“A despolitização não é o destino do mundo”, diz o filósofo. “Trata-se de pensar e de praticar a ação política à altura dos desafios que temos à nossa frente. É preciso reinventar a democracia à altura do século XXI…”
Quais os impactos que os dispositivos de poder vêm provocando nas formas de governo da vida humana? Essa e outras questões analisadas por Sandro Chignola são respondidas por ele nessa entrevista, originalmente concedida à IHU On-Line.
Estudioso das obras de Michel Foucault e Giorgio Agamben, o filósofo compreende como dispositivos “tudo o que conecta tecnologia e vida, obtendo daí uma fantasmagoria de identidade do consumo… Celulares, computadores, cigarros… Tudo é um dispositivo”.
Na conjuntura atual também é possível identificar “os dispositivos de acumulação do capitalismo contemporâneo”, os quais “trabalham diretamente em termos extrativos sobre a vida”. Entre eles, Chignola destaca a “especulação financeira”, que “extrai valor dos fundos de pensões”, “a máquina das patentes”, que “persegue o genoma”, “a vida inteira dos sujeitos”, que “é posta como valor”.
Ele acrescenta: “O que me parece decisivo, na fase da reação capitalista posterior aos anos 1980, é o esgotamento da distinção clássica entre tempo de trabalho e tempo de vida. E as novas instituições de governo neoliberal (a produção do homem endividado de que fala Maurizio Lazzarato; a crise econômica; governo das migrações, por exemplo) parecem-me exibir um traço único. Mas, de novo, nessa direção, têm mais razão aqueles que dizem que o modelo do governo da vida é mais a social-democracia norte-europeia (e a sua perversão neoliberal) que o ‘campo’ — campo de concentração, centro de detenção para clandestinos, zona de proteção nos aeroportos — de que fala Agamben”.
Para Chignola, a política contemporânea é compreendida como uma consequência da “cisão” entre “ser e agir” e, portanto, não se fundamenta no ser. A política, pontua, é, desse ponto de vista, “pura operatividade, eficácia, mero funcionamento de dispositivos de regulação”. Essa tese, assevera, “pode ser um modo de ler o capitalismo contemporâneo ao lado do direito”, à medida que “cada vez mais, a produção de regras não depende de modo algum das soberanias nacionais. Há uma crescente autopoiese jurídica, como há muito tempo defende Günther Teubner. O direito não traduz nem expressa direitos: funciona como máquina oikonomika, puramente tecnológica, para administrar e reproduzir as trocas globais”. E acrescenta: “O que acabou, me parece, é a operatividade dos Estados nacionais e das categorias políticas a eles ligadas: representação democrática, partidos, centralidade dos parlamentos nacionais, territorialidade do direito, etc”.
O tema desta entrevista será abordado por Sandro Chignola na palestra intitulada “A noção de dispositivo em Foucault e Agamben”, que ocorreu em 2014 na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. No encontro, o professor da Università di Padova analisou o método filosófico utilizado por Foucault e Agamben, bem como a relevância que o conceito de dispositivo teve para os autores e suas implicações para compreender o modo como os discursos, verdades e novas tecnologias afetam os sujeitos contemporâneos. Sandro Chignola proferiu na mesma oportunidade a conferência “Foucault além de Foucault: uma política da Filosofia”.
Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Universidade de Padova – Itália.
Qual é o contexto de surgimento e o significado do conceito de dispositivo em Foucault?
Foucault introduz cada vez mais vezes o termo “dispositivo” nos anos 1970. Anteriormente, ele usava preferencialmente “episteme” ou “positividade”.
Parece-me que o termo entra no seu léxico quanto mais ele se afasta, em relação aos arquivos da sua análise, da história da filosofia e da história dos saberes, para se aproximar, ao invés, da analítica de poderes pensados como suportes de circulação e de repartição dos espaços e dos atores sociais. Um dispositivo é o que conecta lógicas heterogêneas e formas do discurso marcadas por anonimidade e ligadas a tecnologias. Um dispositivo, talvez se poderia dizer, é o que é formado pelo cruzamento entre uma proveniência e uma posterior derivação de linhas, o ponto em que é possível captar a operatividade específica de um poder.
