Anarcafeminismo: Chiara Bottici contra a dominação

A luta contra a opressão de todas as mulheres é,mais do que nunca, um imperativo necessário e urgente, mas tem que se sustentar em uma libertação das mulheres articulada de tal forma que a emancipação da singularidade não passe a crer mais em hierarquias (do homem em relação à mulher, de todos os seres humanos em relação aos animais, plantas, inclusive da materia inanimada). Essa é a inovadora e articulada proposta da filósofa italiana Chiara Bottici em Anarcafeminismo, uma abordagem especificamente anarcafeminista adaptada aos desafios atuais.

Anarcafeminismo oferece um extenso marco teórico  a partir do qual nasce o Manifesto Anarcafeminista.

Anarcafeminismo parte de uma visão utópica de uma sociedade onde as pessoas desejam e lutam pela sua liberdade sem criar ainda mais hierarquias para outras pessoas e para seres vivos não humanos. As utopias são realistas porque nos dizem onde (não) estamos. Uma utopia anarcafeminista nos diz que uma sociedade em que todas e cada uma das mulheres são livres ainda está distante, mas também nos mostra que somos a maioria avançando nessa direção. Algumas falam sobre feminismo interseccional, outras ecofeminismo, outras chamam de movimento queer, ou feminismo sem fronteiras: muda o nome e mudam as prioridades politicas, mas a mensagem fundamental é a mesma – o feminismo não significa a libertação de algumas mulheres privilegiadas: significa a libertação de todas nós.

“O feminismo por si só não é suficiente, porque o que vem se demonstrando é que pode se tornar compatível com estruturas de dominação. Por isso, é imprescindível uma filosofia anarcafeminista.”

Chiara Bottici.

A filosofia anarcafeminista permite combinar duas evidência: que há algo específico na opressão das mulheres e das feministas em geral, e que para enfrentar essas opressões precisamos falar delas em todas as suas formas. Para ela, na primeira parte desse extraordinário livro, Bottici estabelece un dialogo com a literatura feminista negra em relação à interseccionalidade e analisa sua relação com teorias e ideias anarcafeministas: delineia um tipo de anarquismo “mais além do eurocentrismo e do sexismo”. Finalmente situa o anarcafemiqnismo entre o feminismo e a teoria queer e trans. 

O Intermezzo In nomine matris abre a segunda parte do livro, em que a procura desenvolver um conceito amplo de feminilidade e assim invocar uma filosofia monista da transindividualidade como a estrutura filosófica mais adequada para fazê-lo. Particularmente interessante é o capitulo em que explora como a perspectiva filosófica resultante das leituras feministas do célebre filosofo marrano do século XVII, Baruch Spinoza, podem visibilizar a natureza transindividual de todos os corpos e da filosofia monista – uma filosofia que não opõe corpos e mentes, reconhecendo a ambos como expressões sob diferentes atributos de uma mesma substância singular e infinita.

Essa perspectiva proporciona por sua vez uma base para sustentar que não se pode separar estritamente o sujeito do objeto de conhecimento, e por isso uma filosofia da transindividualidade é também uma filosofia transindividual, em que o discurso filosófico reivindica sua própria individualidade (o que explica por que Bottici começa a escrever com o pronome “eu” e logo passa para “nós” durante o processo de escrita). Seguindo essa linha, a autora aborda a questão que nos permite falar de uma “mulher” específica fora desse processo transindividual em curso, e com a ajuda de teorias filosóficas e práticas artísticas, responderemos que é através de um processo de contar histórias que conseguiremos.

O Intermezzo Itinerarium inaugura a terceira parte, na qual Bottici aprofunda o processo de ontogênese dos corpos generificados e sexuados considerando os níveis supra, inter e infraindividuais e focando nos interstícios que atualmente temos ao nosso alcance. Se o nível supra-individual leva à exploração da geopolítica global da ontogênese e à reivindicação de uma forma de feminismo “decolonial” e “desimperial”, o exame das interações entre corpos de gênero leva, em última análise, a uma análise do modo capitalista de (re) produção, onde o prefixo “re” entre parênteses pretende indicar que o capitalismo não produz se os trabalhadores não se reproduzem, apesar de precisamente colocar “reprodução” entre parênteses ter sido uma das ferramentas utilizadas para criar corpos com gênero.

Por fim, Bottici concentra-se nas infraações e em como os seres generificados nascem da capacidade (re)produtiva de animais, plantas e até mesmo de matéria inanimada, argumentando que uma ecologia transindividual não pode deixar de questionar a hierarquia do homem (acima de tudo). ) > mulheres ( sobre) > animais (sobre) > plantas (sobre) > matéria inanimada. Em suma, uma ecologia transindividual não pode deixar de ser uma ecologia de emancipação da singularidade.

“Enquanto outras feministas de esquerda cederam à explicação da opressão das mulheres com base num único fator, ou prenderam a libertação das mulheres num quadro estreito de compreensão da “feminilidade”, as anarquistas sempre deixaram muito claro que, para combater o patriarcado temos que combater as múltiplas formas e fatores de opressão – econômicos, culturais, raciais, políticos, sexuais, etc. — que comparecem mantendo-os; poderíamos dizer, àquelas que nos levam a privilegiar certas noções de feminilidade em detrimento de outras.”

