por Claudia Maria Perrone e Rose Gurski.

“Eu estou aqui, porque acredito em vocês. Vocês estão aqui, porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil”.

Essas palavras foram pronunciadas por Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, em meio a um ato público pelo fim do isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um modo de conter os impactos nocivos da pandemia da Covid-19. Para os especialistas brasileiros o momento é de preocupação, já que o país caminha justamente para o pico da curva de transmissão com uma taxa de 400 mortes em 24 horas – isso sem que a doença tenha atingido maciçamente as populações em situação de vulnerabilidade social. O evento no qual o líder da nação discursou aconteceu no dia 19 de abril e reuniu uma pequena multidão que pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e o exército nas ruas.

Afinado com o  grupo de apoiadores que o recebeu com gritos de “mito”, o líder da extrema direita brasileira seguiu fazendo uso de bordões nacionalistas, entoando expressões que nos remetem aos líderes fascistas e nazistas da Europa na década de 1930: “Temos um novo Brasil pela frente. Patriotas têm que acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no destaque que ele merece. E acabar com essa patifaria. É o povo no poder”. Para estudiosos brasileiros do campo social e político não há surpresa nesta manifestação, foram falas populistas como essas, carregadas de ódio, autoritarismo e de ameaça aos laços democráticos que levaram o capitão à presidência da República. Já na eleição de 2018, os analistas se perguntavam o que fez com que 55% da população brasileira elegesse como presidente um político cuja trajetória pública, ao longo de 30 anos no Congresso Nacional, foi pautada por morte e não por vida. Suas lutas não foram ao encontro de temas como educação, saúde e ação social, mas, sim na defesa da violência, sobretudo a letal e especialmente contra as minorias. Suas propostas como homem público o levaram a disseminar, em seus discursos e ações, a perigosa combinação de violência e delinquência intelectual, banalizando a barbárie nos laços sociais através de um claro incentivo ao gozo com a tortura e o apagamento do outro. Estariam os brasileiros anunciando simbolicamente o desejo por lideranças maníacas por morte? De que, afinal, se constitui o atual desejo pelo fascismo?

O texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, escrito em 1921, foi primoroso na dose de antecipação do que estava por vir na Europa na década de 1930. Nele, Freudpropôs uma matriz de análise para os governos totalitários a partir do horizonte histórico da Primeira Guerra Mundial. Freud mostrou, em seu estudo, que o funcionamento das massas tentava suprimir a esfera política e, portanto, plural da vida a fim de instalar a dimensão da totalidade – traduzido em termos lacanianos, diríamos que o líder totalitário busca fazer “Um do Outro”, ou seja, produzir o apagamento da diferença e da pluralidade de sentidos na construção de posições e ideias. Seguindo ainda na esteira das construções freudianas, evocamos a noção de que o líder tem uma função central na arquitetura da psicologia das massas em sistemas totalitários, representando o ideal do eu; o líder enlaça sua figura aos membros do grupo e estabelece a premissa de que a identidade da massa se forja na operação de exclusão, questão que implica, obviamente, a segregação e os discursos de ódio a todo aquele que não se perfila à massa e/ou ao seu ideário.

A professora de teoria política da Universidade de Bogaçizi, Zeynep Gambetti, propôs a ideia de que estamos diante de novos fascismos evidenciados através do empobrecimento da linguagem, da erosão de valores progressistas, assim como do fortalecimento de práticas racistas, sexistas, xenófobas e incitadoras do ódio e da violência, afrouxando naturalmente os vínculos de solidariedade e compartilhamento entre os sujeitos. Gambetti agrega a esse cenário atual, do qual o Brasil não é o único signatário, o impacto da financeirização do mundo pela via de práticas neoliberais selvagens, o que não se reduz somente aos efeitos econômicos, mas que também aparece no individualismo de sujeitos que mercantilizam diferentes âmbitos da vida social, como laços e emoções.

Nesta direção, Walter Benjamin dizia que a teoria do fascismo deveria ser examinada não como uma regressão inexplicável do mundo pós-iluminista, tampouco como um eventual parêntese na história da humanidade, mas enquanto fenômeno que surge na história social de um mundo baseado na aceleração constante em direção a um progresso linear. Benjamin entendeu a modernidade do fascismo, bem como sua relação íntima com o futuro, através da associação da barbárie política com a idealização ilusória do progresso científico, industrial e tecnológico. Em sua visão, a futurização do desenvolvimento nas sociedades, cada vez mais financeirizadas, fazia do fascismo uma questão não apenas do passado, mas uma preocupação para o futuro.

Em artigo recente, no qual analisa os efeitos da pandemia no Brasil, Vladimir Safatle recolhe a expressão estado suicidário, utilizada por Paul Virílio, a fim de nomear um modo de funcionamento do estado brasileiro que, impregnado pelas premissas neoliberais, estaria não só operando a gestão das mortes e desaparecimentos dos corpos através da necropolítica, mas gestando, também, sua própria catástrofe com novas formas de violência de Estado. No caso do Brasil, o filósofo sugere que o Estado pode ser o próprio fiador da catástrofe, na medida em que repete compulsivamente a histórica desigualdade social e o genocídio de partes da população no cenário da Covid-19.

