O radical professor de Direito explica como podemos atender às necessidades uns des outres com dignidade, cuidado e justiça.
Quer se trate da crise climática, perda de salários, custos de moradia, brutalidade policial, deportação, assistência médica corporativa ou simples má conduta política, é fácil olhar para os Estados Unidos e ver nada além de uma catástrofe à frente.
O que menos se comenta é como podemos aprender a enfrentar desafios tão imensos e o que significa reconhecer a dimensão dos problemas sem perder a esperança. Em um livro novo – “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” -, Dean Spade, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Seattle e fundador do “Silvia Rivera Law Project”, oferece um guia para a criação de movimentos duradouros para combater a injustiça, ao mesmo tempo em que atende às necessidades imediatas das pessoas prejudicadas pela pobreza, criminalização, racismo, transfobia e capacitismo.
Spade argumenta que nós vivemos em uma das “sociedades mais atomizadas da história da humanidade, o que torna nossas vidas menos seguras e prejudica nossa capacidade de nos organizarmos juntos para mudar condições injustas em grande escala”. É nesse contexto — definido tanto pelo isolamento social quanto pela dependência de instituições tóxicas e hostis — que Spade situa o conceito de apoio mútuo. Sua escrita nos dá as ferramentas para atender “às necessidades uns des outres com base em comprometimentos compartilhados com dignidade, cuidado, e justiça.” Enquanto alguns imaginam a política nacional como o principal via para a mudança social, Spade argumenta que a transformação real e duradoura vem da organização dentro de nossas comunidades. Seu livro é ao mesmo tempo um apelo à luta, um bálsamo para todes aqueles que se desesperam com o que se mostra no presente e com o futuro e um modelo de como podemos viver melhor uns com es outres.
No início de seu livro, você pontua que apoio mútuo não é a mesma coisa que caridade. Como essas duas práticas se diferem?
O apoio mútuo descreve o trabalho que fazemos nos movimentos sociais para apoiar diretamente as necessidades de sobrevivência uns des outres, com base em um entendimento compartilhado de que as crises que enfrentamos são causadas e agravadas pelo sistema em que vivemos. O apoio mútuo foca em ajudar as pessoas a obter o que precisam agora, enquanto trabalhamos para chegar à raiz desses problemas.
Caridade, por outro lado, se baseia em pessoas ricas – e os governos que dirigem – dando pequenas quantias de sua riqueza roubada para pessoas pobres, geralmente para reprimir revoltas em que as pessoas se envolveriam contra sistemas tão extrativistas. A caridade também se define por quem merece e quem não merece ajuda, o que significa que a caridade sempre tem muitas amarras. Pode ser que esses programas apoiem apenas indivíduos que não têm antecedentes criminais ou apenas aqueles que têm filhos ou apenas aqueles que são documentados, cristãos ou sóbrios. A caridade tem tudo a ver com encontrar pessoas em crise e dizer: “Como essas pessoas podem ser consertadas?”. O apoio mútuo encontra pessoas em crise e diz: “Você deve ter tudo o que precisa e os sistemas são os culpados por essas crises, não você”. Ele oferece ajuda sem amarras e sem esses rigorosos requisitos de elegibilidade, com base na ideia de que todos devem ter moradia, remédios, creches ou o que precisarem.
Uma parte que me chamou a atenção enquanto lia é que “desastres muitas vezes simulam fantasias de um governo benevolente enquanto enfrentamos o fracasso brutal do governo e desejamos que as coisas fossem diferentes”. Como o apoio mutuo nos ajuda a lidar com desastres imediatos? O que ele faz para tornar as coisas diferentes?
Às vezes, quando temos movimentos potentes que incluem apoio mútuo, conseguimos concessões do governo. E às vezes o governo pode fornecer benefícios em uma escala maior do que os projetos de apoio mútuo, porque tem diferentes quantidades de recursos e equipamentos e capacidade administrativa. Mas o problema da ajuda do governo é que ela sempre é restrita por critérios de elegibilidade e pode ser retirada a qualquer momento. Quando os ventos políticos mudam ou não estamos mais tão mobilizados, a ajuda pode ser reduzida ou removida completamente. Esperar por um estado benevolente que algum dia forneça ajuda de uma forma que não seja racista ou capacitista ou que não deixe de fora as pessoas mais pobres e estigmatizadas não é realidade nos EUA.
