“O orçamento da polícia deve ser transferido para cobrir necessidades básicas”, por Dean Spade

Dean Spade é professor de direito na Universidade de Seattle e fundador do Sylvia Rivera Law Project , que oferece assessoria jurídica a pessoas trans, intersexuais ou não binárias sem recursos financeiros. Ele também é um ativista contra a expansão do sistema penal e policial. 

O trabalho de Spade está focado em desvendar os principais problemas do ativismo popular que, nos últimos anos e com a pandemia, cresceu enormemente nos Estados Unidos. Ele dedica seu último livro a essas formas organizacionais, Apoio Mútuo: Construindo Solidariedade Durante Essa Crise (e a Próxima). Já Uma vida “normal” (Ed. Bellaterra) –publicado em 2015– é um ensaio sobre como a violência institucional, o racismo ou a criminalização do uso de drogas influenciam a vida das pessoas LGBTQIA+, temas que normalmente não são abordados pela militância ou pelo ativismo que pauta reformas jurídicas.

Na Espanha, está prestes a ser aprovada uma nova lei trans que envolve a autodeterminação de gênero e algumas políticas de apoio às pessoas trans. Que impacto têm estas leis na transformação da vida das pessoas?

Uma das coisas com que lidamos nos movimentos sociais é a questão de como não focar apenas na produção de leis, ou na introdução de questões como o discurso de ódio sobre grupos marginalizados, porque isso nos faz colocar muito foco no poder do Estado . É como se só o governo pudesse resolver todos os nossos problemas. Além disso, reforça a ideia de que o que dizem as leis se refletirá automaticamente na vida das pessoas, e a realidade é que existe uma grande lacuna. Esta lacuna surge de diferenças dentro de grupos, dentro de cidades ou regiões, entre bairros, ou de diferenças na forma como os funcionários do governo e outros intervenientes veem as pessoas trans com deficiência, os imigrantes ou as pessoas transgênero de classe alta. Todas estas diferenças dentro de um grupo fazem com que a aplicação da lei tenha um impacto diferente, porque as leis são implementadas por pessoas e terão prioridades diferentes sob diferentes administrações ou sob diferentes partidos.

Outra preocupação é que quando as leis são legisladas ou as leis são alteradas, os governantes dizem: “Agora este grupo de pessoas é igual” ou “De agora em diante, serão bem tratados”. Dizem que resolveram os problemas na tentativa de desmobilizar os nossos movimentos. Nosso trabalho é dizer que nada será resolvido até que nosso povo consiga sobreviver, e a lei não é a ferramenta ideal para isso. O que realmente precisamos é de uma população fortemente mobilizada e de movimentos interseccionais radicais em constante resistência, que procurem verdadeiramente o bem-estar das pessoas frente ao que enfrentamos no capitalismo ou no neoliberalismo. 

Acredito no trabalho de reforma legislativa dos movimentos sociais, mas isso não deve ter um papel central. Devemos ter também um papel crítico.

De que tipo de leis as pessoas trans precisam ou quais seriam verdadeiramente transformadoras?

Deveríamos buscar uma reforma jurídica baseada no alívio do pior sofrimento enfrentado pelas pessoas trans, aquelas que se encontram nas situações mais complicadas e perigosas ou que estão verdadeiramente à margem: as pessoas trans que estão na prisão, aquelas que enfrentam a deportação, os mais pobres, as pessoas mais criminalizadas, as pessoas trans com deficiência. Observem as suas vidas e pensem se as reformas legais que estão a sendo consideradas vão resolver os seus problemas, porque se não, acabamos por criar leis que apenas aperfeiçoam o sistema que os mantém marginalizados. Sendo assim, a justiça se transforma em algo que só pode ser acessado se você tiver um emprego com status, ou se não estiver a margem. Isso significa que temos que analisar o impacto material das leis. Queremos evitar leis que sejam apenas simbólicas, que não ofereçam ajuda, que sirvam apenas pessoas de status elevado ou que tenham vida mais privilegiada, que é, na verdade, o que a maioria das leis acabam fazendo.

Queremos pensar em soluções jurídicas que vão além de ter a palavra “trans” escrita. Por exemplo, nos Estados Unidos, qualquer lei que ajude a reduzir o número de policiais será boa para as pessoas trans, porque a polícia as persegue; ou qualquer lei que ajude a reduzir as penas criminais por serem pobres ou usarem drogas, porque é assim que a maioria deles acaba na prisão. Aparentemente, essas leis não são para pessoas trans, mas, em última análise, seriam as mais benéficas. Devemos nos concentrar nelas. Por exemplo, nos Estados Unidos, foram aprovadas leis há décadas para endurecer as penas para ataques a pessoas trans por serem trans (crimes de ódio). Não há provas de que previnam a violência e geralmente servem para aumentar o financiamento da polícia e dos procuradores, e qualquer coisa que dê poder à polícia e aos procuradores é mau para as pessoas trans. Temos que pensar bem: como saber se a lei é realmente boa? Analisar se é bom para pessoas trans que se encontram nas situações mais vulneráveis.

As leis que criminalizam o trabalho sexual entrariam em jogo aqui?

Exatamente. Esta é uma das formas mais importantes de criminalizar as pessoas trans. Se conseguirmos descriminalizar o trabalho sexual e reduzir o impacto da polícia na vida dos trabalhadores do sexo, isso seria uma reforma legal que realmente ajudaria as pessoas trans.

No seu último livro você fala sobre apoio mútuo. Podemos combiná-lo com ação judicial ou estamos perdendo o horizonte de onde intervir?

