Diante da convocação a refletir sobre o que seria uma clínica da multidão de minorias, parece-me inevitável começar interrogando os termos que compõem tal convocação, pois só entendendo um pouco mais a necessidade da referência à multidão e às minorias, veremos com clareza alguns dos desafios colocados atualmente à nossa clínica. de modo que possamos não apenas interrogar as formas e sentidos das nossas práticas, mas, sobretudo, imaginar outras modalidades possíveis para a escuta das experiências subjetivas contemporâneas em sua singularidade.
Para o termo multidão, recorrerei aqui brevemente Paul B. Preciado, em um texto relativamente conhecido, Multidões queer (Preciado, 2011). O que temos ali é a afirmação do potencial transgressivo de uma anormalidade múltipla que se recusa ao enquadramento, seja normativo ou mesmo identitário. Afirmar a multidão em sua diversidade implica afirmar um comum possível, ao mesmo tempo em que se recusa tanto a unificação referida à adequação a uma norma ou ideal quanto a distribuição em territórios identitários, definidos por uma essência qualquer atribuída aos que os habitam, ainda que seja esta puramente estratégica, e regulados por fronteiras tanto físicas quanto simbólicas ou mesmo puramente imaginárias.
Quanto ao segundo significante, creio haver pelo menos duas maneiras de dar sentido ao que nos referimos como minorias: em primeiro lugar, minorias numéricas, as quais carecem, em função disso, de representação na esfera pública, regulada na maioria das vezes por regras de proporcionalidade; em segundo lugar, grupos e indivíduos menorizados, ou seja, cuja falta de representação política deriva não de um déficit numérico, mas de um déficit de reconhecimento social. É sobretudo neste segundo sentido que a dita questão das minorias aparece como elemento central da política contemporânea, tal como propõe Axel Honneth (2009) em sua descrição de uma luta por reconhecimento, no centro da qual, destaca-se mais uma vez a questão das identidades, que aparecem como elemento fundamental do cálculo político contemporâneo, muitas vezes colocando em segundo plano a questão da injustiça econômica e aquilo que Nancy Fraser (2006) nomeia luta por redistribuição.
Com isso, chegamos finalmente ao primeiro termo da sentença que delimita o problema e o sentido deste ensaio, pois será preciso refletir, ainda que brevemente, sobre o que entendemos por clínica. Com o sintagma multidão de minorias, colocamos em questão, de forma condensada, uma série de problemas políticos que marcam nossa atualidade, com ampla ressonância sobre os processos de subjetivação e modalidades de laço social, mas situamos, ao mesmo tempo, em nosso horizonte ético-político, uma série de valores, ideais e mesmo posicionamentos estratégicos que podem, ou, mesmo, deveriam orientar a nossa prática clínica. Falta agora demarcar os sentidos possíveis para tal clínica e é nesta direção que nos encaminhamos a partir daqui.
Como ponto de partida, acredito ser necessário ressaltar que com os dois termos iniciais – multidão e minorias – procuramos nos referir não apenas a conjuntos difusos e mal definidos de existências, mas, talvez de maneira mais específica, a grupos e indivíduos postos em uma posição subalterna, sendo, assim, silenciados. Desse modo, a primeira questão que, para mim, se coloca quando pensamos em uma clínica da multidão de minorias é muito simplesmente como escutar aqueles que não podem falar (Spivak, 2018).
Afinal, não é função própria do trabalho analítico fazer falar o que não pode ser dito? Fazer falar aquele que, não podendo verbalizar seu desejo, acaba por enunciá-lo por meio de sintomas e outras formações do inconsciente, produzidas na tensão entre o desejo que se quer em movimento e o recalque que barra as representações que lhe possibilitariam mover-se?
As condições de tal “fazer falar”, aparecem, ao menos para Freud, sempre articuladas à colocação em jogo daquilo que definiu como regra fundamental da análise – a associação livre do paciente – e sua contrapartida, por parte do analista: a atenção flutuante (Freud, 2010/1912). De modo que a postura do analista será fundamental para que a associação do paciente e o drible da censura efetivamente ocorram, abrindo espaço para a irrupção do inconsciente e para a manifestação dessa tensão entre desejo e recalque que marca o conflito psíquico.
Tal postura, nós a procuramos entender como a criação necessária de condições de escuta e assim será sempre a partir do estabelecimento dessas condições que aquele e aquilo que são silenciados, poderão dizer e ser dito. Fechando este pequeno círculo inicial, proponho, então, que o estabelecimento de uma clínica da multidão de minorias se faz a partir da criação das condições de escuta daqueles que, postos em posição subalterna, tem sido, historicamente, silenciados.
