Entrevista realizada por Luiz Eduardo Prado de Oliveira e Beatriz Santos em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018. A entrevista será dividida em três partes.
Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações. É autora do livro Vers une psychanalyse émancipée: renouer avec la subversion, que está sendo traduzido e será lançado em breve no Brasil.
LPO: Solicitaram-me, do Brasil, que eu a apresentasse em duas palavras. Respondi que você era professora e feminista, entre Foucault e Lacan. Mas depois, lendo sua bibliografia, notei que Lacan não estava tão presente assim em sua obra. Engano meu? Você trata muito mais da morte e do corpo do que de Lacan, e não parece se apoiar no jargão lacaniano. Como você vê tudo isso.
LL: Psicanalista e feminista me convêm muito bem. Meu percurso é o seguinte: comecei minha tese com Fédida, o qual faleceu pouco depois. A tese era sobre o luto e o desaparecimento. Abordei os discursos normativos em torno do luto; também, a questão das normas, das injunções normativas. Ao preparar minha tese de habilitação para orientar pesquisas, com Alain Vanier, busquei analisar os efeitos dos discursos normativos sobre a sexualidade. Evidentemente, encontrei Foucault. Eu procurava renovar a vocação crítica
da posição analítica. O que isso quer dizer? De certa forma, Foucault e Lacan sempre desconstruíram as normas de sua época. Em 1973, Lacan declarou à [rádio] France Culture: “Existem normas sociais em razão da ausência de qualquer norma sexual, eis o que diz Freud”. É isso o que me interessa. Nossa prática se baseia na transferência. Trabalhamos no caso a caso, mas inseridos em nossa época. Acredito que o risco para a prática analítica, se não nos interrogarmos sobre tudo isso, é transformar a psicanálise num discurso comum, ordinário; é reproduzir normas. Para mim, hoje, a vocação crítica da psicanálise implica o feminismo – um feminismo que trabalhe a questão da emancipação das mulheres por meio da psicanálise. O que também me interessa é ver como o movimento de liberação vai se aproximar dos direitos lgbtqi+ a partir dos direitos civis. O movimento de liberação das mulheres na França, desde os anos 1960 e 1970, se inspirou na psicanálise. Houve a criação, por Antoinette Fouque, da psicanálise política [psychépo], ou seja, da ideia de dar visibilidade à questão política no interior da psicanálise. Essa questão era então relativa ao corpo e à sexualidade das mulheres. O feminismo francês teve algumas fases. A primeira dizia respeito aos direitos civis, à igualdade cívica. Era preciso que as mulheres pudessem votar. A segunda fase, por sua vez, referia-se à liberdade do corpo, à procriação, ao aborto, com efeitos consideráveis sobre a sexualidade, por assim dizer. Isso me interessou bastante. A noção de liberdade é um pouco estranha para o psicanalista, e no entanto ela se apresenta através da noção de norma sexual. Não sei se estou sendo clara. Frequentei bastante a Escola Lacaniana de Psicanálise, a escola fundada por Jean Allouch, que é meu amigo. Tenho em relação a Lacan uma grande proximidade transferencial. Mas sempre fui um pouco resistente ao “estilo lacaniano”. Você compreende? Como minha transferência se deu com uma analista lacaniana, o estilo lacaniano é um pouco bizarro para mim. Fui formada num divã lacaniano, por assim dizer. Minha transferência me transformou nesse ponto. A transferência transforma.
BS: Tenho a impressão de que, apesar da extensão de seu trabalho e da importância da questão de gênero para você, seu pensamento é construído com referências lacanianas.
LL: Certamente. Eu me apoio muito no texto lacaniano, mas ao mesmo tempo sou muito crítica em relação a ele, assim como em relação a Freud. Meu pensamento é próximo ao de Lacan: o rsi, a estrutura, o mais além do Édipo, os complexos familiares, quando a família aparece como uma construção social. Meu pensamento se baseia na questão do amor em Lacan. Por outro lado, tenho muita dificuldade com tudo o que se apresenta como discurso dogmático, seja nos freudianos, seja nos lacanianos – com tudo o que se opõe à emancipação e impede de agir. O poder de emancipação me permite não ser completamente fagocitada pelo dogmatismo freudiano, kleiniano, lacaniano etc. É complicado não ousar criticar os mestres. Isso, diriam alguns, é a posição histérica das feministas. Entendo essa crítica, mas ela me faz rir. É uma crítica sem exterioridade em relação a certo discurso analítico. É complicado, não?