Qual é a peculiaridade do uso de dispositivo na obra de Agamben? Que significado esse conceito tem em seus escritos?
Agamben toma emprestados muitos conceitos do léxico de Foucault nos anos 1990 e, em particular, enquanto trabalha nos livros que compõem Homo sacer e aqueles que acompanham a sua obra. Além de “dispositivo”, penso nos conceitos de “biopolítica”, “biopoder”, “arqueologia” ou “arquivo”. São todos termos que Agamben, na realidade, usa como próprios, mudando o seu sentido e apropriando-os como instrumentos para pensar em primeira pessoa, segundo aquela “Entiwicklungsfähigkeit” dos textos que ele reivindica como próprio princípio metodológico. Ler um texto — neste caso, Foucault — significa, em certo ponto, deixar de interpretá-lo e continuar de outra maneira o trabalho filosófico. Nesse sentido, o uso que Agamben faz do termo “dispositivo” é bastante diferente daquele que Foucault faz. Para Agamben, um dispositivo é o operador de uma seca divisão entre a “vida” e o que a “controla”.
Qual é a importância desse conceito na obra dos dois filósofos?
Em Foucault é evidente: trata-se de usar o termo para enquadrar genealogicamente diferentes tecnologias do poder e para trazer à tona como um dispositivo nunca será capaz de capturar até o fim as relações às quais se aplica. Para analisar um dispositivo de poder, ele nos diz, devemos sempre nos referir ao que lhe resiste. Isso significa, marxianamente, que a liberdade sempre vem antes do (e depois do) poder que, por um momento, a controla. Em Agamben, a noção, ao invés, me parece, intervém para captar aquela que ele chama de uma “intencionalidade biopolítica fundamental”, isto é, a seca partição pela qual a vida nua é separada e incluída na máquina de captura do direito e de um poder cuja verdade é sempre tanatopolítica. Não há muito espaço para a resistência em Agamben, talvez se poderia dizer um pouco secamente.
Em que medida o “dispositivo” em Foucault e Agamben se imbrica na problemática do governo da vida?
Para Agamben a relação é clara. A captura da vida segundo o modelo de uma exclusão que, no entanto, a inclui, porque a vida é necessária à própria operatividade do dispositivo, é diretamente funcional para a definição daquilo que Agamben chama de biopoder. Em Foucault, o termo trabalha também onde o que está em questão não é a “vida nua”, mas os corpos ou os gestos singulares e coletivos (como no dispositivo das disciplinas), a sexualidade, a doença mental ou não, mas, sobretudo onde Foucault pensa in positivo dispositivos (ou práticas) de livre sujeitamento e não de passivo assujeitamento. Toda a leitura da Antiguidade tardia que ele produz nos últimos anos da sua pesquisa trabalha exatamente em um uso “positivo” das tecnologias do eu…
Quais são os impactos fundamentais que o poder desde a Modernidade vem provocando nas formas de governo da vida humana como objeto natural?
Sobre isso, eu não saberia responder com Foucault ou com Agamben. Eu posso dizer o que interessa a mim. Os dispositivos de acumulação do capitalismo contemporâneo trabalham diretamente em termos extrativos sobre a vida. O livro de Brett Neilson e Sandro Mezzadra (Borders as Method, Duke University Press, 2013) busca analisar, entre outros, exatamente esses mecanismos. A especulação financeira extrai valor dos fundos de pensões, a máquina das patentes persegue o genoma, a vida inteira dos sujeitos é posta como valor. Produzimos riqueza até com um “curtir” no Facebook que clicamos à noite depois do jantar: o valor das ações do Facebook se eleva bruscamente… O que me parece decisivo, na fase da reação capitalista posterior aos anos 1980, é o esgotamento da distinção clássica entre tempo de trabalho e tempo de vida. E as novas instituições de governo neoliberal (a produção do homem endividado de que fala Maurizio Lazzarato; a crise econômica; governo das migrações, por exemplo) parecem-me exibir um traço único. Mas, de novo, nessa direção, têm mais razão aqueles que dizem que o modelo do governo da vida é mais a social-democracia norte-europeia (e a sua perversão neoliberal) que o “campo” — campo de concentração, centro de detenção para clandestinos, zona de proteção nos aeroportos — de que fala Agamben.