Procuraremos encaminhar tal formulação, obviamente de maneira preliminar e respeitando os limites deste ensaio, delineando um campo de problemas e inquietações – teóricas, clínicas e políticas – que nos permita vislumbrar os alcances do que seria uma clínica das multidões de minorias e suas condições de possibilidade, mas também os limites dos modos atualmente correntes, ou hegemônicos, de fazer psicanálise. Farei isso por meio da referência a um grupo social marcado pelos dois sentidos que atribuímos inicialmente ao significante minoria: pessoas que vivem dissidências em relação à norma binária de gênero, experiências transidentitárias e que, já há algum tempo, vêm chamando a nossa atenção para os efeitos políticos de práticas e teorias referidas à psicanálise e interrogando, a partir daí, as condições da nossa escuta e os limites das nossas interpretações e elaborações teóricas.
As dissidências de gênero e a psicanálise
O encontro, ou confronto, com as dissidências de gênero – e com os movimentos políticos, sociais e teóricos que as acompanham, marcam hoje não apenas a reflexão clínico-teórica no campo psicanalítico, tanto no cenário francês, quanto anglo-saxão e latino-americano, mas a própria presença dos psicanalistas na cena pública em diferentes partes do globo, inclusive no Brasil.
Os debates em andamento, para além de muitas acusações mútuas, toca em pontos importantes que dizem respeito a uma série de temas que se revelam centrais a qualquer debate sobre a atualidade da psicanálise e sua potência para lidar com os processos contemporâneos de subjetivação e com as formas de sofrimento daí resultantes.
De modo que mesmo um rápido e brevíssimo inventário desses temas nos levaria a encarar questões bastante complexas e, hoje, decisivas, como: o vínculo da psicanálise com os dispositivos médico e jurídico de normalização dos corpos; o estatuto da teoria psicanalítica entre a consideração da experiência singular da clínica e o caráter pretensamente universal – ou, ao menos, generalizante – de suas formulações teóricas; o papel da diferença sexual nos processos de estruturação subjetiva e na sustentação da ordem simbólica que regula o laço social e sua limitação ou não a um modelo estritamente binário que, eventualmente, se desdobraria necessariamente em uma divisão e distribuição de gêneros e papeis sociais; o caráter normativo ou não da teoria e da clínica psicanalítica, em função, especialmente, de suas formulações em torno do Complexo de Édipo; a função e o estatuto da classificação psicodiagnóstica na clínica psicanalítica e nossa relação atual com categorias que foram, em sua maioria, herdadas da medicina do século dezenove; o lugar ocupado pelas questões identitárias no discurso – e demandas – de nossas e nossos pacientes; a posição social concreta dos psicanalistas em nossa sociedade, posição muitas vezes de poder, e nossa inserção em um prática fundamentalmente neoliberal, que dá muitas vezes testemunho de nossa sujeição ao racismo e machismo estruturais e estruturantes do nosso funcionamento social, em particular num Brasil tão fortemente marcado pela herança escravista e pela desigualdade, marginalização, ou simples banimento social, de tantas pessoas.
Dentre todos estes desafios clínicos e teóricos, considerando os limites deste ensaio, procurarei desenvolver minimamente a questão referente ao lugar e estatuto da classificação psicodiagnóstica, apontando, a partir daí, caminhos e desdobramentos possíveis para nossa interrogação inicial sobre as condições necessárias a uma escuta que permita com que as multidões e as minorias falem. É também em torno da psicopatologia e da discussão etiológica na clínica psicanalítica e sua relação com os objetivos do tratamento que nos aproximaremos da reflexão sobre o alcance e limites do que podemos descrever como uma antropogênese de matriz psicanalítica, ou seja, a demarcação das fronteiras do humano e sua vinculação a modos particulares de estruturação psíquica.
Sobre essa base, procurarei seduzi-los com a ideia de que uma clínica da multidão das minorias será aquela pensada, não como espaço de enfrentamento de uma disfunção dos processos de desenvolvimento psíquico ou de correção dos rumos e circunstâncias pelas quais nos tornamos humanos, mas como campo de experimentação ética onde novas formas de existência, singulares e contingentes, sejam produzidas e/ou legitimadas.
