Editora Criação Humana

Colonização, identidade e o que fazer do futuro, por Eduardo Leal Cunha

Em  Modernidade e identidade , de Anthony Giddens, encontramos a expressão “colonização do futuro”, com a qual o sociólogo britânico procura descrever como a construção de uma narrativa reflexiva do eu, que teça laços entre o presente, nosso passado e um projeto de futuro, nos proporciona segurança ontológica e reduz nossa sensação de risco, frente ao que está por vir, na medida em que nos dá a impressão de que acontecimentos futuros podem ser previstos ou mesmo controlados. [1]

Interessa-nos aí a articulação de duas categorias centrais da nossa experiência moderna: o colonialismo e a identidade. 

Evidentemente, podemos tomar tal aproximação entre colonização e identidade como base em uma história de algum modo compartilhada, afinal, o sociólogo britânico apresenta a identidade como principal elemento do que poderíamos descrever como experiência subjetiva moderna. Ou seja: o modo como incidiram, sobre a relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo à sua volta, as grandes transformações da modernidade: a consolidação do modo de produção capitalista, as revoluções burguesa e industrial, a constituição dos estados nacionais, o mercantilismo e, por fim, a expansão colonial.

Mas, a expressão “colonização do futuro” pode nos servir para destacar que o colonizar e a colonização aparecem como forma de relação com o que nos é desconhecido, mais especificamente, como forma de domínio daquilo que, por nos ser ininteligível, parece imprevisível, incontrolável; o que pode se aplicar tanto a algo abstrato, como o “futuro”, ou tão concreto, quanto o território africano, ou, simplesmente humanos, aqueles que foram descritos, inclusive por Freud, como “povos primitivos.” 

Neste sentido, a colonização, ou colonialidade, como nos propõem os autores do giro decolonial latino-americano, [2]  deve ser pensada como elemento central da nossa experiência moderna, ou, mais precisamente, da racionalidade que a sustenta. 

Há certamente outros nomes e outras maneiras de compreender esse modo de pensar que organiza nossa relação com o mundo, a partir das ideias de controle e de domínio, de sujeição, estruturando assim nosso agir. Razão instrumental, ou mesmo esclarecimento, [3]  é um deles, mas o que a referência à colonização nos traz, de modo absolutamente explícito ao longo da sua história, é que essa forma de relação com o outro se funda na violência e na dominação, deixa marcas e, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que pretende transformar o mundo, opera a cristalização de formas já existentes e impede a irrupção do novo.

Mas o que significa tomar a colonialidade como modo de pensar, ou mais precisamente, como regime de inteligibilidade hegemônico em nossa experiência moderna e, mais do que isso, como forma privilegiada de relação com a alteridade? Lembrando que isso significa dizer, em última instância, que ela também nos impõe formas e limites para nosso investimento libidinal , para nosso gozo.

Talvez, a partir daí, possamos entender por que,  há muito, sabemos dos efeitos cruéis da colonização e, no entanto, tantas vezes ainda nos surpreendemos capturados em sua lógica. Compreender, também,  por que podemos, com relativa facilidade, enxergar a colonização como estado de dominação – no qual as relações de poder se encontram cristalizadas e as posições fixadas, à custa de mais ou menos coerção – e, às vezes, não enxergamos a colonialidade, a razão colonial em ação, quando hierarquias são naturalizadas ou quando o discurso dominante se converte em mito, em verdades autoevidentes, com as quais nunca somos confrontados: como a associação entre o masculino, a razão e a violência; ou entre o feminino, o mistério, a emoção e a fragilidade; ou entre o homossexual e o desvio moral ou imaturidade psicológica; como a imagem do soldado negro saudando a bandeira francesa. [4]

Uma dessas formas centrais de naturalização da colonialidade, no mundo contemporâneo, se faz visível como forma de enquadre, não exatamente do mundo à nossa volta, mas do humano que o habita. Podemos chamá-la de  lógica ou  racionalidade identitária . Desse modo, o vínculo entre colonização e identidade, que tomamos como ponto de partida, nos serve para pensar como tal racionalidade colonial ainda incide cotidianamente sobre a nossa relação com o outro e, também, com nosso próprio eu, como, aliás, indica a formulação de Giddens. 

Marca essa lógica identitária principalmente a atribuição ao outro de traços definidores que não apenas lhe atribuem consistência, integridade e permanência no tempo, [5]  mas o inserem em uma rede de círculos de pertencimento – excluindo-o simultaneamente de outras possibilidades – e o localizam em territórios determinados, nos quais lhe é permitido viver e circular, como as próprias noções de identidade nacional e de etnia mostram com clareza. [6]

Um dos efeitos perversos do que podemos denominar  colonização identitária é  a demarcação de limites identificatórios que não apenas restringem nossas possibilidades de existência, mas colocam o outro, o estrangeiro – tome este a forma do negro, do migrante ou do desviante sexual ou dissidente de gênero – para além desses limites. Dessa maneira, situamos o outro em um território para além das minhas possibilidades de identificação e ele pode, assim, ser percebido como objeto, coisa.