Se quisermos uma mudança que seja libertadora, temos que exercer uma pressão significativa e sustentada dos movimentos sociais, precisamos da participação de muitas pessoas. Por vezes, o problema da reforma jurídica é que ela é levada a cabo apenas por algumas ONGs e envolve apenas algumas pessoas da elite. Não é uma estratégia muito participativa. E o que vejo tanto nos EUA como noutras partes do mundo é que, mesmo que existam boas leis, se não houver forma de sustentar a pressão da mobilização, elas não serão necessariamente aplicadas. O verdadeiro motor da mudança social para as pessoas trans deve ser a mobilização de base, por isso precisamos de organizações militantes trans fortes, mas também devemos estar conectados com outras organizações, como por exemplo, das trabalhadoras sexuais, de descriminalização das drogas, etc.

As redes de apoio mútuo são hoje locais onde muitas pessoas aderem aos movimentos sociais. É onde as pessoas comuns vêm e participam de mais do que ações para mudar a lei. O trabalho legislativo, quando vem da mobilização popular, tem mais qualidade, porque sabe quais são os problemas materiais cotidianos das pessoas vulneráveis ​​e, provavelmente, também como as leis existentes são aplicadas. Se você está fazendo um trabalho de apoio mútuo, você sabe antes de tudo detectar o problema e sabe exatamente como o sistema jurídico funciona atualmente. Ou seja, não como aparece na redação da lei, mas na prática, na sua aplicação.

Você faz parte do movimento abolicionista nos Estados Unidos. O que está acontecendo?

No ano passado houve uma mobilização social e antipolicial incrível em todo o país. Após as mortes de George Floyd e Breonna Taylor, ocorreram protestos em todos os lugares. Isto levou à demanda para retirar fundos e repasses da polícia . Há décadas que trabalho pela abolição das prisões e da polícia e estas ideias nunca chegaram ao mainstream como estão agora. 

Em muitas cidades, as pessoas têm lutado nas câmaras municipais e noutras instituições para literalmente acabar com o orçamento da polícia, ou reduzi-lo. Tem sido uma luta muito difícil porque nos últimos 40 ou 50 anos os orçamentos da polícia aumentaram todos os anos. É um dos momentos políticos mais emocionantes que já vi. As pessoas queer, trans e também as feministas são uma parte importante dessas lutas porque sabem que a polícia não nos deixa mais seguros. Isto é importante porque a desculpa da segurança das mulheres é frequentemente utilizada para pedir mais polícia. Onde eu moro, em Seattle, a polícia tem até adesivos de arco-íris, ou contrata um policial gay ou trans. Portanto, é muito importante que pessoas queer, trans, feministas e especialmente racializadas digam: “Isso não resolve nossos problemas, nós não queremos isso”. 

O que contribui para reduzir a violência ou o que nos traz a sensação de estarmos mais seguros?

Sabemos que a polícia só acrescenta mais violência a qualquer situação – prende as pessoas, utiliza da própria violência para bater e violar, em algumas situações. Se algo acontecer com você, a polícia chega quando tudo já aconteceu. Nada é feito para impedir que as coisas aconteçam. Além disso, eles podem punir quem fez algo, mas nada muda, nada garante que essa situação não voltará a se repetir, então você não estará mais seguro do que antes. 

Nos movimentos sociais, fazemos outros tipos de perguntas: “O que realmente faz com que estejamos mais seguros?” Uma das coisas que torna as pessoas mais seguras é o acesso à habitação, à alimentação e a um sistema de saúde público. Quando olhamos para as mulheres trans assassinadas nos Estados Unidos, muitas não tinham um lugar seguro para morar, o que as levou a situações perigosas, ou realizavam trabalho sexual de forma insegura, porque não tinham recursos para fazê-lo de outra forma. . Se quisermos segurança real, temos de transferir dinheiro dos orçamentos da polícia para habitação, saúde, cuidados infantis, etc., para cobrir necessidades básicas.

A segunda questão presente em pautas feministas, nos movimentos queer e trans, é sobre as suas própriascondições de vida. Nós nos perguntamos: o que as pessoas da nossa comunidade precisam? Devemos levá-los aos eventos e acompanhá-los depois? Precisamos que a comunidade ofereça formação sobre violência doméstica, sobre como apoiar os nossos amigos quando estão em situações de violência…? O que pode a militância de base fazer para mudar as condições de vida que tornam algumas pessoas da nossa comunidade tão vulneráveis?

 

Isto está relacionado com o que é chamado de justiça restaurativa?

Muitas pessoas nas nossas comunidades já realizam trabalho de justiça restaurativa, que envolve pensar que quando algo mau acontece, o que podemos fazer? Por exemplo, se estivermos num círculo social onde uma pessoa agride sexualmente outras, como podemos fazer com que isso pare? A vítima precisa de suporte? Por que a pessoa que cometeu esse crime fez isto? Essa pessoa tem problemas com drogas? Essa pessoa precisa de suporte em relação a sua saúde mental? Essa pessoa está fazendo isso porque precisa entender questões relacionadas a gênero e sexualidade de outra forma? E o que as pessoas que foram agredidas precisam para continuar fazendo parte da comunidade e se sentirem apoiadas em situações difíceis como essa? Como o dano causado não pode ser desfeito, pode haver uma maneira de curar e curar, de restaurar o seu bem-estar?

A polícia e os tribunais não oferecem nada disso. Portanto, tem mais a ver com a forma como respondemos para que isso pare de acontecer e todos os envolvidos fiquem em melhor situação, em vez de aplicar punições. A punição nunca diminui o dano causado. Na verdade, se uma pessoa violar outra e você a mandar para a prisão, ela poderá continuar a violar lá. Isso não resolve nenhuma das causas subjacentes. 

