Editora Criação Humana

CORPOS NO PLURAL: RUMO A UM MANIFESTO ANARCOFEMINISTA

Nos últimos anos, tornou-se lugar comum declarar que a dominação ocorre por meio de eixos múltiplos, em que gênero, classe, raça e sexualidade se interseccionam um com o outro. Ainda que haja muitos trabalhos empíricos interessantes produzidos a partir da premissa da interseccionalidade, raramente estes se encontram vinculados à tradição anarquista que os precede. Neste artigo, gostaria de articular esse ponto, mostrando a utilidade, mas também os limites da noção de interseccionalidade, para entender os mecanismos de dominação e, depois, discutir a necessidade de um programa de pesquisa anarcofeminista. Em segundo lugar, tentarei fornecer a estrutura filosófica para tal empreendimento, argumentando que é na ontologia spinozista do transindividual que podemos encontrar os recursos conceituais para pensar sobre a natureza plural dos corpos das mulheres e, portanto, sobre sua opressão. Isso permitirá que eu tente articular a questão de “o que significa ser uma mulher” em termos pluralistas e, assim, também defender uma forma especificamente feminista de anarquismo. Concluindo, retomarei a tradição anarcofeminista para demonstrar por que ela é hoje a melhor aliada possível do feminismo na busca de uma teoria crítica da sociedade.

Em 2015, o Departamento de Educação do Estado de Nova Iorque (NYSED) lançou uma nova campanha para deficientes. Como parte do esforço para encorajar as pessoas com deficiência a trabalhar, o NYSED circulou um anúncio no metrô intitulado “Você tem alguma deficiência? Você quer trabalhar?”, e o enriqueceu com diversas imagens, representando, presumivelmente, pessoas
que são passíveis de deficiência. A mensagem comunicada por palavras é clara o suficiente: diz que, se você tem uma deficiência e quer trabalhar, você pode tirar proveito do benevolente NYSED (algo que pode deixá-lo muito feliz, tendo em vista que as pessoas representadas no anúncio estão sorrindo). Mas, além das palavras, o que está sendo comunicado naquilo que eu gostaria de chamar de nível “imaginal”, isto é, no nível das imagens que também são presenças em si mesmas? Considerando que as imagens operam nos sujeitos tanto no nível consciente quanto inconsciente, o que essas imagens estão nos dizendo? E talvez até mais importante: o que elas não estão contando, mas comunicando subrepticiamente? As imagens em exibição mostram, a partir do canto superior direito, um trabalhador da construção civil latino, uma estudante afro-americana, uma mulher de classe média (possivelmente latina), que está sendo ajudada por outra mulher, um mecânico afro-americano diante de um carro e, finalmente, uma mulher de classe média branca, porém idosa, que trabalha em um computador (figura 1). Para o usuário do metrô de Nova Iorque, as imagens não podem deixar de transmitir uma mensagem muito clara: a deficiência provavelmente diz respeito aos corpos raciais da classe trabalhadora, à juventude étnica e às mulheres, posto que, mesmo quando elas estão sentadas confortavelmente à mesa, ainda precisam de alguma ajuda.


Isso é o que está visível nas imagens. Vamos agora perguntar o que permanece invisível. O que está ausente e, no entanto, talvez ainda esteja presente de forma poderosa? Quem é o único claramente ausente dessas imagens, aquele que supostamente não precisa ser abordado por uma campanha de deficiência, aquele que, precisamente por causa de sua ausência conspícua, é implicitamente representado como imune à deficiência? O homem branco de classe média. Este é o seu privilégio invisível: ele é a exceção à deficiência que normalmente pode acontecer a pessoas de um status inferior.

Por outro lado, observe como raça, gênero e classe se cruzam nessas imagens. Na imagem do canto superior direito, temos um trabalhador da construção civil latino: seria menos provável que ele fosse incapacitado se fosse um homem branco da classe trabalhadora? O jovem estudante é claramente um afro-americano: os jovens brancos são imunes à deficiência? Por último, mas não menos importante: os únicos expoentes possivelmente brancos e de classe média são mulheres, e é significativo o fato de que ambas estão sendo ajudadas, seja por um computador ou por outra mulher. Homens brancos de classe média são imunes à necessidade
de ajuda? Por que não ocorreu à/ao designer do anúncio inserir um homem branco, entre todos esses diversos corpos, se a verdade é que, de acordo com as estatísticas, os homens brancos são, na verdade, os receptores mais comuns dos benefícios por incapacidade da Previdência Social? 1 Como o privilégio de ser representado como imune à deficiência caminha junto com o de se beneficiar
economicamente por incapacidade?


Alguém poderia continuar a análise do lado “imaginal” da campanha, destacando outros pontos; por exemplo, o fato de todas as imagens reproduzirem e transmitirem claramente um binarismo de gênero binário estereotipado: os homens estão fazendo o trabalho duro (mecânico e ligado à construção), enquanto as mulheres trajam vestes leves e estão sentadas em frente às mesas (e sendo
ajudadas). Além disso, observe que apenas os homens são representados olhando diretamente para você, enquanto o olhar das mulheres é sempre direcionado para outro lugar: presumivelmente em direção à fonte de ajuda que elas claramente demonstram precisar. Ser exposto a tais imagens quando entramos no metrô afeta o modo como os corpos se percebem? Poderia esse desvio presente no olhar (para baixo) das mulheres estar sutilmente ligado, de modo não dito, ao fato de que, apesar de toda pretensa discussão sobre a igualdade entre homens e mulheres, estas ainda estão sujeitas à discriminação sistemática?