Como Agamben correlaciona a noção de dispositivo com as tecnologias e os novos modos de subjetivação?
Vou dizer secamente: indeterminando o conceito de dispositivo. A conferência que Agamben dedica a “O que é um dispositivo?” conta entre os dispositivos tudo o que conecta tecnologia e vida, obtendo daí uma fantasmagoria de identidade do consumo… Celulares, computadores, cigarros… Tudo é um dispositivo. Se há algo que aqui se “indetermina”, para retomar um vocábulo que ele usa frequentemente em sentido tecnicamente filosófico, é justamente a noção de dispositivo, usada em outros lugares para falar do direito arcaico ou da linguagem. E ele também esvanece a análise do capitalismo e da sua fase atual, que ele, no entanto, evoca sem especificar.
Qual é o nexo que une oikonomia e dispositivo no pensamento de Agamben?
De novo com Foucault, embora Agamben impute justamente a Foucault o fato de não ter continuado na genealogia do econômico, Agamben trabalha na ideia de uma genealogia específica do fato de governo.
Oikonomia, na especulação trinitária dos Padres, é traduzida em latim por dispositio. Isso ocorre, na verdade, também em Cícero. Deus não é só criador soberano, ele também governa a criação direcionando-a ao seu fim. Atua aqui a distinção entre ser e ação de Deus; entre a unidade de Deus e as Pessoas através das quais se realiza a ação de conservação e de direcionamento ao bem da criação. Essa cisão, entre ser e agir, produz uma pesada herança: a política, a ação não tem fundamento no ser. A política, por isso, é pura operatividade, eficácia, mero funcionamento de dispositivos de regulação.
Pode ser um modo de ler o capitalismo contemporâneo ao lado do direito. Cada vez mais, a produção de regras não depende de modo algum das soberanias nacionais. Há uma crescente autopoiese jurídica, como há muito tempo defende Günther Teubner. O direito não traduz nem expressa direitos: funciona como máquina oikonomika, puramente tecnológica, para administrar e reproduzir as trocas globais. Mas, para fazer isso, não me parece necessário afastar-se tanto da crise do constitucionalismo e adentrar na teologia política. A discussão entre Schmitt e Peterson, à qual Agamben se remete indubitavelmente, é bastante antiga… E sobre a crescente relevância da administração e da economia, correspondente a um declínio da soberania, já falavam os clássicos da sociologia: um Max Weber, por exemplo…
Como essa relação entre oikonomia e dispositivo resulta numa administrabilidade inclusive da política e no esvaziamento da democracia?
Trata-se daquilo com o qual eu encerrava a resposta anterior. Cada vez mais, a política é pura administração do existente. O direito — produzido segundo o modelo da lex mercatoria dos grandes estudos, das law firms globais — não tem mais fundamento em uma suposta soberania do cidadão. Aquela que é chamada de governance é uma instituição híbrida de pura regulação, na qual se inverte o nexo entre legitimidade e eficiência, como eu pude escrever em outros lugares. A despolitização, no entanto, não é o destino do mundo, da forma como eu vejo. Trata-se de pensar e de praticar a ação política à altura dos desafios que temos à nossa frente. É preciso reinventar a democracia à altura do século XXI…
A partir dessa perspectiva, podemos falar num triunfo da oikonomia sobre a política? Por quê?
Acho que posso dizer que depende dos olhos com que se olha para o contemporâneo. Se ficarmos fixados ao passado, já na Bíblia acabamos nos endurecendo em estátuas de sal, não? O que acabou, me parece, é a operatividade dos Estados nacionais e das categorias políticas a eles ligadas: representação democrática, partidos, centralidade dos parlamentos nacionais, territorialidade do direito, etc. No entanto, esse mundo aparentemente pacificado pela mercadoria e pelo consumo é atravessado por contínuos processos de recomposição política de baixo. Por formas de uma política nova.