Para tanto, retomarei rapidamente alguns aspectos históricos da recepção das experiências dissidentes em relação à norma que regula as identidades de gênero2. História que, de alguma forma, nos dá pistas importantes de como se deu o gradativo silenciamento dessas experiências e de como refletir sobre as condições – ou, inversamente, os impedimentos – para que possamos escutar as pessoas que as vivem, e, portanto, do que será preciso fazer para que possamos escutá-las e, ao fazê-lo, nos interrogar sobre os objetivos da clínica, seus modos de operação e sua eventual possibilidade de fazer surgir a potência subjetiva e política das multidões e das minorias.
Em relação a este percurso histórico, um deslocamento fundamental quanto ao que podemos entender como dissidência de gênero se dá entre meados do século XX e a atual terceira década do século XXI. No primeiro polo dessa transição teríamos experiências estreitamente associadas à ideia de mudança de sexo e articuladas ao desenvolvimento gradativo das técnicas cirúrgicas que permitiriam a redefinição dos genitais e a construção médica de uma suposta identidade entre o sentimento de pertencer a um determinado gênero e a configuração anatômica dos órgãos sexuais. Experiências agrupadas na categoria de transexualidade e das quais o tipo-ideal é representado pela figura do dito transexual verdadeiro, descrito por Robert Stoller (1982), ainda na década de 1960, o qual, não podemos ignorar, será a matriz clínica de referência para grande parte do pensamento psicanalítico em torno da dita questão transexual. Renato Mezan (1988) propõe um modelo de história da psicanálise no qual as suas diferentes elaborações teóricas e práticas clínicas seriam derivadas – seguindo a mesma lógica da sobredeterminação presente no trabalho dos sonhos na qual múltiplas causas se articulam de concomitante – de três fontes: a matriz clínica, o ambiente cultural e uma leitura particular da obra freudiana. A noção de matriz clínica, se refere não apenas a uma suposta semiologia ou quadro sintomático, mas, sobretudo, ao discurso dos pacientes, suas queixas demandas e os conflitos que serão postos em jogo na situação transferencial que caracteriza o trabalho analítico.
No polo contemporâneo, o que temos, com a multiplicação das possibilidades de transgressão das normas que regulam da anatomia aos papéis sociais distribuídos entre as figuras do homem e da mulher, representada sobretudo pela multiplicação de expressões identitárias que não se reconhecem nem no campo do feminino nem do masculino, é a recusa da própria divisão binária dos gêneros e de sua necessária ancoragem em dois sexos, materializados pela oposição anatômica dos genitais: presente em não-bináries, pans, travestis, dentre outras nomeações que compõem hoje a sigla LGBTTQIAP+, sempre em expansão.
Tal recusa traz ainda consigo a implosão da própria ideia de conformidade sexual, aquela que seria eventualmente realizada pela cirurgia de transgenitalização e certamente vai muito além do imaginário social construído em torno da ideia de mudança de sexo, pois já não se trata, ao menos majoritariamente, de mudar de sexo, mas de habitar entre os sexos ou fora deles.
Esse deslocamento e o surgimento de novas matrizes clínicas, novas queixas e demandas, geralmente estruturadas em torno da questão do reconhecimento subjetivo e social não parecem ter sido acompanhados ou sequer percebidos pela grande maioria dos psicanalistas, de modo que a referência maior às suas interpretações das dissidências de gênero continuam referidas ao quadro clínico descrito por Stoller (1982) e explorado por Lacan em associação com a psicose e o mecanismo da foraclusão (Guerovici, 2019). Assim, as explicações psicanalíticas do que hoje recebe, na classificação internacional de doenças da OMS, o nome de incongruência de gênero, não apenas guardaram para si a categoria de transexual, de origem médico-psiquiátrica, mas privilegiaram a associação entre transexualidade e psicose.
Como resume Simone Perelson:
“No contexto da psicanálise lacaniana, o transexualismo é majoritariamente considerado uma psicose. Como sabemos, Lacan, ao comentar o caso Schreber (1958), sustenta que seu delírio de se transformar em mulher seria decorrente da foraclusão do Nome-do- Pai. Schreber, desprovido do significante fálico se vê impossibilitado de se situar na partilha dos sexos como um homem ou uma mulher e, identificando-se imaginariamente ao falo da mãe, é conduzido pelo que Lacan definirá posteriormente (1972) como o empuxo à Mulher, o qual se define justamente em oposição à identificação a uma mulher: trata- se aqui do delírio de se tornar A Mulher, a mulher enquanto essência do feminino, a mulher enquanto totalidade, enfim a Mulher que, sustenta Lacan, não existe. (Perelson, 2011, p. 12).“
As tentativas de enquadramento das experiências transidentitárias não se resumiram, no entanto, à referência à psicose – ou, em sua vizinhança, ao narcisismo e estados limites, como propõe Collete-Chiland (2005). Face ao fato inegável da multiplicação de pessoas que se declaram trans e da impossibilidade de situá-las todas no registro da foraclusão do nome- do-pai, outras hipóteses foram levantadas.