Mais poderia ser dito a esse respeito, mas o ponto principal que gostaria de salientar sobre a natureza interseccional da discriminação social é o seguinte: quando se trata de representar corpos (e, nesse caso em particular, corpos que são provavelmente afetados por de ciência), gênero, fatores de classe e raça convergem entre si. Mas, se esse é o caso, faz sentido apresentar um manifesto especificamente feminista? Neste texto, gostaria de articular esse ponto, mostrando primeiramente a utilidade, mas também os limites, da noção de interseccionalidade, para, assim, defender a necessidade de avançar para o que chamarei de um programa anarcofeminista. Em segundo lugar, tentarei fornecer o arcabouço filosófico para tal empreendimento, argumentando que é em uma ontologia spinozista do transindividual que podemos encontrar os recursos conceituais para pensar sobre a natureza plural dos corpos das mulheres e, assim, de sua opressão. Isso me permitirá abordar a questão de “o que significa ser uma mulher” em termos pluralistas e, portanto, também defender uma forma especificamente feminista de anarquismo. Em conclusão, voltarei à tradição anarcofeminista e mostrarei por que hoje ela é a melhor aliada do feminismo na busca de uma teoria crítica da sociedade.

1. DO DIAGNÓSTICO PARA UMA PROPOSTA POSITIVA: INTERSECCIONALIDADE E ALÉM

Existe agora uma grande quantidade de trabalho empírico detalhado, mostrando como formas diferentes de opressão reforçam e sustentam umas às outras. Desde a década de 1970, quando as feministas começaram a investigar o modo como a família mononuclear se uniu à outras instituições, como escolas, fábricas e exércitos na reprodução do patriarcado, a ideia de um modelo interseccional começou a emergir.2 O principal insight por trás dessa palavra-chave é que, se quisermos entender como funciona a opressão das mulheres, não podemos nos limitar a um único fator (seja gênero, raça ou classe), mas precisamos investigar a maneira pela qual uma pluralidade de fatores se cruzam para reforçar e reproduzir a posição inferior das mulheres. Dizendo sem rodeios: a opressão em geral, e a opressão das mulheres em particular, é plural, porque o mundo é plural, então precisamos de programas de pesquisa como o de “interseccionalidade” para capturá-la.

Na tentativa de fazer valer tal pluralidade que os títulos das publicações começaram a crescer: migramos de Women, race and class (Davis, 1981) para Identities and inequalities: exploring the intersections of race, class, gender and sexuality (Newman, 2001), que acrescenta à lista de fatores uma distinção ainda comum, mas agora contestada, entre sexo e gênero3. Talvez tenha sido sob o

impulso dos estudos pós-coloniais e queer que a interseccionalidade oresceu e, consequentemente, a literatura correspondente se expandiu nas últimas décadas. Devido à influência das feministas pós-colonialistas, que destacaram que a emancipação das mulheres no Hemisfério Norte pode vir com o custo de uma maior opressão das mulheres do Hemisfério Sul, o feminismo se viu forçado a repensar o quão intrinsecamente brancos são os seus vieses, o que fez do termo imperialismo um adendo inevitável à lista.4 Porém a lista não para por aí, uma vez que outras formas de opressão também mereceram serem trazidas à cena. Por exemplo, Holmes (2010) intitulou seu trabalho Marked bodies: gender, race, class, age, disability, disease. Embora ela tenha esquecido a sexualidade (que é diferente de gênero) e o imperialismo (que é diferente de raça), vale creditar a ela ter trazido à tona outros itens importantes, como idade, de ciência e doença; o que se faz da imagem da velha com seu laptop, na campanha de de ciência mencionada anteriormente, é um bom exemplo de tal interseccionalidade.

Apesar do fato de que vários trabalhos empíricos muito importantes foram feitos sob o título de “interseccionalidade”, restam alguns problemas (para além de uma lógica produtivista existente na academia). Primeiro, qualquer lista está aberta à objeção de que esta não pode ser senão incompleta: se é o caso, como penso, que não se pode compreender a opressão das mulheres em nossas sociedades sem olhar para o modo como diferentes fatores se cruzam uns com os outros, por que parar com os itens mencionados antes? Por que não incluir “beleza”, por exemplo? Dificilmente se pode ignorar como as expectativas do capitalismo, classe e raça se fundem com imagens de beleza na transmissão de padrões hegemônicos de feminilidade. Basta medir o espaço dedicado a produtos de beleza para mulheres com aqueles reservados para homens em um supermercado e você terá uma noção espacial dos diferentes graus em que as expectativas de beleza impactam homens e mulheres.5 Mas seria suficiente adicionar mais um item? Haverá um fim para isso? O problema com as listas é, na verdade, duplo: elas são todas necessariamente incompletas, enquanto, ao mesmo tempo, estão necessariamente fechadas.

Em segundo lugar: apesar da interseccionalidade ser uma boa ferramenta para orientar a análise empírica, uma vez que impede que qualquer tipo de reducionismo (por exemplo, que classe ou raça sejam o fator que explica tudo), existe o risco de perder-se algo sobre a especificidade da opressão das mulheres. Se todas as formas de opressão se cruzam entre si, faz sentido falar sobre “feminismo”? Se as listas estão sempre se expandindo, o que há de tão específico sobre a condição das mulheres? O que estamos dizendo quando dizemos “mulheres”? Essa palavra não está, por si mesma, sugerindo sub-repticiamente uma distinção heteronormativa de gênero entre mulheres e homens, que pode, em si mesma, ser uma fonte de opressão para aqueles que não se identificam nem como homens nem como mulheres? Podemos falar sobre a condição específica das mulheres e justificar uma posição feminista distinta, sem cair na armadilha da heteronormatividade ou, pior ainda, do essencialismo?

Para responder a essa dupla crítica, gostaria de apresentar um apelo a um manifesto anarcofeminista. Fazer isso significa manter juntas as duas afirmações: que há algo específico sobre a opressão das mulheres e que, para combatê-las, você tem de lutar contra todas as outras formas de opressão. Dito de outro modo, isso significa defender uma posição que é, ao mesmo tempo, feminista e anarquista.

No que se segue, eu gostaria de tentar defender tal posição tanto no nível metodológico quanto no substantivo (embora, como ficará mais claro adiante, essa seja apenas uma distinção que se mantém na teoria, já que, na prática, os dois níveis convergem). No nível substantivo, defender uma abordagem anarcofeminista significa argumentar que não existe um arcabouço abrangente, isto é, nenhum princípio ou origem única da sujeição das mulheres. O trabalho feito em nome da interseccionalidade mostrou que nem sexo, nem classe ou raça, nem qualquer outro item único que possamos escolher em nossas prateleiras de gênero pode aspirar ser o único fator, a origem decisiva, o arqueológico que explica, o que, portanto, também explica a natureza pluralista da opressão das mulheres.

