Dean Spade: “A única coisa que temos ao nosso lado é o poder do povo. O outro lado tem todo o dinheiro e as armas.”

Ativista nas lutas pelos direitos das pessoas trans ou pela abolição das prisões, o autor americano Dean Spade encontra no apoio mútuo a única possibilidade de transformação e de futuro.

Dean Spade: reprodução.

Acessível, didático e divertido. Foi assim que o advogado, professor universitário e ativista Dean Spade se apresentou às pessoas que foram ouvi-lo falar sobre apoio mútuo no dia 10 de junho de 2022, no Ateneo la Maliciosa. O escritor apresentou seu último livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” [que ganhou uma edição brasileira recentemente pela Editora Criação Humana – para adquirir com desconto de pré-venda clique aqui]. A obra é um breve relato sobre algo que Spade desenvolveu na militância contra as prisões e a polícia, na luta contra as fronteiras, ou no ativismo trans e que conhece bem: a solidariedade que surgiu entre as pessoas, a organização horizontal daqueles que decidem se encarregar de transformar suas condições materiais ou imaginar outros futuros ombro a ombro com outros, outras e outres como eles.

Acompanhado durante o evento pelo ativista espanhol Lucas Platero, antigo colega de reflexões e ações, Spade abordou, como faz em seu livro, algumas ideias centrais sobre apoio mútuo, ilustradas por exemplos claros de como as pessoas se organizam e colaboram, pois entendem que falar sobre essas experiências é mobilizador e necessário. Mas, também, das dificuldades, desafios e derivas que o apoio mútuo às vezes deve enfrentar. No entanto, longe de ceder à repressão e ao espectro das muitas crises pelas quais estamos passando e que estão por vir, o professor da Universidade de Seattle alerta: quanto mais você exige, mais você recebe.

Você sustenta que, de certa forma, o primeiro e complicado passo para entrar na lógica do apoio mútuo é entender que o Estado, as autoridades, não vão nos salvar de todos os apocalipses que estão por vir.

Sim, acredito que deva ser assustador para muitas pessoas perceber que, da forma como nossos governos estão organizados, vão continuar prejudicando o clima, vão manter acordos que beneficiam as corporações e a acumulação, e que mantêm as pessoas sendo exploradas. É algo que dá medo. O que acontece se eu reconhecer que não parece que nada disso vai mudar? Claro que podem introduzir novos discursos, digamos: nós nos preocupamos com isso. Mas então, quando você olha para o que realmente acontece, tudo segue sendo realmente terrível. Portanto, há uma espécie de despertar do sonho de que os sistemas de elite podem trazer a mudança, que se pudermos convencê-los o suficiente, ou entrar com o processo certo, ou eleger a pessoa certa, veremos a libertação: isso simplesmente não acontecerá. E não apenas isso não está acontecendo, mas estamos em perigo real, não apenas no que diz respeito ao clima, mas também como resultado da crise habitacional, da crise alimentar, todos esses sistemas em que vivemos estão colapsando.

Perceber que as instituições das elites não vão consertar as coisas e que tudo depende de nós pode ser mobilizador. Eu vejo muito isso com relação aos desastres naturais: as pessoas veem como nos EUA, o governo não vem prestar ajuda às pessoas depois de um grande incêndio ou furacão, a pouca ajuda que existe é apenas para aqueles que já tem a maioria dos recursos, como os proprietários de casas. Porém, não há ajuda para as pessoas que estão alugando ou morando em seus carros e, quando há, já é tarde demais. Algo comum é que depois de uma grande tempestade eles te oferecem empréstimos, mas um empréstimo não é o que você precisa quando você perde tudo, não é uma ajuda obter mais dívidas.

Quando as pessoas veem isso, às vezes pode ser impulsionador: como podemos nos preparar juntos para a próxima tempestade? O que gostaríamos de ter? Gostaríamos de ter sido mais eficientes para nos reunirmos com as pessoas que vivem no mesmo quarteirão? Gostaríamos de estar mais conscientes de quem vive ao nosso redor e quais são suas vulnerabilidades? Gostaríamos de ter água armazenada? Gostaríamos de ter certas ferramentas para nos ajudar a fazer alguns reparos? Ou há certos reparos que devemos fazer agora para tornar nossas casas mais fortes antes que a próxima tempestade chegue? É como se as pessoas estivessem começando a dizer: nós vamos assumir. E isso é apoio mútuo mesmo, são pessoas dizendo que na realidade as coisas já dependem de nós mesmos. Assim, poderíamos nos organizar para ter uma conexão melhor, uma cooperação melhor, mais habilidades para trabalharmos juntos, para descobrir como tratar melhor uns aos outros, como cuidar mais uns dos outros, não apenas em tempos de crise severa, mas para pensar: há algo que podemos fazer para nos preparar para a próxima crise?

Seguindo seu argumento, parece que é ingênuo confiar no Estado e em suas estruturas. No entanto, há um certo senso comum que defende o contrário, que é ingênuo ou utópico pensar que as pessoas podem se organizar sem contar com o sistema.

Na verdade, há uma perda de fé no Estado que está acontecendo automaticamente, porque as pessoas viram as falhas dos governos durante a covid. Isso é muito óbvio no caso dos Estados, por exemplo: não só os Estados Unidos fizeram um péssimo trabalho na gestão da pandemia, matando muitas pessoas, como também organizou-se nosso sistema de saúde para que as empresas de vacinas ganhassem muito dinheiro, enquanto a maioria das pessoas no mundo não recebe a vacina. Agora lê-se essas novas manchetes sobre a quantidade de vacina desperdiçada nos Estados Unidos. Assim, podemos dizer que a intervenção do governo produziu os piores resultados. As pessoas não conseguem o que precisam e tudo é organizado para o lucro.

Durante a pandemia de covid-19 os oito homens mais ricos do mundo se tornaram muito mais ricos, fazendo com que essa esperança de que o governo nos salvaria entra em contradição com a realidade de que a crise é apenas uma outra oportunidade para a extração e para a exploração. Muita gente não acredita que nos possamos confiar uns nos outros, porque há uma narrativa no capitalismo de que nós somos naturalmente gananciosos e violentos e maus e que não devemos confiar em ninguém. E, na verdade, quando você vê as catástrofes acontecendo, o que as pessoas fazem é ajudar umas as outras. Quando as coisas estão realmente ruins, as pessoas se ajudam.

Temos que falar sobre isso em nossas comunidades. É realmente verdade que todos no mundo são gananciosos, mesquinhos e violentos? Ou é verdade que as pessoas são naturalmente compassivas e empáticas e que vivemos em um sistema que quer que compitamos uns com os outros e desconfiemos uns dos outros, porque quer mediar todos os nossos relacionamentos através de sua ganância? Acredito que a maioria das pessoas aprende, digere e contempla isso normalmente porque há uma crise. É quando muitas pessoas dizem: “Espere um minuto, acho que o sistema está uma bagunça e minha melhor opção são as pessoas da minha comunidade”. Eu gostaria que mais pessoas tivessem essa experiência antes da chegada da próxima crise.

Falando em ajuda e como responder à crises, você é muito crítico com o terceiro setor, que você classifica como a profissionalização da justiça social.

Eu acho que a profissionalização faz com que as pessoas pensem que se não for o meu trabalho, eu realmente não tenho nada para fazer ali. Você deve enviar uma doação de vez em quando ou não enviar, como se o objetivo do terceiro setor fosse despolitizar a maioria das pessoas. Além disso, se você tem um pequeno setor profissional de justiça social, você definitivamente não pode ganhar, porque se vamos ganhar, será porque temos toneladas e toneladas e toneladas de pessoas organizadas. Não é assim?

A única coisa que temos do nosso lado é o poder do povo. O outro lado tem todo o dinheiro e as armas. Eles fingem lidar com a justiça social para que haja apenas sete pessoas neste escritório e 20 pessoas em outro, que supostamente apresentam as soluções e que têm que convencer as elites a implementá-las. É uma ideia muito engessada de justiça social, como se fosse colocada em uma caixa. Eu não acho que isso seja culpa das pessoas que trabalham nas ONGs, isso não é uma crítica às pessoas que trabalham nessas organizações, eu já trabalhei em muitas. É uma crítica a um sistema que profissionalizou o trabalho de justiça social, que tenta convertê-lo em um trabalho de caridade, que tenta convertê-lo em um trabalho político das elites. O que funciona é a organização das passas e a mobilização das pessoas comuns em mudar suas vidas, transformar as condições em que vivemos e lutar contra o sistema. O que se pretende com a profissionalização é livrar-se dessa parte ameaçadora da mobilização das massas.

Mas para apoio mútuo, organização e mobilização, é preciso tempo, um bem escasso.

Às vezes, quando falo sobre essas ideias, as pessoas dizem: “Não tenho tempo ou recursos suficientes para me dedicar ao apoio mútuo”. Mas se você olhar para todos os movimentos sociais que aconteceram na Terra, todos eles foram realizados por pessoas que viviam nas piores condições, que tinham menos recursos: é por isso que eles começaram. É certo que agora trabalhamos muitas horas, que a moradia é muito cara, que as pessoas estão muito isoladas. Mas, em última instância, é como se não tivéssemos outra opcão. Temos que lutar.

