A Pública conversou com a ativista argentina Lucía Cavallero sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina, por Mariama. Correia.

No ano passado, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Foram 1,4 mil assassinatos, segundo o Monitor da Violência. Isso significa que a cada seis horas uma mulher foi morta. Na América Latina, onde ao menos 4,4 mil mulheres foram assassinadas em 2021, estamos entre as nações com as maiores taxas de mortes motivadas por gênero. Somos o quinto país em mortes violentas de mulheres do mundo, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Há oito anos, o dia 3 de junho se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Naquele dia, o grito de Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português) foi entoado por milhares de mulheres, que se reuniram em marcha pelas ruas até o Congresso Nacional da Argentina, em Buenos Aires. Naquela época, o movimento se organizava em protesto pelo assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, morta pelo seu companheiro.

Os ecos daquele dia se tornaram um impulso para movimentos feministas em vários países. Hoje, organizado enquanto coletivo feminista, o Ni Una Menos continua levando mulheres da América Latina às ruas, na luta por direitos. O coletivo existe em países como Chile, Bolívia e Peru, e se faz presente em outras nações por meio de alianças com movimentos feministas locais, caso do Brasil.

A Agência Pública conversou com Lucía Cavallero, ativista argentina do movimento Ni Una Menos, sobre as lutas feministas no Brasil e na América Latina. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, ela coordena assembleias que organizam tanto as marchas do 3 de junho como as do 8 de março no país, duas datas fundamentais para a luta por direitos das mulheres.

A marcha do Ni Una Menos, na Argentina, em 3 de junho de 2015, se tornou um marco para o combate ao feminicídio na América Latina. Você pode explicar um pouco como o Ni Una Menos começou e como o #3J acabou se consolidando como uma das datas mais importantes do calendário feminista latino americano?

O Ni Una a Menos começou como uma série de ações culturais nas quais diferentes poetas e jornalistas se juntaram para falar dos feminicídios que, naquele momento, não estavam sendo contabilizados como um problema público. Sentíamos que havia muitas violências na nossa vida cotidiana, havia números, mas que isso não estava sendo considerado como um problema estrutural. Então, a partir dessas atividades culturais, surgiu o mote “Ni Una Menos”, que viralizou nas redes e gerou uma manifestação massiva na frente do Congresso Nacional argentino, em 3 de junho de 2015. 

A partir dali, o grupo Ni Una Menos, como coletivo, começou a fazer discussões. Eu entrei [no movimento] em 2015, quando decidimos que as marchas seriam organizadas com um processo de assembleia antes. Tomamos uma decisão política de não apenas trabalhar em um plano midiático, mas também trabalhar em um plano de organização de políticas, de reivindicações, em um espaço onde pudessem participar organizações de diferentes tipos.

No ano seguinte, então, vocês convocaram uma greve nacional de mulheres?

Foi outro marco. Diante da aparição de feminicídios muito cruéis nos meios de comunicação, sentimos a necessidade de convocar a greve. Foi a primeira vez que o movimento feminista da Argentina utilizou a greve como uma ferramenta própria do feminismo, o que gerou muitas discussões – se tínhamos autorização para falar de greve ou se só sindicatos podiam falar em greve. Mas, no fim, isso se transformou em algo muito vital, não só para o feminismo, mas também para os sindicatos. Então demos início à implementação da greve feminista, que agora fazemos no 8 de março. A greve foi muito importante porque nos permitiu complexificar o diagnóstico das violência, colocando na agenda a relação entre violência econômica e violências machistas. Demos início a um processo pedagógico muito importante na sociedade sobre a ideia de trabalho não remunerado, de precarização do trabalho e, inclusive, da dívida. Eu, particularmente, trabalho muito a relação entre o endividamento, o endividamento doméstico, e as violências machistas. E nós temos avançado nessa complexificação.

Como o movimento se espalhou? Qual foi a chave, na sua opinião, para que o movimento ultrapassasse as fronteiras argentinas e influenciasse outros países?

Depois do primeiro 3 de junho, o movimento começou a ser replicado em outros lugares. Começaram a surgir marchas auto-organizadas que não estavam necessariamente em contato conosco. Acredito que a chave disso foi falar com um vocabulário que fazia sentido para as pessoas. 