A teoria queer é particularmente interessante nesse aspecto, pois tem em si uma agenda de pesquisa pluralista que nos permite manter juntos uma variedade de tópicos. Neste trabalho, porém, deixarei de lado a teoria queer, visto que o que mais me preocupa aqui é a posição específica das mulheres. E falando abertamente, embora eu ache que é absolutamente crucial engajar e continuar a trabalhar em estudos queer, afim de apontar as armadilhas na simples identificação binária de gênero, eu também acho que há pessoas que são oprimidas precisamente porque são mulheres. E é principalmente com essa forma de opressão que me preocupo neste trabalho.

E aqui passo para o nível metodológico: desenvolver uma posição anarcofeminista implica desenvolver uma posição feminista que não seja simplesmente desconstrutiva ou negativa, mas que seja, ao mesmo tempo, uma forma de feminismo sem ascendência (observe aqui que, em contraste com outras formas de feminismo, como o feminismo marxista ou o feminismo foucaultiano, o próprio termo anarcofeminista se articula na tentativa de se livrar de qualquer ascendência). E os desafios para tal posição estarão, portanto, muito próximos daqueles que as feministas tiveram de enfrentar no passado: como defender a especificidade da feminilidade sem incorrer em qualquer forma de essencialismo? Para antecipar o conteúdo da próxima seção deste artigo, é em uma ontologia da substância única que, sugiro, podemos encontrar os recursos teóricos para pensar sobre uma individualidade (a das mulheres) que, é ao mesmo tempo, aberta, mas também determinada o suficiente para o nosso projeto.

2. CORPOS NO PLURAL: DO INDIVIDUAL PARA O TRANSINDIVIDUAL

Com a ajuda da visão de Balibar (1997), de que o conceito de individualidade de Spinoza é mais bem entendido como transindividualidade, tentarei mostrar que a ontologia mais monista de todas também pode ser a mais pluralista. Mas antes de fazê-lo, eu preciso mencionar que, ao fazer isso, também estou me inspirando nos Imaginary bodies, de Gatens (1996), pois é nesse trabalho que eu encontrei uma maneira de combinar muitos dos tópicos filosóficos que eu estava seguindo. E embora eu faça isso em uma direção anarcofeminista que talvez não agrade nem a Gatens nem a Balibar, eu ainda sou muito grata a ambos.

Apesar do fato de que uma tradição distintamente anarcofeminista começou já no século XIX, esta foi imerecidamente banida do debate público e, em particular, dentro da academia. Isso se deve, em parte, a um rechaço generalizado ao anarquismo, na maioria das vezes injustamente representado como sinônimo de caos e desordem, mas também à dificuldade de distinguir entre anarquismo em geral e anarcofeminismo em particular. Se é verdade que o anarquismo combate todas as formas de opressão, então ele também se opõe à opressão às mulheres. Mas se esse é o caso, por que falar de uma posição especificamente anarcofeminista? Isso criou uma lacuna teórica no campo, que foi preenchida apenas de maneira muito parcial.6 Minha contribuição para esse empreendimento

envolverá apontar para uma ontologia especí ca do corpo, ou do que chamarei de ontologia dos corpos no plural, o que nos permite falar especificamente sobre as mulheres e sobre a pluralidade de sua opressão.

Não há nem o espaço nem a necessidade de se envolver aqui no exercício filológico de tentar mostrar por que uma ontologia do transindividual é a melhor maneira de interpretar os textos de Spinoza. De fato, aqueles que querem esse argumento na forma de uma exegese precisa das obras de Spinoza podem ler o ensaio seminal de Balibar (1997) Spinoza: from individuality to transindividuality. Em vez de fazer isso, tentarei resumir seus insights fundamentais e apresentar um esboço dessa ontologia, de uma forma que, esperamos, também seja acessível ao não especialista.

Como Spinoza aponta, é evidente, em si mesmo, que o não poder existir é carecer de poder, e o poder existir é ter poder. Assim, se o que necessariamente existe são apenas seres finitos, então os seres finitos são mais poderosos do que um ser absolutamente infinito, o que é um absurdo. Então, ou nada existe ou um ser absolutamente infinito também existe. Mas nós existimos, seja em nós mesmos ou em alguma outra coisa que necessariamente existe. Portanto um ser absolutamente infinito existe necessariamente (EI P11, 2 prova alternativa).7 Essa é, a meu ver, a mais bela lição do spinozismo: se existem 20 pessoas nesta sala, então existirá necessariamente um ser infinito.8

Mas dizer isso também implica que existe uma substância, uma substância única infinita que se expressa por meio de uma infinidade de “atributos”, em que o último termo significa o que o intelecto percebe da substância como constituindo sua essência (EI D4). Entre a infinidade de tais atributos, aqueles que são acessíveis a nós (pelo menos em nossa condição humana atual) são pensamento e extensão. Um único pensamento é, portanto, apenas um modo no atributo do pensamento, enquanto um único corpo é um modo no atributo da extensão.

Afim de limpar o caminho imediatamente de qualquer possível mal- entendido, isso não significa que o pensamento e a extensão, ideias e coisas, sejam paralelos um ao outro. “A ordem e conexão de ideias é o mesmo (idem) que a ordem e conexão das coisas” (EII P7): pensamento e extensão são os mesmos (idem), não paralelos um ao outro, e muito menos são duas diferentes substâncias. Precisamos sublinhar isso, porque sempre que falamos de mente e corpo, ou ideias e coisas, a estrutura metafísica dualista que herdamos tende a penetrar sub-repticiamente. O primeiro passo para chegar à uma concepção verdadeiramente pluralista do corpo é livrar-se dessa estrutura e, portanto, da ideia de que um corpo é algo diferente, paralelo ou mesmo oposto a uma mente. Corpo e mente são apenas dois modos que expressam dois atributos diferentes de uma substância infinita que se expressa por uma infinidade de atributos.