Na Espanha vemos um certo feminismo muito pautado na produção de novas leis ou mesmo em pedir o aumento das penas de leis já existentes. 

Nos Estados Unidos chamamos de “feminismo prisional” e não queremos um feminismo que se baseie no pedido de mais polícia e mais prisões. Vivemos num período, que começou na década de 1970 e continua desde então, em que a polícia e as prisões estão crescendo muito. Uma das razões pelas quais estão crescendo é sob o pretexto de “proteger as mulheres”. Assim, o governo começou a financiar programas para abordar a violência doméstica e sexual, trazendo como solução mais detenções e mais pessoas na prisão. Depois de aplicar isto durante 40 ou 50 anos, não vemos redução nos casos. Em relação à violência sexual, tivemos inclusive um aumento, porque a polícia é também uma importante fonte de violência sexual. 

Queremos enterrar o feminismo prisional e concentrar-nos num feminismo que vai no cerne das causas da violência contra as mulheres, pessoas queer e trans, e que quer acabar com a violência em vez de apoiar o crescimento da polícia. E nos perguntamos por que a maioria das pessoas que sofrem violência em casa não denunciam? Muitos não querem que os seus entes sejam presos ou sabem que a polícia não vai acreditar neles, porque são pobres, não têm documentos ou porque têm medo da polícia, porque são homossexuais ou trans, e já sofreram com a violência policial.

A solução tem a ver com acreditar que as pessoas, mesmo aquelas que causaram dor, fazem parte da nossa comunidade, e devemos responsabilizá-las, mas também possibilitar o retorno ao seu lugar. O objetivo é ajudá-los a mudar seu comportamento em vez de expulsá-los. O que é necessário para assumirmos que as pessoas não são apenas as coisas horríveis que fizeram? Vamos usar soluções comunitárias para reduzir danos. 

Foram as mulheres negras, os imigrantes, as pessoas com deficiência, que tiveram de buscar e encontrar essas estratégias de sobrevivência. Nunca conseguiram chamar a polícia, porque sabem que se vierem causarão ainda mais danos. Esse trabalho prático emergiu do feminismo.

Nos recentes protestos nos Estados Unidos tem havido grandes manifestações lideradas pelo slogan: “Black Trans Live Matter”. Como estão acontecendo essas alianças entre lutas?

A forma como o Black Lives Matter está crescendo levou as pessoas a organizarem grupos em todo o país nos últimos anos e, mesmo antes de 2020, esse tem sido um movimento verdadeiramente interseccional. Têm pessoas trans, negras, queer, feministas que apoiam a causa palestina… Um dos objetivos tem sido mostrar as histórias de mulheres negras, de pessoas negras com deficiência… A solidariedade que existe dentro do movimento tem sido muito orgânico e sempre existiram muitas pessoas trans em posições de liderança.

Esse momento representa uma transformação nos Estados Unidos daqueles movimentos civis com políticas e estratégias que buscavam a respeitabilidade e que historicamente têm sido mais patriarcais e mais heterossexuais, menos interseccionais. O movimento Black Lives Matter já emergiu de mulheres queer, tem sido inerentemente mais queer e trans. É um momento impressionante e, além disso, vem no mesmo período do renascimento da resistência indígena em Standing Rock, dos movimentos feministas indígenas, que são muito inclusivos… Estamos em um momento de emergência do movimentos de base, que são muito interseccionais.

O que você acha da aparente aliança que está ocorrendo entre certo feminismo transfóbico e alguns fundamentalistas cristãos ou de direita?

Infelizmente, ainda vivemos uma reação contra o feminismo que começou nos anos 80. Nos Estados Unidos, assistimos a momentos muito específicos desses movimentos transfóbicos. Há um número surpreendente de leis que se concentram em dificultar ou impossibilitar o acesso dos jovens trans aos cuidados de saúde e aos esportes. Apesar do período de efervescência política trans e dos esforços de reforma jurídica que ocorreram desde o final dos anos 90 até hoje, na verdade não conseguimos tantos avanços.

Existe uma lei federal, uma lei sobre crimes de ódio que dá dinheiro à polícia e há algumas pequenas coisas que foram alcançadas com Obama, mas a maioria das pessoas trans ainda vive à margem. Houve também algumas melhorias na identidade recolhida nos DNIs, mas ainda existem muitos obstáculos à sobrevivência. No entanto, nos últimos cinco anos houve mais aparições de pessoas trans na televisão convencional . Assim, embora não tenha havido mudanças importantes no cotidiano das pessoas trans, houve uma reação violenta muito significativa da direita a essas pequenas conquistas que se intensificou.

Por volta de 2013, começa um período em que muitas leis estaduais tentam criminalizar ainda mais as pessoas trans por usarem os banheiros (com os quais elas se sentem confortáveis) e agora muitas leis estaduais estão tentando aprovar dizendo que os jovens trans não podem receber cuidados de saúde específicos. Também tentam impedi-los de praticar esportes nas escolas de acordo com seu gênero. Por exemplo, as meninas trans não podem praticar esportes com outras meninas.

Há uma conduta, na forma de uma guerra cultural, e é interessante como ela coincidiu com a ação do TERF (anti-transfeminismo), o que me lembra a década de 1980, quando ativistas de direita anti-pornografia se aliaram com feministas anti-sexo que eram contra o trabalho sexual, a pornografia e a favor da censura. Sinto que essa coligação está se repetindo. O fato dessas pessoas se considerarem feministas e estarem dispostas a alinhar-se com a direita que tenta proteger o patriarcado e o controle sobre os corpos das mulheres e o corpo queer e trans é chocante para mim.

