A pesquisadora percorre a onda feminista que se ativou nos últimos anos —com movimentos como o NiUnaMenos ou as greves— produzindo teoria enraizada na ação, com foco na ofensiva do neoliberalismo contra a reprodução social.
Há alguns anos, a socióloga e pesquisadora argentina Luci Cavallero, junto com sua parceira de escrita e ação, Verónica Gago, se aprofunda nos campos do trabalho, pensões ou dívidas a partir de uma perspectiva feminista. Uma reflexão que não pode ser separada, como ela esclarece várias vezes durante a conversa, da discussão política coletiva dentro do movimento feminista e das várias situações sociais e econômicas onde essa conversa ocorre.
A autora, junto com Gago, do livro “Uma leitura feminista da dívida” (disponível aqui), participou no final de fevereiro do Congresso Internacional Feminista “We call it feminism. Feminismo para um mundo melhor”, organizado pelo Ministério da Igualdade. Após uma intensa agenda, pouco antes de ter que pegar um avião de volta a Buenos Aires, Cavallero ofereceu ao jornal El Salto um amplo olhar sobre o papel das instituições feministas e seus limites, o sindicalismo feminista, a dívida ou o salário-base universal.
Que impressões você leva do Congresso Feminista Internacional?
A primeira sensação que tenho é que houve muita participação do ativismo feminista local e com convidados internacionais de diferentes procedencias e espaços de militância. Acho que o Congresso foi uma oportunidade de recorrer a e discutir uma questão que pairava no ar: o que aconteceu recentemente com o novo ciclo de lutas feministas? Isso pressupõe várias coisas. Tanto a questão sobre o que conseguiu se instituir como debate coletivo e como transferencias de sensibilidade, quanto a questão do que significa essas discussões terem chegado às instituições, quais são os desafios, quais são os limites dessas experiências e políticas públicas. Se trata de uma pergunta antiga em uma nova conjuntura: Quais são as relações mais virtuosas e possíveis entre instituição e movimento? Acho que isso também se refletiu na composição das mesas, onde se encontravam trajetórias de ativismo local, jornalistas, artistas e também pessoas com cargos institucionais ligados a agendas feministas.
Justamente esse arco, que começa nos movimentos e entra nas instituições para aplicar políticas públicas feministas, também faz parte do seu trabalho. Por exemplo, depois de participar do debate sobre a dívida dentro do movimento feminista, você agora faz parte da equipe que implementa um programa na Província de Buenos Aires para lidar com dívidas abusivas de mães de famílias monoparentais.
O primeiro ponto a se destacar é que a estrutura institucional feminista é fortemente atacada por movimentos de extrema-direita na Espanha e na Argentina. Então, obviamente, acontecem muitos problemas porque, em geral, os recursos que chegam são poucos e os orçamentos são baixíssimos. Digo que a institucionalidade que deveria estar lutando pela sua existência e pelos motivos de ser permanente frente a outras instituições nas quais se dirigem as críticas mais duras. O que tentei promover foi uma política pública que se encarregasse da situação de superendividamento das famílias monoparentais da província de Buenos Aires, a maior do país.
O programa foi votado no Legislativo e reconhece o endividamento como problema social prioritário em termos de violência econômica contra a mulher. Vai ser executado pelo Ministério das Mulheres, Políticas de Gênero e Diversidade Sexual. No entanto, ainda não está em vigor.
Você participa como militante e pesquisadora de uma agenda que aborda como o feminismo e o sindicalismo se cruzam para transcender essa falsa segregação entre trabalho remunerado e trabalho doméstico ou comunitário, tornando visível o trabalho não remunerado. Quão potente é partir do lugar de que somos todas trabalhadoras?