Assim, ao lado da referência à psicose surge com frequência a categoria de perversão, a qual não é sem interesse para este debate, em função da maneira como coloca em primeiro plano a questão moral e, mais do que isso, nos remete ao tema delicado da própria definição do humano e de suas fronteiras. Nesse sentido, Henry Frignet (2002) propôs a distinção entre os transexuais, de estrutura psicótica, e transsexualistas, que dariam testemunho de certo funcionamento social perverso, marcado pela recusa à castração e por uma aspiração onipotente ao impossível.
Mais recentemente, e com interesse especial para nós, porque vinculadas a autores brasileiros, temos duas tentativas diagnósticas
relativas, especificamente, aos homens trans, de um lado, e às mulheres trans, de outro. No primeiro caso, se trataria simplesmente de casos clássicos de histeria, de caráter, aliás, epidêmico, como se passou nos séculos XVIII e XIX (Jorge & Travassos, 2017). No segundo caso, a etiologia da transexualidade se vincularia, em muitos indivíduos, a uma recusa inconsciente da própria homossexualidade e à afirmação reativa da norma heterossexual a partir da transformação anatômica que restabeleceria a heterossexualidade, modificando os genitais (Jorge & Travassos, 2018).
Tais hipóteses diagnósticas, aplicadas àqueles que vivem uma dissidência em relação à norma binária de gênero, aparecem ainda em associação com um diagnóstico aplicado à própria cultura e às modalidades contemporâneas de laço social. As/os trans e não-bináries, seriam assim adeptos de modalidades de gozo tributárias de uma crise de legitimidade, consequência do declínio da função paterna, estando submetidos ao discurso do capitalista e sendo marcados por um individualismo próprio ao mundo neoliberal (Lebrun, 2021; 2008).
Um dado importante é que a referência à psicose e à perversão apontam para a aproximação entre a multiplicação de experiências trans e certa perturbação da ordem simbólica, regulada pela metáfora paterna e pela diferença dos sexos, o que faz destas invariantes antropológicas, que poderíamos associar a uma espécie de antropogêse, do modo de constituição do próprio humano, no que teria de específico, diferenciando-o do animal e indicando as base necessárias da vida em sociedade, e que seria descrita em relação direta com certa passagem adequada pelo Complexo de Édipo, fazendo deste um elemento – universal – decisivo não apenas para os processos de constituição subjetiva, mas para própria produção e demarcação do que seria o propriamente humano. Por isso, muitas vezes a resposta psicanalítica às experiências e discursos dissidentes virá na forma de admoestação contra os riscos postos à ordem simbólica, a genealogia, a diferença de gerações, ao próprio pacto civilizatório que regula a vida em sociedade e, por fim, à própria humanidade (Cunha, 2016, 2011; Lippi & Maniglier, 2021)
Em relação a essa demarcação das fronteiras da humanidade, a qual acaba evidenciando laços entre o modo como a psicanálise procurou dar conta das transgressões da norma binária de gênero e a leitura hegemônica do perverso como alguém que perverte a própria ideia de humano, a problemática é de certo modo levantada por Patricia Porchat (2014) em seu mapeamento do diálogo entre Judith Butler e a psicanálise: “Para incluir os gêneros não-inteligíveis, e entre eles os/as transexuais, na categoria de ‘humanos’, Butler acredita ser necessário questionar o conceito de simbólico de Lacan.” (Porchat, 2014, p. 136)
O interessante aqui é perceber como essa espécie de ameaça à humanidade, que a “epidemia” e a “propaganda” trans representariam, pode ser descrita, sobretudo em certos teóricos que transitam em torno de um campo definido como aquele das utopias queer, a exemplo de Paul B. Preciado (2018, 2015), Jack Halberstan (2020) e Lee Edelman, como estratégia ético-política de interrogação dos limites atualmente estabelecidos para o humano e para nossos modos de individuação e de estabelecimento de laços afetivos e sociais. Não por acaso, o manifesto de Preciado dirigido a nós, psicanalistas, se intitula: eu sou um monstro que vos fala (Preciado, 2020).