*Entrevista originalmente publicada no Periódico Contexto y Acción.

Direito e Psicanálise, por Christian Dunker

Essa entrevista foi produzida em parceria com a Livraria Cabeceira. Originalmente publicada em: https://inb.org.br/direito-e-psicanalise-com-christian-dunker/

O “Direito e o mundo” é um espaço dedicado a explorar as conexões existentes entre o campo jurídico e outras áreas do conhecimento. O professor Christian Dunker nos contou em entrevista sobre alguns aspectos da área do direito e psicanálise. 

A objetividade própria do sistema jurídico normativo pode nos fazer esquecer que os sujeitos de direito também são sujeitos de desejo. Os longos processos judiciais, por vezes, escondem uma importante camada de sentido: as pessoas sentadas em um tribunal são pessoas, antes mesmo de réus, advogados, promotores ou juízes. Isso significa que dentro delas existe um universo de significados específicos e particulares. 

A psicanálise é uma forma eficiente de compreender e desconstruir uma série de formas e dogmas impostos pelo Direito a partir das categorias da subjetividade. Em 9 de janeiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com o professor Christian Dunker para debater as possíveis relações entre os dois campos do conhecimento.

Direito e Psicanálise: a concepção do justo

INB: No direito impera o pressuposto da Justiça. O que o senhor, utilizando o referencial teórico da psicanálise, compreende como Justiça? Como a psicanálise observa a própria noção do justo?

Christian Dunker: A primeira informação importante para começar essa reflexão, é que Sigmund Freud e Hans Kelsen foram colegas de escola. Inclusive, Kelsen foi leitor de um trabalho de 1929 escrito por Freud que virou referência, chamado Mal-estar na Civilização. Kelsen leu o texto e fez algumas proposições que Freud aceitou. Nesse momento, também publicou um pequeno artigo sobre a relação entre psicologia social e psicanálise.

Inicialmente, podemos dizer que o conceito de Justiça é um tanto distribuído na psicanálise. Não encontramos uma exposição muito sistemática e nem muito detalhada dessa noção. Mas podemos dividir o tratamento da questão da Justiça de três maneiras. 

A primeira é o que podemos chamar de um sentimento de Justiça, que pode ser compreendido como uma tradução subjetiva da distribuição dos atos de conhecimento, dos predicados, das trocas que organizam nossa sociedade como um universo simbólico. Isto é, como um universo dependente da circulação daquilo que a gente supõe do desejo do outro. É nesse estado de coisas que Freud introduziu uma novidade: a Justiça não tem uma matriz natural – este é um ponto importante, pois Freud não era um jusnaturalista.

Assim, ela não procede de nenhum sentimento ou disposição primitiva, uma vez que é uma construção elaborada na medida em que nós, enquanto sociedade, temos de encarar o preço civilizatório. Na verdade, trata-se aqui do preço para estar com o outro, para poder amar e ser amado, para poder desejar e ser desejado. Mas também do preço que pagamos para a destruição das satisfações e dos prazeres. Aqui entramos na segunda fase da discussão.

Esse é o tema tratado no Mal-estar na Civilização. Interpretar que todos nós estamos no estado de sacrifício porque fomos privados de algo, significa identificar um solo comum que Freud chamada de Hilflosigkeit – o desamparo. Nesse sentido, a Justiça será determinada pela distância que nos encontramos em relação a essa falta comum, a esse estado de carência, de dependência uma vez que, no fundo, precisamos do outro. Essa é uma medida para o sentimento de Justiça.

Uma outra medida, com a qual Freud tenta equilibrar esse primeiro entendimento, diz respeito ao quanto de satisfação, de gozo e prazer atribui-se ao outro. Estabelece-se aqui a crítica freudiana ao axioma judaico-cristão que profere: “amar o outro como a si mesmo”.  Ora, isso seria justo, mas impraticável. Isso porque o amor não é democrático, ele não pode ser obrigatório ou compulsório. O amor é injusto. Eu posso amar o outro, dedicar a ele os meus melhores esforços, meus melhores carinhos e não ser correspondido.

Aqui opera um paradoxo: o sentimento de desamor não é o que nos falta, mas aquilo que temos e que supomos que o outro pode nos dar. Portanto, o desamor é interpretado subjetivamente como justiça. Eu me dedico ao outro,  renuncio aos meus prazeres imediatos, me faço amar pelo outro, mas o outro não me retribui. Existe uma espécie de gargalo nessa justiça não retributiva entre amar e ser amado,  que é próprio de relações assimétricas, por exemplo, entre a mãe e a criança, entre o pai e a criança, entre o homem e mulher, entre dois homens, entre duas mulheres, etc. Poderíamos dizer que essa situação, em que um ama mais e o outro menos, gera infelicidade, mas essa é uma infelicidade que quase sempre acontece. A gente até pode torcer para que haja evolução na relação: quando eu amo muito mais o outro, talvez seja possível inverter essa lógica. Assim, o casal oscila como uma balança ao longo de seu percurso. Mas também é comum que nada mude e haja sempre alguém que se sinta deficitário amorosamente. Esse sentimento de déficit é traduzido por uma espécie de sentimento de injustiça.

A terceira entrada psíquica desse sentimento de Justiça está presente no seguinte raciocínio:

Eu não sou reconhecido, eu não sou amado pelo que sou e também não sou amado pelo que faço. Eu posso realizar um pacto com o outro por uma espécie de interpretação do meu próprio corpo. Essa injustiça acontece não pelo que eu fiz, pelo que deixei de fazer ou pela minha condição de dependência originária. Logo, só pode ser porque há algo “mal feito” no meu corpo.