LPO: Sim, por certo. Você frequentou a Escola Lacaniana de Psicanálise, mas não publicou com eles.
LL: Eu publiquei, na revista deles, L’Unebévue, um artigo sobre Sidonie Csillag, a “jovem homossexual” de Freud. Publiquei também, em Chérir la Diversité Sexuelle, caderno da L’Unebévue, um texto sobre os trabalhos de Gayle Rubin, antropóloga estadunidense da sexualidade. O livro que estou escrevendo trata precisamente da questão da emancipação. Considero que os teóricos queer, gender, fizeram uma leitura muito interessante da psicanálise freudiana e lacaniana. É importante que os psicanalistas se abram aos discursos exteriores. Do contrário, fecham-se em algo endógeno. Freud sempre abriu a psicanálise para o exterior, para a literatura, para Leonardo da Vinci etc. Hoje, constatamos os perigos do enrijecimento e do fechamento em si dos discursos psicanalíticos.
BS: Quando meus alunosleem seu artigo sobre a “psicanálise foucaultiana”, sempre perguntam: “Para que uma psicanálise foucaultiana?”. Respondo que seu trabalho é uma crítica a um discurso psicanalítico fechado, rígido, e que você procura algo ligado à confrontação, ao limite, sobretudo no texto “É possível uma psicanálise foucaultiana?”.
LL: Trata-se de uma questão levantada por Jean Allouch.
LPO: Sim, é Allouch quem traz esta noção: a psicanálise levará em conta a contribuição de Foucault ou cessará de existir, pois não terá nenhuma nova contribuição. Isso interessa porque é uma perspectiva que aparece em diferentes lugares do mundo, sem coordenação institucional. Existe uma convergência que leva a Foucault e a Deleuze.
BS: Para você, Laurie, confrontar os limites da psicanálise com outras teorias, como as relativas ao feminismo e as oriundas de Foucault, é uma maneira de criticar a excessiva normatização da psicanálise, especialmente no que diz respeito ao sexo?
LL: Parti da proposição de Jean Allouch, “Ou a psicanálise será foucaultiana, ou não será mais”, feita em 1998 e retomada em 2015 em nosso colóquio sobre Foucault e a psicanálise. Por que acredito ser importante interessar-se por Foucault? Porque ele foi, a meu ver, um dos primeiros epistemólogos da psicanálise, o primeiro genealogista da psicanálise a provocá-la, a fazê-la avançar. Em História da loucura, Foucault lembra que Freud rompeu com a teoria da degenerescência e transformou a abordagem da loucura, o que Lacan, aliás, retoma. O encontro entre Foucault e Lacan é um pouco estranho. Lacan assistiu a vários seminários de Foucault – por exemplo, à conferência “O que é um autor?”. Quando Foucault afirma que Freud e Marx são os fundadores da discursividade, imediatamente Lacan elabora sua teoria do discurso. Lacan absorvia tudo, o que por si só é genial. Precisaríamos de uma epistemologia lacaniana. Seria de fato interessante localizar todas asreferências a outros autores em Lacan, o qual no entanto não cita, apenas raramente indica suas fontes. Ainda assim, Lacan foi alguém com uma força teórica genial, incrivelmente criativo. Outra coisa importante que Foucault diz acerca da psicanálise relaciona-se à questão da hermenêutica do sentido. Não é apenas Allouch que retoma o termo erotologia. Lacan já o havia feito no seminário sobre a angústia: “Não falo de psicologia, mas de erotologia”.
LPO: Mais precisamente, Lacan se refere a “um discurso desta realidade irreal que merece o nome erotologia” em 1962, quando desenvolve o grafo do desejo. A realidade irreal é um fio condutor que aparece ao longo do percurso dele e que lhe vem de Melanie Klein. É ela quem fala da realidade irreal do fantasma.