O mote ‘Ni Una Menos’ era facilmente adaptável a diferentes contextos – porque falar sobre feminicídio no Peru não é o mesmo que na Argentina ou no Brasil. Utilizamos um vocabulário que era compartilhável a nível mundial, incluindo os códigos estéticos – como o lenço verde e outras coisas que foram se tornando códigos globais. Então, foi um trabalho muito importante de tecer cotidianamente com essas redes internacionais que iam aparecendo.

E as redes sociais ajudaram muito nessa mobilização, não é? São hoje um vetor de engajamento com causas feministas, na sua visão?

As redes sociais foram fundamentais para a viralização do feminismo, mas agora o que está acontecendo é que as redes sociais se tornaram um espaço de muita violência política.

E de gênero também?

Sim. As redes sociais têm uma potência, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é um território que não controlamos, porque é um território que é coordenado e hegemonizado por empresas e corporações multinacionais. Sabemos, por exemplo, que é proibido mostrar corpos femininos nus, mas ao mesmo tempo os ataques ultra-fascistas contra jornalistas, contra figuras públicas, não é penalizado. Para o Ni Una Menos, usar as redes sociais para viralizar midiaticamente os motes do movimento e para as convocações é importante, mas, ao mesmo tempo, acho que temos que criar outras esferas, porque as redes sociais são um território ocupado pela ultradireita e não está em nossas mãos.

Enquanto vários países da América Latina avançaram em políticas de gênero – como a Argentina, na descriminalização do aborto –, no Brasil enfrentamos uma série de ataques e retrocessos durante o governo Bolsonaro. No ano passado, por exemplo, batemos recorde de feminicídios. Estamos entre os países com maior número de assassinatos de mulheres da América Latina e do mundo. Como vocês viram esses retrocessos no Brasil? 

Uma das características desta última onda de feminismos é a sua vocação internacionalista. Temos, como nunca antes, muitas alianças, redes, a nível internacional e, particularmente, na América Latina. Ni Una Menos existe em vários países da América Latina com esse nome – no Chile, no Peru, na Bolívia – e também em outras partes do mundo. Esse processo de internacionalização nos permitiu, por exemplo, estreitar muito mais as alianças que tínhamos com o Brasil. 

Sabíamos que o que estava acontecendo no Brasil era também uma mensagem para todas na região. O Brasil foi uma espécie de laboratório dessa reação conservadora que está acontecendo no mundo inteiro. Então, nesses últimos anos, tivemos, quase em tempo real, notícias sobre os ataques às universidades no período Bolsonaro, sobre os casos de violência política.

Quando pensamos na política de uma maneira internacional, sabemos que essa reação é uma resposta a tudo, a todas. Porque o que aconteceu no Brasil também era uma resposta, [uma forma de] dizer “que não aconteça no Brasil o que está acontecendo em outros países da América Latina”, onde estão pondo em xeque as hierarquias de gênero, de raça, onde apareceu uma organização com base no direito de decidir sobre os nossos corpos.  

Essa reação às conquistas feministas têm sido muito violenta no Brasil, como no caso do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2015, ainda sem respostas nem punições. Aqui, a luta por justiça por Marielle se tornou um símbolo do enfrentamento da violência de gênero, política e racial. É, na sua visão, uma bandeira que também une hoje a luta feminista latinoamericana contra o feminicídio?

O assassinato da ex-vereadora Marielle Franco causou muita comoção por aqui, e a busca por justiça por Marielle é uma causa fundamental do feminismo na Argentina. Isso nunca tinha acontecido antes na história. Antes estávamos mais afastadas, sabíamos menos do que acontecia no Brasil. 

Inclusive, nós quase nunca nos pronunciamos sobre eleições, mas tivemos pronunciamentos sobre as eleições no Brasil, sobre a necessidade de pensar que não era sobre uma discussão entre nomes, mas sim a possibilidade de que o movimento antifascista pudesse recuperar o Estado ou, pelo menos, reduzir os níveis de violência política. 