Devemos, é claro, comemorar quando nossos movimentos conseguem obter concessões. Mas o que realmente estamos tentando construir é nossa capacidade de atender às nossas próprias necessidades em nossas próprias comunidades, para decidir por nós mesmes, juntes, levando em consideração como nossas vidas funcionam, em vez de deixar que pessoas ricas e seus fantoches decidam. Nós queremos que a população local controle sua rede elétrica, crie e controle sistemas de produção de comida, saúde e moradia sustentáveis, acessíveis, e possam fornecer para todes, ao invés de esperar que o governo vá algum dia fazer tudo isso de maneira correta.
Essa “desconfiança” do Estado é um tema recorrente em seu livro. Estou curioso para saber: como você responde às pessoas que dizem que certas crises só podem ser resolvidas por um governo grande e centralizado?
As pessoas precisam entender que o que o governo faz agora é, na verdade, um projeto massivo de redistribuição ascendente. Ele tributa todo mundo e depois dá esse dinheiro para corporações, militares, prisões e policiais. Nós perguntamos: “Por que temos pobreza?” e é porque existe um enorme aparato estatal que garante a extração de lucro da maioria das pessoas para um número muito pequeno de pessoas. O estado garante que a água e o ar das pessoas pobres possam ser poluídos e que suas necessidades de alimentação, saúde e moradia possam gerar lucro para outras pessoas.
Você precisa de um sistema enorme, complexo e coercitivo para forçar as pessoas a trabalharem nas fábricas da Tyson, a pagar aluguel, a se submeter a todos os terrores e humilhações de viver assim. Com o apoio mútuo, nós estamos falando sobre redistribuição para as classes mais baixas, e isso não é algo que o governo dos Estados Unidos faz, mesmo que ocasionalmente jogue alguns trocados para pessoas que consideram pobres merecedores.
Existem vários tipos de liberais interessados em dizer que houve um tempo em que as coisas eram melhores. Muitas pessoas fantasiam sobre o New Deal. Mas o estado sempre usa sua capacidade administrativa para articular o controle de gênero-raça, a extração e a má distribuição. A seguridade social foi criada para excluir os trabalhadores domésticos e agrícolas e para subcompensar as trabalhadoras. Essas coisas não são acidentais – elas são propositais.
Como você diferencia o apoio mútuo que cresceu com as falhas do que se espera do estado e os programas de ajuda mútua que as organizações liberais adoram elogiar?
O fato de as pessoas de extrema direita terem uma crítica ao estado de bem-estar social e de as pessoas de esquerda também o fazerem não significa que seja a mesma crítica. A direita tem medo de ter que apoiar pessoas que ela despreza e cuja vida acha que não vale a pena. As forças de direita querem deixar congelada a desigualdade extrema, que é muito racializada e de gênero, e então tirar todo o apoio do governo para pessoas que se tornaram pobres e miseráveis por programas estatais que distribuíram terra e trabalho de maneiras particulares e garantiram que certas populações não tenham suas necessidades básicas atendidas.
Não é disso que as pessoas que vêm de uma perspectiva feminista antirracista estão falando. Queremos acabar com a violência do Estado que mantém a extrema concentração de riqueza. Nos opomos às estruturas corporativas e governamentais que concentram a riqueza e mantêm o lucro, e nos interessa criar novas relações sociais nas quais todes tenham o que precisam.
Você percebe que muitas vezes estamos fixados em ganhos a curto prazo, ao invés de construir uma possibilidade de melhoria a longo prazo para nosso bem-estar e o bem-estar dos movimentos com os quais nos preocupamos. O que é preciso para nos reorientarmos para esse tipo de trabalho?
A maioria das pessoas entra em movimentos porque precisa de algo, “Preciso de alguém para me ajudar com meu despejo e ouvi dizer que vocês estão ajudando pessoas com a mesma demanda neste projeto de apoio mútuo”. Muito do que os grupos de apoio mútuo podem fazer é ser um lugar para receber pessoas que estão se envolvendo em movimentos recentemente, e não: “Vocês todos já precisam ter a mesma condição”. Em vez disso, queremos nos envolver com as pessoas e perguntar: “Você está mal com que? O que você quer fazer? Você quer nos ajudar a tentar resolver algumas dessas questões?” E por meio disso, vamos continuar conversando e construindo uma análise do que pensamos ser a causa raiz disso tudo.
Como nós podemos construir desde pequenas vitórias, que podem nos fortalecer pessoalmente, até o tipo de vitórias políticas que podem melhorar materialmente a vida de dezenas de milhões de pessoas?
Acho que a maior parte da oportunidade de vitórias políticas estão nas vitorias locais, e a maior parte dos desastres também acontecem no nível mais local. Quando um incêndio atinge nossa comunidade ou quando estamos tentando pensar em como lidar com a Covid, é onde encontramos o desastre e a oportunidade política. E quando as pessoas são encorajadas a assistir passivamente ao espetáculo secundário da política nacional, parece muito, muito desmobilizador. Essa é uma das grandes mitologias dos EUA – que a política acontece principalmente nas e a partir das eleições.
