Editora Criação Humana

A expressão “apoio mútuo” pode aferir pouca radicalidade quando desassociada do corpo coletivo que lhe dá sentido. Apoiarmo-nos mutuamente, o que isso significa?

“Apoio Mútuo é o ato radical de cuidar uns des outres enquanto trabalhamos para mudar o mundo.

 Em todo o mundo, as pessoas enfrentam uma sucessão em espiral de crises, desde a pandemia de Covid-19 e incêndios, inundações e tempestades induzidas pelas mudanças climáticas até os horrores contínuos do encarceramento em massa, policiamento racista, fiscalização brutal da imigração, violência endêmica de gênero, e grave desigualdade de riqueza. À medida que os governos falham em responder – ou projetar ativamente – cada crise, as pessoas comuns estão encontrando maneiras ousadas e inovadoras de compartilhar recursos e apoiar pessoas vulneráveis.

 O trabalho de sobrevivência, quando feito ao lado das demandas dos movimentos sociais por mudanças transformadoras, é chamado de ajuda mútua.

Este livro é sobre apoio mútuo: por que é tão importante, como é e como fazê-lo. Ele fornece uma teoria básica de ajuda mútua, descreve como o apoio mútuo é uma parte crucial de movimentos poderosos por justiça social e oferece ferramentas concretas para a organização, como trabalhar em grupos, como promover um processo coletivo de tomada de decisão, para prevenir e resolver conflitos e como lidar com o esgotamento.

 Escrevendo para quem que é novx no ativismo, bem como para quem está em movimentos sociais há muito tempo, Dean Spade baseia-se em anos de organização para oferecer uma visão radical de mobilização comunitária, transformação social, ativismo compassivo e solidariedade.”

Dean Spade no livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”.

A expressão “apoio mútuo” pode aferir pouca radicalidade quando desassociada do corpo coletivo que lhe dá sentido. Apoiarmo-nos mutuamente, o que isso significa?

Como Dean Spade nos evidencia, trata-se da forma mais radical, criativa e transformadora de construir comunidades e estratégias para enfrentar os problemas sociais em tempos de crises sucessivas. Isso significa dizer que não há superficialidade nessa experiência. Ao contrário, apoio mútuo confere respostas concretas e solidárias aos contextos de urgência, sem ancorar-se no modelo moralizante da caridade, e reelabora dinâmicas de sobrevivência e aliança que vão muito além de propostas estatais temporárias e parcialmente destinadas a determinados grupos e territórios. 

Apoio mútuo é a nuance visível das práticas do comum, pois, ao mesmo tempo que exige, também confere responsabilidade, partilha, comprometimento recíproco e desejo de constituir comunidade.

A obra de Dean Spade chega ao Brasil num momento que lhe confere especial significado. Se muites de nós sobrevivemos aos efeitos nefastos da pandemia viral e ao projeto genocida do governo Bolsonaro, foi em decorrência das ações tecidas situadamente e partilhadas entre as pessoas interessadas em transformar o cenário cotidiano de violência que se impunha.

 

A tecitura sensível de articulações de apoio mútuo foram expressivas nos locais e entre as pessoas mais afetadas pelos efeitos da falta de recursos e pelo incremento agudo das vulnerabilidades sociais. No caso das favelas no Brasil, que no início da pandemia eram consideradas locus de atenção referente à concentração de transmissão – o que não se confirmou –, foram criadas diversas estratégias comunitárias de contenção aos problemas consequentes da política de isolamento. A disseminação da doença, o desemprego e a fome foram combatidos com ações coletivas realizadas pelas próprias comunidades por meio de mutirões de limpeza das ruas, arrecadação de cestas básicas, cuidados de higiene, mobilização por acesso à água e atendimento à saúde. As estratégias de mobilização entre vizinhes para arrecadação de cestas básicas, o voluntariado entre pessoas desconhecidas para ajudar moradorxs mais velhes nas compras, a auto-organização da limpeza das vielas e a contratação de moradorxs da própria comunidade como prioridade na área da Saúde para o levantamento do número de pessoas infectadas e óbitos, se deu em dimensões nacionais e num tom de necessário suporte em termos de manter a vida possível coletivamente.

Apoio mútuo é sustentar a vida de único modo que ela pode existir, compartilhada. Para isso é necessário empregar esforços nas formas horizontais de organização promovidas por movimentos sociais, coletivos e outras expressões da sociedade civil. Entre os destaques do trabalho de Dean Spade está a sistematização de como se organizar coletivamente sem se utilizar de relações que imitam as hierarquias verticais de Estados e das instituições. Isto é, abrir mão de mestres e lideranças com a finalidade de articular responsabilidades recíprocas com os objetivos do projeto e seus efeitos a partir de relações de cumplicidades reafirmadas entre antigas alianças e de novos pactos de ações conjuntas.

O que a obra “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)” deixa aparente é que a atuação solidária e organizada da sociedade civil não precisa ser apenas realizada em larga dimensão para que seja eficaz, concreta e transformadora. A atuação pequena, localizada, coletivamente organizada e desenvolvida entre poucas pessoas também possui a dimensão significativa de produzir impactos radicais na sociedade. Trata-se de atuar considerando a mutualidade social que nos consiste, em que cada vida merece apoio, atenção e resposta, e a urgência de nos encontrarmos através de um agir comunitário pautado em racionalidades criativas que não cedam espaço às convocações neoliberais e aos nossos mais profundos desejos por autoridade e liderança. 

Por isso, evoca uma espécie de tessitura. Muito mais afeita à maleabilidade que importa e à cobertura adaptável que sua forma apresenta. No tecido, cada um somos fios ínfimos e apenas ganhamos força pelo entrelaçamento que se pode dar através de vários nós e em diversas direções e modelos. Longe da qualquer construção vertical em que por trás de sua estrutura estável e dura espelha a fixidez e perenidade, na tessitura sempre somos tocadas de outra maneira. Produzem-se desenhos, formatos e densidades próprias, que bem trazem a diversidade de seus modos de ser. Eis sua condição ética por excelência, com rastro na relação, muito antes e para além de qualquer ser.

Nesse sentido, a obra de Dean Spade é instrumento estratégico prático-intelectual para resistências comprometidas com o apoio mútuo. Ao apontar o quanto necessitamos uns des outres, o que o autor nos interpela a reconhecer é a necessidade de constituirmos ou fortificarmos laços que sejam capazes de gerar dinâmicas criadoras e saídas inventivas e corajosas aos problemas gerados pelos Estados e pelos desdobramentos imediatos da exploração, extração e usurpação das terras, das águas e dos corpos. Desse modo, o autor nos dispõe das ferramentas necessárias para construirmos solidariedades com ousadia durante essa crise e as próximas, que sempre nos aponta para todo o instante de decisão.

Fernanda Martins é feminista e professora.

Augusto Jobim do Amaral é professor.

Ambos assinam a apresentação do livro “Apoio Mútuo: construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima)”, disponível aqui.

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