Muitas pessoas estão presas em um ciclo de gastar muito tempo em entretenimento, porque lá fora as condições são muito difíceis, tudo é emocionalmente difícil e achamos que nos fará sentir melhor não pensar nisso, mas não é isso que acontece. Trata-se de redirecionar nossa energia para longe de comportamentos de adormecimento. Por outro lado, muitas pessoas estão realmente sobrecarregadas e ocupadas porque nossas vidas são muito individualizadas.  Se você tem filhos e seus vizinhos têm filhos, cada um cuida dos seus filhos e nós não coletivizamos isso, porque leva muito mais investimento de tempo. Você tem uma cozinha e precisa cozinhar três refeições e eu tenho uma cozinha e tenho que cozinhar três refeições: se em vez disso eu cozinhasse algumas refeições para você e você cozinhasse algumas refeições para mim, teríamos menos trabalho. Ou, se apenas convivêssemos com mais pessoas, poderíamos ter menos cozinhas, menos panelas e frigideiras, e menos replicação de tudo, porque o sistema trata de individualizar tudo e nos isolar.

O que muitos radicais fizeram ao longo do tempo foi simplesmente coletivizar todo o trabalho de cuidado e tentar coletivizar a vida o máximo possível para que as pessoas tenham mais tempo para si. Quando nos juntamos a projetos, às vezes isso acontece organicamente, você fica tipo, “Ah, me diga o que você precisa que eu traga, eu vou lá de qualquer maneira”. Ou: “Cuidarei de seus filhos para que você possa ir a esta reunião”. Percebemos que podemos ser muito mais eficientes com nosso tempo se nos unirmos em vez de fazer tudo separadamente.

Talvez fazer as coisas sozinho, ter sua própria cozinha e cuidar de seus próprios filhos lhe dê uma sensação de escolha, uma sensação de liberdade baseada no fato de que você não precisa depender de ninguém para tomar decisões.

Mas uma coisa que sabemos é que somos verdadeiramente interdependentes. Não há verdadeira independência. O trabalho assalariado faz parecer que somos todos pequenas unidades individuais: temos nossa própria casinha individual, nossa creche individual e nosso plano de saúde individual. No entanto, na realidade, todos nós vivemos em sistemas, como o sistema alimentar ou o sistema ecológico. Estamos profundamente interligados e não podemos viver um sem o outro.

O capitalismo nos separa para que não percebamos que todos estamos produzindo vida. E poderíamos estar produzindo de forma libertadora ao invés de ter lucro. Há muito a ser feito para quebrar essa falsa sensação de liberdade e apontar para o que a liberdade realmente é, algo que acontece quando estou profundamente conectado com os outros e estamos escolhendo lutar pela libertação, estamos aprendendo uns com os outros, estamos apoiando uns aos outros para não estar mais sob o controle de patrões ou proprietários. É um tipo diferente de liberdade em oposição à “liberdade” de que posso comprar isso e assistir a esse programa de TV, e posso fazer todos os tipos de escolhas superficiais.

Você defende que a ação em si tem um conteúdo pedagógico, que fazer e estar uns com os outros pode ser mais útil para combater discursos de ódio ou discriminação, do que ficar sempre no campo do discursivo ou da narrativa.

É disso que trata meu livro, do por quê os projetos de apoio mútuo, seja fazer parte de uma horta comunitária em seu bairro que fornece comida para as pessoas, fazer parte de um grupo de pais, fazer parte de um grupo que visita idosos ou um grupo que escreve cartas a presos, ou que acompanhe migrantes em processos judiciais, qualquer tipo de ação que envolva apoiar diretamente pessoas em condições materiais de sofrimento, nos ajuda a afastar a ideia de que só podemos fazer ações simbólicas, postar coisas online, votar, enviar um cheque para uma organização sem fins lucrativos. Começamos a perceber cada vez mais que podemos trabalhar uns com os outros e podemos realmente lidar com o sofrimento humano em vez de apenas desejar que, se eu postar algo nas mídias sociais, de alguma forma se transforme em alguém além de mim a cargo daquilo. Acho que há uma forma de recuperar o poder colaborando na luta por condições materiais.

Talvez devêssemos parar de pensar no poder como algo que se exerce sobre os outros, para uma concepção de poder como controle sobre nossas próprias vidas, ou o poder que temos uns com os outros.

Estamos mudando a dinâmica de poder. Então, no lugar de sentirmos como se estivessemos principalmente sob controle do Estado e do chefe e do proprietário, devemos nos sentir como se estivessemos produzindo as condições para libertação humana e também algumas condições básicas para vivermos juntos. É como, “espere, talvez não precisemos ser coordenados. Talvez façamos um trabalho melhor coordenando a vida sem que alguém se beneficie de nós.” 

Mas, para que esse tipo de dinâmica ocorra, não é necessário, além de abordar a questão do tempo, poder contar com um espaço? Um centro social, uma praça movimentada, um lugar em um parque onde você pode conhecer mais pessoas?

O apoio mútuo também abrange aqueles que fazem parte de pequenos projetos, que poderiam ser 10 pessoas coordenando um projeto de criação: estão imaginando como querem que sejam as coisas juntos. Essas pessoas também poderiam participar em espaços mais amplos como assembleias de bairros ou uma grande coalizão de pessoas implicadas com a justiça para as pessoas imigrantes, ou as redes feministas da cidade. Ou podem fazer coisas como o movimento Fight for 15, Occupy, as revoltas de 2020, nas quais se vê as pessoas ocuparem os espaços públicos, a praça pública, e fazerem manifestações, tomarem decisões juntas em grandes grupos e cuidarem-se mutuamente nesses grandes grupos. E também temos espaços para imaginar como as pessoas que fazem projetos artísticos ou projetos criativos com o que pensamos sobre como poderia ser o mundo.

Acredito que todas essas expressões são muito importantes, algumas com muita, muita, muita gente e outras com grupos menores em que se trabalha e se diz: “Sim, estamos com raiva. Não temos o que precisamos. Como deveria ser? Vamos tratar de fazer isso essa semana no nosso bairro. Qual seria a maneira justa de fazer acontecer?” Esse tipo de imaginação é muito prática. Também é muito libertador sentir a satisfação de temos feito algo, temos isso para contribuir e as coisas são diferentes do que teria sido se não tivéssemos agido.

Você acha que o fato de focar nossa atenção na produção de grandes ações e a dificuldade de sustentá-las, de garantir sua reprodução, tem a ver com a desvalorização do trabalho reprodutivo em nossas sociedades?

Isso é uma pergunta muito feminista. Nunca sabemos quando vão acontecer esses embates, então isso faz parte do por quê de estarmos organizados o tempo inteiro, e quando essas questões aparecem, se estamos organizados, há um terreno muito mais fértil: quanto mais preparados estamos, quanto mais temos estado trabalhando para criar grupos e projetos fortes, mais preparados estaremos para receber novas pessoas quando estas estiverem entusiasmadas e aparecerem nas reuniões. Não queremos que apareçam em um dia e não voltem nunca mais. Queremos conhecê-las e dizer a elas: por favor, una-se a esse projeto e venha fazer parte disso. E queremos ser atraentes nesse sentido. Assim, quanto mais nos organizamos com antecedência, mais atrairemos as pessoas como parte do trabalho reprodutivo do movimento e não se sentirão, portanto, invisíveis.

Depois de muitos desses momentos – como Ocuppy ou o 15m – vemos que há novos projetos maravilhosos. Quando esse grande momento nas ruas termina, fica claro que foram criadas muitas coisas, novas relações. Há um montão de gente que não estava evolvida e agora está envolvida. Acontece o mesmo com as ideias: faço parte do movimento antipolícia e antiprisão nos EUA há cerca de 20 ou 25 anos. A maioria das pessoas não sabe sobre este movimento. Quase todo mundo acha que não há problema em ter polícia. Eles nunca ouviram falar da ideia de desfazer-se dela por completo. Então, em 2020, quando George Floyd e Breonna Taylor foram assassinados, houve esse estalo e que você nunca sabe quando vai acontecer, porque muitas pessoas foram assassinadas como eles antes. Mas nesta ocasião, a faísca salta quando já tínhamos essas estruturas preparadas — porque é isso que estávamos preparando há muito tempo — para que pudéssemos apresentar essas ideias que eram muito solicitadas sobre o desfinanciamento da polícia, sobre o que poderíamos fazer sem a polícia. Acreditamos que assim foi gerado um terreno fértil, que permitiu então que aquele momento tivesse mais potencial do que teria se não houvesse todo aquele trabalho que estava sendo feito.

Qual a importância de se emocionar junto com outras pessoas para alimentar esses espaços e momentos de organização? Qual é o papel da alegria, de sentir que finalmente está fazendo alguma coisa? Você pode a partir disso atrair as pessoas para o apoio mútuo?