Impasses do modelo diagnóstico-etiológico
Retomando, então, a questão psicodiagnóstica, gostaria, a seguir, de apresentar alguns impactos da adoção de uma nosografia herdada da psiquiatria do século XIX como grade de inteligibilidade que pretende dar conta de fenômenos bastante recentes e talvez ainda em gestação e em relação às quais a suposição de uma disfunção ou mesmo de um sofrimento que lhes seria intrínseco talvez não seja nada mais que um perigoso efeito contratransferencial, ou, menos que isso, puro e simples preconceito. Pois, além de questões teóricas, epistemológicas ou mesmo ético-políticas, outra ordem de problemas surge em nosso horizonte quando refletimos sobre os impasses produzidos no encontro entra a psicanálise e as transidentidades que são, na verdade, de uma banalidade chocante. Refiro-me, por exemplo, ao fato de que muitos das/dos psicanalistas que hoje discutem questões de gênero parecem aprisionados não apenas em uma bolha de moralidade pequeno burguesa, mas em um território socioeconômico inacessível a travestis, homens e mulheres trans ou não-bináries.
Destacarei três desses efeitos, considerando, evidentemente, a necessária articulação entre eles: em primeiro lugar a vinculação da psicanálise ao dispositivo médico terapêutico e sua associação a uma apropriação das experiências transidentitárias fundada na pretensão de corrigir uma suposta disfunção e na sustentação de uma conformidade qualquer. Ainda que, enquanto a medicina pareça procurar corrigir o corpo para sustentar a autopercepção subjetiva, a psicanálise, em sentido contrário, recuse a modificação corporal para insistir em um trabalho psíquico que possa transformar a verdade que o sujeito enuncia sobre si mesmo e sobre sua experiência corporal.
Nesse sentido, a inscrição no dispositivo médico-terapêutico se articula à ocupação de um lugar de poder, muito claramente representada pela figura do especialista, capaz de decifrar a experiência vivida pelo sujeito, materializada em seu corpo ou seu discurso, e enunciar, a partir daí uma verdade, diante da qual ao sujeito não cabe outra coisa senão a aceitação ou sujeição. Neste contexto, fica difícil diferenciar o psicanalista do psiquiatra, pois ambos se apresentariam como mestres da verdade, capazes não apenas de estabelecer o que de fato pertence à realidade – e o que, por outro lado, deve ser inscrito no registro do erro e da ilusão – o que, no caso do médico, se faz de modo radical, pois este afirma-se capaz de produzir uma nova realidade, modificando o corpo para adequá-lo à lógica binária da conformidade entre identidade de gênero e genital.
Quanto aos sentidos e objetivos da escuta das pessoas trans, estes ficam ainda submetidos ao modelo diagnóstico/tratamento/prognóstico, inscrevendo, portanto, uma certa expectativa em relação ao trabalho clínico, bem como indicando como horizonte o restabelecimento de um destino esperado para o sujeito e suas escolhas. Difícil imaginar tal horizonte, sem referência a uma suposta norma, ainda que esta não seja explicitada.
[…] Ainda que o digam diferentemente, ligam essas posições com a neurose, que, em termos psicanalíticos, é quase o mesmo que falar em grau de saúde mental, ou, senão, entrar no campo da psicopatologia, no qual incluem, a priori, as existências trans e travestis. Então como se alcançam ou não as masculinidades e as feminilidades como ‘devem ser’, é um dos indicadores de psicopatologia ainda hoje. Ninguém o diria explicitamente, mas as coisas são assim. Há um a priori de psicopatologização fenomenológica em relação à diversidade sexual e à diversidade de identidade que não se traduz em correlato metapsicológico. Fica-se mais próximo da psiquiatria que da psicanálise. Outros núcleos duros da psicanálise, e que ainda que não se o diga explicitamente, consideram a heterossexualidade como a sexualidade ‘maior’ e desejável. Fala-se numa psicossexualidade mais ampla, mas, na realidade, é heteronormativa. (Tajer, 2018, p. 184).