Nesse sentido, a justificativa sempre se volta para algo que rebaixa o indivíduo e que ele interpreta e atribui à própria corporeidade como um sinal dessa falta. Tal atribuição poderia ser negociada e resolvida de diversas maneiras. Por exemplo, ao reconhecermos que estamos todos referidos à  incompletude corporal, pois não somos seres fechados em uma bolha narcísica que prescinde do outro. Em regra criamos certos ideais para nos proteger do sentimento de injustiça. 

Castração e os paradoxos de racionalidade e Justiça

Esses paradoxos de racionalidade e de Justiça – visto, geralmente, como sentimento de injustiça – remetem à uma função que Freud chamou de castração. Trata-se da ideia de que na economia libidinal há uma distribuição não equitativa. Daí surge um problema importante: O que é que o Estado e o ordenamento jurídico vão fazer em relação a isso? Nesse contexto, é interessante refletir aquilo que podemos chamar de teoria social freudiana, cujo exercício é a compreensão da origem do Estado, do que ele é feito, como se constituem as nações, o que são as identidades, etc. 

Esse é um aspecto significativo. Vale lembrar que Freud é mais ou menos contemporâneo à realização de um mundo que está construindo um conceito de nação. Ele viveu a dissolução da nação na qual ele mesmo nasceu, o chamado Império Austro-Húngaro. Uma ideia muito importante que aparece em seu texto Moisés e a Religião Monoteísta é a seguinte: um dos motivos para o sentimento de justiça é a atribuição de um gozo supervalorizado ao outro. Ou seja, aquilo que me falta – o prazer que eu interpreto no meu próprio corpo, na minha deficiência amorosa ou no meu desamparo – foi tirado de mim e levado para o estrangeiro. Essa teoria vai ser contestada pela ideia freudiana de que os primeiros estados nações possuem entendimentos teológicos nacionais (aqui ele está pensando na religião islâmica, judaica e cristã). Eles foram inspirados na concepção de que “nós temos primeiro nós”. Isto é, aquele determinado grupo é descendente de um mesmo pai. Por isso, esse grupo que possui um mesmo pai compete com outro grupo que descende de outro ser mítico fundador, seja ele humano, não humano, totêmico, etc. 

Isso é algo muito interessante. Freud argumenta que essa leitura é um encobrimento, uma negação do que poderia ter sido historicamente a fundação do povo judeu a partir do estrangeiro. Ora, Moisés era egípicio, não judeu. Portanto, a fundação ocorre a partir de uma estrangeiridade original, de tal modo que seríamos feitos a partir do outro. É em razão desse fato que imaginamos que o outro goza mais do que nós. Nesse sentido, estabelece-se uma relação paranóica e persecutória.

É também daí que surge o sintoma chamado de narcisismo das pequenas diferenças. Para falar desse assunto, Freud utiliza exemplos de figuras que são próximas, mas ao mesmo tempo estão sempre em conflito, como os alemães do norte e do sul da Alemanha ou os portugueses e espanhóis. São povos parecidos e, por isso mesmo, se perseguem historicamente, se criticam e se espezinham.  Ou seja, esta é uma teoria sobre como se formam unidades simbólicas que podem passar pelos estados nacionais, pelas regiões nacionais, pelos grupos sociais, pelos grupos totêmicos e que figuram nessa mesma lógica. 

Essa reflexão revela que a nossa identidade vem de fora, ela é herdada do outro. Assim, haveria uma espécie de Justiça esquecida, de lei formativa esquecida que suprimimos e substituímos por guerra e violência. Ao invés de lembrarmos disso – que nos constituímos a partir do estrangeiro – nós negamos. Assim, enquanto se formam grupos de ódio que atacam o outro, os grupos passam a  ser definidos pela inimizade que têm pelo estrangeiro. 

Neste ponto existe uma possibilidade de colocar Freud entre Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. Por um lado Freud se pergunta, assim como Rousseau em seu discurso sobre a origem das línguas, se nos esquecemos do solo comum. Ou melhor, do desamparo comum. Dessa maneira, a civilização viria acompanhada da injustiça. Por outro lado, o Freud hobbesiano dirá que o estado de anarquia promovido pela incerteza é substituído pela eleição de um pai, de uma lei que é uma espécie de tributo simbólico, de lugar vazio constituído pelos temas de parentesco e pela isonomia. Logo, as pessoas encontram regras que limitam o acesso aos prazeres: você não pode se casar com esse, você não pode se unir com aquele. Tal regra de restrição, justamente por ser comum, funda um certo cenário de Justiça e uma relação com a lei. Porém, existem problemas nesse processo, tanto na leitura mais rousseauniana, quanto na mais hobbesiana.

O fato é que Freud não se encaixa perfeitamente em nenhuma dessas perspectivas porque ele aponta como problema, para essa noção de Justiça, uma insuficiência da categoria de interesse. Ambos os autores – Rousseau e Hobbes – realizam suas reflexões a partir de um sistema de interesses definidos pelos indivíduos que transferem sua força, seu poder de violência para o Estado, ou pelos indivíduos que estão exilados, esquecidos da sua relação originária com o outro. Para Freud, esta categoria é problemática porque ela supõe que o sujeito vai agir sempre em conformidade com o cumprimento de seus interesses, seja de autoconservação ou de expansão. Além disso, presume-se que tais interesses serão sempre favoráveis à vida e à expansão do grupo de pertinência, de identidade ou filiação a qual pertencemos. 