Nós olhamos muito de perto o que se passa no Brasil. Também temos visto que o Brasil está liderando um movimento antirracista na América Latina. Vemos que o movimento feminista brasileiro com toda a reflexão antirracista, que aqui na Argentina não é tão importante, infelizmente. Acompanhamos com muita atenção as marchas #EleNão [manifestações históricas lideradas por mulheres no Brasil, contra Bolsonaro, em 2018]. Vejo muita potência no caráter antirracista desses feminismos brasileiros.

Você falou da questão racial como uma coisa que diferencia os movimentos feministas brasileiros. Também de uma onda feminista no mundo. O que une essa onda feminista na América Latina?

Eu acho que o que nos une, obviamente, é nossa condição de países colonizados, de países periféricos. Acho que o que nos une é algo que não existe, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, mas que existe nos nossos países, como as lideranças comunitárias nos territórios, defendendo os territórios, dando valor ao trabalho comunitário. Isso é muito característico do feminismo latinoamericano, essa ideia das feministas comunitárias que estão defendendo o território.

Mesmo aqui na Argentina, onde há um movimento muito urbano, as feministas comunitárias também são as que encabeçam a luta pelo reconhecimento do trabalho comunitário. Então, eu diria que o feminismo latinoamericano é um feminismo comunitário e popular. É um feminismo que está organizado mais além de uma concepção liberal, como podemos encontrar pelo Norte global. No nosso caso, o que aqui se entende como feminismo popular – que é ainda um feminismo que está nas organizações sociais, nos sindicatos – é um feminismo que trabalha reforçando a liderança das companheiras que estão no que aqui chamamos de economia popular, a economia que se organiza nos bairros para reproduzir a vida. Isso é algo que não está presente em outros países do Norte.

Quando você diz feminismo comunitário, está incluindo também locais periféricos, como favelas, movimentos do campo? Temos, por exemplo, a Marcha das Margaridas como uma ação conjunta de mulheres da América Latina.

 

Sim, comunitário pode ser, em países como Bolívia, Peru, Colômbia, um feminismo com muito mais desse componente indígena, muito mais forte do que na Argentina, que também é comunitário. Quando falamos de comunitário no Brasil, estamos falando de movimentos mais urbanos, como em favelas. 

Voltando a luta do Ni Una Menos contra o feminicídio. Tivemos ao menos 4,4 mil mortes violentas de mulheres na América Latina, em 2021. Já comentamos um pouco dos alarmantes dados brasileiros, mas queria saber como está o cenário hoje de violência de gênero na Argentina. Houve avanços desde o 3 de junho de 2015? 

Essa é uma discussão importante, porque uma pergunta estratégica que surgiu é como medir a eficácia do movimento. Obviamente, vem à mente como indicador de eficácia o número de feminicídios. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos que os feminicídios estão ligados a problemas estruturais que ainda não foram resolvidos. Então precisamos pensar também em que efeito essas mobilizações tiveram e como é possível medir isso com outros indicadores.

As mobilizações na Argentina levaram, em nível institucional, a criação do primeiro Ministério de Gêneros, que agora está sendo replicado em outros países, e a uma série de políticas públicas com perspectiva de gênero. Isso por um lado. Por outro lado, o saldo desse primeiro Ni Una Menos foi a aparição de um monte de grupos, de coletivos feministas em diferentes espaços – universitários, territoriais, secundários, sindicais, foram criados muitos espaços de gênero. Houve um saldo de muita organização em relação às demandas feministas.

No entanto, tem algumas demandas que ainda não conquistamos, que são muito estruturais. Por exemplo, o reconhecimento de forma remunerada das pessoas que fazem acompanhamento em casos de violência machista nos territórios. Não conseguimos obter remuneração para essas companheiras. Ainda não conseguimos fazer com que o Estado proporcione assessoramento jurídico gratuito de forma massiva para pessoas que estejam passando por situações de violência de gênero. 

Também permanece a sensação de que, apesar de todas essas mobilizações – que são muito importantes, porque sem mobilização não podemos pautar nada –, a situação econômica piorou, e isso fez com que, hoje, sair de uma situação de violência seja ainda mais difícil que em 2015, porque os aluguéis estão mais caros, o acesso à habitação está muito difícil, os salários estão muito baixos, os indicadores da desigualdade de gênero, alguns diminuíram, mas seguem muito altos.