Isso também nos leva à compreensão específica da individualidade como transindividualidade, que se pode desenvolver inspirando-se em Spinoza e, em particular, no tipo de compêndio de sua física, que ele apresentou na Parte II da Ética, onde seu materialismo excêntrico emerge plenamente (EII P13-P15). Se pensamento e extensão são apenas dois dos atributos infinitos da substância única, então não podemos falar de uma ontologia simplesmente materialista, sem acrescentar imediatamente que não é a matéria estática, inanimada e bruta que está em jogo aqui. O materialismo de Spinoza é mais parecido com uma forma de materialismo espiritual do que com o que tendemos a associar ao rótulo “materialismo”, precisamente porque a extensão e o pensamento são apenas dois dos atributos infinitos da mesma substância. Dentro de tal ontologia, as coisas individuais (res singulares) existem apenas como uma consequência da existência de outras coisas individuais (EI P28), com as quais elas participam de uma rede infinita de conexões (Balibar, 1997, p. 27). Observe aqui que isso também implica que a causalidade não deve ser entendida no sentido de uma sucessão linear de eventos, mas sim como uma multiplicidade de conexões de elos causais entre indivíduos, que são feitos de indivíduos mais simples e mais complexos, todos relacionados causalmente. Do contrário, todo indivíduo é constantemente composto e decomposto por outros indivíduos com os quais entra em contato por meio de um processo de individuação, que envolve tanto os níveis infraindividual como supraindividual (Balibar, 1997, p. 27). E é para traduzir essa complexidade que, segundo Balibar, a individualidade deve ser entendida como uma transindividualidade.9

Indivíduos, portanto, nunca são compreendidos como átomos, eventos, e muito menos sujeitos dados de uma vez por todas. São processos, resultados de movimentos constantes de associação e repulsão que conectam indivíduos simples com outros indivíduos simples, mas também com indivíduos mais complexos, que constantemente fazem e desfazem um corpo. Para obter uma noção grosseira, mas e ciente, do que quero dizer aqui, pense em como nossos corpos são compostos e decompostos pelos líquidos que o atravessam: bebemos, mas transpiramos, urinamos, estamos constantemente processando líquidos, que, por contrapartida, processam nossos corpos. Da mesma forma, somos constantemente compostos pelas moléculas que inspiramos e expiramos de nossos corpos. Observe que, dentro dessa ontologia, o mesmo vale para pensamentos: como indivíduos, somos o resultado de todos os modos no atributo do pensamento que constantemente encontramos, sejam eles o artigo que você está lendo, a conversa telefônica que você teve com seu amigo esta manhã, ou os pensamentos inspirados pela campanha de de ciência mencionada no início deste artigo. Mais ainda: a ordem e a conexão de ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas, porque as ideias não são nada além de afirmações do corpo.

Outra maneira de fazer o mesmo ponto é pela teoria do conatus, ou esforço, de Spinoza, isto é, a observação de Spinoza, de que todo ser se esforça para persistir em seu ser (E III, P6). O conatus é esse “esforço” ou “empenho” para persistir em nosso ser que, por vezes, Spinoza também chama potentia ou potencialidade (EIII P7Dem). Embora todo indivíduo, até mesmo uma pedra, seja dotado de conatus, o que é típico dos seres humanos é constituído por uma série mais complexa de movimentos de atração, repulsão e imitação gerados por seus afetos (EIII P14-16; P21-34; EIV P6-P19), em que um afeto indica, ao mesmo tempo, uma afeição do corpo e a ideia desse afeto.

Mais uma vez, observe aqui como facilmente se sai da armadilha do dualismo metafísico. Como o corpo e a mente não são nada além de modos dentro de diferentes atributos da substância única, nenhuma separação radical entre um sujeito conhecedor e seu objeto pode subsistir. De fato, a própria noção de um sujeito fechado, de um ego cartesiano, não faz sentido nesta ontologia. Os seres humanos não são nada além de indivíduos complexos resultantes de movimentos de atração e repulsão entre indivíduos mais ou menos complexos.10 Em outras palavras, não são entidades dadas, mas processos, redes de relações afetivas e imaginárias, que nunca são dadas de uma vez por todas. Isto é, a meu ver, o sentido em que a afirmação radical de Spinoza deve ser interpretada: de que o desejo é a essência do homem (Cupiditas est ipsa hominis essentia: EIII, De nição das Emoções, D1). O desejo não é apenas uma característica dos seres humanos. É, muito mais radicalmente, o que os cria, e o faz por meio de um processo de individuação constante que é de natureza transindividual.11

Mas isso também significa que, como ressaltou Gatens, no processo de individuação que gera os seres humanos, a dinâmica complexa da identificação imaginária se torna particularmente crucial.12 Constantemente nos encontramos e nos reconhecemos, ou nos reconhecemos erroneamente em certas imagens corporais, que incluem imagens que temos de nossos corpos e de outros corpos,

bem como imagens que os outros têm delas e que se tornam constitutivas de nosso próprio ser. O termo-chave para manter juntos o lado mental e material desse processo é, para Spinoza, “imaginação”. Este último, em sua teoria do conhecimento, denota um conjunto de ideias produzidas com base em afetos corporais presentes ou passados (EII P26D, P 40S2). Afim de evitar mal- entendidos, devemos lembrar que uma ideia não é, para ele, apenas um conteúdo mental. A imaginação tem uma base corporal, porque a mente é apenas o corpo que é sentido e pensado. Além disso, uma ideia é, para Spinoza, “uma concepção da mente” (EII D3).

Seguindo Gatens e Lloyd (1999), talvez possamos resumir melhor a visão da imaginação de Spinoza, dizendo que ela é uma forma de consciência corporal, que signi ca consciência de nosso corpo e de outros corpos com os quais entramos em contato e que, como tal, é sempre, propriamente falando, uma forma de imaginação coletiva (Gatens & Lloyd, 1999, p. 12).