Com isso, nos aproximamos de um segundo efeito da insistência no privilégio dado à classificação diagnóstica e, sobretudo, sua instalação como condição prévia à escuta e à compreensão das vivências trans. Refiro-me, sobretudo, à desqualificação produzida pela associação entre essas vivências e os domínios da patologia, do erro, disfunção e desrazão. Esta é particularmente visível como consequência da assimilação entre as pessoas trans e a psicose ou a perversão, duas categorias difíceis de serem descoladas de uma dimensão moral e dos seus respectivos sentidos ordinários, de loucura e maldade. O diagnóstico pode converter-se rapidamente em uma forma de injúria (Ayouch, 2015) de modo que, ao mesmo tempo em que se instala na posição de mestre, único capaz de perceber o que há de verdade naquilo que escuta, ou vê, o analista silencia o sujeito que se apresenta diante dele, situando-o no registro do erro e tomando-o como incapaz, não apenas de enunciar a verdade sobre si mesmo, mas de reconhecer a verdadeira realidade que se apresenta à sua volta ou em seu próprio corpo.
Assim, como aponta Butler (2009), o diagnóstico que permite ao sujeito ser acolhido na rede pública de saúde, ter acesso a direitos ou mesmo ser percebido como cidadão, funciona simultaneamente como estigma e o coloca numa posição de precariedade, retirando-lhe sua autonomia, que é transferida para o especialista que dele se ocupa.
O impacto mais nocivo, no entanto, da classificação diagnóstica, é o seu desdobramento em uma etiologia: a busca de uma falha, impossibilidade ou perturbação do processo de desenvolvimento psíquico – ou de constituição subjetiva. Tal busca não apenas ratifica uma perspectiva desenvolvimentista ou normativa do desenvolvimento subjetivo, na medida em que aponta para um ideal que supostamente deveria ter sido alcançado ou para um modelo a ser seguido, mas opera uma uniformização de experiências múltiplas e diversas, ao referi-las todas a uma causa ou estrutura comum, apagando assim suas, quase infinitas, diferenças.
Nessa direção, o efeito mais delicado diz respeito precisamente ao objeto específico da nossa discussão: o estabelecimento de condições de escuta que façam com o que trabalho clínico dê espaço à produção de experiências singulares em toda a sua potência.
Refiro-me aqui a dois elementos – e mutuamente implicados – do trabalho propriamente psicanalítico, centrais à elaboração teórica de Freud ao longo de toda a sua obra, e que de alguma forma, ainda que enunciados de maneiras distintas, estão mais ou menos presentes em qualquer descrição dos objetivos de uma análise, independente da perspectiva teórica: a recuperação e ressignificação da história vivida e a realização de um trabalho de memória, entre rememoração e esquecimento, que permita uma nova gestão da economia pulsional e a abertura de novas possibilidades existenciais.
Na escuta de dissidentes de gênero, tal trabalho de memória ocupa lugar central e todo futuro só se faz possível a partir de um trabalho de memória e de reconstrução da história de vida passada. Uma história muitas vezes marcada pela recusa do outro em testemunhar um posicionamento frente ao gênero que, vital para o sujeito, não encontra lugar em seu ambiente nem é reconhecido pelo meio social (Cunha, 2021a). Para pessoas, por exemplo, que viveram grande parte da sua vida alocadas em um gênero determinado, e referidas a papéis sociais específicos – nos quais, aliás, não se reconheciam – e que agora habitam outros territórios existenciais, é fundamental a possibilidade de reinvenção deste passado e a sua construção, por meio de esquecimentos e rememorações muitas vezes estratégias, de modo que o presente ganhe sentido e um futuro seja possível.
Todo esse trabalho de reinvenção subjetiva é inevitavelmente obstacularizado por uma escuta que guarda consigo a suposição prévia de uma etiologia, que necessariamente precisa tomar a forma de histórias individuais semelhantes, e faz supor ou valorizar determinados acontecimentos e experiências que não necessariamente terão o mesmo valor, função, ou mesmo existência, em todos os casos. Ou seja, no lugar da necessária construção de uma história singular, oferecemos aos sujeitos uma memória genérica referida a um acidente, trauma, disfunção ou particularidade potencialmente patogênica.
Mais uma vez, temos o silenciamento de experiências singulares por meio da uniformização e apagamento das diferenças, pois aqui a generalização que, por meio do diagnóstico, supões caracteres estruturais ou constitutivos comuns a experiências diversas, se desdobra na suposição de uma história também comum; enquanto o que testemunhamos ao escutar pessoas trans, é, ao contrário a busca por uma história singular e, mais do que isso, em contínua reconstrução, pois se materializa em uma identidade instável e em um corpo que não faz uma transição, mas que existe em trânsito. Como afirma uma pessoa trans: “eu não estou em transição, eu sou em transição.”