Freud vai dizer que esse entendimento possui uma ambiguidade inerente. De fato, criamos leis para minimizar as diferenças, mas na medida em que as leis são imperfeitas, elas nos fazem sentir as diferenças com maior profundidade e sofrimento. Quanto mais as leis são aperfeiçoadas, maior o efeito rebote do ódio à lei, do sentimento de promessa não cumprida ou, ainda, de uma imperfeição que era prometida como ideal de pacificação. Isso vai valer para arte, para ciência e para as limitações eventualmente impostas pelo ordenamento jurídico.

A subversão da noção de interesse proposta pelo autor aponta como os sintomas revelam que não somos justos nem com nós mesmos. Os nossos sintomas ultrapassam as regras dessa ilação teleológica, com respeito a um fim ou interesse na moralidade. Os sintomas são criações que jogam contra os interesses – são hipóteses da existência dos desejos do inconsciente. Tais desejos emanam de outro momento da vida, ou mesmo da história do desejo do desejado. Desejos não são esquecidos. Portanto, poderíamos dizer que os sintomas são uma espécie de demanda por reconhecimento por um desejo que foi negado. 

Este também é o modelo de Justiça. Na forma como a gente se limita, sente angústia, se bloqueia, se silencia e sofre há um apelo por Justiça. Esse apelo demonstra que a totalidade do ordenamento jurídico não se restringe à lei, pois ela não é apenas uma generalização dos costumes de uma nação. De fato, a lei tem um futuro possível que não está escrito, uma vez que é fruto dos nossos desejos. Seguindo o pensamento de Jacques Derrida, é possível entender que o direito não é Justiça, mas é um instrumento da Justiça. Não podemos perder de vista que há vários elementos que não estão presentes no ordenamento jurídico mas que, ainda assim, fazem parte da Justiça. São aqueles que podemos intuir da própria relação com os desejos humanos. 

Em uma contra-chave hobbesiana, esse raciocínio também vale para a lógica de sacrifício. Nos restringimos por medo de ser moralmente punidos por nós mesmos, algo que Freud vai chamar de Supereu. Pensamos: “não vou praticar algo que é contra a lei porque senão vou ferir meu ideal de opinião, ideal que incorporei e se feri-lo vou me criticar e me punir”. Se agir contra meu ideal, estarei em desacordo com essa lei interiorizada chamada de Supereu.

A partir dessa perspectiva, Freud também trava uma discussão com Immanuel Kant. Freud parte da premissa de que o Supereu é a voz do imperativo categórico, do puro dever. É a voz que, inclusive, inspirou vários modelos jurídicos e a própria noção de cosmopolitismo, quando tratamos do direito internacional.

Mas seria possível perguntar: como é feito o Supereu? Eu te responderia que isso ocorre por meio da interiorização não da lei que seus pais passaram para você, mas da lei que você interpreta da relação entre seus pais e os ancestrais dos seus pais. Na verdade, o que eles te transmitem é a relação do que tiveram com a lei que os sucedeu, de maneira que o Supereu não é uma verdadeira lei no sentido jurídico ou no sentido kantiano. Trata-se de uma lei patológica, porque ele é particular, próprio daquela pessoa, daquele grupo, daquela família. Para chegarmos no sentido de Justiça como foi estruturado, temos que superar justamente a lei baseada no crime e castigo ou na punição. Isto é, a lei em que não pratico determinado ato por temo ou, como dizia Kant, por motivos patológicos que tem haver com a sensibilidade. Não se trata da minha relação pura enquanto sujeito com a lei.

Deve-se perceber que Freud não é kantiano. A ideia de Supereu é justamente uma espécie de lei que o sujeito acha universal, mas que no fundo é contingente. Essa generalização da lei se funda em cada um e em sua relação  com a sua própria fantasia. Por isso que ela é patológica e particular. Ela se dá nestes termos de que falei há pouco: sou mais amado, menos amado, estou desamparado porque tem alguém gozando mais do que eu. Trata-se do desejo, amor, gozo e angústia. Esses são os operadores jurídicos, os operadores freudianos que podemos utilizar para pensar a noção de direito do ponto de vista da psicanálise. 

Freud reconhece que há um amor à lei, como dizia Kant. Mas esse amor à lei é um amor cuja a lei está representada na figura do pai. O pai é sempre o melhor exemplo do que poderia ser a lei para todos. É uma lei que juridicamente pode ser reconhecida como privilégio. Superar o Supereu implica em uma espécie de emancipação do desejo, figura que aparece como algo capaz de criar atos para além da lei mas, ainda assim, injustos. Ainda assim, capazes de inspirar uma generalização maior da parte simbólica e das formas de gozo que o direito visa arbitrar.

Existem relações entre direito e psicanálise que partem de um caminho da psicopatologia. Quando Freud estuda os perversos – aqueles que têm uma alteração na relação com o objeto e que em vez de amor genital, praticam uma outra forma de afeição do prazer – ele conclui que todos os sujeitos são em alguma medida perversos. Mas de onde vem a sua perversão? Ela não vem de sua psicopatologia, mas sim da moral, da teologia, da ideia que existia no passado pré direito napoleônico e em certa forma pré direito romano, que é a ideia de que o sujeito pode ter uma zona de uso livre do corpo, de uso livre dos seus prazeres. Assim, há um espaço que o Estado não tem que se meter. Essas quatro paredes onde o Estado não deveria por a mão, onde ele deveria zelar por esse espaço preservado dos indivíduos, têm uma relação muito forte com o que a psicanálise vai chamar de fantasia. 