Temos uma avaliação compartilhada com o coletivo NiUnaMenos sobre como foram esses anos de organização de greves feministas. Acreditamos que um dos equilíbrios mais importantes é a aliança entre feministas e sindicalistas, uma confluência entre duas experiências históricas que de alguma forma foram separadas. As que eram sindicalistas tinham muitos problemas em se autodenominar feministas e nós que somos feministas tínhamos um certo ressentimento com o sindicalismo. Acredito que a greve feminista permitiu que essas realidades, essas experiências vitais, se misturassem. Não apenas para revitalizar o sindicalismo realmente existente, mas para ampliar o que se entende por sindicalismo, para implantar um sindicalismo que leve a sério as questões da reprodução da vida.Por exemplo, um sindicalismo contra o aumento do aluguel, um sindicalismo que cuida do custo da alimentação, um sindicalismo que também pode colocar em pauta a reivindicação das trabalhadoras domésticas e comunitárias.
Estas últimas são uma realidade trabalhista muito difundida na América Latina, são elas que trabalham nas comunidades, na produção de alimentos, saúde, são elas que acompanham casos de violência de gênero e que não são reconhecidos. Aí vemos uma grande dívida pendente: seis anos depois da primeira greve, ainda não conseguimos que o trabalho comunitário e de apoio múto, que é vital, seja remunerado de forma digna. Trata-se de feminismos capazes de se encarregar de realidades trabalhistas heterogêneas, migrantes, precárias e que respondem às políticas que o neoliberalismo instalou em nossos países.
Você também fala do direito de envelhecer em paz, ou seja, de enfrentar os efeitos da divisão sexual do trabalho ao longo de todo o ciclo da vida, e transfere essa perspectiva para a demanda por aposentadorias justas.
Esse foi um tema que apareceu com muita força em 2018. Como o feminismo respondeu à questão da previdência? O processo político foi muito interessante. O governo de Mauricio Macri, ultra neoliberal, chega a um acordo com o Fundo Monetário Internacional. Uma das primeiras exigências do FMI foi que o Estado anulasse a possibilidade de moratórias de pensões, lei que vigora desde 2004 e que permite as trabalhadoras que durante anos trabalharam em domicílio ou tiveram patrões que não contribuíram [que não contribuíram para segurança social], podem no final da vida pagar essas contribuições e reformar-se como trabalhadoras registradas. É um mecanismo de reparação face a uma desigualdade laboral que nos afeta, precisamente porque trabalhamos em casa e porque a maioria das trabalhadoras trabalha em tarefas de cuidado, mas que depois não acaba por lhes dar direito a uma aposentadoria. Assim, nós utilizamos o slogan: “As contribuições que nos faltam são do patriarcado”, e “Nem uma aposentada a menos”, para destacar a necessidade do feminismo assumir esta realidade e o direito à aposentadoria como contrapartida necessária da ideia de “trabalhadoras somos todas”. Se somos todas trabalhadoras, também temos que poder nos aposentar, e temos que encontrar formas reparatórias na Previdência Social que dêem conta de todas as desigualdades que passamos durante nossas vidas.
Como o feminismo tem enfrentado essa violência institucional e burocrática que implica que são as mulheres que devem lutar por subsídios, que devem justificar a pobreza de seus núcleos familiares?
Esta é uma questão muito importante para nós. Desde a primeira greve nacional em 2016, as assembléias são realizadas no Sindicato das Trabalhadoras da Economia Popular, que são as que realizam trabalhos comunitários que o Estado reconhece de forma muito precária e, ao mesmo tempo, são permanentemente identificadas e estigmatizadas como população subsidiaria e não trabalhadora.