Enquanto Spinoza, e Gatens, com base em Spinoza, enfocam o papel que a imaginação desempenha nessas dinâmicas de atração e repulsão que são constitutivas de nosso ser, eu prefiro reconceitualizá-las em termos do que tem sido chamado recentemente de “imaginal” (Fleury, 2006; Bottici, 2014). Apesar do fato de que as feministas desenvolveram o conceito de imaginação de Spinoza muito mais longe do que ele o fez (Gatens & Lloyd, 1999), o conceito de imaginação permanece imbuído nos pressupostos de uma filosofia a problemática do sujeito, da qual eu tenho tentado me distanciar [. . .] Entre os dois extremos de uma filosofia a da imaginação, entendida como uma faculdade que os indivíduos possuem, de um lado, e de uma filosofia do imaginário social, entendida como um contexto social que nos possui, de outro, existe uma terceira perspectiva, a do “imaginal”, que nos permite evitar as armadilhas de ambas as alternativas. Em poucas palavras: “imaginal” é aquilo que é feito por imagens, no sentido mais radical do termo, ou seja, imagens como representações que também são presenças em si mesmas (Bottici, 2014, pp. 54-63). Como tal, a noção de “imaginal” não faz quaisquer pressupostos ontológicos quanto ao estatuto real ou irreal das imagens: enquanto o conceito de imaginário está associado à ideia de irrealidade, como na expressão “isso é puramente imaginário”, o termo “imaginal” não carrega qualquer pressuposição ontológica tão forte. Da mesma forma, enquanto a imaginação tende a ser entendida como uma faculdade individual e o imaginário tende a ser entendido como um contexto social, o “imaginal” pode ser o resultado de ambos e é, portanto, um melhor companheiro teórico para o transindividual do que a imaginação ou o imaginário social: como o transindividual, o conceito do “imaginal” aponta para a necessidade de se livrar da própria alternativa binária social versus individual.

É em termos do que Gatens chama de “corpos imaginários”, e que eu gostaria de chamar de “corpos imaginais”, que podemos entender o lado psicológico do processo de individuação descrito acima.13 Sempre que nosso corpo encontra outro corpo, que pode ser um corpo simples, como um copo d’água, ou um mais complexo, como outro ser humano, uma mudança em sua própria constituição ocorrerá. É nesse sentido, e a m de manter juntos o que acontece tanto no nível infraindividual quanto no supraindividual, que a noção de transindividualidade se torna particularmente útil. Em suma, nossos corpos são sempre necessariamente corpos no plural, porque sua individualidade é sempre e inevitavelmente uma forma de transindividualidade. Todos nascemos de outros corpos e, desde nosso nascimento, somos constantemente transformados ao encontrarmos outros corpos, ao mesmo tempo que também os afetamos constantemente. O conceito de transindividualidade serve para sinalizar tal complexidade e nossa natureza processual.

O problema, no entanto, inevitavelmente emerge do que pode garantir a continuidade no espaço e no tempo para tais processos em andamento. Mas antes de passarmos a essa questão, deixe-me primeiro explicar o que quero dizer com “corpos no plural” e por que essa compreensão do corpo pode nos levar além de alguns dos impasses que assolaram a loso a feminista nas últimas décadas. Primeiro, por “corpos no plural”, pretendo sublinhar a natureza transindividual dos processos de individuação, isto é, de um processo que une os níveis infraindividual e supraindividual. Em segundo lugar, ao colocar o corpo dentro de uma ontologia da substância única, é possível superar todas as oposições que acompanharam os debates feministas desde o início: a sujeição das mulheres é o resultado de sua biologia (natureza) ou de sua criação (cultura)? Por trás dessa oposição, bem como por trás da oposição entre sexo e gênero, há, de fato, o típico dualismo metafísico ocidental que gira em torno da dicotomia entre corpo e mente (Gatens, 1996). Mas se entendermos corpo e mente simplesmente como modos dentro de diferentes atributos da mesma substância, então nenhuma oposição entre os dois pode se sustentar: e é dentro de tal quadro ontológico que também se torna possível levantar a questão “o que é uma mulher? ‘evitando as falsas alternativas entre’ essencialismo ‘e’ culturalismo”. Uma vez que o corpo não é mais entendido como uma entidade inerte e fixa, não há mais necessidade, mas também não há mais espaço para elevar a carga do essencialismo.

3. MULHERES EM PROCESSO, MULHERES COMO PROCESSOS

Como mencionei antes, a questão mais saliente que essa ontologia levanta é o que garante a continuidade de uma individualidade no espaço e no tempo. Se a individualidade deve sempre ser entendida em termos de transindividualidade, de um processo constante de individuação, como podemos falar de um único indivíduo em um momento e tempo específicos? É combinando Spinoza, a Psicanálise e a Sociologia que responderei: a narrativa. É realmente por meio de uma história dos encontros do passado e do presente que constituem uma única individualidade que podemos encontrar o o que nos permite falar de um único indivíduo em algum momento no tempo.

Tal história não é apenas a história que contamos a nós mesmos, como se fôssemos mônadas isoladas sem janelas e portas. É novamente todo um processo de contar histórias, que também terá de ser o resultado dos encontros entre as histórias que contamos a nós mesmos e as que nos dizem, entre as histórias em que nos reconhecemos e as que não nos reconhecemos.14 E é por uma história

que, nesta seção, eu gostaria de tentar abordar a questão: “o que é uma mulher?”. Primeiro abordarei a questão do que significa compreender a mulher como um processo e, em seguida, passo a ilustrar esse ponto pelo exemplo de um encontro “imaginal”.