Da psicopatologia à política: A clínica como campo de experimentação ética
A saída para este impasse, acredito, está no abandono estratégico e urgente da matriz diagnóstico-etiológica e penso que a melhor alternativa disponível seria a adoção de uma perspectiva ético-política das experiências transidentitárias, o que não implica necessariamente o abandono de uma visada clínica.
Como procurei demonstrar em outro lugar (Cunha, 2021a), encontramos um modo possível de operar tal deslocamento na retomada da noção de patoanálise, proposta originalmente por Leopold Szondi e recentemente revisitada por Phillpe Van Haute e Thomas Geyskens (2016), em uma discussão sobre o estatuto contemporâneo das formulações em torno do Complexo de Édipo e de sua centralidade nos processos de estruturação subjetiva. Tal noção procura descrever uma perspectiva de entendimento do sofrimento psíquico não como disfunção em relação a um processo de desenvolvimento psíquico passível de ser associado a uma norma ou ideal, mas como exacerbação de elementos psíquicos articulados a pontos críticos dos processos de constituição comuns a todos nós.
Em termos muito breves, Van Haute e Geyskens (2016) partem da metáfora do cristal partido, trazida por Freud, e, considerando as
diversas leituras da neurose, sobretudo da histeria, em Freud e Lacan, nos propõem tomar as formas de sofrimento psíquico não como perturbações do desenvolvimento, o que faria sopor uma norma ou meta a ser alcançada, mas sim como exacerbações de conflitos próprios a processos de estruturação subjetiva comuns e que de alguma forma estariam presentes em cada indivíduo como predisposições, tal como suposto por Freud com a hipótese de uma bissexualidade constitutiva.
Se pensarmos, seguindo essa trilha, que tantos os processos de estruturação subjetiva – diretamente associados a processos de socialização, como nos mostra a própria hipótese do Complexo de Édipo – quanto os conflitos que os marcam, são social e historicamente situados, vinculando-se, portanto, ao ambiente cultural habitado pelo sujeito, podemos considerar que o há de singular nas experiências transidentitárias contemporâneas, fazendo-as ocupar lugar destaque não apenas nos debates psicanalíticos, mas na cena política global e nos mais diversos âmbitos da sociedade e da cultura, é que elas tornam visíveis e audíveis, em seus corpos e discursos, elementos decisivos dos processos contemporâneos de subjetivação, tais como nossa inscrição no registro da biopolítica, a submissão à racionalidade identitária e a subversão dos limites entre o público e o privado, hoje marcada pela sobreposição da esfera da vida íntima e pela sua promoção a elemento central da cena cultural e do debate político (Cunha, 2021a; 2021b).
Uma leitura clínico-política das transidentidades implicaria, então, tomar o espaço analítico não como oportunidade para correção de eventuais acidentes no percurso individual de desenvolvimento psíquico – ou estruturação subjetiva –, mas sim como espaço de enfrentamento desses aspectos centrais dos processos de subjetivação próprios a nosso tempo e lugar.
Por outro lado, ao tomarmos em consideração as formulações de autores do pensamento queer, como Paul B. Preciado, quando afirma estar em jogo, com o abandono da epistemologia da diferença sexual, a abertura para a produção de novas formas de ser e para a transformação dos modos como entendemos e definimos o que constitui o humano, podemos pensar então nesta clínica fundada em uma leitura patoanalítica como campo de experimentação ética para a produção e legitimação de novos modos de existência, os quais dariam ainda lugar a novas maneiras de vivermos juntos, ou seja, novas modalidades de laço social, referidas talvez à potência da multidão e das minorias.
Para concluir, gostaria de apresentar-lhes algumas ferramentas extremamente úteis ao desenvolvimento desta tarefa, as quais podem ser encontradas no pensamento de Michel Foucault, a partir mesmo da crítica à psicanálise desenvolvida pelo filósofo francês a partir dos anos 1970 (Foucault, 2015a) e também em suas reflexões sobre as relações entre poder, governo, ética e subjetivação que marcaram as suas pesquisas sobre, de um lado, o poder pastoral e sua deriva neoliberal e, do outro, os exercícios ascéticos que marcaram na antiguidade o cuidado de si e constituíram práticas importantes de autoformação e autogoverno (Cunha, 2022).