Parece-me que o último Foucault era muito atento aos primeiros sinais disso, quando falava do ingresso em uma época dos “governados”. Falar de uma política dos governados — ou seja, do controle e da resistência pela qual os sujeitos, enraizadas como habitantes de um lugar, interessados em um projeto de governo, etc., e não como abstratos cidadãos, se opõem àqueles que exercem a função de governo — tem sentido se assumirmos o sentido subjetivo do genitivo.
Acredito que essa é uma das coisas a se ter em mente, ao enfrentarmos o presente e as tendências que o atravessam… Está desaparecendo a identificação entre o cidadão e o seu representante, entre a vontade individual e a vontade coletiva, mas cada vez mais o indivíduo governado atua — como consumidor, como corpo sexuado, como habitante de um território em que se decide implantar, não sei, uma produção nociva, como ocupante de casas diante da autoridade municipal — como contrapartida irredutível, envolvida no fato de governo, diante de quem governa.
Como o próprio Agamben aponta em “O que é um dispositivo?”, a linguagem é o mais antigo dos dispositivos e dele não podemos escapar. Nesse sentido, qual é a pertinência de pensarmos a noção de profanação como um contradispositivo?
Agamben interpreta a linguagem como o mais antigo dispositivo de captura, porque, começando a falar, o homem exclui de si a própria animalidade. Parece-me que essa posição, novamente, faz uma cisão radical entre captura e “vida nua”. A mesma do dispositivo de “consagração”.
“Profanar”, no direito romano arcaico, significa remontar a separação pela qual algo ou alguém é confiado em uma esfera particular (a do direito, sobretudo) e levar novamente as coisas ao uso comum. A profanação é a única forma de ação política que Agamben reconhece. Ela é uma outra forma de des-aplicação da norma, do direito e dos objetos que este último “consagra”: a propriedade, a mercadoria, a soberania.
Porém, seria preciso perguntar o que essa desaplicação significa no plano político. Isto é, como ela pode ser materialisticamente produzida e por quais sujeitos, já que, fora do poder, só permanece vida nua, animalidade impolítica… Politicamente, a posição de Agamben parece-me muito mais fraca do que a de Foucault, mesmo ao pensar a potencialidade de formas-de-vida outras, em relação ao direito e ao seu dispositivo de regulação. Mas talvez seja eu que não entenda bem.
Em que medida a assunção de um Ingovernável como ponto de fuga e início de uma nova política estão na base da ‘política que vem’ e da profanação?
O ingovernável para mim — que, sobre isso, continuo foucaultiano e talvez também marxista demais — é a liberdade. Palavra que eu acredito que Agamben nunca usa literalmente nas suas obras. E eu entendo a liberdade como aquele risco, aquela resistência que o governo deve continuamente atravessar para poder governar.
A grande ideia de Foucault é que nenhum dispositivo captura até o fim a liberdade, nem se demonstra capaz de governá-la até o fim…
A liberdade — uma liberdade entendida como potência, como materialidade dos interesses e das escolhas individuais, como excedência permanente em relação às transcrições jurídicas formais — é o que os dispositivos de poder buscam constantemente e que, em relação a eles, traça linhas de fuga contínuas.
Deleuze tinha entendido isso perfeitamente. Mas eu custo a compreender o que é o ingovernável na perspectiva de Agamben — se não a figura messiânica da inoperosidade de Deus antes e depois da oikonomia através da qual ele governa o tempo dos homens; a figura da prisão e da des-aplicação dos dispositivos que deve ser pensada como o que precede e que segue o seu código de funcionamento. Naquilo que ele chama de “o tempo que resta” — todo o tempo antes do retorno do messias e do fim dos tempos — não há espaço para a organização de qualquer resistência, parece-me.
Somente, e Agamben diz isso muito bem com Benjamin, o sonho de uma “violência pura” capaz de explodir a dialética entre a violência que põe e aquela que conserva o direito. Uma ação sem sujeito. Uma excedência radical incapaz de constituir-se como uma ação. O modo pelo qual Agamben lê, em Homo sacer, o livro sobre o poder constituinte de Antonio Negri me parece muito instrutivo nesse sentido.