A objeção usual levantada contra o feminismo radical, e, em geral, contra todas as formas de feminismo que se apegam à noção de feminilidade, é o risco de cair em uma forma de essencialismo ou, o que é pior, em uma forma de heteronormatividade que congela as potencialidades do gênero no binarismo mulher/homem. Como deveria ser evidente neste ponto, dentro de uma ontologia monista do transindividual, tal objeção não pode ser mantida. O corpo não é uma matéria inerte, ou uma essência, à qual podemos atribuir propriedades xas imutáveis (como certos tipos de genitália ou balanços hormonais). Pelo contrário, o corpo em geral e o corpo das mulheres em particular são processos.15

As práticas artísticas desfrutam de uma posição privilegiada nesse sentido. Ao fornecer espaço para desafiar as visões hegemônicas de maneiras que conectam a crítica racional com a ligação emocional, elas são frequentemente um espaço particularmente e ficaz para renegociar nossos seres imaginais. Para colocar nas palavras de Muñoz, pode-se entender essa iluminação como um excedente de afeto e significado; um excedente que é gerado pela iluminação especificamente antecipatória da arte (Muñoz, 2009, p. 3). E se é verdade que ser mulher, em nossas sociedades capitalistas, envolve cada vez mais o “domínio imaginário” (Cornell, 1995) ou mesmo o registro do espetáculo comoditizado (Ehrlich, 2009), então podemos olhar para as práticas artísticas como um possível local para a promulgação de contraespetáculos.16

Vamos considerar a série de trabalhos sobre Pastrana, feita e executada pela artista mexicana Laura Anderson Barbata, em Nova Iorque. A figura 2, intitulada Julia e Laura, captura um desses momentos.17 Na foto, você pode ver uma mulher-artista (a tela nas costas) que se projeta como um espelho de outra mulher, ao lado de uma estátua, e usando uma barba preta. As duas mulheres têm vestidos roxos semelhantes, o mesmo tipo de pose, sapatos e penteados semelhantes, mas uma usa óculos e a outra uma barba espessa e comprida. Curiosamente, a artista- mulher sem barba se chama Laura Anderson Barbata, que, em espanhol, como em minha própria língua nativa, é muito próxima de barbuda, que significa literalmente “uma mulher barbada”. Isso sugere que a mulher à esquerda da imagem é a verdade do XX da mulher à direita? A posição da artista na frente da tela é a verdade da mulher barbada à esquerda ou a ruptura no meio da imagem, sugerindo um processo de identificação e desidentificação ao mesmo tempo? Eu diria que é ambos, e precisamente assim, essa imagem funciona como um meio de interrogar e renegociar a feminilidade.

Na história de Julia e Laura, que Laura Anderson Barbata tem contado em suas imagens e em suas performances, ficamos sabendo que Julia Pastrana nasceu em 1834, em uma pequena aldeia mexicana no Estado de Sinaloa.18 Muito pouco se sabe sobre o primeiros 20 anos de sua vida, exceto que, em algum momento, ela estava morando na casa do governador de Sinaloa, onde foi treinada como dançarina e meio-soprano, e onde aprendeu francês e inglês. Em 1854, ela foi vendida ao sr. Francisco Sepúlveda, que fez uma parceria com um empresário americano, Theodore Lent, para apresentar Julia Pastrana nos Estados Unidos. Naquele mesmo ano, Theodore Lent se casou com Julia Pastrana em Nova Iorque. A partir de então, seu empresário e seu marido a apresentaram como: “A mulher mais feia do mundo”, “A indescritível”, “O hirsuto”, “A mulher do macaco”, “A fêmea híbrida”, “A mulher-urso”, “Dama Beduína” e a “Mulher- Macaco”, entre outras denominações.

Em 1860, Pastrana, que estava grávida do lho de seu marido, viajou para Moscou, onde deu à luz um bebê diagnosticado com a mesma condição que a dela (isto é, coberto de pelos pretos excessivos e uma mandíbula superdesenvolvida). Tanto o bebê quanto a mãe morreram logo após o nascimento. Depois da morte deles, Theodore Lent vendeu seus corpos para o dr. Sokolov, da Universidade de Moscou, que desenvolveu uma técnica especial de embalsamamento e queria usá-los para mais investigações cientí cas. Mas, dois anos depois, Lent voltou a Moscou para recuperá-los e, com o apoio da embaixada dos EUA, conseguiu obter seus corpos. Ele os colocou dentro de uma caixa de vidro e começou a exibi-los por toda a Europa, com grande sucesso comercial.

Desde então, os corpos de Julia Pastrana e seu bebê continuaram a ser exibidos, pesquisados, roubados e dani cados. O fascínio que exerciam não se deteve com a morte: pelo contrário, era aumentado por ela, porque sob uma caixa de vidro, eles se tornavam controláveis. Em 1976, ladrões invadiram um armazém em Oslo, onde os corpos eram mantidos e jogaram o corpo do bebê em um campo, onde ele foi comido por roedores. O braço de Julia foi arrancado e encontrado muito depois, já o seu corpo permaneceu desaparecido até 1988, quando emergiu novamente. Em 1994, o corpo estava sob custódia do Departamento de Anatomia Forense de Oslo, para ns de pesquisa. Artigos e publicações descrevendo seu caso apareceram em todo o mundo, mas ela ainda era praticamente desconhecida no México.

Em 2003, Laura Andersen Barbata conheceu a história de Julia Pastrana, por uma peça dedicada à sua vida. A partir desse ponto, Barbata se engajou ativamente em uma campanha internacional, tentando recuperar o corpo de Pastrana e devolvê-lo ao México. Após dez anos de lutas, o corpo foi finalmente devolvido a Sinaloa, no México, onde foi enterrado com uma foto de seu filho no peito. Barbata foi muito ativa em garantir que seu túmulo fosse completamente coberto de concreto e fechado em paredes que medem mais de um metro de espessura para garantir que ela nunca mais seja exposta. No entanto, ao mesmo tempo, ela continuou performando essa história e expondo-a através de seu trabalho. Por quê?