O capitalismo nos diz que sentiremos alegria quando tivermos o carro “x”, quando tivermos as férias “y”, aquele corpo bonito e as jóias certas. E não é verdade. Todos nós sabemos que é uma merda: você nunca consegue ou quando consegue, você realmente não se importa, não é tão divertido. E assim vivemos com muita passividade, como se esperasse que pudéssemos ter essas coisas e sentir. Parece-me que as pessoas se sentem muito isoladas e vazias e realmente querem sentir que pertencem e que estão conectadas, que são vistas por quem são e que contribuem para ajudar algo em que acreditam. Isso é realmente agradável, alegre. É quase mais vitalidade do que alegria. Sentir-se vivo ou viva e, em geral, toda uma gama de sentimentos: também ser capaz de sentir plenamente a dor quando coisas terríveis estão acontecendo, coisas que você mesmo já está vendo em seu smartphone.

Acho que as pessoas merecem um sentido de emoções mais desenvolvido, que vem de fazer parte de um grupo e não ter que estar sozinho em todas essas experiências. E isso pode incluir a alegria e o prazer e uma sensação de ser cuidado. A segurança que dá pensar que existem pessoas que te apoiam, no sentido de que pertences a algo, acreditas em algo e estás agindo nesse sentido. Isso é muito mais satisfatório que comprar certo produto em uma loja. Eu acredito que em algum nível sabemos disso. Sabemos que a ideia que o capitalismo nos dá em relação a alegria é muito vazia e que as pessoas tem certa desconexão com o real sentido de se estar vivo, da satisfação em estar vivo. O que ajuda é trabalhar coletivamente por algo que acreditamos, para reduzir o sofrimento.

Não é que não seja difícil, pode ser chato, você pode ter tarefas desinteressantes. Mas dá a sensação de que você está fazendo algo que pelo que te deixa com raiva ou com medo do mundo, e que você faz parte dele. Se você deixa pra tras a passividade: “sim, as mudanças climáticas sao assustadoras, mas eu vou me sentar aqui e comprar pela internet”: esse é um sentimento genuíno. Enquanto isso, se faço parte de uma horta comunitária, estamos distribuindo alguns alimentos a nossos vizinhos idosos, ou pobres, ou estamos lutando ou trabalhando juntos, estamos colhendo cenoura juntos. Nossas mãos estão sujas. Há aí uma espécie de sentido de estar vivo, de vivacidade que muita gente acaba perdendo.

E o que acontece com o medo, o medo de ter que assumir o comando, o medo que acaba frenando a imaginação radical

Acho que a coragem consiste em fazer as coisas mesmo com medo e isso é muito bonito. É necessário contar histórias concretas sobre as lutas sociais históricas e as lutas sociais que estão acontecendo em todo o mundo. Quando você vê o quão corajosas outras pessoas são e foram onde você mora, sobre coisas que importam para você, e você diz: “Ah, sim, eles lutaram contra a polícia ou se deitaram nos trilhos do trem para bloquear o trem de carvão.” Quando você ouve sobre a ação coletiva de outras pessoas, sua valentia, seu poder, isso pode realmente ajudar. Também vencemos o medo quando não estamos sozinhos. É assustador ir a algum lugar e pensar: “e se algo ruim acontecer? E se a polícia me pegar?”. Mas, se eu souber que vou com um grupo de pessoas que acreditam no que eu acredito, podemos nos arriscar juntos. E, além disso, sei que essas pessoas com quem estou junto irão me ajudar se puderem e eu também os ajudarei se puder. Eu acredito que a maior parte disso se trata de sentir que somos parte de algo: que fazemos parte de uma gerencia de luta, e também de um grupo concreto nesse momento, que não estamos sozinhos.

Claro que teremos medo – isso é muito humano, muito compreensível – mas vamos lutar de qualquer forma.

Dean Spade é professor de Direito da Universidade de Seattle. É ativista trans e propagador de reflexões e práticas abolicionistas penais e de forma de organização social e política baseadas no apoio mútuo.

O livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise e a próxima” está disponível aqui.

*Entrevista originalmente publicada no periódico El Salto Diario.

CHRISTIAN DUNKER: Corrupção de Jair Bolsonaro não afeta sua votação porque não causa ressentimento no eleitor

Christian Dunker explora o perfil psicológico dos bolsonaristas e como os sonhos não cumpridos na era PT são encarados como traições. Entrevista originalmente realizada e publicada pelo jornal The Intercept Brasil, por Nayara Felizardo.

O RESULTADO do primeiro turno das eleições causou grande frustração na esquerda, principalmente por forçar a constatação de que há mais eleitores de Bolsonaro do que a racionalidade seria capaz de prever, considerando toda a destruição – de vidas, do meio ambiente, de políticas públicas e de civilidade – provocada pelo seu governo. Essa entrevista com o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, é uma tentativa de entender e de aprender a lidar com esses eleitores que, apesar de todo o estrago, seguem com Bolsonaro. O bolsonarismo, afinal, “vai continuar” e se prova um movimento popular forte que com ou sem Jair no poder.

Para Dunker, uma parcela significativa dos bolsonaristas se sente traída pelo PT. Embora tenha conseguido ascensão social, devido principalmente ao acesso às universidades, a classe trabalhadora esperava viver em melhores condições. Sem associar os problemas atuais à figura do atual presidente, “que age como se não fosse propriamente um governo”, resta a decepção com quem representa o estado para essas pessoas – Lula e Dilma. “Elas se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa”, disse o psicanalista.

Refletindo sobre o perfil psicológico de Bolsonaro, Dunker não o classificou como um perverso ou sociopata. Suas atitudes se explicam mais pela patologia dos tiranos: “Para ser um tirano eficaz, o sujeito tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado”.

Dunker falou ainda sobre o que a esquerda precisa aprender com a comunicação bolsonarista e alertou para a necessidade de ouvir as demandas daqueles que preferiram Bolsonaro. Afinal, eles são mais de 50 milhões. Confira a conversa na íntegra:

“As pessoas não percebem que houve uma regressão causada por má administração nos últimos anos”, avaliou o psicanalista Christian Dunker. “Todo retrocesso que sentem agora passa a confirmar a teoria da decepção [com o PT]”. Foto: Reprodução

Intercept – Como se explica, do ponto de vista psicológico, a quantidade de votos que Bolsonaro recebeu no primeiro turno, mesmo após um governo tão ineficaz?

Christian Dunker – Uma parte importante dos eleitores de Bolsonaro é composta por pessoas que obtiveram muitos benefícios, principalmente nos dois primeiros mandatos de Lula [de 2003 a 2006 e de 2007 a 2010]. É uma classe trabalhadora que conseguiu galgar alguma ascensão social – se deslocaram da miséria para pobreza ou da pobreza para a classe média. Esse processo não é simples do ponto de vista subjetivo, porque ele facilmente pode se verter em decepção. Houve um aumento expressivo de alunos nas universidades, que puderam ter acesso a profissões mais qualificadas. Com um diploma, imaginaram que os empregos iam sorrir para eles e que teriam uma ascensão maior ainda. Na medida em que a universidade não se traduz em aumento real de renda, essas pessoas se voltam para a parte não realizada dos sonhos prometidos. Isso se transforma em ressentimento e em um sentimento de traição. Eles se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa. Ela não está associada ao governo atual, que age como se não fosse propriamente um governo, mas com aquilo que representa o estado para a maioria das pessoas, ou seja, Dilma e Lula.

Outra parcela dos que estão votando contra Lula é ligada ao conservadorismo e à ideia de buscar uma forma autocrática para administrar a coisa pública. As classes média e alta interpretam que o Brasil tem excesso de regras não cumpridas, com complicações burocráticas, em que o estado tem uma função limitadora e não deixa as coisas acontecerem, porque se cria regras para se aproveitar delas por meio da corrupção. Já os mais pobres acham que está havendo um rapto do seu prazer e que seus ganhos não se realizaram, porque foram desviados pelo PT, pelo Lula. Um lado, portanto, sente o estado como um empecilho e, o outro, como uma instância intrusiva e pouco eficiente na promoção de educação e saúde.

Por que esses eleitores condenam a corrupção nos governos petistas e relevam a do governo Bolsonaro?

O discurso da corrupção capta muito bem esse sentimento de traição em relação aos governos do PT. As pessoas não percebem que houve uma regressão causada por má administração nos últimos anos. Todo retrocesso que sentem agora passa a confirmar a teoria da decepção. A corrupção de Bolsonaro também é conhecida, mas não afeta a performance do candidato, porque ela não cai na chave do ressentimento. Em um ambiente de complexidade de determinações, é compreensível que soluções mais simplificadas ganhem relevo, como a retórica de que Lula roubou e isso quebrou o Brasil.