Ao mesmo tempo, o fato de não podermos nos identificar com determinadas experiências ou situações nos faz isolarmo-nos em um campo limitado de experiências. Leva-nos, por exemplo, nós brancos, a desmentir nossa própria racialização, nossa inclusão na divisão racial da sociedade, naquilo que denominamos, hoje, racismo estrutural, para o qual não há fora possível, produzindo o que Robin DiAngelo denomina  fragilidade branca , uma série de desconfortos e de reações defensivas, cada vez que somos colocados frente à nossa radical inclusão na lógica racista que sustenta grande parte da nossa visão de mundo e dos nossos privilégios. [7]

Por tudo isso, um equívoco central a certas críticas aos ditos movimentos identitários, ou ao que se denomina genérica e pejorativamente de  identitarismo , é ignorar completamente a genealogia da identidade e o seu estabelecimento, não apenas como modo principal de posicionamento de indivíduo e de grupos na sociedade, mas como forma hegemônica de relação consigo mesmo, diretamente articulados às transformações políticas da modernidade e a esta racionalidade que aqui procuramos referir à relação colonial.

Estas críticas estão corretas ao apontar o vínculo necessário entre identidade e segregação, entre pertencimento e exclusão, mas omitem o fato de que a identidade é, em grande medida, para voltar à nossa ponderação inicial, uma estratégia fundamentalmente colonial, uma forma de sujeição do outro ao regime de inteligibilidade hegemônico e que está diretamente associado a dispositivos de poder. 

Não foram os grupos minorizados que a instalaram no centro da nossa percepção do mundo ou do outro nem no núcleo da nossa experiência sociopolítica e é por isso que as lutas identitárias precisam ser vistas, sobretudo, como operações de resistência e subversão, ainda que baseadas na apropriação estratégica de atributos, de modo a garantir reconhecimento e lutar contra a injustiça social. Mesmo que tal estratégia mostre cada vez mais seus limites, é essa a forma de luta que se tornou necessária, senão inevitável, a partir do momento em que as identidades se tornaram não apenas “um prisma através do qual os outros aspectos da vida contemporânea são compreendidos e examinados”, [8]  mas um elemento central do cálculo e da luta política.

Por outro lado, se a identidade é a forma hegemônica de subjetivação, desde a modernidade, e sua racionalidade parece estreitamente associada à colonialidade, pensar novas formas de relação consigo mesmo implica a necessidade de outro modo de ocupação do mundo e da natureza, de relação com territórios e populações, que não seja a colonização; implica, portanto, imaginar novas epistemologias, inclusive aquelas que regulam nossa percepção do humano e definem suas fronteiras.

Neste sentido, descolonizar envolve, antes de tudo, des-identificar, pois “não se pode levar a cabo a descolonização sem uma mudança no sujeito”. [9]  Ambos os movimentos implicam, por sua vez, a transformação radical dos nossos regimes de inteligibilidade, pois descolonizar não é desfazer ou apagar o passado colonial, mas subverter a racionalidade que nele se ancora e que, a partir dele, ainda coloniza nosso presente e nosso futuro. Trata-se não de liberação, mas de invenção. 

Ainda que a psicanálise tenha algo a nos ensinar sobre o modo como a rememoração e o enfrentamento de resistências podem criar a possibilidade de que o futuro não se dê como repetição e, assim, em sua imprevisibilidade e alteridade radical, escape à pretendida colonização, ainda será preciso construir novas formas de hospitalidade, para além da domesticação, ou seja, outras maneiras de lidar com o estrangeiro e seu potencial de perturbação, seu caráter de intruso. 

No domínio da experiência subjetiva, tal tarefa significa produzir novas formas de reconhecimento que se articulem a outros regimes de inteligibilidade, para além de qualquer lógica identitária, instrumental ou, por fim, colonial. Para isso, nos termos de Giddens, talvez seja preciso abandonar nosso casulo protetor e enfrentar o perigo – não o risco, sempre calculável e administrável – de viver em mundo não colonizado e não domesticado, um mundo estrangeiro e incômodo, intimidante,  Unheimilich.

Eduardo Leal Cunha é Psicólogo e psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Atualmente é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador Associado da Universidade de Paris. Autor de Indivíduo singular plural: a identidade em questão  (2009),  O político e o íntimo: subjetivação e política do impeachment à pandemia  (2021) e  O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e politica (2021), dentre outros.

*Texto originalmente publicado pela N-1 Edições e republicado pela Criação Humana.


[1]  Anthony Giddens,  Modernidade e identidade.  Rio de Janeiro: Zahar, 2003

[2] Santiago Castro-Gómez & Ramon Grosfoguel (coords.), El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. 

[3]  Theodor W. Adorno & Max Horkheimer,  Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos . Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

[4]  Roland Barthes,  Mitologias . São Paulo: Difel, 1985.

[5]  Eduardo L. Cunha,  Indivíduo singular plural: a identidade em questão . Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 

[6]  Étienne Balibar & Immanuel Wallerstein,  Race, nation, classe – les identités ambiguës . Paris: La Découverte, 1999.

[7]  Robin DiAngelo, “Fragilidade branca”.  Dossiê Racismo – Revista ECO Pós UFRJ  vol 21 n 3, 2018, p. 35-57.

[8]  Zigmunt Bauman, “Identité et mondialisation”. In Yves MIchaud (Org.). L’individu dans la société d’aujourd’hui.  Paris: Odile Jacob, Université de tous les savoirs, vol 8, 2002, p. 55.

[9]  Nelson Maldonado-Torres La descolonisación y el giro des-colonial.  Tabula Rasa . Bogotá – Colômbia, 9. Julio-Diciembre, 2008, p. 67.

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