Ou seja, a fantasia tem o pleno direito de ser exercida desde que seja no espaço privado. Desde que ela não se pretenda generalizar e impor-se como um modo de satisfação, como um modo de uso do corpo e dos seus objetivos concretos. Toda essa discussão contemporânea emerge de uma categoria que a psicanálise importou. Podemos nos perguntar: importou e fez a crítica? Sim e não, depende de qual psicanálise estamos falando e de como ela se coloca para pensar a vinculação com a Fantasia e suas implicações políticas, para o que a gente entende pela relação entre  direito e moral.

Direito e Psicanálise: imparcialidade e psique humana

INB:  Ao pensarmos nas funções do magistrado, vigora a máxima de que o “juiz deve ser sempre imparcial ao julgar”. Porém, as contribuições da psicanálise revelam que muitas vezes nós não somos nem um pouco imparciais. Como o senhor compreende a possibilidade da imparcialidade tendo em vista o próprio funcionamento da psique humana ? 

Christian Dunker: Essa é uma boa pergunta. Eu orientei duas pesquisas sobre esse assunto. Uma delas com um grupo que faz a avaliação psicológica dos magistrados para vitalícia-los após a aprovação no concurso público. Foi interessante porque havia um material amplo de como os magistrados julgam.

Eu diria que aqueles que confiam demasiadamente na imparcialidade são os mais problemáticos. Eles não estão advertidos de que nós não controlamos todos os atos judicativos. Nós estamos expostos aos atravessamentos identificatórios, à nossa  fantasia como algo que nos governa além da consciência e de suas ideias sobre neutralidade, suspensão e imparcialidade. Então, bons magistrados são aqueles que utilizam de sua intuição e que tem certa uma certa prudência ou phronesis, como dizem os gregos. 

Em primeiro lugar existem certas patologias do julgamento que se mostram pela relação com o tempo. A recente reforma judiciária – que estimula as corregedorias a produzirem mais e mais sentenças – afetam muito esse processo. Um dos sinais que o magistrado julga mal, independente do conteúdo e da matéria objeto de debate, aparece quando ele se põe em pressa, ao concluir rápido demais um assunto. Quando ele começa a antecipar provas, parece que já tem uma espécie de tese firmada, embora ainda não saiba.

Às vezes as perguntas e a própria execução do processo é atravessada por isso. Há julgamentos excessivamente céleres ou que são adiados indefinidamente como uma forma de procrastinação. Portanto existem tanto patologias do instante – como por exemplo: “bati o olho e já sei” – quanto patologias próprias de  um tempo demasiadamente longo. Ou seja, quando há impossibilidade de deliberar, pode ocorrer a tentativa de passar para outra instância. Mas até mesmo o magistrado pode se demitir e responsabilizar um assessor ou analista jurídico de decidir sobre o caso. Nesse sentido, o magistrado realiza um tipo de procuração de sua racionalidade jurídica. 

Os bons juízes são aqueles que conseguem sobreviver e cultivar a dúvida. Ou melhor, que se colocam em dúvida em cada decisão. Isto é, praticam a dúvida não apenas como exercício cético da racionalidade, mas sim subjetivamente. Caso contrário,  o magistrado  deve ficar do lado de fora, na ante-sala.  

Mas como o magistrado vai fazer isso? Como faz para se livrar do seu próprio eu? Psicanalistas diriam: faça uma análise! Não é  desconhecendo e colocando uma trava na porta que conseguimos eliminar nosso eu. Não se trata de um exercício de força de vontade ou de uma regra disciplinar que determina até onde vai o eu pessoal e o eu institucional. Quem fala assim já está com uma apreciação comprometida da situação. Esse é um parâmetro para identificar que a noção de neutralidade força subjetivamente o magistrado a ter uma posição e idealização de si mesmo. E tal situação, por vezes, termina em depressão, em onipotência e impotência. Geralmente isso se dá de forma cruzada;  onipotência para o outro e impotência para si.

Podemos pensar, por exemplo, como condição para a patologia do juízo o desconhecimento pelas fantasias, o desconhecimento daquilo que promove em você uma resposta por identificação ou uma resposta superegóica. Nós falamos um pouco do Supereu. Embora não seja uma lei, é tentação do neurótico dizer que é. O neurótico pensa que é uma lei porque é sua, porque acredita nela, porque a ama , porque ela é como se fosse da família. Só que ao investir nela um poder de generalização, pouco a pouco produz-se juízos mais simples, ensinados pela forma canônica do direito que é simplesmente aplicar a regra ao caso. Basta aplicar a regra ao caso e o caso à Justiça.

O problema é que ficam de lado todo o universo das exceções, sejam elas institucionais, circunstanciais, etc. Quando a gente acredita que fazer Justiça é simplesmente aplicar a regra ao caso, em geral aparecem identificações com uma das partes, seja com o acusador, com a promotoria, com a defesa ou até com o réu. Ou então aparece aquele tipo de justiça cruel, sádica e vingativa. Pode ser uma vingança racial, de classe, de gênero, e por aí vai. Pesquisas empíricas mostram que há vieses importantíssimos. Por que a gente tende a julgar algo bom pela cor da pele, pela forma que o sujeito fala, pelos advogados que ele tem e que ele pode contratar.  Tudo isso está imerso no nosso universo ideológico. Mas há também influência do nosso universo  identificatório e superegóico.  Uma boa prática de crítica e atenção a isso é o que se exige dos psicanalistas e é o que se deveria exigir de um bom magistrado. 