Mas a política está acontecendo em todos os lugares, o tempo todo. Está acontecendo nas interações que as pessoas têm todos os dias para sobreviver e conseguir o que precisam. Acontece em todas as suas interações com a polícia e todos esses órgãos do governo que controlam suas vidas. Então, quando falamos dos discursos famosos e dos líderes carismáticos de um momento, como “Montgomery Bus Boycott”, não falamos detalhadamente sobre todas as pessoas que coordenaram os passeios, todo o trabalho necessário para que isso fosse possível. Temos que mudar nossas ideias sobre escala e entender que escala significa algo não por estar centralizado em um lugar, ou porque há uma pessoa para quem você pode olhar, mas porque significa que muitas pessoas estão praticando algo como apoio mútuo em nível local.
Então você diria que o apoio mútuo acontece principalmente de forma local?
Eu ficaria triste se os projetos de apoio mútuo fossem caracterizados apenas como um trabalho local, porque eu me envolvi e me preocupo com muitos movimentos que funcionam em diferentes escalas. Estou coordenando projetos com pessoas em várias cidades diferentes que estão tentando tirar o dinheiro da polícia de suas cidades e estamos compartilhando estratégias. Pessoas de todo o mundo estão se coordenando para responder à preocupação de que Biden recoloque as terríveis políticas de imigração de Obama, mas estão respondendo de sua localidade, onde estão apoiando pessoas dentro de centros de detenção ou passando por processos de deportação ou vivendo com medo do ICE raids. Estamos todos mobilizando localmente e apoiando as pessoas localmente, enquanto coordenamos e compartilhamos análises e estratégias. Essa descentralização importa, e é o contrário do que o Estado quer fazer, que é centralizar. É uma ajuda que é realmente determinada por aqueles que estão participando ativamente, compartilhando sabedoria local e práticas úteis, não implementando soluções padronizadas que inevitavelmente impõem exclusões.
A natureza local e descentralizada do apoio mútuo é essencial, e podemos ver isso especialmente na resposta a desastres, onde a FEMA é geralmente inútil no terreno, enquanto os projetos locais de apoio mútuo realizados por pessoas que conhecem seus vizinhos e conhecem o local são mais eficazes. É um erro caracterizar as práticas baseadas no conhecimento local e no controle local como projetos de “pequena escala” quando as pessoas estão fazendo tudo e compartilhando conhecimento e recursos mesmo em grandes distâncias.
Estou curioso para saber se você tem algum conselho para as pessoas sobre como se manter ativamente mobilizado – como não deixar que o que aconteceu nos últimos meses seja o fim de sua participação política. Para onde vamos daqui pra frente?
As crises que enfrentamos não vão desaparecer. Acho que cada vez mais pessoas sentem isso, e essa eleição desiludiu ainda mais as pessoas que pensavam que poderíamos simplesmente votar e sair de qualquer coisa que estamos enfrentando agora. Acho que é por isso que tantas pessoas estão se envolvendo em projetos de apoio mútuo e estão ansioses para encontrar maneiras de se sentirem mais conectadas a algo que realmente faça a diferença.
Até certo ponto, temo que as pessoas que foram mobilizadas pelo terror vivido durante o governo de Trump possam se desmobilizar por uma pequena melhoria durante a presidência de Biden. Mas muitas pessoas ainda vão observar que as crises estão na nossa cara. O clima que tivemos este ano, os incêndios e tempestades que tivemos este ano, a experiência de ter o governo respondendo à Covid de uma forma que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas, sugere a urgência de muitos diferentes tipos de ação política, incluindo apoio mútuo e ação direta e organização muito profunda e muito difundida.
Vimos a concentração de riqueza, a força policial e a máquina de deportação crescer e o imperialismo militar dos EUA se expandir, e todas essas guerras incrivelmente longas. Uma resposta apropriada a isso é ficar horrorizado e sentir pesar, e essas realidades e sentimentos também podem nos mobilizar. Temos vivido essas incríveis revoltas contra a supremacia branca e a violência policial, onde muita gente nova tem saído para as ruas. E por meio dessa combinação de apoio mútuo, educação política, construção de solidariedade e ação direta e disruptiva nas ruas, vimos as pessoas desenvolverem uma nova maneira de pensar sobre qual pode ser seu papel para enfrentar essas crises e salvar as nossas vidas.