Sabemos que o ajuste econômico exigido pelo endividamento precisa de uma validação moral. Esse validação moral gera uma hierarquia de méritos, onde o tempo todo, o que tentam fazer é deslegitimar a vida de mulheres pobres, porque são culpabilizadas como mães, porque usam subsídios sociais para comprar outras coisas que não comida para a sua família, etc. Claro que isso acontece sem se colocar uma lupa sobre as riquezas de outras pessoas, nem se julga quem são os detentores de uma concentração absurda de capital. São estigmatizadas as trabalhadoras da economia popular, que também sustentam a reprodução da vida em condições precárias. Sobre elas, paradoxalmente, o neoliberalismo ativa sua vigilância moral. Não há planos de austeridade e de ajuste que possam prescindir uma produção de populações que devam ser punidas, criminalizadas. Tentamos o tempo todo nos articular em lutas que não só não estão na defensiva contra o avanço reajustador e moralizador, mas estão na ofensiva: trata-se de dizer que somos as trabalhadoras e isso nos é devido. Nós somos as credoras. É o movimento que busca inverter que faz a dívida externa, né? Não somos nós que devemos, são eles que devem a nós, porque fazemos um trabalho que sustenta a vida e que não é reconhecido ao mesmo tempo que é explorado.
E em todo esse mecanismo, que lugar ocupa a figura da subjetividade devedora, como ela opera?
O que temos investigado, junto com Verónica Gago, é como essas políticas de austeridade do Fundo Monetário Internacional geraram um transbordamento de dívida para as famílias: dívida externa que se transforma em dívida privada e que as famílias devem assumir. O que descobrimos é que a dívida estava sendo assumida principalmente por mulheres trabalhadoras da economia popular, ou seja, mulheres que recebem algum subsídio do Estado. E isso é um paradoxo, são as mulheres que mais trabalham e ao mesmo tempo as que mais se endividam. Por que? Porque existe uma relação entre o trabalho não remunerado e o trabalho mal remunerado e a necessidade de contrair empréstimos para viver. A dívida torna-se um mandato que não pode ser ignorado. É assim que se produzem as subjetividades devedoras. Por isso o slogan “sem dívidas nos queremos” é muito importante, porque utilizamos para questionar o impacto dessa dívida externa com o Fundo Monetário Internacional em termos de cortes orçamentários, em termos de redução do investimento social do Estado , mas também porque a dívida externa surge nas famílias como uma necessidade de endividamento que é maioritariamente da responsabilidade das mulheres.
Dentre essas dívidas contínuas, está a dívida com aluguel de moradia. Conte-nos sobre as alianças com sindicatos de inquilinos e inquilinas…
A partir das lutas feministas é preciso fazer uma conexão com os conflitos que vão surgindo conjunturalmente porque fazem parte das lutas pela reprodução social. Nós, em plena pandemia, tivemos muitas consultas e demandas em relação à moradia. A habitação tornou-se quase a principal violência econômica naquele momento de emergência. Quem não tem acesso a uma possibilidade de aluguel, por exemplo, não consegue sair de uma situação de violência. Além disso, muitas mulheres chefes de família que estão alugando suas casas começaram a receber pressão dos proprietários. Então começamos a falar em “violência patrimonial” para sinalizar as ameaças e chantagens as inquilinas porque não podiam pagar o aluguel em plena pandemia, muitas desempregadas, sem renda, e com os filhos em casa. Os lares mais afetados durante a pandemia foram, mais uma vez, os monoparentais, os mais ameaçados de despejos. Nesse contexto, passamos a trabalhar cada vez mais com o Sindicato dos Inquilinos e Inquilinas, como forma de fazer também uma aliança estratégica para nos envolvermos nesse conflito que hoje é a principal reivindicação de quem vive uma situação de violência. Elas precisam de um lugar para onde ir, precisam ter autonomia financeira para sair daquela situação. Mas é também o principal problema de quem aluga, agora agravado pela inflação e pela especulação imobiliária. Então outra das coisas que fiz aqui foi me encontrar com colegas da PAH e do Sindicato dos Inquilinos e Inquilinas, bater um papo, trocar um pouco sobre essa situação e como a pauta feminista também está na luta pela moradia e ao mesmo tempo a luta pela habitação está na agenda feminista.
Você estava falando de autonomia agora, você tem trabalhado a questão do salário base universal. No Estado espanhol falamos de renda básica universal. O termo salário está mais associado ao reconhecimento do trabalho não remunerado, enquanto quando falamos de renda focamos na redistribuição, no acesso a recursos mínimos como um direito, desvinculado do fator trabalho. De fato, certos feminismos criticam a possibilidade de remunerar o trabalho de cuidado —como defendiam à época pensadoras como Silvia Federici— e veem tanto a ideia de salário quanto de renda como o risco de essencializar o papel da mulher como cuidadora . Você tem refletido sobre isso?