Eu resumiria assim: as mobilizações em massa levaram a uma politização muito importante em torno da violência de gênero na Argentina. Mudaram a sensibilidade – atos que antes eram tolerados e não são mais, violências que antes eram toleradas e não são mais. Levaram a uma reconfiguração até da organização política, tanto ao nível do sistema político quanto das formas de organização mais de base. Fizeram aparecer um monte de espaços com demandas feministas. Conseguiram uma certa penetração institucional desses problemas, com a criação dos ministérios, mas também porque os candidatos ou as pessoas que estão na política partidária tem que frequentemente se pronunciar em relação aos temas feministas.

Pode-se dizer que a campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, que conseguiu transformar o aborto seguro e gratuito na Argentina em lei, em dezembro de 2020, veio na esteira das mobilizações iniciadas em 3 de junho de 2015 pelo Ni Una Menos?

A campanha nacional pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito é anterior ao Ni Una Menos, muitos anos antes. Em certo momento, o Ni Una Menos foi incorporando o aborto como demanda principal. A partir de 2018, o movimento todo se organiza a partir dessa demanda. Os dois processos se retroalimentam: Ni Una Menos massificou o feminismo e gerou um movimento crítico para que, depois, essa campanha nacional, que não era tão massiva, se tornasse massiva, com quase dois milhões de pessoas nas ruas no dia da aprovação do aborto.

Aqui no Brasil, a gente teve um ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por uma militante antiaborto, a hoje senadora Damares Alves. O atual governo do presidente Lula tem enfrentado resistência de um Parlamento muito conservador, que no ano passado tentou aprovar o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto no Brasil. Pela experiência de vocês nessa luta, qual é a expectativa para o Brasil para avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas demais políticas de gênero?

Estamos em um momento de reação conservadora global. Na Argentina, inclusive, tem candidatos às eleições deste ano falando de revogar a lei do aborto, principalmente o candidato da extrema-direita.

Como relação ao Brasil, o governo brasileiro é parte dessa nova onda de governos populares que estão mais fracos que os governos do início do século – como os primeiros governos de Lula ou Kirchner –, mas têm essa particularidade de que, por causa dos movimentos feministas, têm que incorporar um vocabulário que leve em conta essas desigualdades de gênero e raça. 

Não acreditamos que esse tipo de legislação [do aborto legal e seguro] possa ser obtida unicamente pela vontade política do governo que esteja no poder. Estamos vivendo um momento em que, diferentemente do início do século, temos uma ultra-direita organizada que está fazendo uma disputa corpo a corpo para que esses direitos não avancem. Com relação ao Brasil, esperamos que cresça a organização política em torno dessas demandas, para que assim o governo se veja pressionado a avançar nesse tipo de legislação.

Além do combate ao feminicídio, que continua sendo fundamental, e da garantia do acesso ao aborto legal e seguro, outro direito que ainda precisa ser conquistado em vários países, que bandeiras você enxerga como fundamentais na agenda feminista da América Latina hoje?

O feminismo é o único movimento que pode questionar a totalidade da organização social e política que existe em nossos países. Estamos tendo uma discussão muito importante a nível regional com relação aos cuidados, ao trabalho reprodutivo, a quem produz a riqueza e quem fica com essa riqueza. E isso está diretamente relacionado com a violência, porque sabemos que quem tem autonomia econômica pode sair das violências, mas para quem não tem é muito difícil. Então, eu diria que a discussão sobre a remuneração do trabalho reprodutivo, sobre o reconhecimento, sobre a necessidade de que o Estado ofereça serviços públicos de cuidado, é hoje uma discussão que atravessa toda a região. 

Na Argentina, estamos debatendo neste momento uma lei de cuidados. E estamos fazendo pressão para incluir a discussão sobre o trabalho informal e o trabalho comunitário. Acho que esse pode ser um ponto de união importante na agenda: falar sobre quem trabalha e quem fica com a riqueza, porque isso também nos faz discutir o sistema tributário. Então, acredito que o ponto de condensação na América Latina pode ser a necessidade de atribuir valor ao trabalho feminino.