uma situação estranha, de instabilidade: não se consegue saber o que é – um desvio? Uma rota interrompida? Uma tensão entre grupos? Não há polícia. Parece haver uma ação para acontecer. É um grupo de libertários (…) Chega a se cogitar uma bomba, mas parece também uma performance artística. Parece haver fogo em algum lugar. Os que estão no alto do carro de som começam a ordenar que a multidão não entre na rua a que se estava rumando: não se entende exatamente as palavras que dizem, mas o tom é esse. Estão assustados. No grupo onde a militante-pesquisadora-psicóloga está há uma movimentação – só aí consegue distinguir Michel Foucault junto da orientadora e dos outros, seus amigos. Um grupo se afasta, parece mesmo investir num ato terrorista. Outro grupo recua, parece temer aquilo tudo. Ela, aquele grupo, ficam ali: em meio à alegria e ao perigo. Ela acorda” (pp. 326-327).

Resenha de Danichi Hausen Mizoguchi* e Gabriel Lacerda de Resende** em formato de artigo para a revista Ecopolítica.

*Professor do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Psicologia da UFF. Contato: [email protected] Lacerda de Resende

**Professor do curso de Psicologia da Faculdade Maria Thereza (Niterói/RJ). Mestre e doutor em Psicologia pela UFF. Contato: [email protected].

Referências bibliográficas
CALVINO, I. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. FOUCAULT, M. “Prefácio (AntiÉdipo: introdução à vida não-facista)”.
In: MOTTA, Manoel Barros de (org). Repensar a Política / Ditos e Escritos VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, pp. 103-106.