Acredito que isso tem a ver com uma história de lutas. Ainda que o debate tenha sido global, apareceu de formas diferentes em diferentes países. Nós não podemos separar a luta por um salário universal do que vem acontecendo na Argentina em relação a luta dos movimentos sociais pelo reconhecimento das tarefas que se cumprem. É também onde está a maioria das companheiras que fazem trabalhos comunitários. Portanto, na Argentina a demanda aparece como salário porque salário é a palavra mágica que reconhece que um trabalho anterior foi feito, que o trabalho já feito deve ser remunerado. Acho que seria preciso pensar, obviamente, que existem pontos de contato com essa ideia de renda, mas nos parece mais adequado chamá-la de salário. E claro, na discussão feminista tem toda a discussão de como garantir que esse salário não acabe por consolidar a condição de mulher trabalhadora em tarefas reprodutivas. Mas me parece que a chave aqui é lutar ao mesmo tempo: lutar por salários, por melhores serviços públicos de assistência, por licença maternidade e paternidade, para dissociar os mandatos de gênero em relação aos cuidados.
Você coloca muita ênfase, no discurso e nas suas práticas, na necessidade de unir pesquisa e movimento…
O que escrevemos se faz dentro de um processo político, que é o processo político da luta feminista na Argentina e, diria mais, na América Latina. Muitos dos conceitos que estão no livro têm a ver com conceitos que estão em diálogo com os processos políticos que, claro, não negam os percursos universitários que temos mas também, no quadro de uma universidade pública aberta a movimentos, tem uma porosidade em relação ao que acontece nas ruas. Portanto, não há uma separação tão nítida entre universidade e movimentos sociais, mas é importante destacar que é um livro que se faz dentro de um processo político e por isso teve também a capacidade de sistematizar palavras que foram saindo das assembléias e que tem a ver com essa ideia de que a economia feminista fala uma linguagem do cotidiano e que discute primeiro com a ideia de que a economia só pode ser um discurso de especialistas, geralmente neoliberais, que propõem uma economia voltada simplesmente para diminuir o déficit fiscal. Nosso objetivo é ajudar a repolitizar a reprodução social: o que comemos, quanto devemos, a quem devemos, por que devemos e como isso também gera uma economia de obediência na vida cotidiana. Daí a necessidade de pensar sempre em relação à produção da violência invisível. É muito importante que a produção de categorias, a produção de teoria, não se desvincule do processo político, que contribua para a sua dinâmica organizativa, que não se gere uma situação em que há umas que pensam e outras que são militantes.
E nesse quadro de desapropriação, a dívida é uma forma de desapropriação do futuro?
Sim, trabalhamos com essa discussão dentro do feminismo. Estamos falando de empréstimos em condições precárias, com juros altíssimos, que acontece muito na América Latina. Primeiro, o que a dívida implica é uma promessa de trabalho futuro. Você está prometendo ao seu credor que vai realizar uma série de ações e que, portanto, não vai realizar outras. Para nós, a dívida tem de ser analisada em relação ao modo como afeta a capacidade de planejar o cotidiano da mulher, mas também para pensar numa fuga de um lar violento, como a dívida limita a indeterminação do tempo que está por vir. Hoje você trabalha mais e ganha menos. Isso ameaça diretamente a possibilidade de usar o tempo para o seu bem-estar e para a ação política. Existe uma disputa muito importante pelo tempo, e nesse sentido a dívida atua diretamente nessa disputa.
A edição brasileira do livro “Uma leitura feminista da dívida”, de Luci Cavallero e Verónica Gago, está disponível aqui.
*Entrevista originalmente publicada pelo jornal El Salto e traduzida livremente pela equipe da Editora Criação Humana.