LL: A erotologia não é a scientia sexualis, ou seja, não é uma nosografia baseada nas sexualidades. Lacan mostra que as modalidades de transformação do sujeito passam pela questão do amor; ele se refere à invenção freudiana, ao amor de transferência. Lacan dedica um seminário inteiro a essa questão, mas trata disso em vários outros. O livro de Allouch L’amour Lacan é muito interessante. A psicanálise é uma forma de pensar o amor. Não a sexualidade, mas o amor. Não é a mesma coisa. Não? [Risos.] Não sei se respondi à sua questão.
BS: Ao mesmo tempo, nesse texto sobre a psicanálise foucaultiana, você volta à afirmação de Foucault: “Não penso que Lacan fosse revolucionário. Jacques Lacan queria ser psicanalista”. Ser psicanalista é por definição ser revolucionário?
LL: Eu me lembro bem dessa afirmação. Foucault diz: “Não penso que Lacan teria gostado que disséssemos que é um revolucionário. Ele queria apenas ser psicanalista, o que já é muito”. Termina observando que Lacan queria fazer da psicanálise uma teoria do sujeito. Lembro ainda que Foucault comenta: “Sou um experimentador de mim mesmo”. É muito interessante. Lacan foi um experimentador da psicanálise e da teoria analítica, e ele sempre a transformava. Talvez seja um pouco excêntrico dizer isso, mas em todo caso, quando leio Lacan, não o levo sempre a sério. Porque ele mesmo, creio, tinha uma relação bastante irônica com seu próprio saber, um pouco como Sócrates… Às vezes, alguns lacanianos levam a sério demais as palavras de Lacan, como se ele fosse um profeta. Na verdade, acho isso complicado. Jean Allouch, por exemplo, com quem converso frequentemente, tem uma relação com o corpo, a voz e o olhar de Lacan, não só com seus textos. Não é a mesma coisa. Allouch foi analisado por Lacan. Então, quando escreve sobre Lacan, não tem a mesma relação transferencial com os textos de Lacan do que aqueles que o leem sem tê-lo conhecido. Eu abro um livro de Lacan e o leio. É diferente relacionar-se com um texto sem pensar no corpo a corpo com ele, sem poder rir dele. Allouch pode rir.
BS: Mas você acha que rir ajuda a compreender melhor o texto?
LL: Ajuda a compreender de maneira diferente. Em 1936, Lacan enviou seu artigo sobre o estádio do espelho a Freud. O que ele disse a Freud foi: “Eu gostaria de conhecê-lo”. Freud nem sequer respondeu; não aceitou o pedido de Lacan de encontrá-lo. Isso foi mais importante para ele do que se Freud o tivesse recebido. Em consequência, Lacan passou a vida “retornando a Freud”, insistindo nesse encontro que não aconteceu. Ele se autoproclamou herdeiro de Freud. Existem muitos analistas que se autoproclamam herdeiros de Lacan, mas pelo motivo contrário: acreditam tê-lo encontrado porque frequentaram seu divã, porque foram de sua família, porque foram não sei o que mais. Percebe?
BS: Sim. Nessa primeira geração, os analistasiam ao seminário de Lacan, mas não havia textos a ler. Então, escutavam Lacan e liam Freud. A segunda geração, por sua vez, lia Lacan, mas não mais Freud.
LL: Ou os jovens estudantes de hoje, que leem Lacan ou Freud a partir dos teóricos de gênero. É você quem dizia isso, o que acho muito interessante. Por exemplo, em sociologia, aqui na França, ou mesmo em psicologia, os jovens estudantes começam por Problemas de gênero, de Judith Butler. Com base nela, vão ler Lacan ou Freud. Assim, Lacan ou Freud tornam-se capítulos do livro de Butler. Não se pode dizer que isso não tenha sentido. De fato, nossa epistemologia se complexifica.
BS: E mais: é diferente ler Lacan no original ou traduzido. Em geral, na tradução, há apenas uma versão disponível de Lacan, enquanto na França existem três ou quatro versões, concorrentes, que podemos comparar. A tradução cria fenômenos de sectarismo, me parece.
*Luiz Eduardo Prado de Oliveira (LPO) é Psicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Beatriz Santos (BS) é Psicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.