A gente pune o passado a partir do que transformamos no presente e a partir da redução do nosso futuro. É isso que vem acontecendo com o governo Bolsonaro. Ele não usa a retórica do crescimento, da prosperidade, e sim do combate ao mal, da punição dos culpados. Muitos dos eleitores mais vingativos e rancorosos entendem que o que receberam do PT foi uma promessa corrupta [de melhoria de vida]. Portanto, o voto deles é punitivo.

Como você analisa o perfil psicológico do Bolsonaro? Ele é um perverso?

Há algumas dificuldades para incluir a figura de Bolsonaro nesse diagnóstico, e um dos motivos para isso é que ele age ostensivamente como alguém sádico, às vezes, como alguém que ri do sofrimento do outro. Mas essa ação não reflete uma atitude real perversa. Então, parece mais alguém que está dominado por uma fantasia de perversão. Na prática, o que a gente vê são muitas declarações que depois são revertidas. Ele xinga e depois diz que estava brincando; ameaça indígena, mas era só um modo de dizer; homenageia um torturador, mas aquilo já passou. É como se isso fosse um excesso da sua personalidade, mas que humaniza mais do que desumaniza. Está no campo da patologia narcísica, que é a patologia dos tiranos. Para ser um tirano eficaz, o sujeito não pode ser um verdadeiro perverso ou sociopata. Tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado.

No fundo, Bolsonaro seria movido por um sintoma social que a gente chama de cinismo, no sentido de orquestrar os efeitos do que diz e do que faz, como uma espécie de oscilação calculada entre o registro da fala privada e o registro da fala pública. Ele pode dizer que vai trocar o diretor da Polícia Federal, porque está protegendo seus filhos, e isso não cai como uma corrupção. Cai como alguém que pode passar por cima da lei, que pode fazer a justiça com as próprias mãos. E muitos concordam com isso. Para os amigos e a família, tudo.

É o discurso do bullying, de que você fala? 

Exato. É a ideia de que, se você quiser se conectar comigo, vai ser melhor. De que você se empodera por meio da identificação comigo. É uma regra que traz a crueldade e que tem no seu horizonte a ameaça. Isso é próprio de líderes autoritaristas e até populistas. Mas é um populismo que se difere do Lula, porque é segregatório, não inclusivo. Bolsonaro não é uma pessoa perversa, mas promove a perversão das instituições. Isso vale tanto para as instituições que aderiram a ele, quanto para aquelas que ele está atacando.

Você defende que é preciso sermos mais diplomáticos e menos rancorosos com os bolsonaristas. Mas como conciliar o inconciliável, com Bolsonaro e sua política de destruição?

A tarefa vai ser mais longa do que se pensava. A maior parte dos eleitores de Lula entendeu a eleição de Bolsonaro como uma farsa, como um engasgo democrático, com estratégias ligadas às redes sociais e com o apoio de civis e pastores que funcionaram como cabos eleitorais. Acreditam que as pessoas foram enganadas, mas que basta esclarecê-las para elas voltarem ao seu estado de funcionamento normal. A eleição no Senado e na Câmara, dos governadores e dos deputados estaduais mostraram uma realidade diferente dessa. As pessoas realmente sabem o que estão fazendo. A pujante votação [de bolsonaristas] consagra um outro projeto de Brasil, no qual prevalece a ideia de que se pode deixar morrer pessoas que têm menos recursos. Tomando como exemplo o trato com a saúde pública na pandemia, isso foi sancionado pelas pessoas.

As regras do jogo vão exigir mais firmeza, mais autocrítica, maior capacidade de elaborar um discurso de desconstrução e de enfrentamento. As oposições ainda não se compuseram a ponto de construir um projeto alternativo. O projeto que a gente tinha era diferente, mas ele foi substituído por esse outro da violência. Agora, precisamos de um terceiro. Você pode chamar isso de renovação da esquerda, de resgate da palavra ou de superação da barbárie. Mas, de toda forma, é o que temos pela frente.

O que a prática bolsonarista faz é dizer que o poder pessoal é que vale. O pai manda, o filho obedece. O homem manda, a mulher obedece. Essa forma de poder personalizada é que está em jogo. Eles não querem destruir as instituições por destruir. Eles querem transformar a autoridade simbólica naquela baseada no poder de opressão. Por isso, consideramos essa prática bolsonarista muito mais como um discurso que já existia e que procurou em Bolsonaro o seu catalizador, do que como a força de uma pessoa que parece muito débil e pouco inteligente. Isso pode ser caótico do ponto de vista de como se organiza uma nação. Pode dar muito errado, e é provável que dê.

Por que a comunicação bolsonarista é mais eficaz, tanto para espalhar suas mensagens como para alcançar o que deseja? E o que a esquerda precisaria aprender com isso?

Há uma espécie de menosprezo por parte dos eleitores bolsonaristas. Eles acham que as pessoas de esquerda, os professores, os jornalistas, os intelectuais e artistas se acham superiores e são arrogantes, que não são como as outras pessoas, por isso, merecem um corretivo moral. A esquerda ainda não conseguiu se deslocar desse lugar, ainda que ele seja equivocado. Ela [a esquerda] tenta produzir um antídoto para o bolsonarismo baseado na tomada de consciência, mas não consegue entrar em uma comunicação pessoal e direta, de igual para igual, autêntica.

Tudo aquilo que você pode entender como um vício ou um erro, a exemplo do uso de palavrão, ameaça, exposição familiar e preconceitos, confirma um certo modo de relação que a gente vê prosperar na linguagem digital. A esquerda fica de mãos atadas indevidamente, porque diz: “Eu não vou fazer como eles, isso me rebaixará”. O argumento é correto até a página três. A partir de então, a gente começa a confundir duas coisas, que é a eficácia no discurso e a veracidade do discurso. O discurso bolsonarista é muito eficaz, apesar de pouco verdadeiro. Mas ter um discurso verdadeiro não vai mudar a eficácia dessa relação comunicacional.

De que adianta falar a verdade se ninguém te ouve?

Exatamente. O arrogante fala as verdades, mas elas são inúteis para quem ouve. A gente vai precisar arriscar um pouco mais na natureza dos argumentos, na capacidade de também devolver à altura e saber modalizar o uso do humor, da agressividade, da exclusão, da segregação que, hoje, a esquerda parece praticar mais contra si mesma do que contra o bolsonarismo. Muitos discursos concentram ataques distorcidos contra aqueles que não são os seus inimigos sociais. É muita agressividade contra si e uma espécie de atitude educativa, complacente e, eventualmente, arrogante. Em alguns casos, a atitude inicial é nem falar, porque se considera que algumas pessoas não são dignas da palavra. Enquanto a gente estiver nessa posição equivocada, escolhendo mal os inimigos e agindo de forma pouco eficaz com aqueles que são os nossos verdadeiros adversários, acho difícil que o panorama eleitoral se transforme.

Independentemente de quem vença, já não somos o mesmo país depois do governo Bolsonaro. Como isso vai afetar a saúde mental dos brasileiros no pós-eleição? 

Infelizmente, esse é um diagnóstico que a gente precisa fazer. A saúde mental vai piorar, como a gente já alertou em 2018, porque não é possível que o discurso da violência, das armas e da autoridade pela força não se prolongue em mais sofrimento para quem está mais vulnerável. Vai piorar antes de melhorar. É importante colocar na pauta a saúde mental e ter em vista que o discurso tem consequência na nossa vida psíquica. Aquele que tem poder, que tem autoridade, seja o professor, o médico, o político, ele tem responsabilidade na construção da saúde mental coletiva. Quando um governante fala de forma opressiva, desdenha do sofrimento alheio, isso tem um impacto transversal nas relações, que se tornam mais agressivas. Nossa perspectiva de mundo se torna mais fechada, a nossa perspectiva defensiva diante do conflito se torna mais intensa. Tudo isso complica a nossa saúde mental, já um tanto quanto combalida.

Uma coisa que o governo Bolsonaro alterou foram os limites. De tanto ele esticar a corda e não cumprir regras ou leis, as instituições foram recuando, em uma tentativa ineficaz de amenizar as tensões. Quais as consequências disso?

As consequências podem ser as piores, porque um segundo mandato vai sancionar a lógica da opressão e da violência por meio das urnas. Por outro lado, podem ser as melhores no sentido de que esse discurso só deu certo porque conseguiu insuflar uma insatisfação real das pessoas. Ele só é eficaz porque demanda transformações na maneira como o brasileiro médio se relaciona com o país, com o seu regime fiscal, tributário, com as instituições de saúde, de educação, com tudo aquilo que faz do estado ou uma extensão dos interesses privados das classes mais poderosas ou um instrumento de opressão das classes menos favorecidas. Isso seria um efeito benéfico para impulsionar informações necessárias que precisariam entrar de forma mais rigorosa na nossa pauta de transformações. De toda maneira, o Brasil vai precisar de outra coisa. Não vai passar o que a gente já conhece do modelo de gestão, do modelo democrático, das políticas públicas que já estão postas desde a constituição de 1989 e que tentaram se implantar no Brasil durante o período de Lula e Dilma.