Para entender o tipo de operação artística em questão, temos de dar um passo para trás e explorar o tipo de lógica exibicionista que emergiu da história de Julia Pastrana. Considere a figura 3, reproduzindo o anúncio do desempenho de Pastrana (1855) em Worcester, Massachusetts (1855). A captura nos diz imediatamente que temos um “índio Opate”, que se caracteriza por unir duas características (mulher e urso) que são incompatíveis. A imagem exagera tanto a quantidade de cabelo no corpo de Pastrana quanto seus traços masculinos, que contrastam ainda mais com sua feminilidade: é a combinação excêntrica de elementos que a visão hegemônica de feminilidade na época não permitia combinar, isso faz dela “mal-dita”, a criatura que é impossível nomear. Mas isso também explica o fascínio com seu corpo e, portanto, as razões para transformá-la em um espetáculo. A bela voz de um meio-soprano treinado, os panos chiques e a postura composta, invocando valores de adorno e submissão associados à moderna feminilidade ocidental, foi percebido como estando em desacordo com a espessura de sua barba, o excesso de seus cabelos, que, em vez disso, lembram os atributos tradicionais da masculinidade ocidental moderna. Como Preciado (2013, p. 114) observa, o deslocamento de pelos no corpo é um local crucial para a produção de corpos de gênero e raciais na Modernidade. No sistema tecnogênero do século XIX, a exibição de “senhoras barbadas” como monstruosidade andava de mãos dadas com a invenção do hirsutismo como uma condição clínica, tornando as mulheres normais potenciais clientes do sistema médico e cosmético normalizador. Observe aqui como o gênero selado com raça como “hirsutismo” tornou-se uma condição clínica que ajudou a classificar a feminilidade normal e as raças inferiores (Preciado, 2013, pp. 114-15)19. Não por acaso, a propaganda apresenta a estranha combinação feminina de Pastrana e traços masculinos como um índio “Opate”, relegando-o assim a uma raça inferior, e talvez até a uma espécie inferior: a rotulagem “Urso Mulher” não pode senão simbolicamente relegá-la a um espaço liminar entre uma espécie superior (humano) e uma inferior (animal).

Não é difícil reconhecer, nesse anúncio, a típica lógica exibicionista do colonialismo.20 O fascínio do índio “Opate” e da “mulher do urso” advém do fetiche colonial que precisa ser exibido no coração dos territórios dos colonizadores, a fim de reforçar as visões hegemônicas da feminilidade em casa, mas também para impedir imagens alternativas de feminilidade. Com relação a essa lógica, o trabalho de Barbata opera um contraespetáculo terapêutico, pelo que chamei, em outro momento, de terapia homeopática: ela toma pequenos pedaços do espetáculo passado para se voltar contra si mesma, usando assim o mal contra o mal, realizando um espetáculo de feminilidade contra a lógica espetacular hereditária da própria feminilidade.21 No entanto, em vez de simplesmente nos convidar a identificar-nos com a história de Pastrana, a justaposição das duas imagens e a ruptura branca no meio nos convida a um constante questionamento das dicotomias estabelecidas que representam: a barbada versus a mulher depilada, a masculina versus a feminina, a metade animal versus a totalmente humana. Assim, ao interrogar a feminilidade espetacularizada no passado, é possível pensar em outras possibilidades futuras.

Em suma, a história de Julia Pastrana ilustra poderosamente o fascínio que a pluralidade de seu corpo exercia, mas também quão ambivalentes as respostas a ela podem ser. O problema é que as pessoas geralmente não estão abertas a aceitar tal pluralidade (porque também implica aceitar as ambivalências de alguém) e, portanto, o fascínio volta na forma da monstruosidade, da feiura, da adoração, mas também na violação dos corpos embalsamados. Note-se que o marido, que não só estava interessado em ganhar dinheiro com ela como a engravidou, e, após sua morte, casou-se com outra mulher, Marie Bartel, que sofria de condições semelhantes às de Pastrana. Ele tentou fazer com esta a mesma coisa que fez com sua primeira esposa, mas ficou louco e morreu em um asilo russo. Esse era o seu problema, mas talvez também o nosso problema: a nossa dificuldade em manter uma abertura verdadeiramente pluralista, o que implica também a capacidade de manter unidas as nossas ambivalências. Parafraseando Nietzsche, esta talvez seja a nova fórmula de nossa felicidade: “Um sim, um não, uma linha reta e uma barba” (Nietzsche, 1976, p. 570).

4. CONCLUSÕES: EM DIREÇÃO A UM MANIFESTO ANARCOFEMINISTA

Concluindo, gostaria de voltar à questão do reducionismo levantada no início e tentar mostrar brevemente por que, para os teóricos feministas críticos, o anarquismo pode ser um melhor interlocutor para abordar a questão da opressão das mulheres do que o marxismo. Alguns argumentaram que é por causa de seu reducionismo econômico que o casamento entre marxismo e feminismo terminou em uma união infeliz: ao reduzir o problema da opressão das mulheres ao único fator de exploração econômica, o marxismo acabou dominando o feminismo exatamente da mesma maneira em que os homens em uma sociedade patriarcal dominam as mulheres (Sargent, 1981). Embora esse reducionismo tenha sido questionado por muitas feministas marxistas,22 permanece, pelo menos em princípio, uma possível tentação reducionista no feminismo marxista que, por outro lado, sempre foi estranha ao anarcofeminismo.

Qualquer análise crítica da opressão das mulheres precisa levar em conta uma multiplicidade de fatores, cada um com sua própria autonomia, sem os tentar reduzir a uma fonte ou origem que explique tudo; seja a extração de mais-valia no local de trabalho ou a sombra da não remuneração do trabalho doméstico. Há algo intrinsecamente multifacetado na opressão das mulheres, tanto que não será surpresa agora considerar o fato de que os programas de estudos de gênero e de mulheres são todos, inevitavelmente, interdisciplinares. Note aqui que, em contraste com muitas caricaturas do pensamento anarquista que ainda prevalecem na mídia, o anarquismo denota principalmente um método, um que visa a questionar qualquer arche estabelecido, e não um modelo completo para a sociedade.23

Apesar do anarquismo e do marxismo frequentemente estarem no mesmo caminho e até mesmo convergirem nas lutas dos trabalhadores, a maior diferença entre eles é que os pensadores anarquistas têm historicamente trabalhado com uma noção mais variada de opressão que enfatiza a existência de formas de exploração a qual não pode ser reduzida a fatores econômicos (sejam estes políticos, culturais, sexuais, cosméticos, e assim por diante). Daí também seu casamento mais feliz com o feminismo: se a relação entre marxismo e feminismo têm sido historicamente uma ligação perigosa (Arruzza, 2010), que reproduz a mesma lógica de dominação entre os dois sexos, então a relação entre feminismo e anarquismo promete ser um encontro muito mais produtivo. Historicamente, os dois convergiram com tanta frequência que alguns argumentaram que o anarquismo é, por definição, feminismo (Kornegger, 2009). A questão não é simplesmente registrar isso, de Mikhail Bakunin a Emma Goldman, e com a única (possível) exceção de Proudhon, o anarquismo e o feminismo frequentemente convergiam nas mesmas pessoas. Esse fato histórico sinaliza uma afinidade teórica mais profunda. Você pode ser marxista sem ser feminista, mas não pode ser anarquista sem ser feminista ao mesmo tempo. Por que não?