É justamente nesta direção que gostaríamos de analisar a situação ímpar de negacionismos relativos aos fatos vividos no Brasil de 2020 em meio à propagação da Covid-19. Em que medida o vírus, em nosso país, poderia estar funcionando como um desestabilizador da aceleração na direção de uma autodestruição? Poderiam os efeitos sociais e políticos que advêm das reações do presidente ao vírus produzir uma espécie de freio de emergência na direção do estado suicidário?

O Brasil de Bolsonaro é o único país, entre os 190 do planeta, a registrar carreatas frequentes que negam a potencialidade mortífera da doença e protestam contra o isolamento social como medida de emergência provocada em resposta à pandemia. Além do enfrentamento frontal das recomendações da OMS passeando pelas ruas de Brasília, cumprimentando os eleitores e promovendo manifestações públicas, o presidente reduz a pandemia a “uma gripizinha” e diz que “ficar em casa é covardia” já que “todos vão morrer um dia”.

No avanço das narrativas do absurdo, o domingo 19 de abril de 2020 foi o ápice de um tom maior da destruição gerada a partir da dicotomia artificiosa entre saúde versuseconomia. Com a participação no evento, Bolsonaro mostrou total indiferença com a saúde da população e suas condições sanitárias, especialmente considerando o número de pessoas que vive abaixo da linha de pobreza no país. A presença de Bolsonaro incitou seus eleitores a uma manifestação contra o estado democrático na qual a multidão pedia o fechamento das instituições e a intervenção militar.

É importante sublinhar que temos pensado que a Covid-19 pode estar funcionando como um movimento na direção de uma certa parada reflexiva sobre o atual cenário político do país. Isso porque, depois de mais de um ano de “desgoverno” bolsonarista no Brasil, no qual argumentos progressistas sustentados em ideários humanitários e sociais não fizeram nenhuma função de frenagem na destruição gradual dos processos democráticos, vemos um movimento acontecer a partir dos líderes das principais instituições democráticas nacionais.

Retomando o tema dos novos fascismos, também importa perceber que a onda de neoconservadorismo articulada com o revisionismo histórico e o negacionismo trazidos pela chegada de Bolsonaro ao poder constitui um dos elementos das novas formas de fascismo descritas por Zeynep Gambetti. A negação, que antes atingia o tema das mudanças climáticas e da ditadura no Brasil, atualmente atinge os pressupostos científicos relativos à pandemia, questão que nos parece ter impactado negativamente a popularidade do “mito”, especialmente se consideramos que as negações atuais resultam  em mortes imediatas e não em efeitos cujas repercussões só se darão nas gerações vindouras.

Através da pergunta sobre o desejo de fascismo, seguimos a ideia freudiana do líder forjado no lugar de ideal e, finalmente, chegamos no tema do gozo em Lacan. O psicanalista, em seu Seminário 17, fala do gozo como empuxo na direção da totalidade, aquilo que busca fazer “Um do Outro” e que, portanto, não cria laço, atacando o cimento social e constituindo-se, conforme dizia o psicanalista francês, em antilaço. Nesse diapasão, temos pensado que o fascínio pelos traços de novos fascismos em líderes como Bolsonaro pode estar relacionado ao gozo com a destruição do outro. O estilo rude, a linguagem empobrecida e o comportamento anticivilizatório parecem autorizar a humilhação, a morte e a destruição do próximo, ficando o sujeito desobrigado de qualquer recato social, como se o nó libidinal sujeito-cultura se desarticulasse, conforme postulou Freud em Mal-estar na cultura.

Ora, toda essa dinâmica de garantia de condições civilizatórias somente para alguns e não para todos não é propriamente uma novidade no tecido social do Brasil. Segundo Safatle, o Estado brasileiro nunca precisou de uma guerra porque sempre tivemos uma espécie de guerra civil instalada e não declarada. Mesmo acostumados à retórica do sacrifício de alguns pelo bem de outros, parece que, com a Covid-19, temos assistido à ausência de índices homicidários, restando a roleta russa de um morticínio em massa, na qual fica como questão “a história de corpos invisíveis e do capital sem limites”.

Em meio ao caos da Covid-19 no Brasil, vemos uma certa erosão na tentativa totalitária da extrema direita brasileira. Neste cenário, não podemos deixar de sonhar, especialmente porque não sabemos o que será possível no futuro. Por ora, devemos festejar a frenagem na aceleração em direção a um estado totalitário a partir do fato de que o vírus tirou a roupa do Rei, portanto, o Rei já está nu!

Cláudia Perrone e Rose Gurski são psicanalistas e professoras do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O texto foi originalmente publicado na Revista Cult.