O que a gente pode esperar do bolsonarismo sem Bolsonaro no poder e com Bolsonaro no poder?

O bolsonarismo vai continuar. Precisamos reconhecer que é um movimento popular, que entrou nas camadas menos favorecidas. Ele produz organicidade na ação entre as pessoas e reconhecimento entre os envolvidos. É um movimento que tem a possibilidade de se reproduzir, de se recompor e de enfrentar revezes.

Esse discurso como laço social precisa ser enfrentado de forma metódica, com mais força e com mais potencial de coerção, inclusive, dos órgãos reguladores da imprensa, de órgãos reguladores do uso da máquina digital e das concessões públicas. Precisa ser enfrentado como algo bastante perigoso para a institucionalidade do país. Isso vai demandar que se fale um pouco mais a linguagem do próprio bolsonarismo. Que a gente apreenda que há, sim, uma parcela que só vai se transformar pela força. Pode ser pela força da palavra, pode ser pela força da lei. Mas, durante algum tempo, vai ser necessário para que a gente consiga implantar uma educação política, para responder às insatisfações legítimas por trás do bolsonarismo. Ainda que a forma seja desastrada, não democrática e autoritária, ela tem lá o seu grão de verdade. O Brasil tem quase metade da sua população muito insatisfeita. É preciso reconhecer que há uma demanda para ser tratada.

Qual seria essa essa demanda legítima do bolsonarismo?

São demandas que a esquerda também reconhece, como a simplificação nas relações com o estado. Por exemplo, que o estado deixe de se demitir em certas áreas e em certas geografias do país. Ele se demitiu das prisões, e é fundamental retomar, reinstitucionalizar nossas prisões. O estado se demitiu de muitas comunidades – isso é um erro e tem consequência. O processo de “milicialização” do Brasil é um sintoma, porque o estado se demitiu de cuidar, de urbanizar a vida nesses lugares.

A ideia de que é possível governar com mais transparência pode ser posta em prática. No bolsonarismo, a transparência é a pessoalidade. É como um chefe de família fazendo contas domésticas, e não planejando o orçamento de um país. Isso está errado. Mas o que tem de verdade aí é que as pessoas querem transparência real. Não há nenhum motivo para não conversar mais. Existe um descompasso entre os recursos que temos hoje em termos de alcance de cobertura digital e a possibilidade de ação sobre o estado, de democracia direta.

Christian Dunker é professor, youtuber, psicanalista e autor de diversos livros. Entre eles a obra “Psicanálise e Saúde Mental”, que escreveu junto com Fuad Kyrillos Neto, disponível no nosso site. Clique aqui para saber mais!

“O mundo neoliberal é decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida”. Entrevista com Sandro Chignola.

Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto. Entrevista originalmente publicada pelo IHU On-Line aqui.

Somos livres para termos as mais variadas opções e estilos de consumo. Essa é a liberdade de nosso tempo, que se molda a uma lógica de mercado, algo que clama pela reinvenção dessa liberdade. A reflexão é do filósofo italiano Sandro Chignola na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com o pesquisador, “e-mails, smartphones e computadores fazem com que a nossa vida inteira, mesmo fora do horário de trabalho, seja integralmente subsumida ao capital. Mesmo quando damos uma ‘curtida’ no Facebook no nosso tempo livre, quando fazemos o upload de um vídeo no YouTube, produzimos valor”. Some-se a isso a proliferação dos dispositivos de segurança, “impulsionados pelo cruzamento entre novas tecnologias e retóricas da segurança”. O resultado é nefasto: “O mundo neoliberal é um mundo decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida.”

Chignola acentua que precisamos “repensar as formas da participação; reimplantar projetos radicais de liberdade e de igualdade para todas e para todos, sem pensar que “profissionais da política” possam se encarregar deles. É preciso reinventar a cidadania para além do Estado”. E completa: “A flecha de Foucault, ao que me parece, está aqui, diante de nós, plantada no coração da atualidade. Trata-se de se encarregar de tomá-la e de montar o arco: de assumir o ônus — o peso e a responsabilidade — da coragem da verdade.”

Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Università Degli Studi di Padova, Itália. É autor, entre outras obras, de História de los conceptos y filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010). O artigo Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de sua autoria, foi publicado por Cadernos IHU ideias, no. 214, como também o artigo A vida, o trabalho, a linguagem. Biopolítica e biocapitalismo, Cadernos IHU ideias, no.228. É autor do livro “Foucault além de Foulcault: uma política da filosofia”, disponível aqui.

Ele proferiu a conferência A política dos saberes, no XVII Simpósio Internacional IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação, Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade, em 2015.

Em 27-09-2016 esteve no IHU apresentando a conferência Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros. A íntegra da conferência pode ser vista aqui.

Quais são os aspectos fundamentais que demonstram a atualidade da análise de Michel Foucault [1] acerca do poder pastoral e da governamentalidade?

Sandro Chignola – Eu acho que são diversos os elementos de atualidade da análise foucaultiana. Eles são de tipo fenomenológico e de tipo teórico. No plano fenomenológico — termo que entendo aqui de modo puramente descritivo — a proliferação do léxico da governance para indicar formas de produção da decisão política e do direito de tipo técnico, pós-soberano e, por assim dizer, administrativo; e, no plano teórico, os processos que ligam cada vez mais profundamente o “governo” — aqui eu o entendo em sentido amplo, isto é, em termos foucaultianos, como conduta de condutas à liberdade e à operacionalização de dispositivos que criem as condições para “ser livres de ser livres” — a uma forma determinada, um “tipo” particular de subjetividade.

Em outras palavras: por um lado, Foucault captou com forte antecipação, ao que me parece, os aspectos institucionais da revolução (ou melhor: da contrarrevolução) neoliberal que marca a nossa contemporaneidade (desconstitucionalização e desnacionalização do Estado, esvaziamento da democracia representativa, deslocamento do eixo temporal da legitimidade política do passado, ou seja, procedimentos por meio dos quais a vontade coletiva se forma para o futuro, isto é, para a promessa de eficiência da qual a decisão técnico-administrativa se faz intérprete); e, por outro lado, captou com precisão o modo pelo qual essa nova institucionalidade conseguiria se ligar e se engrenar com formas da subjetividade (o sujeito como consumidor ou como empreendedor de si mesmo), cuja produção devia ser “governada”, e não fixada, orientando a sua liberdade e adaptando-a ao mercado.

Quais seriam os principais paradoxos do cuidado e do governo dos outros em nossos dias?

Sandro Chignola – Aquele ao qual todos, com as suas nuances, podem ser remetidos me parece ser o seguinte: cuidado e governo se ligam a sujeitos como incitamento ao consumo e como uso da própria liberdade na construção de perfis concorrenciais e empresariais do eu. Foucault registra isso muito claramente no curso Naissance de la biopolitique: a razão neoliberal trabalha em uma condução de condutas que devem ser deixadas livres, mas que, justamente como livres, têm um único modelo de liberdade através do qual se reconhecem: o das escolhas de mercado e o do mercado das escolhas no qual acabam pagando os custos da concorrência e da própria produção da liberdade (você é livre dentre muitas opções, mas será integralmente responsável pelas escolhas que fizer…). Daí a desconstrução do Estado social, por exemplo: pague o seu seguro à escolha no mercado. Você é livre para não fazer isso, mas, se não o fizer (ou se, para economizar, escolher mal…), os custos da sua escolha serão pagos por você.

Os dois processos de que eu falava antes aqui se soldam. Por um lado, uma redução do peso do Estado e o “emagrecimento” das suas instituições (thining é como a ciência política o chama) em favor de dispositivos administrativos que trabalham com campanhas de responsabilização do sujeito, delegando diretamente a ele o “cuidado de si” (penso na previdência privada, nas políticas da educação, na saúde…); por outro lado, uma forma da subjetividade que se sente, justamente por isso, “livre” (livre para agir, para escolher, para capturar as ocasiões), mas daquela forma particular de liberdade que isola, põe em concorrência com os outros, se sustenta com a valorização de paixões tristes como o cinismo, o oportunismo, a autovalorização do próprio capital humano…

Em que medida a compreensão de liberdade de Foucault segue instigante aos sujeitos de nosso tempo?