Pois quando propomos, portanto, a utilização da patoanálise como ferramenta teórica para compreender a posição singular que as experiências transidentitárias ocupam não apenas em nossa clínica, mas na sociedade contemporânea, penso que acabamos recorrendo implicitamente à estratégia metodológica sustentada por Foucault, segundo a qual não devemos tomar em consideração um sujeito universal, a-histórico ou de tons transcendentais (Foucault, 2015b), mas interrogar subjetividades historicamente situadas e investigar os modos pelas quais tais subjetividades se constituem entre dispositivos de sujeição e práticas de liberdade.
Da mesma forma, ao considerar a clínica psicanalítica como campo de experimentação ética, imaginamos que valeria à pena nos aproximarmos da noção foucaultiana de atitude crítica e de uma ontologia do presente, retiradas de sua leitura do famoso texto de Kant sobre o iluminismo (Foucault, 1994a; 1994b). Tal atitude crítica, segundo Foucault, se centraria numa interrogação sobre “quem somos hoje” e ganharia sentido como resistência a tecnologias de governo e estratégias de dominação, estruturando-se em torno da pergunta: como não ser governado ou não ser tão governado ou não ser governado desta ou daquela forma (Foucault, 2015b).
É tal atitude crítica que permitirá, acredito, fazer valer a potência da multidão que, ao mesmo tempo que resiste à uniformização e à segregação promovida pela distribuição em territórios de pertencimento identitário, cria as condições para que algo da ordem do comum se engendre a partir do encontro de existências minoritárias e menorizadas. Tal potência surgirá efetivamente à medida em que possamos criar espaços abertos para a experimentação ética de novas formas de existências, espaços nos quais o subalterno possa, enfim, falar e nós possamos, afinal, escutá-los, mesmo que para isso seja preciso reconhecer que, em muitos momentos, não somos capazes de saber do que falam. Só isso poderá fazer com que a psicanálise se afaste dos dispositivos de poder e sujeição e se afirme como prática de liberdade e como força política de transformação, não apenas de existências individuais, mas, também e sobretudo, dos próprios modos de vivermos juntos.
Concluímos esperando, com este percurso, ter indicado alguns dos desafios teóricos, éticos e políticos postos hoje à psicanálise, a partir da proposta fundamentalmente política de inscrição dos termos multidão e minorias no horizonte ético da psicanálise e da consideração das condições de escuta das transformações subjetivas nos campos do gênero e da sexualidade que têm nos desafiado já há algumas décadas – conte- se, por exemplo, a publicação, ainda na década de 1980, de Gender in trouble, obra fundamental de Judith Butler (2003).
Tais desafios tocam em muitos aspectos, dentre os quais pontos sensíveis como o lugar social do analista e as múltiplas dimensões políticas da psicanálise, suas práticas e posicionamentos na sociedade, daquelas que dizem respeito ao lugar da politica em nossa própria prática clínica aos posicionamentos que assumimos na sociedade e no debate público.
Aqui, privilegiamos a consideração do lugar e estatuto no pensamento e na prática psicanalíticas daquilo que denominamos matriz diagnóstico- etiológica. Procuramos mostrar, ainda que brevemente, como a referência prioritária à classificação psicopatológica e à busca etiológica, limitou a nossa compreensão das experiências de dissidência em relação à norma binária de gênero, nos fazendo supor uma uniformidade em experiências que, além de novas, são múltiplas, diversas e singulares, e acabando por produzir o silenciamento das pessoas que vivem tais experiências e as afastando da psicanálise.
Evidentemente o quadro descrito não é exaustivo, nem pretendemos em nenhum momento esgotar a discussão relativa aos temas levantados. Esperamos, contudo, ter podido enumerar questões teóricas e desafios clínicos importantes, bem como indicar o horizonte ético-político na direção do qual, acredito, devemos nos mover.
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Notas
1. Este artigo retoma os argumentos apresentados no I Congresso Internacional de Transversalidades entre Filosofia, Psicanálise, Clínicas e Práticas Sociais, em articulação com os resultados do projeto de pesquisa O dispositivo psicanalítico e a escuta das transidentidades e com as reflexões produzidas pelo trabalho conduzido na ação de extensão Roda de escuta LGBTQIAP+, ambos desenvolvidos na Universidade Federal de Sergipe.
2. Para uma consideração mais cuidadosa das formulações psicanalíticas a propósito das transidentidades, ver: Cunha, E. L. (2021a). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, disponível aqui no nosso site.