Se o anarquismo é uma filosofia que se opõe a todas as formas de dominação, incluindo aquelas que não podem ser reduzidas à exploração econômica, ele tem de opor-se à sujeição das mulheres também, caso contrário é incoerente com seus próprios princípios. A maioria dos pensadores anarquistas trabalha com uma concepção de liberdade que é mais bem caracterizada como uma “liberdade de iguais” (Bottici, 2014, p. 178), em que a última expressão significa que eu não posso ser livre, a menos que todos os outros sejam igualmente livres, porque mesmo se eu for o mestre, a relação de dominação da qual participo vai me escravizar tanto quanto a própria escrava. Mas se eu não posso ser livre, a menos que eu viva cercado por pessoas que são igualmente livres, isto é, a menos que eu viva em uma sociedade livre, então a sujeição das mulheres não pode ser reduzida a algo que diz respeito apenas a uma parte da sociedade: uma sociedade patriarcal será fundamentalmente opressiva para todos os sexos, precisamente porque não posso ser livre por conta própria. E isso é algo que tendemos a esquecer: o patriarcado é opressivo para todos, não apenas para as mulheres.

Então, se é verdade que o anarquismo tem de ser por definição feminismo, o oposto é válido? Pode haver feministas que não são anarquistas? Claramente, historicamente falando, muitos movimentos feministas não eram anarquistas. No entanto, algumas feministas afirmaram que o feminismo, em particular o feminismo da segunda onda da década de 1970, era anarquista em sua estrutura e aspirações profundas. Segundo Kornegger (2009), por exemplo, as feministas radicais desse período eram anarquistas inconscientes, tanto em suas teorias quanto em suas práticas. A estrutura dos movimentos de mulheres (por exemplo, grupos de conscientização), com ênfase em pequenos grupos como unidade organizacional básica, no nível pessoal e político, e na ação direta espontânea, assemelhava-se muito às formas tipicamente anarquistas de organização (Kornegger, 2009, p. 494).

Mas ainda mais impressionante é a convergência conceitual com a concepção de liberdade que descrevi acima. Por exemplo, Kornegger (2009, p. 496) afirma que “a libertação não é uma experiência insular”, porque pode ocorrer apenas em conjunto com todos os outros seres humanos, o que, mais uma vez, significa que a liberdade não pode ser uma liberdade de iguais. No entanto, isso também implica que não se pode lutar contra o patriarcado sem lutar contra todas as outras formas de hierarquia, sejam econômicas ou políticas. Como Kornegger (2009, p. 493) novamente colocou, “feminismo não significa poder corporativo feminino ou uma mulher presidente: isso significa nenhum poder corporativo e nenhum presidente”.

Caso contrário, o feminismo não significa simplesmente que as mulheres devem ocupar o lugar ocupado pelos homens (o que seria uma forma bastante fálica do feminismo); em vez disso, as mulheres devem lutar para subverter radicalmente a lógica da opressão patriarcal, na qual o sexismo, o racismo, a exploração econômica, a opressão política, e assim por diante, reforçam-se reciprocamente, embora com formas e modalidades diferentes em diferentes contextos. Isso se mantém ainda mais hoje, em um mundo globalizado, onde diversas formas de opressão e exploração, baseadas em gênero, sexo, raça ou classe, cruzam-se. Talvez a maior contribuição do feminismo interseccional tenha sido mostrar que, se pelo feminismo, entendemos simplesmente a luta pela igualdade formal entre homens e mulheres, corremos o risco de criar novas formas de opressão. Corremos o risco de que a igualdade entre homens e mulheres signifique apenas que as mulheres devem assumir posições antes reservadas aos homens burgueses brancos, reforçando, assim, mais os mecanismos de opressão do que os subvertendo. Por exemplo, se considerarmos que a emancipação das mulheres significa simplesmente entrar na esfera pública em pé de igualdade com os homens, isso, por sua vez, pode implicar que outra pessoa deva substituir essas mulheres em suas casas. Mas, para a mulher imigrante que substitui a dona de casa branca na prestação de cuidados domésticos, isso não é liberdade: ela simplesmente sai de casa para entrar em outra, como trabalhadora assalariada.24 Na situação atual, se o feminismo não pretende dissolver todas as formas de hierarquia, a emancipação de algumas mulheres (brancas) pode acarretar na opressão de outras mulheres (imigrantes, negras ou do Sul).

Para concluir, talvez o feminismo não tenha sido historicamente sempre anarquista, mas deve-se tornar agora, porque deve ter como objetivo subverter todas as formas de dominação. O feminismo, hoje mais do que no passado, não pode significar a presença de mulheres governantes soberanas ou de mulheres capitalistas de sucesso: não significa nem soberania, nem capitalismo. E espero que seja com essas palavras que um novo programa de pesquisa anarcafeminista seja iniciado.

Chiara Bottici é Professora associada de Filosofia na The New School for Social Research, Nova Iorque, Estados Unidos. E-mail: [email protected]. Site: https://www.newschool.edu/nssr/faculty/chiara-bottici/

Publicação original: Bottici, C. (2017). Bodies in plural: towards an anarchafeminist manifesto. M. M. Moreira & C. Ratton
(Trads.). Thesis Eleven, 142, 99-111. Tradução inédita para o português realizada com a autorização da autora.

*Artigo publicado em: Corpos no plural: rumo a um manifesto anarcofeminista. Psicol. rev. (Belo Horizonte) [online]. 2020, vol.26, n.1, pp. 299-324. ISSN 1677-1168.  http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p290-316.

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