Sandro Chignola – Mais do que a compreensão foucaultiana da liberdade — da liberdade neoliberal de que eu falo acima, ele traça uma genealogia precisa —, parece-me intrigante a aposta filosófica de tentar pensar (e praticar) de outro modo o campo da subjetividade e da subjetivação. Foucault fala da necessidade de “se déprendre de soi même”, ou seja, de se distanciar das formas de individuação ligadas aos dispositivos neoliberais de governo. Isso marca a necessidade da passagem pela Grécia realizada por Foucault nos últimos cursos no Collège de France: se há uma ideia que é intolerável para um grego, ele nos diz, essa ideia é a de que se possa ser governado por toda a vida. Que se possa governar a vida, eu acrescentaria. Esse é o campo de batalha que marca o nosso presente: por um lado, a liberdade, que Foucault lê a partir de uma ontologia particular da criatividade e da produção, por outro, os dispositivos que, impondo-lhe rédeas, governam-na. Não mais disciplinas e corpos a serem endireitados, mas condutas a serem conduzidas, liberdades a serem orientadas, dispositivos de marketing ou da comunicação…

O que podemos fazer de nós mesmos, uma vez que a nossa liberdade nos seja devolvida? Como podemos inventar, praticar, potencializar, “curar” — no sentido da grande saúde nietzschiana — a subjetividade que podemos ser, se nenhum dispositivo é capaz de projetar e controlar até o fim a nossa subjetividade? São essas as perguntas — teóricas e políticas — que Foucault nos deixou, passando-nos o bastão. Deleuze [2] lembra que a filosofia deve ser entendida em sentido nietzschiano como o retomar e o atirar de uma flecha que outros pensadores, outros filósofos lançaram antes de nós. A flecha de Foucault, ao que me parece, está aqui, diante de nós, plantada no coração da atualidade. Trata-se de se encarregar de tomá-la e de montar o arco: de assumir o ônus — o peso e a responsabilidade — da coragem da verdade.

Como podemos reinventar a liberdade e a nós próprios se estamos submetidos, queiramos ou não, a um modelo neoliberal que opera a partir de liberdades de fachada? Qual é o legado de Foucault a essa discussão que também perpassa a produção de subjetividades?

Sandro Chignola – Essa é uma pergunta difícil. Eu não sei bem o que responder, admitindo-se que, no caso das outras perguntas, eu o saiba e tenha conseguido fazê-lo. É claro, eu não consigo imaginar, como outros fazem, ao contrário, mecanismos simples de subtração. Ou seja, como se houvesse um “lugar” — físico e simbólico — em que possamos nos refugiar, porque estaríamos protegidos de, ou fora dos dispositivos de poder; ou como se houvesse um ponto de apoio para desaplicá-los. Penso que os processos de libertação não podem não ser coletivos e operados dentro do campo de circulação das normas e dos poderes. Porque, justamente, não existe um “fora” do poder. Foucault fala da necessidade de se separar das formas de individuação “governadas” pelo poder. Mas ele certamente não imagina a “déprise” como uma recuperação de autenticidade ou como uma linha de fuga que possa nos subtrair do “poder”.

Creio que se trata, com Foucault, de imaginar, experimentar e tentar praticar outras formas de vida; mas sabendo que, para fazer isso, no entanto, é preciso “governar” a produção das subjetividades e dar uma dimensão “institucional” para a liberdade, se a liberdade existe apenas com os outros. A questão da produção do “comum”, que está no centro das pesquisas e das práticas políticas que, com outros e outras, tentamos levar em frente, remete exatamente a esse quadro de problemas. A como se pode determinar uma decisão constituinte para a liberdade à altura dos desafios que nos são postos pelos regimes neoliberais de acumulação capitalista.

Quais são os limites e possibilidades para os direitos humanos que se descortinam face aos dispositivos de vigilância e controle da cidadania?

Sandro Chignola – Pessoalmente, não tenho nenhuma paixão pela expressão “direitos humanos”, assim como não gosto da expressão “direitos naturais”. Trata-se de expressões que dão por suposto que existe algo de humano ou de natural como existente por si só, subtraído do devir histórico e das batalhas, dos confrontos, das polêmicas, que esse mesmo devir manteve — e continua mantendo — em tensão. Não existe uma natureza humana: existem processos históricos que a definem como tal, e sobre essa definição, de vez em quando, os homens se opuseram, dividiram e combateram.

Mas é sobre a qualificação “direito” que, ao que me parece, surgem ainda mais problemas. Quando a expressão “direito” não está imediatamente ligada a poderes que a usam retoricamente para legitimar a própria intervenção — nos últimos tempos, a intervenção humanitária (a guerra, para chamá-la pelo seu verdadeiro nome) em favor dos “direitos” dos povos contra os seus ditadores (na Líbia, na Síria, por exemplo) combinou autênticos desastres; e foi Carl Schmitt [3] que assinalou, desde os anos 1920, como a guerra travada em nome da humanidade escancara as portas a operações internacionais de polícia tendencialmente infinitas, porque não reconhecem o inimigo como inimigo político e, portanto, a possibilidade de tréguas ou de negociações de paz… — ela remete necessariamente a uma lógica de reconhecimento que amplia os poderes de intervenção dos dispositivos capazes de fixar e de conceder, justamente, aqueles “direitos” que são reivindicados.

Não há possibilidade de fuga do controle, se o controle (no arco muito vasto que vai da invisibilização à censura, da compatibilização à inscrição das posições e dos claims que aceitamos escutar…) se torna a condição para o reconhecimento do “direito” de alguém. Em vez disso, eu acho que se trata, ao mesmo tempo, de desafiar essa lógica de reconhecimento, com a novilíngua liberal dos “direitos” sobre a qual ela se funda e de inventar, experimentar e praticar outras modalidades de subjetivação e de reivindicação para, e sobretudo com os pobres e os excluídos.

Nesse sentido, em que aspectos seria adequado falarmos acerca de uma liberdade vigiada?

Sandro Chignola – Certamente, os dispositivos de vigilância proliferam, impulsionados pelo cruzamento entre novas tecnologias e retóricas da segurança. Mas eu acredito que essa proliferação também depende do fato de que a liberdade (a liberdade de movimento, a liberdade de escolha, a liberdade sexual) está por toda a parte… Mais do que “vigiada”, a nossa liberdade é incentivada e, depois, “governada”; ou seja, dobrada, mas no sentido de “curvada”, dirigida, adaptada para os fins da valorização capitalista. A nossa liberdade é acomodada à racionalidade de mercado: uma liberdade entre mil opções e mil “estilos” de consumo. E é aqui, por isso, que devemos reinventá-la…

Quais são os principais impactos do deslocamento de perspectiva da responsabilidade do Estado para o indivíduo nos mais diferentes campos, sobretudo em relação ao trabalho e à política?

Sandro Chignola – Aqui, está em questão a forma de regulação neoliberal e a particular produção de subjetividade que a marca: Foucault foi um dos primeiros a captar o porte desse projeto. Se, por séculos, aquelas que Foucault chamava de “disciplinas” trabalharam na fabricação de corpos dóceis e úteis para recolocá-los dentro de uma temporalidade homogênea suavizada pelo princípio de utilidade, agora a desconstrução do Estado social, a privatização do Welfare, a adaptação entre liberdade e consumo liberam um sujeito empreendedor de si mesmo, puro “capital humano”, que é o próprio sujeito (mas aqui a referência ao “dever” é ambíguo, já que nada nem ninguém, na realidade, obriga-o…) que deve valorizar. Trabalha-se como livres empreendedores do próprio destino, ciborgues hiperconectados pós-humanos, fora de qualquer medida fixada pelo salário. E-mails, smartphones e computadores fazem com que a nossa vida inteira, mesmo fora do horário de trabalho, seja integralmente subsumida ao capital. Mesmo quando damos uma “curtida” no Facebook no nosso tempo livre, quando fazemos o upload de um vídeo no YouTube, produzimos valor. Os nossos dados são empacotados e vendidos a quem perfila as nossas preferências para fins publicitários, enquanto as ações do Facebook ou do YouTube incrementam o próprio valor. Sermos “deixados livres de ser livres”, assim como os dispositivos de biopoder preveem, significa, no fundo, sermos lançados dentro de trajetórias pelas quais somos considerados integralmente responsáveis. Até mesmo pelo nosso eventual fracasso. E é aqui que a razão neoliberal mostra o seu lado mais feroz: se você é pobre, na realidade, é só culpa sua…

Em outra entrevista à IHU On-Line o senhor mencionou que os presos em nossa sociedade são compreendidos como “lixo tóxico” que deve ser mantido afastado da “cidade empresa”. Tendo isso em vista, em que sentido o neoliberalismo estende sua atuação inclusive nas instituições criadas para segregar os indesejáveis?

Sandro Chignola – Na lógica da valorização do capital humano, o fracasso não pode ser imputado a outros senão a si mesmos. Ser pobre, velho ou doente — mas também simplesmente um estudante preguiçoso, um sujeito “fraco” na competição de todos contra todos — envolve ser deixado de lado. Não há nada a ser recuperado ou reinvestido em relação a fracassos que devem ser imputados apenas à “má vontade” dos sujeitos. E, justamente por isso, as instituições que os tratam podem ser desresponsabilizadas quanto à sua recuperação e, em vez disso, podem ser tratadas como oportunidades de lucro. “Privatizam-se” as prisões, que são geridas tentando maximizar o lucro, poupando custos — em alimentos, em projetos educacionais, em despesas gerais — que são descarregados sobre uma humanidade ainda que “perdida” e aproveitando todas as oportunidades de ganho. Mas também na saúde ou em outras instituições funciona assim, no fundo: eu demito o público — cuja razão de ser se distinguia na responsabilidade social do Estado — e faço negócios privatizando e ampliando a oferta de projetos e de opções diferentes presentes no mercado. Se você não chega a pagar pelo serviço, pior para você; se você pode pagar pouco, pouco terá. Mas, se você é capaz de fazer isso da melhor forma, terá o melhor e a gratificação simbólica que daí deriva. O mundo neoliberal é um mundo decisivamente re-hierarquizado, em que o 1% detém 99% da humanidade sob a chantagem da dívida.