Chiara Bottici

Consequentemente, o feminismo não é um movimento preocupado apenas com questões que tangem às mulheres, mas com a forma crítica de manter toda ordem social que, na situação crítica atual, é inseparável do “sistema de gênero moderno/colonial”, que reduz os papéis de gênero a um dimorfismo biológico e patologiza aqueles que se desviam dele. As normas de gênero e as dicotomias binárias de “homens” x “mulheres” são opressivas para qualquer pessoa, não apenas para as pessoas designadas como mulheres à nascença, embora os homens possam de fato beneficiar-se de um sistema de gênero binário onde eles têm muito mais possibilidades do que as mulheres de ocupar posições predominantes.

A Editora Criação Humana publicará, ainda o primeiro semestre de 2024, a tradução do livro “Anarcafeminismo”, da filósofa italiana Chiara Bottici.

Laurie Laufer: “Se você fosse homossexual ou transgênero, você teria medo de procurar um psicanalista”

A pesquisadora francesa comenta sobre seu trabalho desconstruindo tabus sexuais nas pesquisas que envolvem a psicanálise.

“Liberdade, igualdade, fraternidade!”: A Revolução Francesa é a representação do papel do povo na luta pela democracia. Contudo, durante muito tempo, os direitos universais do homem eram assegurados efetivamente apenas para o homem.

Esta realidade é testemunhada por Laurie Laufer, que se desenvolveu como acadêmica em estudos de gênero, psicanálise e políticas sexuais durante a ascensão do conservadorismo francês na última década.

Laurie Laufer embarcou, em 2017, para a Costa Rica em uma parceria com a Faculdade de Psicologia da França para ministrar um seminário sobre gênero e psicanálise, possibilitando essa entrevista.

Você é autora do livro “Qu’est-ce que le genre?”, onde aborda um conceito básico muito importante nos estudos feministas. Como ele abrange a definição de gênero na sociedade contemporânea?

O livro é uma obra coletiva: integra literatura, cinema, sociologia, história da ciência política, psicanálise, psicologia, psicologia do trabalho, etc. É um livro que tem como perspectiva estudar gênero a partir de diferentes pesquisadores e áreas de pesquisa e como eles utilizam o conceito para desconstruir estereótipos, preconceitos que naturalizam as relações sociais. O livro é uma resposta ao contexto atual francês em torno do conceito de gênero. Os conservadores diziam que todos aqueles que trabalhavam com gênero queriam que as mulheres se transformassem em homens, que todos eram homossexuais, que os filhos adotados por casais homoafetivos iriam enlouquecer… uma radicalização. Uma propaganda muito forte, muito conservadora, dos estudos de gênero. A resposta que proponho é que o gênero é um método para analisar hierarquia, discriminação, práticas discursivas e construções sociais.

Você possui uma ampla pesquisa sobre a psicanálise, como feminista. Que abordagem você dá a este viés da psicologia, considerada ainda muito patriarcal, e como combina com autorxs mais modernxs e feministas como Butler e Foucault?

Quando falamos de reprodução e sexualidade a situação fica bastante complicada. A psicanálise é uma ciência da sexualidade. Na década de 1950, a questão da transexualidade foi introduzida no campo da psicanálise e, a partir daí, iniciou-se o contato com o conceito de gênero. Contudo parou por aí, pois houve um movimento de patologização e medicalização da psicanálise. Durante todo esse tempo, o trabalho das ciências sociais a partir do gênero continuou a se desenvolver e esse distanciamento da psicanálise das questões sobre a sexualidade acabou provocando a rejeição de muitos grupos intelectuais.

Atualmente, em comparação com as ciências sociais, os psicanalistas estão apenas começando a estudar e dar as suas impressões e opiniões nos estudos de gênero. No campo da psicanálise, poucos pesquisadores questionam as práticas discursivas, o surgimento de conceitos e noções como a diferença entre os sexos, por isso me considero uma minoria dentro da academia. Fui a primeira a trabalhar essa relação entre gênero e psicanálise, já fora da universidade há outras pessoas que trabalharam essas questões a partir dos estudos de gênero, mas também são uma minoria do campo da psicanálise. É por isso que esta relação entre gênero e psicanálise permanece tão subversiva.

Você se autodefine como ainda uma minoria acadêmica dentro dos seus campos de estudo. Qual é a reação dos demais pesquisadores quando você expõe o que você vem estudando e propondo?

Na França há uma diferença política em relação aos Estados Unidos, por exemplo. Há uma tradição em relação ao discurso de que o direito do homem é universal, um republicanismo universalista. Em contrapartida, os Estados Unidos reconhece a particularidade das comunidades e por isso encontramos estudos específicos em relação as lésbicas, gays, pessoas com deficiência, negros, entre outros. Cada “comunidade” produz suas pesquisas, seus estudos, projetos, em diferentes campos. Na França não acontece dessa forma. É por isso que no início foi fácil dar lugar a esta posição. Repreenderam-me por ter uma abordagem americana, o que na França é um insulto. Me censuraram por sociologizar a psicanálise – o que é outro insulto -, e me censuraram por ter um discurso militante.

A psicanalista francesa Laurie Laufer é a nova autora da Criação Humana. Laurie é psicanalista, feminista, diretora e professora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7. Em 2024 lançaremos a tradução do livro “Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion”.

Entrevista realizada pela jornalista Lucía Molina Rodriguez para a Universidade da Costa Rica (clique aqui para ler a entrevista original)