Há uma terceira ponderação sobre a neutralidade ou imparcialidade que busca entender como o psicanalista vai saber, em um tratamento, que o paciente realizou uma intervenção autorizando a si mesmo. Ou se esse mesmo paciente diz algo fruto de seus pontos cegos, daquilo que não analisou e que é um pedaço faltante na subjetivação da sua fantasia;  de tudo que  não sabe que o governa.

Pergunto como lidar com esse não saber que atravessa os atos interpretativos do caso. Uma resposta é prestar atenção na repetição e nos efeitos dos atos judicativos. Muitas vezes pode ter ali um  gozo ignorado, uma alteridade que não vai ser compatível com o seguimento do processo. Assim, a neutralidade não é um estado que você alcança para algum fim. A neutralidade é construída quando o lugar da verdade não está nem em você nem no outro, mas na instância terceira. É justamente desse lugar que queremos nos aproximar. Para isso é preciso se despossuir da verdade e da força de verdade no ato judicativo. Vou te transferir isso para o que a gente pode saber, para o que a gente pode supor. Vou transferir isso para essa instância terceira.

Fake news e psicanálise

INB: Nos últimos tempos, os meios de comunicação divulgam notícias sobre fake news, de modo que o tema da mentira parece estar em alta, o que tem levado a muitas críticas moralistas sobre o assunto. Como é possível compreender as funções e características da mentira no contexto da psicanálise?

Christian Dunker: Essa é uma pergunta complicada, porque a gente teria que falar um pouco da arqueologia da verdade. Isso significa entender que a verdade é um conceito mais heterogêneo do que gostaríamos. Para começar, a verdade oscila entre uma raiz grega que a coloca como aquilo que se revela e que está ali diante de nós. Ou seja, a verdade se mostra como uma evidência que estaria encoberta. Este conceito está muito ligado ao presente, ao imediato e à verdade. Nesse sentido, ela foi demasiadamente absorvida pelo funcionamento positivista do direito. No Brasil esse funcionamento se revela pela triangulação entre fato, norma e valor. 

Então, o que seria o fato? Seria a evidência posta diante dos nossos olhos. Porém, o fato jamais contempla as intenções. Há, no positivismo, uma prática de direito na qual a intencionalidade está completamente posta de lado, pois o que importa são as consequências. Essa maneira de lidar  metodologicamente com um problema, supera os próprios métodos. Basta recorrer ao direito romano para entender que a verdade também é feita de memória.  

Portanto, a verdade não é só presente, ela é reconstruída por testemunhos. Mas os e os testemunhos  podem estar enganados. Mesmo o direto deles perde força. O que está nessa função de verdade como aletheia dos gregos é o comprometimento de “dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade em nome de deus”. Essa concepção grega significa exatidão. Trata-se de um conceito que se relaciona com a reprodução exata daquilo que foi visto.

Contudo, como pontuei, sabemos que a memória humana não é reprodução exata do que alguém viu. Ela é atravessada pelas fantasias e pelos afetos.  O que você estava sentindo quando você viu? Estes outros elementos interferem no ângulo, no ajuizamento e na sua própria convicção.  Ou seja, o direito positivista confia na memória como uma espécie de instrumento, deslocando as pessoas a condição de máquinas que buscam nos engramas  os acontecimentos  para depois reproduzi-los como um computador.

A verdade possui um outro sentido que vem do hebraico e consiste em tratá-la pela confiança. Nesse sentido, é verdade porque o povo escolhido fez um pacto  que envolve terras com Israel e por isso é verdade que esse povo tem um futuro ali. Em lógica, usamos a ideia da incontingência, para falar daquele possível que se realiza. Então existem  três versões da verdade: i) a  que é o oposto da mentira; ii)  a que é o oposto do engano; iii) a que é o oposto da ilusão.

Quando falamos em Fake News, somos levados a entender que há um cruzamento entre essas coisas. Existem reflexões sobre como desmontar as Fake News a partir da apresentação de informação. Se a informação está errada, basta apresentar a evidência correta para resolver. Só que esse método desconhece as tecnologias contemporâneas. Em termos de Fake News, atualizam a propaganda do jornal ao contar mentiras só falando verdades. Por exemplo, se eu faço o seguinte retrato: esse é um homem que levantou uma nação, que acabou com a inflação de seu país, que foi eleito com uma alta porcentagem de pessoas favoráveis, esse é um homem que organizou um país destruído. Mas esse mesmo homem levou milhões de judeus para o campo de concentração. Eu não mencionei esse último aspecto e, inclusive, alguns de que falei são falsos. De tal modo que o meu retrato produz uma ilusão. 

Nós precisamos ter uma relação mais complexa com a verdade. Isto se choca com a banalidade de reduzir o direito como aplicação da regra ao caso e com a desatualização de instituições antigas, muitas delas formadas no século XVIII e XIX. Inclusive nossa própria definição do que é política não acompanhou as novas tecnologias e produção de verdade, que são correlativas a produção de mentiras, de engano e ilusão.

Assim há manipulações que não se resolvem por mais informação, mas sim por mais formação. Isso torna o cenário mais difícil de ser combatido porque tais considerações apotam para  a nossa complacência com a existência de muitas pessoas que são excluídas do caráter emancipatório da linguagem digital. Podemos dizer que a cidadania tem haver com acesso a bens e serviços. Mas e a linguagem? Antonio Candido já falava do direito à literatura, mas agora temos o direito à linguagem digital. Isso significa alfabetizar, reduzir o número de excluídos que não conseguem ler criticamente a produção de uma imagem, uma mensagem e aquilo que chega pelo celular. De certa forma, a reparação não era possível há vinte anos ou trinta anos atrás, mas agora essa tarefa existe se queremos pensar em cidadania.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade e O palhaço e o Psicanalista.