Desde a última entrevista que concedeu à IHU On-Line, em setembro de 2015, qual é a situação de sua pesquisa sobre “pensar além do Estado”? E o que já descobriu no trabalho que está empreendendo sobre “pensar o sujeito e pensar o comum”?

Sandro Chignola – As duas coisas estão conectadas, obviamente. Eu acredito, e não sou o único a pensar assim, já que trabalho em projetos de pesquisa comuns com amigos, companheiros e colegas, que se trata de ir além da própria ideia de “público”. Esta, pela sua genealogia, separa um “objeto público” (sabe-se lá: a universidade, a saúde, outros tipos de bens…), fazendo com que ele não seja privadamente apropriável; isto é, para que não seja propriedade de ninguém. A nós, ao contrário, interessa o comum como aquilo que não pode ser de ninguém, porque é, e continua sendo, de todos. E são as condições materiais de produção que marcam o presente (a rede, as formas de cooperação em que singularidade e esforço coletivo se potencializam uns com os outros, sem que um possa se determinar sem o outro, o trabalho que é feito como sharing, peer to peer, mas também a preservação dos bens comuns da especulação) que produzem a situação que nos leva naquela direção, não uma simples dedução teórica. Trata-se de ir além do Estado e além da sua simples função de tutela pública da propriedade privada. Nisso está implícita a necessidade de pensar a regulação e as instituições além da forma-de-lei. Estou tentando fazer isso.

Para Foucault, as grandes organizações não soberanas é que governam o mundo. Como esse “império” da impessoalidade e da administração coloca em xeque a democracia na contemporaneidade política?

Sandro Chignola – Também nesse caso, ele nos obriga a pensar para além do Estado e a reinventar a democracia. A produção das decisões vinculantes agora é demandada em grande parte a órgãos técnicos e pós-representativos. Mas não podemos, para combatê-los, creio eu, simplesmente reevocar as formas clássicas da democracia representativa. O conceito de “representatividade” implica uma autorização e uma delegação: vota-se em um representante habilitando-o a fazer por nós aquilo que nós não faremos em primeira pessoa. Aqui está o problema. É preciso repensar as formas da participação; reimplantar projetos radicais de liberdade e de igualdade para todas e para todos, sem pensar que “profissionais da política” possam se encarregar deles. É preciso reinventar a cidadania para além do Estado.

A partir da importância da filosofia de Foucault para Agamben [4], qual é a contribuição deste último pensador para repensar a política, em geral, e a democracia, em específico? Em que medida sua filosofia inspira o surgimento de novas formas-de-vida?

Sandro Chignola – Agamben pensa nesse mesmo horizonte, sem dúvida. Mas ele faz isso com aquele que, a meu ver, é um pressuposto extremamente fraco: uma concepção absolutamente vitimária do sujeito e uma noção muito forte de dominação. Omito aqui os detalhes. Ele também tem o problema da fuga do dispositivo de soberania, mas pensar tal fuga como “desaplicação” do direito e como “inoperosidade” da lei e o comum como “uso” (questão absolutamente importante, aliás), sem definir primeiro uma ontologia do comum, parece-me politicamente pouco produtivo. É claro, o tema das “novas formas-de-vida” é decisivo.

Ainda tomando em consideração a obra de Agamben, como avalia a pertinência de suas reflexões acerca do homo sacer e do campo para pensarmos na política de imigração em países como os EUA e a questão dos refugiados na Europa?

Sandro Chignola – Pois bem, o exemplo me parece apropriado para esclarecer o ponto crítico da resposta precedente. Por acaso, a vida do migrante clandestino pode ser entendida como “vida nua” bloqueada no banimento de soberania? Penso que não. Não só a vida dos migrantes está integralmente saturada pelo direito (management das migrações e expertises que o atravessam, fórmulas de acolhimento ou de repulsão, dispositivos de filtragem da mobilidade de tipo técnico-administrativo e sanitário, controle dos fluxos, construção e profiling dos tipos: o clandestino, o refugiado [de guerra ou “econômico”], o refugiado, com todas as implicações jurídicas que essas figuras deixam como resíduo, por exemplo), em vez de despojada dele, mas também o migrante, longe de ser apenas uma “vítima”, é muitas vezes levado por um desejo subjetivo de fuga e de liberdade, que ele reivindica com a sua vida como um “direito”. Isso me parece decisivo para compreender aqueles que me parecem ser os limites objetivos da posição de Agamben. Não se trata de “estados de exceção”, mas da cotidianidade da batalha entre a liberdade e os dispositivos que a afrontam; não se trata de “vida nua” nas malhas da dominação, mas de trajetórias de liberdade e da sua captura, de práticas de subjetivação e dispositivos de assujeitamento…

Quais são os principais desafios da Filosofia e da Universidade em nossos dias para um pensar que ultrapasse os limites do poder pastoral e da governamentalidade?

Sandro Chignola – Penso que a principal diz respeito ao modo como vivemos a responsabilidade intelectual do nosso trabalho. Podem nos impor poderosos processos de reestruturação da universidade e dos saberes, mas isso nunca vai tocar o sentido do nosso trabalho, se, para nós, o nosso trabalho tiver um e se estivermos dispostos a nos encarregar disso a sério. Do meu ponto de vista, isso significa fundamentalmente duas coisas: por um lado, forçar as liturgias e as routines do trabalho na universidade e, em particular, aquelas que nos levam a assumir aproblematicamente os campos de pesquisa e de didática; por outro, viver de forma diferente o papel do professor.

Eu me faço a pergunta sobre o que é justo ensinar hoje; sobre quais são os implícitos de determinadas escolhas que fazemos ou não fazemos (mesmo sem nos darmos conta, às vezes) quando propomos um programa para um curso ou um determinado trabalho de tese. Nós determinamos aquilo que a filosofia política é de maneira consciente ou inconsciente, também dentro dessa microfísica das escolhas, dentro da cotidianidade em que transmitimos ou modificamos a autoridade de um cânone ou a normatividade de um arquivo. Esse nível mínimo daquela que eu chamo de uma “política da filosofia” me parece ser bastante importante para repensar a universidade; especialmente se lembrarmos, para depois “ativar” concretamente essa memória, que uma universidade não é feita de indivíduos solitários, não é dominada por paixões tristes, mas de práticas e de projetos comuns, da alegria das relações e dos intercâmbios, de trajetórias conjugativas da liberdade. Cumprir bem o próprio Beruf, como Max Weber [5] o chamava, já me parece ser uma laica via de salvação: mas só pode sê-lo tendo bem em mente que é apenas com as outras e com os outros que ela pode ser aberta.

Notas: 

[1] Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004; edição 203, de 06-11-2006; edição 364, de 06-06-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)

[2] Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e singularidades. (Nota da IHU On-Line)

[3] Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional da Alemanha do século XX. A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o regime nacional-socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na teologia católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)

[4] Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moderna, o Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault e Agamben. Implicações Ético Políticas do Cristianismo. De 16-03-2016 a 22-06-2016 Ruiz ministrou a disciplina de Pós-Graduação em Filosofia e também validada como curso de extensão através do IHU intitulada Implicações ético-políticas do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Agamben. Governamentalidade, economia política, messianismo e democracia de massas, que resultou na publicação da edição 241ª dos Cadernos IHU ideias, intitulado O poder pastoral, as artes de governo e o estado moderno. Para 23 e 24-05-2017 o IHU realizará o VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, com base sobretudo na obra O reino e a glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo (São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução de: Il regno e la gloria. Per una genealogia teológica dell’ecconomia e del governo. Publicado originalmente por Neri Pozza, 2007). (Nota da IHU On-Line)

[5] Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

Assista à conferência Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros:

O livro “Foucault além de Foulcault: uma política da filosofia” de Sandro Chignola está disponível aqui.

A Covid-19 e a frenagem do desejo de fascismo no Brasil

por Claudia Maria Perrone e Rose Gurski.

“Eu estou aqui, porque acredito em vocês. Vocês estão aqui, porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil”.

Essas palavras foram pronunciadas por Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, em meio a um ato público pelo fim do isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um modo de conter os impactos nocivos da pandemia da Covid-19. Para os especialistas brasileiros o momento é de preocupação, já que o país caminha justamente para o pico da curva de transmissão com uma taxa de 400 mortes em 24 horas – isso sem que a doença tenha atingido maciçamente as populações em situação de vulnerabilidade social. O evento no qual o líder da nação discursou aconteceu no dia 19 de abril e reuniu uma pequena multidão que pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e o exército nas ruas.

Afinado com o  grupo de apoiadores que o recebeu com gritos de “mito”, o líder da extrema direita brasileira seguiu fazendo uso de bordões nacionalistas, entoando expressões que nos remetem aos líderes fascistas e nazistas da Europa na década de 1930: “Temos um novo Brasil pela frente. Patriotas têm que acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no destaque que ele merece. E acabar com essa patifaria. É o povo no poder”. Para estudiosos brasileiros do campo social e político não há surpresa nesta manifestação, foram falas populistas como essas, carregadas de ódio, autoritarismo e de ameaça aos laços democráticos que levaram o capitão à presidência da República. Já na eleição de 2018, os analistas se perguntavam o que fez com que 55% da população brasileira elegesse como presidente um político cuja trajetória pública, ao longo de 30 anos no Congresso Nacional, foi pautada por morte e não por vida. Suas lutas não foram ao encontro de temas como educação, saúde e ação social, mas, sim na defesa da violência, sobretudo a letal e especialmente contra as minorias. Suas propostas como homem público o levaram a disseminar, em seus discursos e ações, a perigosa combinação de violência e delinquência intelectual, banalizando a barbárie nos laços sociais através de um claro incentivo ao gozo com a tortura e o apagamento do outro. Estariam os brasileiros anunciando simbolicamente o desejo por lideranças maníacas por morte? De que, afinal, se constitui o atual desejo pelo fascismo?

O texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, escrito em 1921, foi primoroso na dose de antecipação do que estava por vir na Europa na década de 1930. Nele, Freudpropôs uma matriz de análise para os governos totalitários a partir do horizonte histórico da Primeira Guerra Mundial. Freud mostrou, em seu estudo, que o funcionamento das massas tentava suprimir a esfera política e, portanto, plural da vida a fim de instalar a dimensão da totalidade – traduzido em termos lacanianos, diríamos que o líder totalitário busca fazer “Um do Outro”, ou seja, produzir o apagamento da diferença e da pluralidade de sentidos na construção de posições e ideias. Seguindo ainda na esteira das construções freudianas, evocamos a noção de que o líder tem uma função central na arquitetura da psicologia das massas em sistemas totalitários, representando o ideal do eu; o líder enlaça sua figura aos membros do grupo e estabelece a premissa de que a identidade da massa se forja na operação de exclusão, questão que implica, obviamente, a segregação e os discursos de ódio a todo aquele que não se perfila à massa e/ou ao seu ideário.

A professora de teoria política da Universidade de Bogaçizi, Zeynep Gambetti, propôs a ideia de que estamos diante de novos fascismos evidenciados através do empobrecimento da linguagem, da erosão de valores progressistas, assim como do fortalecimento de práticas racistas, sexistas, xenófobas e incitadoras do ódio e da violência, afrouxando naturalmente os vínculos de solidariedade e compartilhamento entre os sujeitos. Gambetti agrega a esse cenário atual, do qual o Brasil não é o único signatário, o impacto da financeirização do mundo pela via de práticas neoliberais selvagens, o que não se reduz somente aos efeitos econômicos, mas que também aparece no individualismo de sujeitos que mercantilizam diferentes âmbitos da vida social, como laços e emoções.

Nesta direção, Walter Benjamin dizia que a teoria do fascismo deveria ser examinada não como uma regressão inexplicável do mundo pós-iluminista, tampouco como um eventual parêntese na história da humanidade, mas enquanto fenômeno que surge na história social de um mundo baseado na aceleração constante em direção a um progresso linear. Benjamin entendeu a modernidade do fascismo, bem como sua relação íntima com o futuro, através da associação da barbárie política com a idealização ilusória do progresso científico, industrial e tecnológico. Em sua visão, a futurização do desenvolvimento nas sociedades, cada vez mais financeirizadas, fazia do fascismo uma questão não apenas do passado, mas uma preocupação para o futuro.

Em artigo recente, no qual analisa os efeitos da pandemia no Brasil, Vladimir Safatle recolhe a expressão estado suicidário, utilizada por Paul Virílio, a fim de nomear um modo de funcionamento do estado brasileiro que, impregnado pelas premissas neoliberais, estaria não só operando a gestão das mortes e desaparecimentos dos corpos através da necropolítica, mas gestando, também, sua própria catástrofe com novas formas de violência de Estado. No caso do Brasil, o filósofo sugere que o Estado pode ser o próprio fiador da catástrofe, na medida em que repete compulsivamente a histórica desigualdade social e o genocídio de partes da população no cenário da Covid-19.

É justamente nesta direção que gostaríamos de analisar a situação ímpar de negacionismos relativos aos fatos vividos no Brasil de 2020 em meio à propagação da Covid-19. Em que medida o vírus, em nosso país, poderia estar funcionando como um desestabilizador da aceleração na direção de uma autodestruição? Poderiam os efeitos sociais e políticos que advêm das reações do presidente ao vírus produzir uma espécie de freio de emergência na direção do estado suicidário?

O Brasil de Bolsonaro é o único país, entre os 190 do planeta, a registrar carreatas frequentes que negam a potencialidade mortífera da doença e protestam contra o isolamento social como medida de emergência provocada em resposta à pandemia. Além do enfrentamento frontal das recomendações da OMS passeando pelas ruas de Brasília, cumprimentando os eleitores e promovendo manifestações públicas, o presidente reduz a pandemia a “uma gripizinha” e diz que “ficar em casa é covardia” já que “todos vão morrer um dia”.

No avanço das narrativas do absurdo, o domingo 19 de abril de 2020 foi o ápice de um tom maior da destruição gerada a partir da dicotomia artificiosa entre saúde versuseconomia. Com a participação no evento, Bolsonaro mostrou total indiferença com a saúde da população e suas condições sanitárias, especialmente considerando o número de pessoas que vive abaixo da linha de pobreza no país. A presença de Bolsonaro incitou seus eleitores a uma manifestação contra o estado democrático na qual a multidão pedia o fechamento das instituições e a intervenção militar.

É importante sublinhar que temos pensado que a Covid-19 pode estar funcionando como um movimento na direção de uma certa parada reflexiva sobre o atual cenário político do país. Isso porque, depois de mais de um ano de “desgoverno” bolsonarista no Brasil, no qual argumentos progressistas sustentados em ideários humanitários e sociais não fizeram nenhuma função de frenagem na destruição gradual dos processos democráticos, vemos um movimento acontecer a partir dos líderes das principais instituições democráticas nacionais.

Retomando o tema dos novos fascismos, também importa perceber que a onda de neoconservadorismo articulada com o revisionismo histórico e o negacionismo trazidos pela chegada de Bolsonaro ao poder constitui um dos elementos das novas formas de fascismo descritas por Zeynep Gambetti. A negação, que antes atingia o tema das mudanças climáticas e da ditadura no Brasil, atualmente atinge os pressupostos científicos relativos à pandemia, questão que nos parece ter impactado negativamente a popularidade do “mito”, especialmente se consideramos que as negações atuais resultam  em mortes imediatas e não em efeitos cujas repercussões só se darão nas gerações vindouras.

Através da pergunta sobre o desejo de fascismo, seguimos a ideia freudiana do líder forjado no lugar de ideal e, finalmente, chegamos no tema do gozo em Lacan. O psicanalista, em seu Seminário 17, fala do gozo como empuxo na direção da totalidade, aquilo que busca fazer “Um do Outro” e que, portanto, não cria laço, atacando o cimento social e constituindo-se, conforme dizia o psicanalista francês, em antilaço. Nesse diapasão, temos pensado que o fascínio pelos traços de novos fascismos em líderes como Bolsonaro pode estar relacionado ao gozo com a destruição do outro. O estilo rude, a linguagem empobrecida e o comportamento anticivilizatório parecem autorizar a humilhação, a morte e a destruição do próximo, ficando o sujeito desobrigado de qualquer recato social, como se o nó libidinal sujeito-cultura se desarticulasse, conforme postulou Freud em Mal-estar na cultura.

Ora, toda essa dinâmica de garantia de condições civilizatórias somente para alguns e não para todos não é propriamente uma novidade no tecido social do Brasil. Segundo Safatle, o Estado brasileiro nunca precisou de uma guerra porque sempre tivemos uma espécie de guerra civil instalada e não declarada. Mesmo acostumados à retórica do sacrifício de alguns pelo bem de outros, parece que, com a Covid-19, temos assistido à ausência de índices homicidários, restando a roleta russa de um morticínio em massa, na qual fica como questão “a história de corpos invisíveis e do capital sem limites”.

Em meio ao caos da Covid-19 no Brasil, vemos uma certa erosão na tentativa totalitária da extrema direita brasileira. Neste cenário, não podemos deixar de sonhar, especialmente porque não sabemos o que será possível no futuro. Por ora, devemos festejar a frenagem na aceleração em direção a um estado totalitário a partir do fato de que o vírus tirou a roupa do Rei, portanto, o Rei já está nu!

Cláudia Perrone e Rose Gurski são psicanalistas e professoras do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O texto foi originalmente publicado na Revista Cult.